sábado, 30 de julho de 2022

A guerra das pautas

Desde a redemocratização, é rotina nas nossas eleições presidenciais os contendores apresentarem-se como a essência do altruísmo. Nunca se trata de entronizar certo grupo para aplicar certo programa, mas de fazer a eterna escolha decisiva para a salvação nacional. A circunstância de isso coincidir com a ocupação do Estado por certa corrente ou conglomerado seria apenas isso, uma circunstância.

Tal narrativa, além de capturar votos, leva a vantagem de oferecer uma razão heróica para aderir ao poder, ou à expectativa dele. A arte da política reside também em defender o próprio interesse, e o do grupo, mas em dar a impressão de estar defendendo, antes de tudo, o interesse geral. O príncipe precisa cultivar duas lealdades fundamentais para preservar o pescoço: a lealdade da corte e a da massa.

Na utopia, poderíamos estar às vésperas de uma campanha em que sobressaíssem os caminhos para reindustrializar o Brasil, retomar o desenvolvimento acelerado, atrair capital para o necessário salto na infraestrutura, melhorar radicalmente a educação básica, acabar com o subfinanciamento da Saúde, atacar a criminalidade e construir um sistema político capaz de produzir estabilidade e progresso social.

Mas há a possibilidade, e isso não é um lamento, é constatação, de essa pauta vital ser interditada nos próximos dois ou três meses, com o Brasil ocupado discutindo se é mais importante salvar o país do bolsonarismo ou do petismo. Na cúpula intelectual, o antibolsonarismo ganha de goleada. No povo, está bem mais apertado.

E o apelo salvacionista desta vez vai se polarizando em torno da dita questão democrática. Diferente de 2018, quando o demônio da hora era a corrupção. E o PT está levando vantagem. Por seus acertos, pelos erros do adversário, mas também por razões históricas.

Apontar o dedo contra o petismo pela proximidade com governos de esquerda mal vistos no Ocidente não parece, até o momento, fazer efeito. Pois o PT não carrega no currículo o apoio ou o elogio ao golpe de 1964 e, regra geral, respeitou, ou foi forçado a respeitar, o resultado das eleições presidenciais que perdeu. Nem no impeachment de Fernando Collor o petismo foi protagonista.

Deixou isso para o então PMDB e o PSDB.

Luiz Inácio Lula da Silva e o PT estão jogando essencialmente dentro das regras há quatro décadas. Esse é um fato. E isso está ajudando um e outro a ficar bem posicionados para agora colher os frutos. Esse é outro fato.

Do lado oposto do ringue, Jair Bolsonaro foi produto da implosão da Nova República e agora assiste à aglutinação dos remanescentes dela em torno da defesa e do resgate daquela simbologia, sintetizada na ideia da frente ampla.

A convergência é facilitada pelo contraste com as teses sempre professadas pelo “capitão do povo”, como diz o jingle. E facilitada também pela até agora importância que o incumbente dá ao debate sobre o voto eletrônico.

Eleições têm um pouco de judô. Se acertar a pegada no quimono do oponente, é meio caminho andado na luta. Por enquanto, a agitação da “salvação da democracia” tem ajudado Lula a agregar apoio político por gravidade e funcionado como freio adicional para impedir, ou dificultar, Bolsonaro de capitalizar alguns recentes dados positivos no universo da economia.

Aqui, a inércia do debate joga ao lado de Lula. Quem precisa criar o fato novo, voltar a pauta para os assuntos econômicos, é o presidente.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Quem vai encaixar melhor?

Cada processo eleitoral apresenta uma ou duas variáveis-chave, e navega mais facilmente a candidatura com imagem pública mais solidamente associada à capacidade de dar atenção a essas variáveis, e, portanto, apresente-se como mais capaz de solucioná-las.

Jair Messias Bolsonaro venceu a eleição de 2018 principalmente porque sua imagem pública, construída ao longo de décadas, estava vinculada à firmeza no combate ao crime. Isso encaixava com as duas demandas mais sensíveis do eleitorado naquele ano: atacar implacavelmente o crime de corrupção e a impunidade dos criminosos em geral.

