sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Cenário desenhado

O desenho até o momento do ministério Lula aponta um núcleo decisório e formulador essencialmente petista, na política e na economia, com aliados à esquerda ocupando uma segunda camada de ministérios com prestígio social, mas pouca capilaridade orçamentária, e neoaliados projetados para espaços com potencial orçamentário para manter disciplinado o pedaço de direita da base parlamentar.

A contradição permanente a administrar será entre a orientação francamente à esquerda do núcleo decisório governamental e a maioria de direita no Congresso Nacional. Dois mecanismos devem reduzir as dificuldades do governo nessa empreitada: 1) a discricionariedade na execução orçamentária dos ministérios, com manutenção do sigilo do “quem pede” em boa parte das operações; e 2) a aliança entre governo e STF.

O modus operandi verificado nas decisões do Congresso sobre a PEC dos gastos adicionais e do STF sobre as emendas de relator deve repetir-se, com o Executivo apoiando-se na aliança com o Judiciário para reduzir a força do Legislativo nas negociações ponto a ponto. Isso deve acentuar-se quando o novo governo conseguir preencher as duas vagas que devem se abrir pela aposentadoria do ministro e da ministra que saem no próximo ano.

Claro que a sustentabilidade desse desenho, bastante favorável ao governo, vai depender do andamento da economia e do consequente estado do humor popular, de que o humor congressional costuma ser função. Mas no curto prazo não parece haver nuvens carregadas no horizonte, até porque a inflação dá sinais de evoluir melhor que as previsões.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Mais uma gambiarra. E a solução

O Supremo Tribunal Federal suspendeu momentaneamente o julgamento sobre as emendas de relator ao Orçamento Geral da União, à espera de uma decisão do Congresso Nacional.

Decisão que veio, com uma curiosidade: institucionalizou-se a desigualdade entre os iguais, formalizando o fim da ilusão de algum tipo de primus inter pares. Se prevalecer, a nova regra legalizará o fato de, no nosso Legislativo, todos serem iguais, mas uns serem mais iguais que os outros.

Pois certos personagens adquirirão, por lei, a prerrogativa de destinar mais recursos a seus redutos eleitorais. E aí ficará no ar a pergunta ingênua: por que o eleitor que votou num político da oposição, ou num parlamentar que não capturou cargo de comando no Congresso, tem menos direito de ver suas demandas contempladas no Orçamento?

Ora, porque a oposição, como o próprio nome já diz, perdeu a eleição, explicaria a realpolitik.

Espero que até aqui o leitor já tenha notado a falsa ingenuidade embutida nesses questionamentos, mas ao menos para algo vem servindo a polêmica em torno do “orçamento secreto": lançou-se luz sobre como transcorre a vida real nas relações entre o Executivo e o Legislativo.

E sobre a diferença entre um Judiciário disposto a ajudar e um disposto a atrapalhar.

E lá vamos nós adicionar mais uma gambiarra no carro velho, quando talvez estivéssemos diante de uma oportunidade, se pegássemos uma carona no debate em torno das emendas de relator e enfrentássemos o problema de fundo: o sistema político. Pois parlamentares só podem ser vistos pela lente da igualdade se tiverem sido eleitos em condições razoavelmente semelhantes.

Não vou falar aqui em “reforma política”. Um velho chiste brasiliense recomenda que a melhor reforma política é não fazer nenhuma, pois a probabilidade de o Congresso Nacional, quando mexe no assunto, piorar o sistema tende a 100%.

Mas está evidente que nosso voto proporcional em lista aberta, com o estado funcionando como distrito eleitoral e com o absoluto desrespeito à proporcionalidade na representação da Câmara dos Deputados (precisaríamos aqui de um Nelson Mandela para impor o “um eleitor, um voto”), faz de qualquer princípio de igualdade uma piada.

Teríamos então dois caminhos para trilhar: 1) a série de gambiarras vocacionadas a atender momentâneos espasmos de opinião pública; ou 2) algo mais definitivo.

Tornar igualitária e transparente a execução de emendas parlamentares seria mais fácil, ao menos no caso dos deputados federais, se o voto fosse distrital, com distritos de tamanho aproximadamente igual. E, já que o financiamento de campanhas é estatal e canalizado unicamente pelos partidos, seria razoável também eleger parte dos representantes por lista fechada.

Ou seja, o sistema distrital misto.

Mas nem Ernesto Geisel, com o AI-5 em vigor, conseguiu (ou quis) mexer com o sistema, quando teve a oportunidade, no Pacote de Abril de 1977. Ao contrário, conseguiu piorar o cenário ao agravar a desproporcionalidade na representação, para prorrogar a sobrevida do regime.

E a “Cidadã” de 1988 tampouco lancetou o abcesso. Talvez só uma nova Constituinte, exclusiva, consiga fazê-lo. Mas ela está fora dos horizontes neste momento de reacomodação do “sistema”.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O vale-governabilidade

A semana que precedeu a última quinzena antes da posse foi marcada pela busca de algum acordo, ou alguma solução imposta, porém aceitável para todos, em torno do controle sobre o Orçamento federal. Em debate, a PEC dos gastos e o destino das emendas de relator no Supremo Tribunal Federal.

O novo Executivo deseja autorização parlamentar para não depender do próximo parlamento nos próximos dois anos. O Legislativo quer algum acordo que mantenha ao menos parte da independência conquistada neste quadriênio. E o STF quer manter intocado seu poder moderador.

É interessante notar como o juízo de valor sobre os conceitos se altera conforme a correlação de forças. Recompensar o parlamentar da base do governo com mais verbas do que recebe o parlamentar da oposição. A depender da circunstância, ou do governo, é compra de votos ou exigência da governabilidade.

O novo Executivo busca exatamente isto: uma condição ótima de governabilidade. Para tanto, vai distribuir ministérios periféricos aos aliados, pede um vale-governabilidade para os próximos dois anos e gostaria que o STF mandasse para o limbo as emendas de relator.

Somado à ofensiva judicial contra a futura oposição, esse conjunto criaria condições quase ideais para Luiz Inácio Lula da Silva governar com ampla liberdade de movimentos. A variável ainda obscura é quanto o STF deseja realmente isso. Pois o Congresso não parece ter forças para radicalizar em defesa dos próprios interesses.

domingo, 11 de dezembro de 2022

O “orçamento secreto” no pano verde

Aguarda-se a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o “orçamento secreto”, a parcela das emendas parlamentares em que é possível identificar o destino dos recursos, mas não é pública a informação sobre que deputado ou senador incluiu a despesa na lei.

Essa decisão terá importante influência sobre as relações entre Executivo e Legislativo no próximo período, por uma razão singela: na ausência de uma base congressual própria majoritária, de origem, o governo precisará usar a discricionariedade na execução do orçamento para manter aglutinado o apoio na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Mas a distinção no tratamento de parlamentares situacionistas e oposicionistas pode trazer problemas legais, até por ferir o “republicanismo”, daí a conveniência de manter a desigualdade nas sombras. Há ainda outro problema: essa desigualdade se reproduz também dentro da base, pois na vida real os parlamentares só são iguais entre si na hora do voto.

Há os mais influentes e os menos influentes, a depender de cargos formais que possam ocupar dentro das Casas ou mesmo de grupos informais que comandem entre os colegas.

As circunstâncias levaram Jair Bolsonaro a terceirizar para os presidentes da Câmara e do Senado a operação dessa discricionariedade, operação que é apresentada para a opinião pública como parte da “articulação política”.

Isso não causou grande prejuízo à condução do governo, pois os últimos quatro anos assistiram a um alinhamento programático entre Executivo e Legislativo, ambos orientados para a direita. Agora devemos voltar ao cenário dos 14 anos de PT: um Planalto de esquerda precisando formar maiorias num Congresso majoritariamente de direita.

Em miúdos, se persistir a terceirização, o governo petista será limitado em seu poder de estabelecer a agenda legislativa. Daí Lula desejar retomar esse poder. Para isso precisa que o STF dê um tranco na parte “secreta“ do orçamento. Qual o problema? Pelas razões expostas, o presidente precisa que uma parte do orçamento permaneça secreta para governar.

Seria facílimo resolver o problema. Bastaria o STF decidir que 1) a apresentação e execução de emendas deve ser igualitária entre os congressistas; e 2) todo esse processo deve ser 100% publicado. Ou seja, todo pedido de membros do Legislativo ao Executivo deve ser formalizado e tornado público, e só nessas condições pode ser atendido.

Esse segundo critério poderia, aliás, ser estendido para os pedidos de preenchimento de cargos por indicação de parlamentares.

Mas isso seria um tiro na asa da governabilidade.

Ao longo dos últimos anos, e especialmente na campanha eleitoral, a oposição política e social a Bolsonaro demonizou o caráter secreto de parte do orçamento, mas agora, no governo, o PT precisa encontrar uma fórmula para sair da sinuca de precisar, ao mesmo tempo, revogar o sigilo e mantê-lo.

Lula já saiu de outras sinucas mais complicadas, e a coalizão vencedora das eleições sempre poderá recorrer ao argumento de que faz o que faz para defender a democracia. Tem funcionado. De todo modo, será interessante acompanhar como os profissionais do pano verde vão desatar esse nó.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Segue o jogo

Os três primeiros quartos da transição, período marcado pelos ensaios em torno do gabinete do novo governo, foram, como se previa, de busca de acomodação pelos polos de poder em Brasília e nos estados. A exceção é o presidente que vai encerrando seu mandato, o que é natural, pois as forças políticas “dançam” em torno dos vitoriosos.

Governos e parlamentares eleitos tateiam para saber seu espaço, com o futuro presidente diante do enigma que engoliu, ou quase, dois dos três antecessores: como operar a retomada do poder moderador, oficioso mas efetivo, que sempre foi sinônimo de estabilidade política. E que desde 2015-16 dispersou-se ou foi capturado pelo Judiciário.

A tendência inercial, pelas inclinações político-ideológicas, é um certo alinhamento entre o Executivo e o Judiciário contra o Legislativo, obrigando este a movimentos de aproximação ao primeiro para vacinar-se contra o isolamento. Mas o Congresso Nacional quer, e precisa, fazer essa dança preservando o que for possível da independência alcançada.

Conquista de deputados e senadores na disputa por recursos orçamentários durante o governo que termina, também pelas agruras que este teve de enfrentar e dos riscos de que teve de escapar. Mas o novo governo deseja retomar o controle dos mecanismos de premiação e punição indispensáveis para manter a disciplina nas duas casas legislativas.

O desenho final da PEC do gasto excedente e a decisão final (haverá?) do Supremo Tribunal Federal sobre as emendas de relator serão o melhor retrato do resultado final desse jogo. Que, como sempre, só acaba no apito final do juiz.

Mas que só terá sido a primeira partida num campeonato de quatro anos.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Lula, o superministro da Economia

A polêmica, ou inquietação, preferencial das últimas semanas acontece em torno da linha econômica do futuro governo, que na prática já atua como governo de transição. O desejo da instituição denominada “mercado” é o governo do PT adotar políticas que garantam a sustentabilidade da relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto.

Para reduzir a chance de uma “remontada” inflacionária e permitir uma trajetória futura benigna da taxa de juros. Pois o Banco Central, sabe-se, desfruta autonomia.

O pressuposto dessa visão é que a retomada, ou a continuidade da retomada, da economia depende essencialmente do estímulo ao investimento privado. Que é função, por sua vez, de baixas taxas de juros e altas taxas de retorno sobre o investimento. Para o que contribuem decisivamente não apenas as condições macroeconômicas, mas o contínuo desenvolvimento de políticas microeconômicas que melhorem o ambiente de negócios.

Ou seja, o mercado preferiria que, na essência, a política econômica dos últimos quatro anos não fosse muito alterada. É um desejo legítimo, mas enfrenta uma dificuldade.

Pois o governo que implementou e defende essa linha perdeu a eleição.

Ganhou a eleição uma corrente política que vê com desconfiança, para dizer o mínimo, a subordinação da estabilidade econômica à responsabilidade fiscal. Que acredita na necessidade de o investimento estatal induzir o investimento privado. Que vê na expansão da demanda, se necessário turbinada pelo gasto público, o motor principal do crescimento.

