Aqui e ali ouvem-se lamentos pelo desprestígio da dita arte da articulação política. Ou da habilidade política, na versão miniaturizada. Mas até os cachorros do Pavlov aprenderam a salivar conforme os estímulos certos, e é compreensível o presidente desconfiar da receita clássica.
Dos dois governantes recentes experts em articulação política, um já completou o primeiro aniversário na prisão e o outro anda num entra e sai. Atenção: não discuto a justeza dos castigos impostos a Lula e Temer. Apenas constato. E na política discutir se as coisas são justas ou não talvez seja desperdício de tempo.
Tanto pediram que aconteceu. O bonapartismo de Bolsonaro é produto de três décadas de esculacho e achincalhe da (articulação) política. Começou logo depois do fim dos governos militares. Quando José Sarney lutava por votos que evitassem ele ser deposto na Constituinte, o sarneyzista Roberto Cardoso Alves explicou: “É dando que se recebe”.
A política é assim desde que o mundo é mundo, e em qualquer lugar do mundo, mas foi a senha para o Robertão virar alvo dos milicianos recrutados pela opinião pública, na cruzada contra o pecado mortal rotulado de fisiologismo. E desde então pede-se ao presidente da hora que governe sem os políticos.
Ou contra eles.
E a coisa veio vindo assim, aos trancos e barrancos, até a Lava-Jato aparecer para pescar nesse tanque. Quando toda contribuição eleitoral, declarada ou não, fica suspeita se o beneficiado defende algum interesse do doador, a consequência é o Ministério Público divertir-se num pesque-e-pague em que os peixes são os políticos.
Mas também isso é produto de um trabalho sistemático e continuado de anos. O eleito defender interesses de quem o ajudou com dinheiro na campanha virou com o tempo grave violação ética. E aí, naturalmente, o financiamento eleitoral deslizou para as sombras e a clandestinidade.
A clandestinidade é um caldo de cultura ótimo para o crime. E aconteceu. Os operadores clandestinos de recursos eleitorais passaram a querer, e pegar, um naco do negócio. E aí todo o sistema político foi contaminado e ficou vulnerável para valer.
E chegou a recessão de 2015, e foi dito ao povo que dinheiro tinha, mas infelizmente estava sendo desviado pela corrupção e pelo desperdício. No Brasil tem muito dos dois, mas se ambos desaparecessem instantaneamente o problema fiscal continuaria praticamente do mesmo tamanho.
Mas vá você argumentar. Depois de anos de lavagem cerebral, o Brasil está convencido: um governo que não roube será capaz de prover serviços púbicos de qualidade e manter as contas organizadas, algo essencial para o desenvolvimento. E isso sem aumentar impostos.
Então, dada a situação econômica ruim -e provavelmente vai piorar, antes de talvez melhorar-, se o presidente deixar-se enredar numa teia política e for acusado de ser o responsável pelo sofrimento do povo, por ter cedido à velha política, sua excelência estará a caminho da guilhotina.
O que não será um grande problema para a elite e a opinião pública, desde que Bolsonaro já tenha entregado a mercadoria, a reforma da previdência. O ex-mito seria descartado a um custo quase zero, e outros abocanhariam a máquina rumo a 2022.
É razoável Bolsonaro não achar graça nisso, pois é humano que queira continuar com a cabeça politicamente grudada no pescoço. E é natural ele imaginar que se sobreviver aos primeiros quatro anos poderá ganhar mais quatro. Tem sido a lógica desde que a reeleição foi introduzida.
Daí o presidente resistir à divisão de poder com o Congresso. É mais saboroso ter tudo para si. E seria arriscadíssimo aparecer daqui a pouco como sócio de alguma confusão. Já bastam as dele e do entorno vindas do passado. Mas nestas ele não pode nem ser investigado.
E o Legislativo tampouco vai conseguir achar saídas fáceis. Não tem clima social ou político para pautas-bomba. A última ameaça do dito centrão é votar uma reforma da previdência da lavra dos congressistas. E impor ao governo uma agenda econômica pró-mercado mas nascida no Legislativo.
E lá são ameaças? Não será exatamente o que o governo quer? Um parâmetro sempre importante da política é a resposta à pergunta “se nada acontecer, acontece o quê?”. Se nada acontecer, é provável que alguma reforma da previdência passe? Sim.
Ou seja, a relação custo-benefício de se meter agora numa negociação de divisão de poder com o Congresso seria péssima para o presidente da República. Mas a condição para o plano andar é outros fazerem o serviço legislativo. Ou virá a narrativa de que a confusão está atrapalhando a economia.
O presidente parece acreditar que o Congresso não tem saída a não ser aprovar a pauta do mercado.
Na dúvida, o governo vai tratar de reocupar a rua. Depois das maciças manifestações do dia 15, precisa restabelecer o equilíbrio. E assim pressionar o Congresso de fora para dentro. Temia-se isso da esquerda. Mas quem está fazendo é a direita. Comum acontecer.
Pode dar errado? Só se a esquerda topar juntar com a direita ex-bolsonarista para levar ao poder alguém “de centro”. Improvável. Ou se vier uma ruptura intestina. Mas isso ainda não está no horizonte próximo.
Alon Feuerwerker,
ResponderExcluirDesde Sarney que eu sou revoltado com os nossos meios de comunicação por criticar o fisiologismo. Se dentro da lei, o fisiologismo, não havendo o interesse maior da nação visível, a composição de interesses conflitantes no parlamento que é a essência da atividade democrática só pode se dar mediante o fisiologismo, o é dando que se recebe, o toma-lá-dá-cá, o conchavo, a barganha, o acordo. Ser contra o fisiologismo é ser antidemocrático.
Há 30 anos digo isso e não me lembro de ter convencido ninguém. Surpreendi-me uma vez lendo post no seu antigo blog em que você dizia algo parecido.
Na verdade a sociedade é educada a ser contra o fisiologismo. Faz parte da cultura de qualquer país do mundo. O nosso sucesso é devido ao nosso mérito. O nosso fracasso decorre do outro. E nada melhor do que recair na atividade política a culpa pelos nossos fracassos.
Nenhum jornalista vai querer impor um argumento que fere cada um lá dentro do seu âmago.
Agora, além de ser eleito com o argumento contra o fisiologismo, o governo é oriundo das forças armadas. O exército tem uma atividade bem específica de tal modo que o interesse maior da nação é muito visível e ele, portanto, não deixa espaço para o fisiologismo.
Abraços,
Clever Mendes de Oliveira
BH, 24/05/2019
Alon Feuerwerker,
ResponderExcluirOntem enviei um comentário aqui para este post. Hoje vejo que ele não aparece. Não creio que ele fora eliminado por infligir alguma norma a menos que seja pelo tamanho, mas não vi nenhuma orientação a respeito de número máximo de caracteres.
Há algum procedimento prévio que eu não adotei para poder enviar um comentário? Caso haja qual seria ele e se não houver por que razão ele não foi aceito. Há cerca de uns dois anos eu acho que já me ocorrera problema semelhante.
O comentário anterior eu enviei sem visualizar. Ao visualizar verifiquei que o nome pelo qual era enviado era Julinha que é o nome de minha enteada. Pode ter sido esse o motivo. Agora aparece com o nome de Anônimo. Vou tentar enviar assim e depois tento colocar meu nome.
Fiz uma nova tentativa e apareceu a informação de que o “campo obrigatório não pode ficar em branco”. A questão é que não vi o tal de campo obrigatório
Clever Mendes de Oliveira
BH, 25/05/2019