As angústias principais agora em 2022 são outras: a inflação e o desemprego, que trabalham para aprofundar a pobreza e a fome. Daí Luiz Inácio Lula da Silva enfrentar menos vento contra que o presidente, ou até ser empurrado por vento favorável.

Pois ao longo da década e meia petista no poder Lula foi acusado de muitas coisas, mas preservou intocada, e todas as pesquisas comprovam isso, a imagem de governar com especial atenção para o combate à pobreza, à fome e à desigualdade.

A missão da campanha do PT é congelar a hierarquia das preocupações da sociedade, fazer chegar outubro com a impressão disseminada de que a economia vai muito mal, especialmente a inflação e o desemprego. Portanto cabe ao governismo tentar inverter a equação.

Há dados objetivos (os fatos costumam ser teimosos) a mostrar a redução do desemprego, e as mesmas pesquisas que trazem o favoritismo de momento de Lula mostram a percepção popular sobre a inflação melhorando rapidamente.

A dúvida é se haverá tempo hábil para consolidar a sensação de um cenário econômico mudando para melhor e que não vale a pena “mexer em time que está ganhando”. Como diz o batido ditado em língua inglesa, trata-se de batalha morro acima para o situacionismo.

E sempre estará ao alcance do petismo repetir 2002. Se a situação eleitoral apertar, se a chapa esquentar, assumir o compromisso de não dar um cavalo-de-pau na economia. Até agora não tem sido necessário, pois a anabolização do antibolsonarismo “de centro” tem levado votos a Lula por gravidade, sem o PT ter de fazer qualquer concessão programática.

Será necessário olhar também como vão evoluir as taxas de rejeição dos candidatos, diante da inevitável campanha negativa que vem aí. Se Lula precisa manter o diferencial favorável nesse quesito, aumentar a repulsa ao petista é um caminho óbvio para o bolsonarismo.

Pois, quando um eleitor diz que não vai votar de jeito nenhum no candidato “x”, a saída intermediária para o candidato “y” é convencer esse eleitor a não votar em nenhum dos dois.

Outro detalhe: nas pesquisas estimuladas, a taxa de “não voto” tem girado em torno de 10%, o que é irrealista, pois a série histórica mostra esse contingente (abstenção mais brancos mais nulos) entre 25 e 30%. Por isso é recomendável prestar atenção à evolução das pesquisas espontâneas, nas quais o “não voto” aparece mais próximo dessa tradição.

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Publicado na revista Veja de 03 de agosto de 2022, edição nº 2.796

sábado, 23 de julho de 2022

Política sem economia

A dúvida do momento é quanto, e em que velocidade, Jair Bolsonaro vai angariar na contabilidade eleitoral em consequência da melhora no ambiente econômico e dos benefícios sociais aprovados pelo Congresso Nacional. O presidente apresenta duas desvantagens comparativas em relação a antecessores que operaram agrados econômicos pré-eleição: 1) o pacote atual é bem mais modesto que alguns precedentes (Planos Cruzado e Real) e 2) uma forte barragem de opinião pública negativa a servir de muro de contenção à popularidade.

Mas, mesmo lentamente, Bolsonaro vai ao menos impedindo a demolição pretendida pelos oponentes e estabiliza-se para ir ao segundo turno numa posição não previamente derrotada. Daí que o desafiante Luiz Inácio Lula da Silva tente, de última hora, operar o MDB para implodir a candidatura de Simone Tebet, cujos, até agora, pontinhos nas pesquisas acabam por vitaminar os adversários do petista a somar algo acima da barreira de metade mais um.

Lula está certo em tentar tudo para liquidar a fatura no primeiro turno. Trata-se, no mínimo, de unir o útil ao agradável. O agradável é não ter de negociar nada com ninguém além do já acertado na primeira rodada e não ter de enfrentar debates no mano a mano. O útil é não correr o risco de uma reviravolta impulsionada pelo combustível do antipetismo “de centro”. Que anda meio adormecido e sumido, encoberto pelo antibolsonarismo “de centro”, mas não foi eliminado. Está logo ali na prateleira para uma eventualidade.