E há circunstâncias adicionais, que não chegam a ser inéditas mas adquiriram certa preeminência no recentemente concluído ciclo eleitoral: nada disso foi debatido na eleição e, principalmente, ninguém condicionou o apoio aos que agora se preparam para subir a rampa a qualquer compromisso de manter qualquer aspecto da atual orientação econômica.

Diferente de 2002, quando o PT decidiu beijar a cruz para que se abrissem a ele as portas do palácio.

No máximo, Luiz Inácio Lula da Silva, recorreu a variantes daquele bordão publicitário dos anos 90: “La garantia soy yo” (tem no You Tube). E por que Lula não assumiu nenhum compromisso na economia? Porque não precisou. Porque calculou, corretamente, que o antibolsonarismo traria por gravidade para ele, Lula, apoio suficiente para ganhar a eleição.

Foi por pouco, mas deu certo. Agora o mercado aguarda o anúncio da equipe econômica do novo governo. Não se esperam grandes surpresas. E, na última linha da planilha, essas definições não terão assim tanta importância. Pois, sejam quem forem os ministros da área, a posição de timoneiro da economia será acumulada pelo ocupante da cadeira principal do terceiro andar do Palácio do Planalto.

Quaisquer que sejam os ministros das pastas econômicas, o superministro da Economia será Lula. Diferentemente de Jair Bolsonaro, o futuro presidente será seu próprio Posto Ipiranga. Pelo menos até algo dar bem errado. Pois as urnas lhe ofereceram essa possibilidade. Eleições, sabe-se, têm consequências.

sábado, 19 de novembro de 2022

Um pouco de Ionesco. E o reductio ad absurdum que nunca falha

Talvez as despesas com programas sociais, o Auxílio Brasil/Bolsa Família de carro-chefe, possam ser classificadas como “investimento” no plano retórico. Mas no universo das realidades materiais elas nunca deixarão de ser gastos de custeio. Talvez faça sentido politicamente deixar para sempre certas despesas de custeio fora do limite imposto pelo teto constitucional de dispêndios. Pelo ângulo da economia, não. Se for para liberar desse limite alguma rubrica, melhor que seja investimento, pois este alavanca o mais eficiente programa social de todos: o emprego.

Seria entretanto quixotismo puro olhar a política pelas lentes de uma racionalidade fria, pois os políticos são em larga medida escravos dos grandes movimentos de opinião. E há consenso sobre a necessidade de continuar pagando os seiscentos reais às mais de 21 milhões de famílias hoje cadastradas para receber o benefício. Então é provável que o Parlamento escolha o caminho mais fácil, em vez de enveredar pelo pântano de tentar cortar outras despesas de custeio para conseguir encaixar essa não tão nova.

O que facilitaria, quem sabe?, abrir um buraco no teto de gastos para os investimentos.

No final do arco-íris alguma solução será encontrada, pois interessa a todo o mundo político achá-la. Mesmo que venha a ser uma gambiarra.

De gambiarra em gambiarra o teto de gastos agoniza, e já faz algum tempo. Talvez valesse a pena aproveitar o renovado (está sendo assim desde 2020) consenso sobre a necessidade de furá-lo e buscar uma alternativa. Ou alternativa nenhuma e simplesmente revogá-lo, adotando a fórmula minimalista mais razoável: o Executivo pede ao Legislativo autorização para fazer certa despesa, e este decide se autoriza ou não. E diz de onde virá o dinheiro. Seria um cipoal a menos para desembaraçar.

Melhor do que persistir neste faz-de-conta, em que o teto de gastos está previsto na Constituição e a cada ano é preciso emendar a Constituição para desrespeitá-la. Ionesco puro.

Ainda sobre incongruências, uma é candidata a destaque. No debate sobre os recursos para manter programas sociais vitais, o verbo tem sido exatamente este: manter. Não se fala em ampliar.

Mas isso bate de frente com um dos pilares da narrativa vitoriosa na campanha eleitoral.

Pois estabeleceu-se entre nós como verdade, a partir de um único estudo, que 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, apesar dos seiscentos reais mensais dados às 21 milhões de famílias do AB/BF. No último debate do segundo turno, Luiz Inácio Lula da Silva procurou contornar esse ruído, associando a fome à recente reforma da Previdência. Duvidoso.

Ora, se 33 milhões de pessoas passam fome apesar de 21 milhões de famílias receberem seiscentos reais por mês, uma de três situações é obrigatoriamente verdadeira: 1) o valor pago é insuficiente, precisa ser aumentado; ou 2) há 33 milhões de muito pobres fora do Auxílio Brasil/Bolsa Família; ou 3) há uma combinação dessas duas situações. De todo modo, a ser verdadeira a premissa, estaríamos diante de uma gravíssima emergência social. Que exigiria um plano imediato e recursos imediatos para ser enfrentada.

Mas não se vê nenhuma preocupação ou movimentação nesse sentido. Todo o debate gira simplesmente em torno de por quanto tempo prorrogar o que já existe. Ninguém fala em aumentar as famílias no programa ou aumentar o valor do benefício.

Nada como recorrer ao manjado reductio ad absurdum. Nunca falha.

sábado, 12 de novembro de 2022

A nova política morreu, viva a velha política

O PT está diante de um enigma, e de decifrá-lo talvez dependa a taxa de estabilidade do governo quando assumir definitivamente a cadeira no terceiro andar do Palácio do Planalto. A dúvida é quem deve ser o objeto de desejo preferencial nas alianças para garantir que o mandato de Luiz Inácio Lula da Silva termine no prazo regulamentar, dado o cenário não apenas de polarização, mas de chamados a desconhecer a legitimidade da eleição.

O leitor pode encontrar aqui algum exagero, mas nunca é demais lembrar que dos seis presidentes eleitos desde a transição de 1984-85 dois foram depostos, então é bom colocar as barbas de molho. Até porque, dados os sinais recentes vindos da transição, não é improvável o novo governo enfrentar turbulências econômicas que levem a perda de substância e o coloquem na dependência de uma base parlamentar sólida.

Qual é o problema? Na verdade são dois: 1) uma aliança do PT com a esquerda e o “centro democrático” é aritmeticamente insuficiente para segurar a onda no Congresso Nacional; e 2) o "centrão" esteve maciçamente com Jair Bolsonaro no governo e na eleição. Há aliás um terceiro aspecto: sempre que os presidentes recentes estiveram na berlinda, quem impulsionou a tentativa de derrubá-los foi o centro democrático, e não a direita conservadora.

Foi assim quando a Constituinte tentou amputar dois anos do mandato de José Sarney. Também foi assim no impeachment de Fernando Collor, na desestabilização de Itamar Franco (só estancada quando entregou o governo a Fernando Henrique Cardoso), nas atribulações de Lula com as acusações de corrupção, no impeachment de Dilma Rousseff e nas crises de Michel Temer. Em todos esses momentos o centrão ou segurou a onda ou teve de ir a reboque.

O retrospecto revela o risco de o governo petista subestimar a aliança com o centrão e fiar-se na “frente ampla democrática”. Sem contar outro aspecto: se conseguir fechar alianças simultâneas, formais ou informais, com ambos os campos que se reivindicam “de centro”, reduzirá a possibilidade de ficar refém de um deles. Quando a maioria depende de uma minoria para sobreviver, transforma-se de fato em minoria e esta passa a ser a maioria política.

A necessidade de uma sólida base parlamentar acentua-se por outro motivo: a assimetria político-ideológica entre a orientação de esquerda do Executivo e a maioria de direita eleita para o novo Legislativo. Foi mais natural para o Congresso que se encerra alinhar-se a Bolsonaro do que será para o novo/velho alinhar-se a Lula. Em outras palavras, o custo político de formar a base foi menor para Bolsonaro do que vai ser para Lula.

Também por isso será impraticável para o novo presidente repetir o modelo bolsonarista, em que os partidos são na prática excluídos da Esplanada, e a disciplina parlamentar é comandada a partir do próprio Legislativo com a utilização ativa do Orçamento por parte de seus comandantes, com razoável autonomia. Lula 3o. terá de voltar a abrir certos espaços que foram fechados aos partidos.

A nova política morreu (alguém se lembra da última vez que ouviu falar nisso?). Viva a velha política.

sábado, 5 de novembro de 2022

Competição e colaboração

O balanço das eleições deste ano reforça uma característica já vista em outras ocasiões: todas as forças políticas relevantes saem das urnas com poder e expectativa de poder. Para começar, o PT tem o governo federal, seus governadores mostraram força, reelegeram-se ou elegeram o sucessor, e o candidato a governador em São Paulo conseguiu um desempenho eleitoral inédito, no aspecto positivo.

Mas a direita também fez boa colheita, em suas versões mais na ponta ou menos, ao varrer o Sul, o Sudeste (exceção foi o Espírito Santo) e o Centro-Oeste e dividir o Norte. Manteve-se ou implantou-se em posições de força e, a exemplo da esquerda, plantou nomes em condições de adquirir projeção nacional. Mesmo o dito centro, enfraquecido nas eleições parlamentares, acabou saindo da safra de 2022 com boas posições nos Executivos.

A conclusão é imediata: se persiste um potencial de forte competição, nascido da evidente fratura político-ideológica no tecido social, não se deve subestimar o potencial de colaboração. Pois todo mundo terá de mostrar serviço, e todo mundo tem algo, ou muito, a perder. Vem daí o motivo destes primeiros dias estarem pontilhados de declarações apaziguatórias. As exceções? Como diz o ditado, confirmam a regra.

Os focos de competição exacerbada vêm de onde se deu a forte corrosão de poder, ainda que a eleição não tenha propriamente corroído a expectativa de poder dos removidos do Planalto. Vêm também, no Parlamento, dos núcleos que baseiam sua força eleitoral na exploração máxima da polarização ideológica, e é natural que busquem cultivar esse ambiente, já de olho na reprodução e ampliação de seu poder daqui a quatro anos.

Mas esses núcleos, se têm força para provocar alarido e sobressaltos, não encontram no momento espaço para interferir decisivamente no andamento da política, que tateia atrás de alguma normalização. Do que depende a consolidação disso? De Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo conseguirem combinar alguma fidelidade à narrativa de campanha, para evitar a acusação de estelionato, e ao mesmo tempo liderarem a acomodação.

O governo eleito dá seus primeiros passos cercado pela tradicional leniência. Os arrufos e espasmos do bolsonarismo, nos palácios e nas ruas, oferecem aos vencedores de outubro o sempre útil fantasma, que, se agitado com competência, traz com ele a imposição de apoiar o oficialismo para evitar retrocessos. Em resumo: o potencial de acomodação mais a tensão pós-eleitoral provocada pelos removidos do poder oferece ao PT um ecossistema quase ideal.

Que pode ser notado no debate em torno das providências para autorizar o governo vindouro a estourar o teto de gastos para cumprir as promessas eleitorais. A compreensão vem até dos setores e personalidades que tradicionalmente carregam o estandarte da responsabilidade fiscal como Constantinos modernos brandindo o in hoc signo vinces (“sob este signo vencerás”). Lula terá de ser muito incompetente (o que nunca foi) para não surfar bem na onda.

E depois, quando precisar mandar apertar os cintos? Bem, cada dia com sua agonia. O depois vem depois.

domingo, 30 de outubro de 2022

Pressão pela convergência

O cenário político pós-eleição coloca ao presidente eleito o duplo desafio: articular uma maioria parlamentar no Congresso conservador para governar sem sobressaltos, e combinar isso com uma política de governadores (não confundir com a expressão da República Velha) que garanta estabilidade federativa, fator importante também para estabilizar o Legislativo. E isso num ambiente político-partidário nacional cindido. Não será trivial.

Nem sempre a lógica prevalece, mas se der a lógica o presidente eleito precisará enveredar, pelas razões expostas, por um caminho mais aglutinativo que divisivo. Um fator trabalha a favor dessa tendência: a necessidade de sobrevivência política. Mas outro fator trabalha contra: apesar da frente ampla inorgânica que se agrupou em torno do vencedor, em termos orgânico-partidários a aliança que o sustentou é essencialmente puro-sangue.