O cenário ideal para Lula é riscar Simone Tebet da lista de candidatos e depois partir para cima do eleitor de Ciro Gomes. Boa parte do contingente, limitado mas relevante, de Ciro nas pesquisas diz que votaria no petista num eventual segundo turno e nem mesmo está seguro do voto no primeiro. É um mercado potencial para a mensagem do voto útil. Que virá com força para tentar lipoaspirar Ciro e eventuais outros, como lipoaspirou Geraldo Alckmin em 2018 na onda que tentou liquidar a fatura a favor de Bolsonaro no primeiro turno.

Mas isso é futurologia, o assunto do momento é quanto Bolsonaro vai faturar de intenção de voto por causa da redução do preço dos combustíveis e do pacote social. O mais interessante é notar que o povão e a opinião pública parecem rodar em universos paralelos, em frequências distintas. Os temas que mobilizam ambos andam distantes. É natural: quando está em jogo a sobrevivência material, ela tende a concentrar criticamente as atenções e motivações dos mais ameaçados. E a comunicação dos outros assuntos fica meio sem chão na grande massa.

Bolsonaro vem reduzindo a possibilidade de a oposição conectar economia e política na comunicação, pois tomou as iniciativas anti-inflacionárias que certamente a oposição tomaria, especialmente para os mais pobres. Sem esse nexo, a mensagem política meio que patina. Isso ajuda a explicar a atual resiliência bolsonarista, assim como a liderança do petista se explica pelo currículo e a identificação de Lula com os grupos de menor renda e historicamente preteridos. A dúvida é sobre quem vai furar primeiro a bolha do adversário. E se isso vai acontecer.

sábado, 16 de julho de 2022

Os três desafios de Bolsonaro na batalha morro acima

É provável que o pacote de benefícios sociais aprovado pelo Congresso, somado ao esforço governamental para reduzir o preço dos combustíveis ao consumidor final, ajude o presidente Jair Bolsonaro a vitaminar seus índices nas pesquisas de avaliação dele e do governo. E nas eleitorais. Até por haver uma correlação estatística conhecida entre as taxas de aprovação de governos e a probabilidade de governantes serem reconduzidos.

É natural, portanto, que a oposição busque apresentar essas medidas como provisórias e voltadas unicamente à eleição. O que pressionará os candidatos, todos eles, a assumir o compromisso de mantê-las caso eleitos. É possível até que alguma iniciativa venha a progredir nesse sentido no Congresso ainda durante a campanha. Ainda não se inventou um sistema em que eleições periódicas com vários partidos estejam imunes ao “eleitoralismo”.

Bolsonaro tem três desafios de momento na batalha dele morro acima: 1) evitar que Luiz Inácio Lula da Silva vença no primeiro turno, 2) melhorar o desempenho nas projeções de segundo turno, para impedir corrosão ainda maior da sua expectativa de poder e 3) evitar ser ultrapassado por alguma surpresa da “terceira via”. No momento, o menos complicado para ele é o terceiro desafio, dada a anemia do centrismo.

O pacote social ajuda a provocar um segundo turno, mas não é suficiente. Lula pode levar na primeira rodada mesmo que o presidente reaja, se o petista conseguir lipoaspirar já de cara a votação dos demais. O alvo principal é Ciro Gomes, que ronda os dois dígitos na intenção de voto, mas vê pelo menos metade do seu eleitorado potencial dizer que pode mudar o voto e propenso a votar em Lula no segundo turno.

Sobre a expectativa de poder, o desafio de Bolsonaro é mudar a opção majoritária do eleitorado que não está com ele nem com o petista. Hoje, na média das pesquisas, a diferença de Lula para o presidente cresce de dez para quinze pontos entre o primeiro e o segundo turnos. Ou seja, o pré-candidato do PT atrai mais gente desse estoque de votos, pois Bolsonaro lidera no incômodo ranking das rejeições.

Dilma Rousseff elegeu-se em 2014 mesmo com rejeição relativamente alta, pois conseguiu ao longo da campanha elevar a rejeição dos oponentes, no primeiro e no segundo turnos. Espera-se este ano uma repetição, potencializada, da intensa comunicação negativa que caracterizou aquela corrida eleitoral. Com consequências fortes no pós-eleição. Mas políticos querem saber é de ganhar. O depois vê-se depois.

E fica o registro de que, quando a oposição exige do governo medidas contra os problemas que afligem a população, ela corre um risco: o governo tomá-las.