Essa necessidade de convergir a um ponto médio num ambiente conflagrado imporá certamente limitações a mudanças bruscas de política econômica, e também desaconselhará radicalizar, por exemplo, a agenda dita identitária. Se, novamente, der a lógica, o governo deverá buscar soluções programáticas centrípetas e não centrífugas. A começar do ponto nevrálgico imediato: a eleição para as presidências do Congresso.

Mais que ganhar as disputas pelo comando da Câmara dos Deputados e do Senado, o fundamental para o governo é não ser derrotado. O ideal será ter comandantes nas Casas alinhados com o Planalto, mas será preciso acompanhar para ver o risco que o novo governo estará disposto a correr nessas batalhas iniciais.

sábado, 22 de outubro de 2022

Cenários da governabilidade

A semana final da corrida pelo Palácio do Planalto aponta um ligeiríssimo favoritismo de Luiz Inácio Lula da Silva, sujeito, porém, a duas incertezas, que teoricamente equilibram a balança para Jair Bolsonaro neste epílogo: 1) a maior e, principalmente, mais ativa mobilização da direita; e 2) a aparente maior fluidez da campanha do incumbente na hora decisiva.

Bolsonaro enfrenta batalha morro acima, pois ficou atrás no primeiro turno e ainda por cima viu os dois excluídos da decisão que tiveram voto apoiarem o ponteiro da primeira etapa. Mas é recomendável alguma cautela, pois as pesquisas que menos se distanciaram do resultado três semanas atrás, as espontâneas com o desconto de possíveis taxas de abstenção, mostram todas um cenário de empate técnico.

A única razoável certeza sobre a eleição do próximo domingo é alguém chegar na frente na apuração e reivindicar a vitória, e é também razoável supor alguma resistência dos derrotados, ainda que somente no terreno judicial. Mas quem ganhar deverá acabar sendo diplomado e tomará posse na passagem do ano, quando se defrontará com o enigma tradicional dos vitoriosos na urna: a governabilidade.

Para Jair Bolsonaro ela estará mais à mão, dada a maioria expressiva conseguida pela direita nas duas casas do Congresso. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) não encasquetar com a atual operação política das emendas de relator ao orçamento, e com a provável recondução de Arthur Lira à presidência da Câmara, teríamos a simples continuidade do modelo em vigor.

No qual o Parlamento goza de grande autonomia para alavancar os mecanismos de reprodução do poder dos seus integrantes e, em troca, oferece, se não um alinhamento, uma cooperação ativa com o Executivo.

E se, como apontam as pesquisas, der Lula? A crer nos discursos (sempre um risco na análise política), o petista quer retomar o controle absoluto sobre a execução das emendas parlamentares para retirar poder da cúpula do Congresso e “reenquadrar”o Legislativo. O que teoricamente exigiria a contrapartida clássica: abrir espaço a que os partidos governistas (e neogovernistas) ocupem a Esplanada.

O PT pode também tentar outra fórmula, mais arriscada, mas nem um pouco improvável: aliar-se à maioria do STF, herança do período Lula-Dilma Rousseff, para, numa formulação eufemística, reduzir a esfera de autonomia do Legislativo. Isso seria facilitado se o Planalto lulista conseguisse colocar aliados firmes no comando da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Em caso de mudança de guarda, o mais provável será uma combinação dessas duas operações, com o objetivo de retomar para o Executivo o poder moderador. A variável em aberto é quanto o STF, atual árbitro político da República, admitirá a perda de espaço. Um palpite é que a aliança entre Planalto e Judiciário será mais fácil quão mais saliente for a força do bolsonarismo batido nas urnas.

E se der Bolsonaro? Aí é provável que vejamos uma aliança estratégica (a palavra da moda) do Executivo com o Legislativo para, em linguagem popular, cortar as asinhas do Judiciário, ainda que “dentro das quatro linhas”.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A raiz da nossa polarização

Eleições podem ser lidas como disputas tribais. Com uma característica: em vez de tribos inteiras entrarem em guerra, seus líderes enfrentam-se num duelo mortal, poupando da morte os liderados do perdedor. Aos quais fica reservado o “benefício” da escravidão, em modalidades mais ou menos explícitas. Ou, numa hipótese benigna, lhes é oferecida a paz honrosa. Este segundo caso costuma frequentar mesmo é o universo da ficção.

Em eleições, a disputa final entre os chefes tribais acontece nas urnas. E os debates? Acabaram institucionalizando-se como lutas preliminares, para medir dois atributos essenciais: 1) a capacidade de manter o equilíbrio e reagir de modo eficaz sob pressão; e 2) a capacidade de fazer o integrante da tribo sentir orgulho e confiança quando avalia a força do chefe. E as duas variáveis estão longe de ser independentes.

Em resumo, a tribo só quer saber se o chefe será capaz de trazer a vitória.

Daí a platitude de reclamar que “infelizmente, o debate não trouxe propostas”.

Quem quiser propostas deve procurar na internet ou nos comitês dos candidatos os tradicionais documentos redigidos para esse fim, no mais das vezes repletos de intenções que não se realizarão, pois infelizmente as circunstâncias impedirão. Frustração que será digerida pelos integrantes da tribo conforme contemplados com o butim produto da vitória. Uma consequência conhecida é a tradicional pouca disposição de largar o bem-bom só porque o programa não foi aplicado.

Pois o problema só passa a incomodar quando a não aplicação do programa traz riscos à perpetuação da tribo nos espaços de poder.

Voltando aos debates, está claro que os dois finalistas da corrida presidencial saíram do primeiro duelo na Band com sua liderança preservada na tribo. Enfrentaram atribulações, mas foram capazes de criar situações incômodas para o adversário. Vamos ver como será no próximo e decisivo encontro.

Um mistério: depois de tanto tempo para se preparar, é intrigante que Luiz Inácio Lula da Silva ainda não tenha uma resposta azeitada sobre a Lava Jato, e Jair Bolsonaro tampouco tenha uma resposta azeitada sobre a Covid.

O futuro duelo final entre Lula e Bolsonaro neste 2022 está a merecer o batido qualificativo de "histórico". A vitória do capitão em 2018 representou a “libertação” das massas de direita “escravizadas” desde 1985 pelos líderes da Nova República. Para essas massas, é intolerável imaginar a volta a um passado recente, quando se era governado por uma facção dos “novarrepublicanos”, e a única opção era votar noutra facção do mesmo veio histórico.

Para a “frente ampla”, não basta derrotar Bolsonaro. A missão é recolocar o gênio dentro da garrafa, tanger as massas bolsonaristas de volta para o cercadinho. Removendo definitivamente o risco de abrir espaço para uma eventual futura nova liderança que reivindique o comando do campo derrotado pela Aliança Democrática quase quatro décadas atrás.

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Publicado na revista Veja de 26 de outubro de 2022, edição nº 2.808

sábado, 15 de outubro de 2022

O erro central (na análise) das pesquisas - e o empate do momento

Escrevi aqui em 13 de agosto deste ano, mês e meio antes da eleição presidencial: “Há um detalhe delicado nas pesquisas eleitorais: a diferença entre o não voto (brancos, nulos e abstenção) que será verificado na urna e os que, em pesquisas estimuladas, não escolhem nenhum candidato quando a lista é apresentada. No dia da eleição, o não voto tem rondado os 30%, mas nas pesquisas estimuladas esse contingente é apenas um terço disso. Cerca de 20% dos pesquisados indicam candidato na estimulada mas provavelmente não votarão em ninguém”.

Ou nem sairão de casa para votar, deveria ter acrescentado.

Não deu outra. Em todas as pesquisas estimuladas, o não voto em candidatos oscilou entre 5% e 10%, mas na urna as abstenções mais brancos e nulos somaram cerca de 25%. Não seria problema se essa “quebra” fosse proporcionalmente distribuída pelos postulantes. Mas não foi. Entre a pesquisa e a urna, Luiz Inácio Lula da Silva “perdeu” cerca de 10 pontos percentuais das suas intenções de voto (fez 37%), perdeu mais que o triplo de Jair Bolsonaro (fez 33%).

Ou seja, as pesquisas chegaram bem mais perto de acertar o que Bolsonaro teria, e superestimaram fortemente a votação que Lula teria. Exatamente porque o efeito da diferença entre o não voto (em candidatos) nas pesquisas e na eleição esteve muito longe de ser igual para os dois líderes. Como também já se sabia, o eleitor de Bolsonaro estava mais mobilizado e motivado para votar - e também está mais concentrado em grupos sociais que votam mais.

Todo esse prolegômeno é para dizer que a imprudência analítica parece repetir-se neste segundo turno. As pesquisas sugerem uma diferença entre Lula e Bolsonaro rondando os cinco pontos percentuais. Acontece que o não voto volta a cravar o padrão clássico dos levantamentos estimulados, fica entre um terço e um quarto do que será na eleição. E, de novo, a análise corre sério risco ao supor que a “quebra” afetará proporcionalmente os finalistas.

Há, é claro, o argumento de que são apenas dois os concorrentes e por isso o risco de errar é menor. Talvez. Mas e se a abstenção continuar afetando mais Lula que Bolsonaro? Nesse caso, seria prudente dar um desconto na diferença apurada de intenção de voto. Há ensaios para saber que desconto nos aproximará mais do resultado lá adiante. Com o tempo, estaremos mais azeitados no cálculo dos prováveis votantes ("likely voters"), mas por enquanto engatinhamos.

No cenário atual, qualquer desconto na diferença entre Lula e Bolsonaro leva a uma situação de empate técnico. Há dois outros empates visíveis que reforçam essa hipótese: a equalização 1) do ótimo+bom com o péssimo+ruim nas avaliações de governo; e 2) entre as rejeições de Bolsonaro e Lula. Governantes sempre reduzem a rejeição na campanha. Com o Jair demorou, pareceu que não aconteceria, mas está acontecendo.

A eleição entra na última quinzena ensaiando uma zona de empate, e é razoável supor que a decisão se dará na margem. Com a participação luxuosa de São Paulo e Minas Gerais. Mas o que deve decidir é outra variável. A liderança de Lula sobre Bolsonaro vinha durante meses ancorada na diferença de cerca de dez pontos entre a rejeição de um e de outro. Isso virou fumaça. Quem conseguir abrir vantagem nesse quesito nos próximos quinze dias estará com a mão na taça.

sábado, 8 de outubro de 2022

A bicicleta de academia e as beiradas do poder

Já existe ao menos uma certeza após o primeiro turno da eleição presidencial: o renovado e vitaminado conservadorismo do Congresso Nacional atuaria como freio à elevação das temperaturas programáticas num eventual Planalto de Luiz Inácio Lula da Silva. Mesmo que o governo consiga formar uma base parlamentar, e não seria tão difícil, o caráter dessa base acabaria servindo de contrapeso a possíveis impulsos maximalistas da coalizão original em torno do PT.

Também porque o “centro democrático”, dizimado na eleição, enxerga na necessidade petista da frente ampla a oportunidade única de arrancar uma vitória política dos dentes da acachapante derrota eleitoral sofrida no primeiro turno. Faltaram-lhe votos para entrar no jogo como gente grande (quase tivemos um segundo turno no primeiro), mas sobra-lhe influência para colocar limites a que a política real reflita a aritmética crua das urnas.

E os movimentos recentes expressam com nitidez a excelente relação custo-benefício das (poucas) concessões necessárias para passar uma borracha no passado.

Se Jair Bolsonaro virar o jogo e vencer, é razoável supor que as coisas continuarão mais ou menos na trilha atual. Executivo e Legislativo alinhados, com a orquestra parlamentar regida pelo atual presidente da Câmara (talvez venha a enfrentar agora alguma concorrência do novo/velho presidente do Senado). Mas em boa medida travados por um STF crescentemente ativista e por um TCU idem, ambos com bons operadores na opinião pública.

Talvez o Senado mais bolsonarista que o atual mude um pouco as coisas a partir de fevereiro, mas seria precipitado garantir desde já uma mudança qualitativa. E é prudente aguardar para ver exatamente quem serão os dois novos integrantes do STF, para as vagas do ministro e da ministra que saem. A política também vai rodar um pouco por aí.

E se der Lula? Como ficará a governabilidade? A inércia levará a alguma acomodação com o Congresso, especialmente se o presidente da República conseguir vencer a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados. E sempre estará aberta a janela de oportunidade para a tentação de dar um gás adicional ao Supremo, e aliar-se aos ministros do lado oposto da Praça dos Três Poderes para enquadrar a turma do centro (da praça).

Uma única certeza: seja quem for o vencedor, a reconcentração de poder no Executivo continuará na ordem do dia. É a tarefa de reedificar o que foi demolido nas crises que tragaram o governo Dilma Rousseff e transformaram Michel Temer num pato manco prematuro. Sem o poder moderador oficioso do Executivo, a política brasileira continuará como aquelas bicicletas de academia: o sujeito pedala, cansa-se, sua, mas não sai do lugar.

Um erro político de Jair Bolsonaro foi tentar levar essa parada no grito, sem fazer direito a conta de quantas divisões tinha para a empreitada. Acabou tomando o contra-ataque. Chega à eleição forte, mas enfrentando uma frente ampla de opositores. Talvez o temperamento e a autoconfiança do capitão o tenham impelido a isso. Lula, raposa velha, sabe que em Brasília a acumulação de poder não é corrida, é caminhada. Aqui, come-se pelas beiradas.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Maioria política e maioria eleitoral

Os números são os números. Luiz Inácio Lula da Silva chegou na frente no primeiro turno da eleição presidencial e ficou perto de concluir a fatura. Mas no Congresso Nacional manteve-se, reforçada, a maioria esmagadora do centro para a direita. E, com exceção de quatro estados onde o PT já é governo (no Ceará informalmente), o desempenho da esquerda regionalmente não foi bom.

Como olhar esse paradoxo? Por que a esquerda lidera na majoritária nacional e enfrenta dificuldades nos demais níveis? Entre as possíveis explicações, uma parece imediata: a vantagem numérica de Lula na corrida federal até o momento decorre não propriamente de uma inclinação do eleitorado à esquerda, mas de dois outros fatores: 1) a memória da prosperidade nos governos Lula e, principalmente, 2) a rejeição pessoal a Jair Bolsonaro.

O presidente tenta enfraquecer o primeiro ponto estimulando a recordação das dificuldades econômicas surgidas no período Dilma Rousseff. Mas isso vem tendo um efeito apenas relativo, pois o PT tem operado com sucesso a separação entre os períodos Lula e Dilma. Ela ficou com o passivo, enquanto ele preservou o ativo eleitoral.

O flanco algo vulnerável da maioria numérica lulista é o segundo, a rejeição a Bolsonaro.

Se Bolsonaro conseguir relativizar sua rejeição no juízo do eleitor, e elevar a de Lula, pode fazer até eleitores do petista no primeiro turno concluírem que, apesar de não gostarem da figura do presidente, talvez valha a pena mantê-lo, pois afinal a economia está melhorando. É esse vaso comunicante que pode levar alguns eleitores de Lula no primeiro turno a mudar de lado. É raro e difícil de conseguir, mas vamos lembrar do que aconteceu em 2006.

Na aritmética, Lula está perto de levar a taça, mas eleição está mais para o tênis, ou o vôlei, do que para o futebol. Não basta esperar o tempo passar e administrar a vantagem, você tem de fechar o jogo. O que falta para Lula fechar o jogo? Evitar que Bolsonaro transforme a maioria política do centro para a direita em maioria eleitoral no segundo turno. Não parece tão difícil assim, mas não está tão fácil quanto indicam os números tomados pelo valor de face.

O risco para Bolsonaro está em Ciro e Simone garantirem a Lula uma transferência de votos suficiente para impedir que Bolsonaro transforme a maioria política em maioria eleitoral. O risco para Lula está em a esmagadora maioria política de Bolsonaro nas demais regiões, especialmente no Sudeste, acabar se transformando em uma maioria eleitoral capaz de neutralizar a resiliente vantagem do petista no Nordeste.

Pois no Nordeste Lula parece estar quase no teto, mais que Bolsonaro no Sudeste.

Alianças políticas costumam ser fundamentais em segundo turno, mas é preciso um certo cuidado para não as reduzir a alianças partidárias ou com candidatos derrotados no primeiro turno. Há muito tempo a política deixou de ser monopólio dos partidos.

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Publicado na revista Veja de 12 de outubro de 2022, edição nº 2.806

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Rumo ao segundo turno

O presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram ao segundo turno com uma diferença de cerca de cinco pontos percentuais entre eles, por volta de metade da diferença no voto válido apontada pela última pesquisa BTG-FSB uma semana antes da eleição.

Assim, Lula fechou a rodada inicial com os votos válidos previstos, mas Bolsonaro desempenhou significativamente acima, resultado que se deve principalmente a um melhor desempenho no Sudeste, especialmente em São Paulo. Que, com segundo turno para governador, será um palco decisivo em 30 de outubro.

Os outros dois grandes estoques de voto no Sudeste decidiram a parada já neste domingo. Os dois governadores eleitos de Minas Gerais e Rio de Janeiro serão cabos eleitorais importantes no segundo turno.

O presidente da República enfrenta alguns desafios no segundo turno. Um deles é o fato de os candidatos com algum voto que não se classificaram para a decisão tenderem a apoiar o candidato do PT. Mas, com quatro semanas de campanha e boas notícias na economia, é hoje uma disputa completamente em aberto, com 50/50 de chances.

sábado, 24 de setembro de 2022

Divagações sobre abstenção e “voto envergonhado”

Eleição é época de números, com candidatos, aliados e apoiadores espremendo as estatísticas para saber quem vai ganhar, se vai ter segundo turno etc. Mas também é tempo de especulação e pensamento mágico, boato, rumor, paranoia. Na temporada eleitoral, o objetivo convive bem com o subjetivo. Leva vantagem quem consegue, ele próprio, manter o máximo de objetividade enquanto surfa na subjetividade alheia.

Por falar em números, o dado ainda largamente incerto deste primeiro turno é o comparecimento. Nas últimas três décadas, tem girado em torno de 80%. Se à abstenção adicionarmos os brancos e nulos, o não voto em candidatos nas presidenciais costuma rondar os 30%. Tem aí um ruído em relação às atuais pesquisas, especialmente as estimuladas, em que indecisos, não sabe, não respondeu, nenhum, brancos e nulos não passam de 10%.

Pesquisas no Brasil costumam ser feitas com amostras que procuram expressar o total do eleitorado. Como nelas o não voto em candidatos é sistematicamente subestimado, a pesquisa estimulada acaba superestimando a projeção de apoio aos disputantes. O que não seria problema se impactasse igualmente todos os corredores. Mas nem sempre é assim. Vamos ver o que acontece neste agitado 2022.

A pesquisa estimulada superestimar o apoio aos candidatos traz subsídios para outra discussão, sobre haver ou não uma quantidade estatisticamente relevante de um certo “voto envergonhado”. Ou seja, o entrevistado despistar nas pesquisas por vergonha de sua opção eleitoral, deixando para manifestar-se apenas no escurinho metafórico da cabine de votação. Uma hipótese que alimenta sonhos e temores, dependendo do lado da disputa.

Há, porém, um paradoxo matemático na premissa de haver “votos envergonhados” em número estatisticamente relevante.

Qual é a atitude esperada de alguém com essa tendência? A dissimulação, o despiste. É altamente improvável que, só para disfarçar sua escolha, um eleitor envergonhado de Jair Bolsonaro responda na pesquisa estimulada “vou votar em Luiz Inácio Lula da Silva”. Mais razoável será ele dizer que está indeciso, que não quer responder, que nao quer nenhum, que vai votar em branco ou nulo. E a mesma lógica aplica-se ao eventual eleitor envergonhado de Lula.

Ora, mas se 1) há quantidade estatisticamente relevante de votos envergonhados e 2) a tendência do eleitor envergonhado é despistar, então o não voto em candidatos (indecisos, não sabe, não respondeu, nenhum, brancos e nulos) deveria nas pesquisas estar superestimado, e não subestimado. A série histórica mostra exatamente o contrário: muita gente diz nas pesquisas que vai votar em alguém, mas na hora h não vota em ninguém.

E ainda sobre o efeito da abstenção no próximo domingo, se vai ser neutra ou ajudar um dos lados. No cruzamento das respostas, a diferença entre Lula e Bolsonaro cai quando se expurga quem não votou em 2018. O que concluir? Na hipótese favorável a Bolsonaro, tem gente dizendo que vai votar em Lula, mas na hora nem vai comparecer. Na hipótese favorável a Lula, tem gente que não votou há quatro anos e agora vai votar nele.

Assim como no próximo domingo, você decide no que prefere acreditar.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

A decisiva diferença das rejeições

As pessoas gostam mais de algumas pesquisas e menos de outras, mas infelizmente não há outro jeito de saber como anda a eleição. E quase todas elas apontam a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, com possibilidade de liquidar a fatura no primeiro turno, e Jair Bolsonaro folgado logo atrás, sem ser ameaçado por nenhum dos nomes remanescentes da terceira via. Assim entra a última semana antes do 2 de outubro.

Há, porém, um detalhe nas pesquisas menos explorado, mas que se tem mostrado decisivo nos rumos da corrida: o gradiente entre as taxas de rejeição, aliás muito altas, entre os dois ponteiros. Quando a rejeição é medida da maneira mais adequada, perguntando ao entrevistado se ele vota com certeza, pode votar ou não vota de jeito nenhum em determinado nome, a oposição radical a Bolsonaro gira sempre em torno de 55%, dez pontos acima da de Lula.

Esse número 10 aparece nas mais diversas medições da corrida. Em ordem de grandeza, baliza a diferença entre os dois no primeiro turno, com alguma ampliação no segundo. Também parametriza as distâncias entre o ótimo+bom+regular positivo e o péssimo+ruim+regular negativo. Bem como a distância entre aprovação e desaprovação, medição binária essencial para conhecer com mais precisão a imagem de governos e governantes.

Bolsonaro encontra dificuldade para reduzir significativamente a distância entre ele e Lula, mesmo com a melhora notada na percepção sobre a situação da economia. Por quê? Porque não consegue reduzir o hiato nas rejeições, que parece ter origem mais na resistência à pessoa do presidente do que a seu governo. Esta eleição não está sendo tanto um plebiscito sobre o governo Bolsonaro, mas sobre o Jair.

Uma das principais razões para o PT e aliados lutarem com todas as forças para liquidar a fatura na primeira rodada é o risco de a polarização "depurada" de um segundo turno, com alguma paridade de condições, acabar equalizando as rejeições e tornando o desfecho menos previsível. Até agora não aconteceu, apesar das campanhas negativas. Talvez por cada um dos boxeadores estar enfatizando fraquezas do adversário bem cristalizados no eleitorado.

Fragilidades já bem precificadas.

Neste momento, na comparação com 2018, Bolsonaro e Lula parecem reproduzir os desempenhos dos então candidatos do PSL e do PT em todo o país, com exceção do Sudeste. Na maior concentração populacional e eleitoral do Brasil, o atual presidente deu um banho quatro anos atrás e hoje luta para equilibrar o jogo. Decorrem principalmente daí as distâncias abertas pelo ex nas pesquisas nacionais.

Bolsonaro enfrenta um forte antibolsonarismo na classe média (definida pelos generosos critérios brasileiros) do Sudeste, cultivado nas atitudes do presidente durante a pandemia e pelas suas arriscadas relações, ao menos verbais, com a institucionalidade. Como vai resolver isso será tarefa para seus profissionais de comunicação, se houver segundo turno. Quatro semanas a mais de oportunidades nunca são demais.

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Publicado na revista Veja de 28 de setembro de 2022, edição nº 2.804

sábado, 17 de setembro de 2022

O freio da pandemia

Entre as excentricidades das leis eleitorais no Brasil, uma a contribuir fortemente para atrapalhar as mentes é a que define uma data, perto da eleição, para o início oficial da campanha. Antes desse dia, entre outras bizarrices, não se pode falar em candidaturas, só em pré-candidaturas. Daí a ilusão de a campanha mudar de patamar num certo dia, e a partir daí existir sempre potencial para grandes mudanças.