Ao longo dos últimos meses, em particular nas últimas semanas, a oposição, parlamentar e extraparlamentar, bombardeou o governo com estatísticas a demonstrar a gravidade da pobreza e da fome. O que conferiu alguma autoridade moral para o governo, com o apoio maciço do Parlamento, driblar o teto de gastos e a legislação eleitoral. O Conselheiro Acácio, sempre ele.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Uma bobagem perigosa

É razoável relacionar a estabilidade e a paz política com a capacidade de o Estado construir consensos majoritários. E são duas as ferramentas fundamentais para essa construção: o convencimento da sociedade com e sem coação. Na vida real, a resultante é sempre uma combinação dos dois vetores.

Nenhum governo se sustenta apenas com base na força, mas governos que não têm força tampouco param em pé. E em democracias constitucionais plurais como a nossa os governos dependem também de uma variável externa a eles: os grupos sociais hegemônicos, mesmo os opostos, conseguirem dialogar e alcançar convergências.

Algo como uma mútua aceitação, ainda que implícita.

Não há estabilidade e paz possíveis se largos contingentes sociais e partidários enxergam-se simplesmente excluídos do edifício político-cultural quando perdem uma eleição. Tampouco haverá normalidade política nos sistemas fechados em que um grupo considere insuportável a convivência com o antípoda. Isso deveria ser óbvio.

A ideia original da Nova República de 1985 era colocar em prática um pacto informal para garantir a todos os relevantes o acesso ao poder, por eleições diretas. Ganhar, governar e, quando perder, esperar pela próxima eleição. E por um período o convívio entre as diversas forças foi essencialmente institucional, com um soluço: o impeachment de Fernando Collor.

Os estudiosos um dia diagnosticarão onde a maionese começou a desandar, mas aquele episódio tem boa chance de figurar com destaque. Ali voltou a dar as caras uma cultura do “nunca mais”. Cada eleição passou a ser vendida como a derradeira oportunidade de o país salvar-se do mal. E, numa imagem especular, escolher um salvador da pátria.

Que, convenientemente, precisa chegar ao poder, ou continuar nele, para salvar a pátria ao livrá-la do indesejável “outro”.

Mas e se o “outro” reúne, digamos, pelo menos um terço do eleitorado? Aí complica. É muita gente. Veja-se o ocorrido com o Partido dos Trabalhadores e seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva. Não só sobreviveram à guerra de extermínio, hoje estão em posição eleitoral auspiciosa.

A mola, quanto mais comprimida, mais acumula energia potencial à espera de se soltar.

A quem antes de tudo interessa a paz política? Ao poder. Seria razoável então supor que dele viessem as iniciativas para incluir, fagocitar e digerir as resistências externas. Mas a era da hiperconectividade e das redes introduziu um complicador: os políticos precisam responder rapidamente aos estímulos externos, sempre de olho no que a turba vai achar.

Turba que hoje exibe um poder próprio e invejável.

A violência política explícita (a implícita sempre foi parte do jogo) é simultaneamente consequência e realimentadora desse arcabouço. E a ilusão maior é achar que se vai neutralizá-la seguindo no jogo de caça e caçador até conseguir, finalmente, eliminar o adversário.

Em momentos históricos singulares, alguns países tiveram a sorte de encontrar personagens capazes de entender que isso é simplesmente bobagem.

 
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Publicado na revista Veja de 20 de julho de 2022, edição nº 2.794

sábado, 9 de julho de 2022

Incógnitas na PEC

Eleições sempre envolvem cálculos arriscados. E a oposição a Jair Bolsonaro está diante de um deles. Se vota a favor do pacote de benefícios sociais, ajuda a injetar água no moinho da reeleição. Se vota contra, coloca-se como alvo fácil da propaganda bolsonarista. Objetivos apetitosos supõem caminhos complicados. E este é um caso em que o prêmio, o Palácio do Planalto, vale definitivamente o risco.


A oposição dá sinais de persistir na primeira opção, até porque o governo parece ter os votos suficientes. E à oposição não convém ficar contra os mais vulneráveis às dificuldades economicas. A margem de Luiz Inácio Lula da Silva sobre Bolsonaro nas pesquisas está toda alicerçada nas camadas sociais de menor renda. As medidas governamentais visam a beneficiar exatamente esses grupos, mas a migração de simpatias eleitorais não tem sido automática, por enquanto. O Auxílio Brasil dobrou o valor do Bolsa Família, mas os beneficiários continuam votando majoritariamente no petista.