Uma variável estatística ha muito tempo já dava sinais de não ser bem assim desta vez: a alta escolha de candidatos na pesquisa espontânea, quando o entrevistado tinha de responder sem apresentarem a ele a relação dos concorrentes à Presidência da República. Na real, a eleição presidencial brasileira está na rua há um ano e meio, desde que Edson Fachin anulou as condenações de Luiz Inácio Lula da Silva na Lava-Jato.

Ali começou um acelerado processo de sedimentação da bipolaridade entre o ex-presidente e o atual, o que acabou por fechar o espaço para uma fragmentada terceira via, que terminou se perdendo na ilusão de haver um grande estoque potencial de votos “contra os extremismos”. Registre-se ainda a ajuda do centro, quando matou os candidatos que, fora Ciro Gomes, tinham alguma massa crítica própria, Sergio Moro e João Doria.

Na política e no futebol, o “se” não joga, mas uma única terceira via que, por ser única, batesse em algo entre 10 e 15% dos votos produziria um fato político na campanha, sem o que qualquer centro teria imensa dificuldade para decolar. Mas isso agora é história.

A nossa longa corrida presidencial foi cristalizando algumas tendências que mostram resiliência agora na “campanha oficial”. Uma são as expressivas rejeições ao presidente da República e ao principal desafiante. É outra característica de um certo “segundo turno no primeiro”. Acontece que a rejeição do presidente tem sido consistentemente dez pontos maior que a do adversário, o que permite ao desafiante uma liderança estável nas projeções de segundo turno.

Cujos números por enquanto têm variado bem menos que os do primeiro.

A melhora na economia e na percepção sobre o ambiente econômico está em algum grau cumprindo seu papel, ao manter o incumbente competitivo faltando apenas duas semanas para o fechamento do primeiro turno. Mas até agora não foi suficiente para estreitar a fenda de dez pontos a mais de rejeição. Talvez porque essa diferença tenha origem principal em outra fonte. O que também vem sendo apontado há tempos.

A origem dos problemas do incumbente nesta reta final de primeiro turno deve ser buscada na pandemia. Políticos arriscam-se mais do que seria prudente quando fazem questão de ter razão e ignoram os grandes movimentos da massa, as grandes ondas de opinião. E tudo se agrava quando os danos numéricos à saúde popular são maciços, e quando o governante transmite alheamento e insensibilidade.

Os grandes estoques de voto onde Lula constrói sua vantagem sobre Bolsonaro são o Nordeste, os pobres e as mulheres. Para ter chance real de vitória, o presidente precisa reduzir ao menos moderadamente o déficit de votos em cada um desses grupos, ou então reduzir fortemente em algum deles. Até o momento, a rejeição entre as mulheres cristalizada durante a pandemia vem funcionando como freio.

sábado, 10 de setembro de 2022

O voto útil

O apelo aos eleitores para que votem “útil” é bem conhecido na política brasileira, seu nascimento remonta ao início dos anos 80 do século passado, quando o regime militar acabou com o bipartidarismo que ele próprio havia implantado no Ato Institucional número 2, de 1965.

Revogada a bipolaridade restrita a Arena e MDB, surgiram o PDS, sucessor da Arena, o PMDB, continuidade do MDB, o PTB de Ivete Vargas, o PDT de Leonel Brizola e o PT de Luiz Inácio Lula da Silva.

Com a nova pluralidade partidária, o governo João Figueiredo implantou o voto vinculado. As eleições municipais haviam sido adiadas de 1980 para 1982. Nestas, portanto, o eleitor seria obrigado a votar em candidatos do mesmo partido de vereador a governador, passando por prefeito (onde houvesse eleição direta), deputado estadual, federal e senador.

O objetivo do regime em dificuldades políticas: melhorar o desempenho do PDS nas eleições de governador, pois o oficialismo poderia vencer mesmo onde não tivesse a maioria absoluta, desde que chegasse na frente, pois até então a eleição para cargo majoritário era em um turno só.

O PT foi um ferrenho defensor de introduzir na Constituição de 1988 os dois turnos para presidente, governador e prefeito, pois vinha desde 1982 sendo vítima do então batizado “voto útil”.

Lula foi alvo desse discurso quando se candidatou a governador de São Paulo em 1982, perdendo para Franco Montoro (PMDB). Depois, Eduardo Suplicy sofreu com o argumento quando tentou a prefeitura da capital em 1985 e o governo estadual em 1986.

Nos três momentos, o apelo pela “utilidade” do voto decorria de os grupos identificados com o combate ao regime militar enfrentarem nas urnas paulistanas e paulistas candidatos da direita. Reinaldo de Barros em 82, Jânio Quadros em 85 e Paulo Maluf em 86.

O PT chegou à Constituinte em 1987 escaldado e trabalhou duro pelo seu espaço político. O argumento era razoável. “Cada um lança seu candidato no primeiro turno, e as alianças mais amplas acontecem no segundo.” E o partido viu a tese dos dois turnos sair vitoriosa, abrindo caminho aos candidatos majoritários do PT nas eleições subsequentes.

O apelo maciço do PT ao voto útil neste primeiro turno da eleição presidencial provoca uma dúvida: por que desacreditar da possibilidade de alianças mais amplas num eventual segundo turno?

A hipótese rósea é o PT e Lula não desejarem dar sopa para o azar e não quererem dar a Jair Bolsonaro mais quatro semanas, e no mano a mano, para tentar fazer o antipetismo voltar a superar o antibolsonarismo.

A outra hipótese é o PT desejar ser retornado ao poder por uma onda de votos úteis sem precisar firmar compromissos programáticos e em torno de espaços políticos com outros grupos, além dos escassos acordos já firmados.

A hipótese mais realista é uma combinação das duas.

De qualquer modo, seria pouco inteligente o PT não fazer o que está fazendo, pois um segundo turno contra Bolsonaro reabrirá a disputa eleitoral em outro patamar, com os dois oponentes em mais paridade.

Verdade que as projeções de segundo turno apontam vantagem, até algo confortável, para Lula. Mas em 2018 as projeções de segundo turno antes do primeiro estavam bem equilibradas, aí o candidato do PSL conseguiu um arranque na reta final do primeiro turno que lhe permitiu abrir grande diferença na largada do segundo.

Depois essa diferença foi caindo, mas a distância final acabou sendo boa, de uns dez pontos percentuais.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Platitudes em tempo de eleição

Era esperado que as diversas alternativas na eleição se apresentassem como a salvação da lavoura e apontassem nos adversários sérias ameaças à segurança, ao bem-estar e ao progresso material e espiritual da sociedade e dos indivíduos.

As disputas políticas sempre correram por aí mesmo, mas há uns quinze anos isso exacerbou-se, também pelas frustrações decorrentes da crise de 2008-09 e pela “redessocialização” do debate político e dos mecanismos tradicionais de formação da opinião pública.

Mas é preferível acender uma vela a amaldiçoar a escuridão, então talvez valha a pena substituir o lamento pela busca de alguma ideia construtiva, por mais que possa parecer, ou ser, platitude. Na era da infantilização generalizada, até as platitudes podem cumprir um papel.

E as platitudes também servem de escudo em tempos de guerra política aberta.

A platitude que proponho desenvolver neste texto é meio óbvia: e se as diversas forças políticas aceitassem que os adversários, ou inimigos, continuarão morando por aqui, trabalhando, ganhando a vida, opinando, candidatando-se, elegendo e sendo eleitos?

Volta e meia, os discursos trazem a necessidade de defender a democracia e a liberdade. Para algumas narrativas, a Nova República e a Constituição de 1988 são as grandes “referências democráticas”. Verdade que a Carta, de tantos enxertos e amputações, acabou desfigurada e anda meio agonizante.

Aliás, ninguém mais parece estar nem aí para o argumento singelo “mas a Constituição não diz o contrário?”.

Principalmente os encarregados de zelar pelo cumprimento dela.

Mas o pilar central da Nova República é (era) outro. Foi-se estabelecendo ao longo das duas décadas de resistência ao regime militar, especialmente no declínio dele, um certo consenso a favor de construir um sistema político em que todas as forças pudessem se organizar pacificamente, disputar eleições e, caso vitoriosas, governar.

Era, e é, até uma obviedade. Há outros modelos disponíveis na prateleira, mas se o consenso continua sendo construir uma democracia constitucional pluralista não há como escapar da alternância no poder.

E, se numa democracia constitucional pluralista a alternância no poder é apresentada como ameaça à democracia, tem-se um problema. Uma contradição em termos.

A tentação costumeira é “dar um jeito” de bloquear o acesso de determinados grupos políticos ao governo. Mas aí vem a complicação: se uma parte, ainda mais se for uma parte grande, da sociedade está “minorizada”, com o tempo a própria democracia constitucional perde sentido.

Será saudável se este processo eleitoral desembocar num resultado aceito por todos e se a oposição feita pelos perdedores voltar seu locus para as mobilizações sociais, a opinião pública e o Parlamento, fazendo o Judiciário retornar para dentro da lâmpada mágica, da caixinha de onde saiu.

Mas não vai acontecer. Não se vê elemento ou vontade capaz de bloquear a reação química desencadeada por aqui em 2013. Nada parece capaz de frear a marcha da insensatez.  

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Publicado na revista Veja de 14 de setembro de 2022, edição nº 2.802

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Depois do 7 de setembro

Jair Bolsonaro alcançou seu objetivo com as mobilizações em torno do Dia da Independência: galvanizar sua tropa de apoiadores rumo à reta final do primeiro turno, no qual está até o momento em desvantagem resiliente, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Por enquanto, os vasos comunicantes entre melhora da percepção da economia, aprovação do governo e intenção de voto no presidente estão algo bloqueados. Faz sentido que Bolsonaro tenha desejado passar uma corrente elétrica pela sua base para colocá-la em movimento a pouco mais de três semanas da eleição.

Pois vai chegando a hora em que o eleitor ainda indeciso começa a ficar mais permeável aos argumentos não apenas dos candidatos, mas do eleitor decidido.

Os atos neste feriado exibiram em imagens outro achado recolhido das pesquisas: se Lula lidera na intenção de voto, o eleitor de Bolsonaro está no momento mais convicto de sua decisão. Percentualmente, mais eleitores de Lula dizem votar nele por rejeitar Bolsonaro do que eleitores de Bolsonaro dizem votar nele por rejeitar Lula.

Uma das novidades nesta conjuntura de quebra de tabus é a direita mostrar mais poder de mobilização que a esquerda. Uma particularidade que vinha se estabelecendo aos poucos, mas parece ter-se consolidado.

O outro lado arriscará uma competição com o presidente para ver quem põe mais gente na rua ou persistirá na tática de tentar simplesmente reunir uma “maioria silenciosa” e deixar o braço de ferro apenas para as urnas?

As imagens da massa em verde-amarelo também ajudam o postulante à reeleição a manter sua tropa eleitoral cética em relação aos levantamentos estatísticos, algo essencial para candidatos que entram em desvantagem no corredor polonês das últimas semanas pré-eleitorais.

A dúvida é quanto este 7 de setembro mexerá nos números no curto prazo, o que só poderá ser respondido pelos próprios números. Isso ganha alguma importância quando as tensões e nervosismos das campanhas e dos apoiadores têm por efeito colateral buscar a qualquer custo conclusões definitivas a partir até de oscilações na margem de erro.

sábado, 3 de setembro de 2022

Segundo turno é uma nova eleição? E o papel da mobilização

Os levantamentos mais recentes aumentaram a expectativa de a eleição presidencial deste ano ser decidida em dois turnos. O desfecho da trama depende, em última instância, de as terceiras vias, nas versões mais ou menos centristas, conseguirem reter os votos diante da pressão que virá (já está vindo) da esquerda.

Numa conversa esta semana veio do interlocutor a dúvida sobre se o segundo turno é sempre "uma nova eleição”. Tecnicamente sim, pois o eleitor tem de ir novamente à seção eleitoral, digitar o número do candidato e apertar “confirma”. Mas, a dúvida não é essa: é se a corrida recomeça do zero, ou quase. Em geral não.

A esta altura, o pensamento do eleitor atento à corrida presidencial já está percorrendo dois circuitos: sua escolha no primeiro turno e em quem votará caso o segundo turno seja disputado entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Na mente desse eleitor, os dois turnos já correm em paralelo.

Segundos turnos são tanto mais “uma nova eleição" quanto menos previstos. Se Simone Tebet conseguir a dupla façanha de ultrapassar Ciro Gomes e um dos dois líderes, e se a decisão ficar para 30 de outubro, o segundo turno será mesmo, em boa medida, uma nova eleição.

Mas, quando acontece o mais provável, quando o previsto prevalece, cenários de segundo turno são estruturados essencialmente no primeiro. São uma continuidade do primeiro. Em particular, costumam ser uma extensão da reta final do primeiro. Um exemplo cristalino aconteceu em 2018.

Os levantamentos na quinzena final do primeiro turno apontavam para um equilíbrio entre Bolsonaro e Fernando Haddad no possível segundo turno. Mas o arranque do capitão na reta final do primeiro turno fez, até por uma certa inércia, ele abrir o segundo turno exibindo larga vantagem sobre o petista.

Até hoje esse contraste entre o que diziam as pesquisas antes do primeiro turno e o que elas mostraram depois é explorado pelos apoiadores do presidente como uma evidência de as pesquisas terem errado. Não erraram, mudou foi o estado de espírito de parte do eleitorado que antes se mostrava algo indiferente ou distante.

A campanha de Bolsonaro espera fazer do 7 de setembro uma alavanca para o arranque rumo ao 2 de outubro. A ideia faz sentido, pois o capitão precisa ou ultrapassar ou chegar o mais próximo possível de Lula, neste caso para minimizar o risco decorrente dos apelos da esquerda pelo voto útil.

Claro que há uma variável complicadora: uma forte mobilização bolsonarista acelerar a convergência do antibolsonarismo em torno do candidato do PT. Aconteceu com sinal trocado em 2018: a espetacular demonstração de força do #elenao desencadeou uma ainda mais expressiva reação conservadora.

Mas quem entra em campo tem de jogar. Ficar parado não costuma ser inteligente. Menos ainda para quem está correndo atrás. Já Lula está jogando parado por enquanto, mas sua diferença real para o presidente, entre cinco e dez pontos percentuais, talvez tampouco recomende ficar estacionado na zona de conforto.

sábado, 27 de agosto de 2022

Sinatra, os grandes estoques e a bolha furada

A palavra “polarização” incorporou entre nós o atributo da ubiquidade. É a descrição de tudo, a explicação para tudo. Faz algum sentido, pois a disputa eleitoral aparece monopolizada não apenas por um presidente e um ex, mas por dois líderes de massa. Duas circunstâncias originais nas eleições brasileiras desde a retomada do voto direto presidencial em 1989.

Talvez a polarização explique a notável estabilidade dos números, que aguardam agora os possíveis efeitos das entrevistas e debates, mas principalmente dos programas e inserções no rádio e na TV. Uma consequência da estabilidade é jornalistas e analistas encararem a dura tarefa de ocupar espaços e desenvolver análises a partir de oscilações dentro das margens de erro. Não está fácil para ninguém.

Mas foi dada a largada das grandes entrevistas e debates, e do horário eleitoral, e na nova etapa do jogo a atenção volta-se ansiosa para os impactos nas pesquisas, efeito que possivelmente demore um tantinho, à espera da natural decantação dos efeitos da propaganda oficial das campanhas e da maior exposição dos contendores.

Sobre este último ponto, escrevi há poucos dias em “Boxe sem programa”.

Uma curiosidade é se a renovada exposição permitirá à dita terceira via ganhar massa crítica para criar um fato novo. Até agora não aconteceu. Ciro Gomes (PDT) continua estacionado em seu público fiel, na esperança de, pelo menos, não sofrer um ataque especulativo fatal na véspera do primeiro turno. A pressão vinda da esquerda com o argumento de não dar sopa para o azar será (está sendo) grande.

Simone Tebet (MDB) fez uma boa entrevista no Jornal Nacional da TV Globo, mas ainda precisa mostrar musculatura eleitoral para animar os cerca de 10% do eleitorado que não admitem votar nem em Luiz Inácio Lula da Silva nem em Jair Messias Bolsonaro. A terceira via continua repetindo a saga das sempre anunciadas e nunca concretizadas visitas de Frank Sinatra ao Brasil.

Mas um dia Sinatra acabou vindo

Um paradoxo da eleição: ela está dominada pela polarização, mas a chave para a vitória de um ou outro candidato depende de alguns grandes estoques de voto nos quais a disputa não está polarizada. São as mulheres, os pobres e o Nordeste. Nos três contingentes, Lula está muito à frente de Bolsonaro.

Para fechar a atual diferença contra Lula, Bolsonaro não precisa virar o jogo nesses estoques, basta reduzir a diferença. Cada redução aí impacta com boa força no quadro geral. E é razoável supor que onde a diferença entre os dois é muito grande há mais facilidade para produzir movimentações eleitorais relevantes.

Desta semana em diante as pesquisas começarão a mostrar o efeito da maior exposição dos candidatos e do início da campanha eleitoral oficial.

Nas eleições recentes, os incumbentes e situacionistas em busca de fazer o sucessor cresceram no período, pela possibilidade de furar a bolha da cobertura negativa (ou crítica, conforme o gosto do freguês) de imprensa. Vale acompanhar para saber se Bolsonaro vai repetir o roteiro.

Se conseguir, a eleição vai apertar.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Boxe sem programa

Debates e entrevistas duras em disputas eleitorais são como lutas de boxe. O primeiro objetivo é não ser nocauteado. Por isso, saber defender-se é tão ou mais importante quanto saber atacar. Melhor ainda quando se consegue encaixar um contragolpe e marcar uns pontinhos.

Nocautes são raríssimos em entrevistas e debates eleitorais. A regra é a luta acabar em uma discussão sobre quem ganhou por pontos, com a vantagem de não haver juízes para decidir. Cada lado é livre para tentar impor sua narrativa.

Nem o resultado final da eleição serve de veredito a respeito de quem “ganhou o debate”. Sempre haverá quem recorra a grupos focais, a medições nas redes sociais, a pesquisas quantitativas. Mas nunca será definitivo. Sempre haverá viés.

Então, qual deve ser o objetivo principal de quem entra nesse ringue? Simples: fazer seu eleitor orgulhar-se de você. Para armá-lo, o seu eleitor, de argumentos na batalha por novos votos e nas refregas com eleitores adversários.

Debates não costumam acabar em nocautes, mas eleições sim. E o exército que luta com mais vontade e convicção tem um “plus a mais” na busca da vitória.

Líderes políticos são medidos, em última instância, pela capacidade de conduzir os liderados à vitória. Pouco mudou a esse respeito desde sempre. O chefe da tribo não é julgado pelos seus atributos morais, mas pelo talento para chefiar na guerra pela sobrevivência e sucesso material.

Daí que os valores na política tenham peculiaridades.

A tão glamorizada coerência pode eventualmente levar a desastres. Na política, desdizer hoje o que foi dito ontem não necessariamente é pecado. Se a mudança puder ser vendida ao público como uma alteração de rota indispensável para a vitória, será absorvida e até saudada.

E a insistência no erro, por coerência, é pecado capital quando coloca a tribo em perigo. Situação em que o líder corre o risco de ser guilhotinado, real ou metaforicamente, pelos dele.

A eleição presidencial deste ano é peculiar por estar na prática monopolizada, até o momento, entre dois políticos que exibem como principal atributo precisamente a liderança tribal. Em terceiro, vem um personagem na sua quarta tentativa de chegar à Presidência, sempre defendendo uma fatia em torno de 10% do voto válido.

Tal circunstância acaba reforçando precisamente o escrutínio das capacidades do líder, ou candidato a líder, deixando nas sombras o julgamento do que, afinal, cada um deles pretende fazer com o país. É rotineiro nas eleições brasileiras, mas desta vez o traço anda bem exacerbado.

Mesmo nas raras abordagens ditas “programáticas”, os contendores buscam reforçar antes de mais nada seu “preparo” e clarividência. No que são facilitados pelo até agora aparente desinteresse do jornalismo em aprofundar e destrinchar os caminhos de cada um para tratar dos assuntos da vida prática dos cidadãos.

É confortável para os boxeadores, que vislumbram para o vencedor um cheque em branco. Pode até ser ilusão deles nesta nossa República retalhada pelos diversos núcleos de poder. Mas não deixa de ser apetitoso.

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Publicado na revista Veja de 31 de agosto de 2022, edição nº 2.800

sábado, 20 de agosto de 2022

Os fatos e os entraves

Todas as pesquisas, algumas antes outras depois, vêm mostrando melhora na percepção popular sobre o estado da economia. A evolução mais acentuada é nas expectativas, especialmente sobre a inflação. Se houver mesmo segundo turno em outubro, será por esse sentimento. Toda eleição é, em última instância, uma disputa sobre continuar, porque está dando certo, ou mudar, porque está dando errado.

Mas eleição não é transformação automática de percepções objetivas sobre a realidade em votos. A transmissão não é linear, há assincronias e assimetrias. Tem gente que não vota no situacionismo, mesmo avaliando bem a situação. E tem gente que deseja a continuidade, mesmo reprovando o trabalho de quem ocupa o poder. “É a economia, estúpido”, mas ela não está sozinha no baile.

Isso fica bem evidenciado num certo atraso, ou dificuldade, de Jair Bolsonaro transformar em intenção de voto a melhora da percepção popular sobre o estado da economia. Na base da sociedade, o presidente enfrenta um cenário de apoio fiel a Luiz Inácio Lula da Silva, e o objetivo governamental aí não é sobrepujar o adversário, mas reduzir a diferença nesse principal estoque de votos. Quase metade do eleitorado ganha até dois salários mínimos.

A resistência dos pobres a Bolsonaro repousa em três fatores: 1) os governos do PT implementaram, ao longo de catorze anos, um leque de programas sociais; e, por isso, 2) não teria credibilidade o governo recorrer ao tradicional truque de dizer que, se a oposição ganhar, vai acabar com as medidas que beneficiam a base da pirâmide social; e 3) os recentes benefícios aos mais pobres só estão garantidos por lei até 31 de dezembro.

Bolsonaro vem sendo prejudicado pela percepção de que as medidas de seu governo a favor dos pobres costumam demorar, só saem a fórceps e, agora, não estão garantidas para o próximo ano. O governo pode até explicar que as dificuldades derivam da preocupação com o equilíbrio fiscal. Mas os fatos são teimosos: como, ao fim e ao cabo, ele acaba adotando as medidas, fica a impressão de ter feito a contragosto.

E isso é um veneno eleitoral.

No topo social, o problema é outro: a convicção disseminada de Bolsonaro pretender implantar um regime autoritário. Importa menos se esse fato está perto ou distante da realidade. Na política, especialmente em eleições, vale a percepção. Por ação ou omissão, o governo deixou a ideia cristalizar. E tal circunstância, ademais, oferece uma oportunidade única de o habitual adesismo, atraído gravitacionalmente pela expectativa de poder, revestir-se de desprendimento em defesa da democracia. Chega a ser irresistível.

A evolução do cenário eleitoral depende das taxas de transmissão das variações entre três índices: 1) a percepção sobre a economia, pessoal e geral; 2) como isso impacta a avaliação do governo; e 3) em que medida isso se transforma em voto. É razoável supor que a melhora no primeiro quesito impacte positivamente o segundo e, por tabela, o terceiro. Os números não mentem. A dúvida é quanto os entraves vão retardar essa transmissão.

sábado, 13 de agosto de 2022

Uma armadilha nas pesquisas

Há um detalhe delicado nas pesquisas eleitorais: a diferença entre o não voto (brancos, nulos e abstenção) que será verificado na urna e os que, em pesquisas estimuladas, não escolhem nenhum candidato quando a lista é apresentada. No dia da eleição, o não voto tem rondado os 30%, mas nas pesquisas estimuladas esse contingente é apenas um terço disso. Cerca de 20% dos pesquisados indicam candidato na estimulada mas provavelmente não votarão em ninguém.