Se o cálculo é eleitoral, os discursos e a narrativa tentam, naturalmente, escapar dessa caracterização. A preocupação com a disciplina fiscal, que não deu as caras quando o auxílio emergencial e a ajuda a estados e municípios estouraram espetacularmente o teto de gastos na pandemia, volta agora com esplendor. Mas desta vez os políticos parecem pouco vulneráveis aos apelos pela proteção ortodoxa das contas públicas.


Pode-se argumentar que em 2020 havia mesmo uma pandemia, e agora as atividades econômicas foram normalizadas. Mas de semanas para cá o Brasil ficou sabendo que 30 milhões de pessoas passam fome no país. Haverá poucas situações mais características de uma emergência. Então não dá, ou ao menos é bastante desafiador, para, ao mesmo tempo, alertar sobre a calamidade social mas dizer que não se deve fazer nada a respeito até a eleição.


Se não surgir um raio em céu azul, a Proposta de Emenda Constitucional passa na Câmara dos Deputados e o texto vai à promulgação. Aí restarão duas incógnitas: 1) se o Supremo Tribunal Federal vai jogar água no chope e 2) quanto as benesses vão mexer o ponteiro das pesquisas.


A posição do Judiciário é complexa, também por duas razões: 1) o apoio maciço dos parlamentares à PEC e 2) a falta de um bom argumento para justificar que as pessoas só devem deixar de passar fome depois que a eleição passar. Sobre o efeito eleitoral, é improvável que não venha a ter algum, o que apenas reforça a previsão de caminharmos para uma disputa mais apertada do que indicam os números de hoje.


Pois Bolsonaro ganhou a eleição quatro anos atrás por dez pontos, e agora Lula lidera as pesquisas por uma margem, na média, dessa ordem de grandeza. Portanto há um eleitorado flutuante, algo entre dez e quinze milhões, que já votou no PT, migrou para Bolsonaro e agora diz que vai de Lula. Não é absurdo supor que para esse eleitor os argumentos econômicos pesem mais que os ideológicos.


sábado, 2 de julho de 2022

A polarização e o estertor da Nova República

Há um certo quê de Velho do Restelo no lamento permanente contra a polarização política, que a narrativa aponta como acontecendo agora numa escala inédita. E à lamentação costuma seguir-se uma fúria santa, o apelo à solução mágica: cada um busca eliminar da polarização o incômodo “outro”. Mais pedregosa é a missão do autodenominado centro, que se impôs em algum momento a tarefa de remover da cena não um, mas os dois polos.

Talvez não haja sintoma mais definitivo da agonia da Nova República, cujo pilar central, ou um dos, era a premissa de que todos os grupos políticos teriam o direito de existir e disputar o poder. E, naturalmente, revezar-se nele. Mas os fatos das últimas décadas acabaram revelando (como se precisasse ser revelado) que esse “direito universal” seria, na prática, não tão universal assim.

Tudo começou com o impeachment de Fernando Color de Mello, em que as evidências de um “crime de responsabilidade” formal eram ainda mais escassas do que viriam a ser no caso Dilma Rousseff. Collor não foi ejetado por eventuais crimes, mas por faltar-lhe base política, já que era “de fora” do bloco vitorioso em 1985. Bloco que vinha de fracassar espetacularmente nas eleições presidenciais de 1989, mas mantinha hegemonia no Congresso e na sociedade civil.

Quando a passagem do tempo der uma desbastada nas paixões que contaminam a análise histórica, ver-se-á aquele impeachment na origem da dinâmica política que acabou levando ao passamento da Nova República. Foi a semente da ideia, agora amplamente disseminada, de que vale tudo para eliminar o adversário da cena. O curioso, ainda que previsível, é a “defesa da Nova República” servir hoje para justificar exatamente o contrário dela.