Daí a necessidade de prestar muita atenção ao cenário espontâneo, em que o pesquisado não é apresentado à lista. Aqui, o não voto costuma estar bem mais próximo do que será no dia da eleição. Até porque em 2 de outubro (e talvez dali a quatro semanas) a escolha do eleitor terá de ser espontânea, ele precisará decidir sem ter diante dele as opções disponíveis para os diversos cargos em disputa.

Num cenário ideal, a “quebra” entre a intenção de voto na pesquisa estimulada e a realidade na urna deveria distribuir-se proporcionalmente entre os candidatos, mas é preciso ter alguma cautela na projeção. O absenteísmo eleitoral não é homogêneo nos diversos grupos sociais, nem nas diferentes áreas territoriais. Essa é uma das explicações frequentes para quando os institutos precisam justificar por que a pesquisa disse uma coisa, e a urna disse outra.

Uma maneira razoável de buscar reduzir essa “margem de erro” é esmiuçar com o eleitor 1) quanto está interessado na eleição; 2) se vai ou não votar em outubro; e 3) se votou em 2018. Claro que isso não é ciência exata, o pesquisado pode ter se esquecido se compareceu quatro anos atrás (ou mentir), pode dizer, por conveniência (voto obrigatório), que vai votar agora (e no dia não votar). E “grau de interesse” é variável algo subjetiva.

Mas, mesmo com as limitações, o cruzamento entre a intenção de voto e essa aproximação à “probabilidade real” de o entrevistado/eleitor ir votar costuma ser útil. E o que o cruzamento nos diz hoje? Quando o número é depurado, a distância entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro reduz-se em algo da ordem de 30%. Portanto, hoje, o eleitor do presidente está algo mais mobilizado para votar que o eleitor do ex-presidente.

Isso tem consistência com a diferença das rejeições. Se Bolsonaro é mais rejeitado que Lula, é razoável supor que Lula tem proporcionalmente mais gente tendendo a votar nele por puro antibolsonarismo do que Bolsonaro atrai simpatizantes por puro antipetismo ou antilulismo. Essa hipótese também é consistente com outro achado das pesquisas: ainda que na margem de erro, no momento, Bolsonaro tem proporcionalmente mais eleitores convictos que Lula.

A partir dessas hipóteses e constatações, é possível deduzir numericamente que hoje a diferença real entre Lula e Bolsonaro está entre 5 e 10 pontos percentuais e tem tido certa resiliência. Esse parece ser o estado real da corrida. Daqui em diante, será preciso acompanhar quem terá mais sucesso em elevar a rejeição ao adversário e em motivar seu eleitor potencial a ir votar.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

10 milhões de eleitores em disputa

Um contingente muito específico de eleitores está no foco da disputa entre os dois principais competidores, no momento, da sucessão presidencial. São cerca de dez milhões de pessoas que nas duas últimas décadas já votaram tanto no PT de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff quanto contra o PT. Estiveram em parte com o PSDB de 2006 a 2014 e maciçamente com Jair Bolsonaro em 2018.

Esse grupo abandonou o PT quatro anos atrás principalmente por causa das denúncias de corrupção, mas é simplista parar por aí. As denúncias de Roberto Jefferson em 2005 não impediram o petismo de sobrepujar, e bem, os adversários em 2006 e 2010. As ações foram julgadas e as condenações proferidas no primeiro mandato de Dilma. Mesmo assim ela conseguiu um segundo quadriênio.

A fórmula explosiva que levou ao impeachment dela teve não um, mas dois ingredientes: a Lava Jato e a recessão. Governos até se salvam de escândalos quando têm sólida base político-parlamentar e a economia caminha pelo menos razoavelmente, do ângulo do povão. Quando a economia engasga, a intolerância com denúncias de malfeitos cresce aceleradamente. Aconteceu em 2015-16.

A economia costuma comandar, mesmo quando outras variáveis têm mais visibilidade. O mecanismo parece repetir-se. Segundo as pesquisas, a percepção de melhora no cenário econômico começa a mexer nos índices de aprovação do governo. Será uma surpresa se isso não repercutir em algum grau nas intenções de voto do candidato à reeleição. Mesmo enredado em outras polêmicas.

A recuperação econômica era previsível, e foi prevista, pela volta completa das atividades produtivas e comerciais, mesmo que a Covid-19 ainda esteja matando por aqui mais de duas centenas por dia. Mas isso aparentemente deixou de ser notícia. Ajudam também as exportações anabolizadas pelo câmbio, mesmo com a tormenta econômica global provocada em torno da guerra na Ucrânia.

E a recuperação vem acompanhada da queda do desemprego.

Até semanas atrás, o que travava a sensação de melhora era a inflação resistente, mas a conjugação das medidas agressivas para baixar o preço dos combustíveis com o igualmente agressivo aperto monetário promovido pelo Banco Central parece estar contendo a alta dos preços. É provável que a eleição transcorra num ambiente de emprego em recuperação e menos inflação.

A oposição programou-se para uma jornada eleitoral com a população tomada pela sensação de agudo mal-estar com a economia. As dificuldades ainda são muitas, especialmente entre os mais pobres, a inflação da comida machuca, mas a irritação persistente com o governo na classe média e na elite econômica parece registrar alguma dissipação. E agora começou a ser pago o Auxílio Brasil de 600 reais.

Resta saber se haverá tempo para que a virada na conjuntura econômica se cristalize nas intenções de voto - e no voto. O tempo teoricamente é curto, mas em períodos eleitorais ele costuma correr de um modo diferente.

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Publicado na revista Veja de 17 de agosto de 2022, edição nº 2.798

sábado, 6 de agosto de 2022

Rasteiras e mandonismos

O período de definição das alianças e candidaturas fechou com o costumeiro espetáculo de rasteiras proporcionado pelas direções partidárias. Nem nomes competitivos escaparam do festival de mandonismo, que reforçou uma regra básica da política brasileira: ou você é dono de partido ou está completamente à mercê de um deles, que faz o que bem entende.

Poder agora reforçado pelo monopólio de facto do dinheiro disponível para as campanhas.

Não por acaso, o debate da sempre propalada reforma política, mesmo descrita como “a mãe de todas as reformas", nunca chega a resvalar nessa questão fundamental. Entre as anomalias teratológicas resultantes da Carta de 1988 e seus desdobramentos, o Brasil restringiu a disputa do poder a donos de agremiações generosamente contemplados com recursos vindos dos impostos, mas totalmente desobrigados de praticar qualquer traço de democracia interna.

O mecanismo ainda exibe alguma, digamos, legitimidade quando o dono do partido também é o dono dos votos. Mas é exceção da exceção. Na ampla maioria dos casos, a força do proprietário da legenda deriva da posição burocrática ocupada. Esse poder absoluto permite-lhe dissolver instâncias, nomear à vontade comissões provisórias, dizer quem vai ter dinheiro e quem não vai, etc.

E usar pré-candidatos como laranjas para na reta final mercadejar apoios e alianças em condições mais favoráveis.

Mas isso agora é passado, segue a partida, e entramos no segundo tempo de um jogo de mais dois ou três tempos: 1) o “início oficial” das campanhas no primeiro turno, 2) o horário eleitoral e, talvez, 3) o segundo turno. Doravante, e tirando os imprevistos, dois aspectos devem chamar a atenção: 1) a taxa de transferência entre a percepção de melhora na economia e o desempenho de Jair Bolsonaro e 2) o que a Justiça deixará que seja dito na campanha.

Sim, pois, como previsto, a dito “combate às fake news” vem servindo menos para limitar a difusão de mentiras no debate político e mais para os bem situados em posições de poder chamarem para si, com objetivos políticos, o poder absoluto de definir o que é “a verdade”. Isso já tem sido bastante relevante no dia a dia, mas adquire importância decisiva na eleição.

É altamente improvável que se consiga proibir os políticos de mentir (quem conseguisse isso mereceria um Nobel, talvez de Química), então o mais provável é o processo escorregar para outro mandonismo: os detentores (ou detentor) da prerrogativa de definir o que é verdade ou mentira usarem o “combate às fake news" para ajudar uns e atrapalhar outros.

E a elasticidade economia-votos de Bolsonaro? Será preciso olhar a relação entre quatro variáveis: 1) as condições objetivas, que costumam se expressar em números e não dependem de interpretação, 2) a percepção do eleitor sobre a própria situação, 3) a percepção do eleitor sobre a situação do país e 4) a percepção do eleitor sobre a conveniência de manter Bolsonaro no cargo para que a situação da economia, pessoal e geral, melhore.

A guerra da informação influi pouco ou quase nada nas duas primeiras variáveis, que estão melhorando, mas pesa bem nas duas últimas, que parecem meio paradas.

sábado, 30 de julho de 2022

A guerra das pautas

Desde a redemocratização, é rotina nas nossas eleições presidenciais os contendores apresentarem-se como a essência do altruísmo. Nunca se trata de entronizar certo grupo para aplicar certo programa, mas de fazer a eterna escolha decisiva para a salvação nacional. A circunstância de isso coincidir com a ocupação do Estado por certa corrente ou conglomerado seria apenas isso, uma circunstância.

Tal narrativa, além de capturar votos, leva a vantagem de oferecer uma razão heróica para aderir ao poder, ou à expectativa dele. A arte da política reside também em defender o próprio interesse, e o do grupo, mas em dar a impressão de estar defendendo, antes de tudo, o interesse geral. O príncipe precisa cultivar duas lealdades fundamentais para preservar o pescoço: a lealdade da corte e a da massa.

Na utopia, poderíamos estar às vésperas de uma campanha em que sobressaíssem os caminhos para reindustrializar o Brasil, retomar o desenvolvimento acelerado, atrair capital para o necessário salto na infraestrutura, melhorar radicalmente a educação básica, acabar com o subfinanciamento da Saúde, atacar a criminalidade e construir um sistema político capaz de produzir estabilidade e progresso social.

Mas há a possibilidade, e isso não é um lamento, é constatação, de essa pauta vital ser interditada nos próximos dois ou três meses, com o Brasil ocupado discutindo se é mais importante salvar o país do bolsonarismo ou do petismo. Na cúpula intelectual, o antibolsonarismo ganha de goleada. No povo, está bem mais apertado.

E o apelo salvacionista desta vez vai se polarizando em torno da dita questão democrática. Diferente de 2018, quando o demônio da hora era a corrupção. E o PT está levando vantagem. Por seus acertos, pelos erros do adversário, mas também por razões históricas.

Apontar o dedo contra o petismo pela proximidade com governos de esquerda mal vistos no Ocidente não parece, até o momento, fazer efeito. Pois o PT não carrega no currículo o apoio ou o elogio ao golpe de 1964 e, regra geral, respeitou, ou foi forçado a respeitar, o resultado das eleições presidenciais que perdeu. Nem no impeachment de Fernando Collor o petismo foi protagonista.

Deixou isso para o então PMDB e o PSDB.

Luiz Inácio Lula da Silva e o PT estão jogando essencialmente dentro das regras há quatro décadas. Esse é um fato. E isso está ajudando um e outro a ficar bem posicionados para agora colher os frutos. Esse é outro fato.

Do lado oposto do ringue, Jair Bolsonaro foi produto da implosão da Nova República e agora assiste à aglutinação dos remanescentes dela em torno da defesa e do resgate daquela simbologia, sintetizada na ideia da frente ampla.

A convergência é facilitada pelo contraste com as teses sempre professadas pelo “capitão do povo”, como diz o jingle. E facilitada também pela até agora importância que o incumbente dá ao debate sobre o voto eletrônico.

Eleições têm um pouco de judô. Se acertar a pegada no quimono do oponente, é meio caminho andado na luta. Por enquanto, a agitação da “salvação da democracia” tem ajudado Lula a agregar apoio político por gravidade e funcionado como freio adicional para impedir, ou dificultar, Bolsonaro de capitalizar alguns recentes dados positivos no universo da economia.

Aqui, a inércia do debate joga ao lado de Lula. Quem precisa criar o fato novo, voltar a pauta para os assuntos econômicos, é o presidente.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Quem vai encaixar melhor?