A Nova República buscou substituir a autocracia por um regime democrático-constitucional em que o Legislativo fosse o palco para alcançar as maiorias e consensos possíveis. Hoje, recebe-se com naturalidade que esse papel seja transferido ao Judiciário, o único dos três poderes não eleito diretamente pelo povo. E se você mexe na realidade ela também o transforma: o Supremo Tribunal Federal virou um mini-Congresso.

A Nova República veio para restaurar a imunidade parlamentar e proteger os mandatos contra as cassações arbitrárias. Hoje, a cultura do cancelamento contaminou a representação política e cassar mandatos virou algo aceitável e até rotineiro. O aspecto mais estupefaciente é o próprio Legislativo receber com passividade a invasão de suas atribuições. Nós tempos do regime militar, pelo menos ouviam-se bons discursos de protesto quando mandatos eram cassados.

Os exemplos são muitos. Um evidente está na criminalização da liberdade de expressão, a pretexto de proteger contra as “ideias erradas”. E por aí seguimos. A situação que vai se criando é confortável para quem, em certo momento, está em situação vantajosa na batalha permanente para a supressão do adversário. Aí ouvem-se, do lado mais fraco, os apelos ao respeito aos direitos e garantias previstos na Carta. Quando o vento muda, mudam de lado os argumentos. E com a maior naturalidade.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Eleição das comparações

A dúvida do momento, e deverá ser assim até a eleição, é para onde vai eleitorado que votava no PT, deslocou-se progressivamente para o outro campo ao longo dos mandatos petistas e há quatro anos acabou apoiando Jair Bolsonaro.

Eram tempos de auge da Lava-Jato e da janela de oportunidade para a agenda liberal, que os percalços do terminal governo Michel Temer não tinham chegado a ferir de morte.

É razoável supor que as chances de vitória em outubro dependam em boa medida da capacidade de dialogar com essa turma, que por um viés metodológico recebe o rótulo de “centrista”.

Mas oscilar entre a esquerda e a direita não faz de alguém um centrista.

O “de centro” raiz é quem que, no vocabulário da moda (já esteve mais), rejeita “os extremos”. As pesquisas de melhor método mostram essa fatia de mercado girando abaixo de 15%.

Eis uma das dificuldades da terceira via. Se você diz que o grande problema do Brasil é o “extremismo de esquerda”, está chamando de bobo o eleitor de Luiz Inácio Lula da Silva. Se diz que é o “de direita”, o alvo da depreciação passa a ser o eleitor de Bolsonaro.

E se o discurso é “contra os dois extremismos” você entra na disputa brigando com três quartos do eleitorado. Discorda? Lamento. Os projetos centristas vitoriosos sempre procuraram dialogar respeitosamente com outros campos políticos.

Centrismo excludente é contradição em termos.

A propósito, será que o desafio dos dois líderes está em deslocar-se para o centro? Será que se diluir é a melhor tática para a vitória no cenário específico de agora?

Talvez não. É possível que a eleição se decida pela percepção do eleitor a respeito de quem vê em melhores condições, pessoais e políticas, para combater os dois principais problemas do momento: a inflação e o desemprego.

É onde Lula está, por enquanto, levando vantagem sobre Bolsonaro. No currículo. Na comparação das realizações de cada governo. Detalhe reforçado por uma particularidade: é a primeira vez que o presidente e um ex concorrem juntos à cadeira.

Claro que há as circunstâncias, e elas contam que Lula governou quase todo o tempo em ambiente de bonança, e quando o clima virou deu um jeito de fazer o tsunami virar uma marolinha. Provisória, mas marolinha.

Já Bolsonaro topou com dois anos de pandemia e uma guerra na Europa, dois fatos destrutivos para a economia global.

Mas quem gosta de discutir circunstâncias são analistas e militantes. Eleitor comum quer saber é de entregas.

Uma diferença, que pode estar ajudando a fazer a diferença: na crise de 2008 Lula reagiu rapidamente e assumiu a paternidade incondicional das medidas anticíclicas, enquanto Bolsonaro frequentemente dá a impressão de estar algo desconfortável com esse tipo de medida, sem contar a lentidão para reagir.

A guerra na Ucrânia começou faz quatro meses, e as providências para combater a alta nos preços dos combustíveis ainda tentam ganhar tração. E já passou mais da metade do tempo para a eleição.

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Publicado na revista Veja de 06 de julho de 2022, edição nº 2.792