Cada processo eleitoral apresenta uma ou duas variáveis-chave, e navega mais facilmente a candidatura com imagem pública mais solidamente associada à capacidade de dar atenção a essas variáveis, e, portanto, apresente-se como mais capaz de solucioná-las.

Jair Messias Bolsonaro venceu a eleição de 2018 principalmente porque sua imagem pública, construída ao longo de décadas, estava vinculada à firmeza no combate ao crime. Isso encaixava com as duas demandas mais sensíveis do eleitorado naquele ano: atacar implacavelmente o crime de corrupção e a impunidade dos criminosos em geral.

As angústias principais agora em 2022 são outras: a inflação e o desemprego, que trabalham para aprofundar a pobreza e a fome. Daí Luiz Inácio Lula da Silva enfrentar menos vento contra que o presidente, ou até ser empurrado por vento favorável.

Pois ao longo da década e meia petista no poder Lula foi acusado de muitas coisas, mas preservou intocada, e todas as pesquisas comprovam isso, a imagem de governar com especial atenção para o combate à pobreza, à fome e à desigualdade.

A missão da campanha do PT é congelar a hierarquia das preocupações da sociedade, fazer chegar outubro com a impressão disseminada de que a economia vai muito mal, especialmente a inflação e o desemprego. Portanto cabe ao governismo tentar inverter a equação.

Há dados objetivos (os fatos costumam ser teimosos) a mostrar a redução do desemprego, e as mesmas pesquisas que trazem o favoritismo de momento de Lula mostram a percepção popular sobre a inflação melhorando rapidamente.

A dúvida é se haverá tempo hábil para consolidar a sensação de um cenário econômico mudando para melhor e que não vale a pena “mexer em time que está ganhando”. Como diz o batido ditado em língua inglesa, trata-se de batalha morro acima para o situacionismo.

E sempre estará ao alcance do petismo repetir 2002. Se a situação eleitoral apertar, se a chapa esquentar, assumir o compromisso de não dar um cavalo-de-pau na economia. Até agora não tem sido necessário, pois a anabolização do antibolsonarismo “de centro” tem levado votos a Lula por gravidade, sem o PT ter de fazer qualquer concessão programática.

Será necessário olhar também como vão evoluir as taxas de rejeição dos candidatos, diante da inevitável campanha negativa que vem aí. Se Lula precisa manter o diferencial favorável nesse quesito, aumentar a repulsa ao petista é um caminho óbvio para o bolsonarismo.

Pois, quando um eleitor diz que não vai votar de jeito nenhum no candidato “x”, a saída intermediária para o candidato “y” é convencer esse eleitor a não votar em nenhum dos dois.

Outro detalhe: nas pesquisas estimuladas, a taxa de “não voto” tem girado em torno de 10%, o que é irrealista, pois a série histórica mostra esse contingente (abstenção mais brancos mais nulos) entre 25 e 30%. Por isso é recomendável prestar atenção à evolução das pesquisas espontâneas, nas quais o “não voto” aparece mais próximo dessa tradição.

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Publicado na revista Veja de 03 de agosto de 2022, edição nº 2.796

sábado, 23 de julho de 2022

Política sem economia

A dúvida do momento é quanto, e em que velocidade, Jair Bolsonaro vai angariar na contabilidade eleitoral em consequência da melhora no ambiente econômico e dos benefícios sociais aprovados pelo Congresso Nacional. O presidente apresenta duas desvantagens comparativas em relação a antecessores que operaram agrados econômicos pré-eleição: 1) o pacote atual é bem mais modesto que alguns precedentes (Planos Cruzado e Real) e 2) uma forte barragem de opinião pública negativa a servir de muro de contenção à popularidade.

Mas, mesmo lentamente, Bolsonaro vai ao menos impedindo a demolição pretendida pelos oponentes e estabiliza-se para ir ao segundo turno numa posição não previamente derrotada. Daí que o desafiante Luiz Inácio Lula da Silva tente, de última hora, operar o MDB para implodir a candidatura de Simone Tebet, cujos, até agora, pontinhos nas pesquisas acabam por vitaminar os adversários do petista a somar algo acima da barreira de metade mais um.

Lula está certo em tentar tudo para liquidar a fatura no primeiro turno. Trata-se, no mínimo, de unir o útil ao agradável. O agradável é não ter de negociar nada com ninguém além do já acertado na primeira rodada e não ter de enfrentar debates no mano a mano. O útil é não correr o risco de uma reviravolta impulsionada pelo combustível do antipetismo “de centro”. Que anda meio adormecido e sumido, encoberto pelo antibolsonarismo “de centro”, mas não foi eliminado. Está logo ali na prateleira para uma eventualidade.

O cenário ideal para Lula é riscar Simone Tebet da lista de candidatos e depois partir para cima do eleitor de Ciro Gomes. Boa parte do contingente, limitado mas relevante, de Ciro nas pesquisas diz que votaria no petista num eventual segundo turno e nem mesmo está seguro do voto no primeiro. É um mercado potencial para a mensagem do voto útil. Que virá com força para tentar lipoaspirar Ciro e eventuais outros, como lipoaspirou Geraldo Alckmin em 2018 na onda que tentou liquidar a fatura a favor de Bolsonaro no primeiro turno.

Mas isso é futurologia, o assunto do momento é quanto Bolsonaro vai faturar de intenção de voto por causa da redução do preço dos combustíveis e do pacote social. O mais interessante é notar que o povão e a opinião pública parecem rodar em universos paralelos, em frequências distintas. Os temas que mobilizam ambos andam distantes. É natural: quando está em jogo a sobrevivência material, ela tende a concentrar criticamente as atenções e motivações dos mais ameaçados. E a comunicação dos outros assuntos fica meio sem chão na grande massa.

Bolsonaro vem reduzindo a possibilidade de a oposição conectar economia e política na comunicação, pois tomou as iniciativas anti-inflacionárias que certamente a oposição tomaria, especialmente para os mais pobres. Sem esse nexo, a mensagem política meio que patina. Isso ajuda a explicar a atual resiliência bolsonarista, assim como a liderança do petista se explica pelo currículo e a identificação de Lula com os grupos de menor renda e historicamente preteridos. A dúvida é sobre quem vai furar primeiro a bolha do adversário. E se isso vai acontecer.

sábado, 16 de julho de 2022

Os três desafios de Bolsonaro na batalha morro acima

É provável que o pacote de benefícios sociais aprovado pelo Congresso, somado ao esforço governamental para reduzir o preço dos combustíveis ao consumidor final, ajude o presidente Jair Bolsonaro a vitaminar seus índices nas pesquisas de avaliação dele e do governo. E nas eleitorais. Até por haver uma correlação estatística conhecida entre as taxas de aprovação de governos e a probabilidade de governantes serem reconduzidos.

É natural, portanto, que a oposição busque apresentar essas medidas como provisórias e voltadas unicamente à eleição. O que pressionará os candidatos, todos eles, a assumir o compromisso de mantê-las caso eleitos. É possível até que alguma iniciativa venha a progredir nesse sentido no Congresso ainda durante a campanha. Ainda não se inventou um sistema em que eleições periódicas com vários partidos estejam imunes ao “eleitoralismo”.

Bolsonaro tem três desafios de momento na batalha dele morro acima: 1) evitar que Luiz Inácio Lula da Silva vença no primeiro turno, 2) melhorar o desempenho nas projeções de segundo turno, para impedir corrosão ainda maior da sua expectativa de poder e 3) evitar ser ultrapassado por alguma surpresa da “terceira via”. No momento, o menos complicado para ele é o terceiro desafio, dada a anemia do centrismo.

O pacote social ajuda a provocar um segundo turno, mas não é suficiente. Lula pode levar na primeira rodada mesmo que o presidente reaja, se o petista conseguir lipoaspirar já de cara a votação dos demais. O alvo principal é Ciro Gomes, que ronda os dois dígitos na intenção de voto, mas vê pelo menos metade do seu eleitorado potencial dizer que pode mudar o voto e propenso a votar em Lula no segundo turno.

Sobre a expectativa de poder, o desafio de Bolsonaro é mudar a opção majoritária do eleitorado que não está com ele nem com o petista. Hoje, na média das pesquisas, a diferença de Lula para o presidente cresce de dez para quinze pontos entre o primeiro e o segundo turnos. Ou seja, o pré-candidato do PT atrai mais gente desse estoque de votos, pois Bolsonaro lidera no incômodo ranking das rejeições.

Dilma Rousseff elegeu-se em 2014 mesmo com rejeição relativamente alta, pois conseguiu ao longo da campanha elevar a rejeição dos oponentes, no primeiro e no segundo turnos. Espera-se este ano uma repetição, potencializada, da intensa comunicação negativa que caracterizou aquela corrida eleitoral. Com consequências fortes no pós-eleição. Mas políticos querem saber é de ganhar. O depois vê-se depois.

E fica o registro de que, quando a oposição exige do governo medidas contra os problemas que afligem a população, ela corre um risco: o governo tomá-las.

Ao longo dos últimos meses, em particular nas últimas semanas, a oposição, parlamentar e extraparlamentar, bombardeou o governo com estatísticas a demonstrar a gravidade da pobreza e da fome. O que conferiu alguma autoridade moral para o governo, com o apoio maciço do Parlamento, driblar o teto de gastos e a legislação eleitoral. O Conselheiro Acácio, sempre ele.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Uma bobagem perigosa

É razoável relacionar a estabilidade e a paz política com a capacidade de o Estado construir consensos majoritários. E são duas as ferramentas fundamentais para essa construção: o convencimento da sociedade com e sem coação. Na vida real, a resultante é sempre uma combinação dos dois vetores.

Nenhum governo se sustenta apenas com base na força, mas governos que não têm força tampouco param em pé. E em democracias constitucionais plurais como a nossa os governos dependem também de uma variável externa a eles: os grupos sociais hegemônicos, mesmo os opostos, conseguirem dialogar e alcançar convergências.

Algo como uma mútua aceitação, ainda que implícita.

Não há estabilidade e paz possíveis se largos contingentes sociais e partidários enxergam-se simplesmente excluídos do edifício político-cultural quando perdem uma eleição. Tampouco haverá normalidade política nos sistemas fechados em que um grupo considere insuportável a convivência com o antípoda. Isso deveria ser óbvio.

A ideia original da Nova República de 1985 era colocar em prática um pacto informal para garantir a todos os relevantes o acesso ao poder, por eleições diretas. Ganhar, governar e, quando perder, esperar pela próxima eleição. E por um período o convívio entre as diversas forças foi essencialmente institucional, com um soluço: o impeachment de Fernando Collor.

Os estudiosos um dia diagnosticarão onde a maionese começou a desandar, mas aquele episódio tem boa chance de figurar com destaque. Ali voltou a dar as caras uma cultura do “nunca mais”. Cada eleição passou a ser vendida como a derradeira oportunidade de o país salvar-se do mal. E, numa imagem especular, escolher um salvador da pátria.

Que, convenientemente, precisa chegar ao poder, ou continuar nele, para salvar a pátria ao livrá-la do indesejável “outro”.

Mas e se o “outro” reúne, digamos, pelo menos um terço do eleitorado? Aí complica. É muita gente. Veja-se o ocorrido com o Partido dos Trabalhadores e seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva. Não só sobreviveram à guerra de extermínio, hoje estão em posição eleitoral auspiciosa.

A mola, quanto mais comprimida, mais acumula energia potencial à espera de se soltar.

A quem antes de tudo interessa a paz política? Ao poder. Seria razoável então supor que dele viessem as iniciativas para incluir, fagocitar e digerir as resistências externas. Mas a era da hiperconectividade e das redes introduziu um complicador: os políticos precisam responder rapidamente aos estímulos externos, sempre de olho no que a turba vai achar.

Turba que hoje exibe um poder próprio e invejável.

A violência política explícita (a implícita sempre foi parte do jogo) é simultaneamente consequência e realimentadora desse arcabouço. E a ilusão maior é achar que se vai neutralizá-la seguindo no jogo de caça e caçador até conseguir, finalmente, eliminar o adversário.

Em momentos históricos singulares, alguns países tiveram a sorte de encontrar personagens capazes de entender que isso é simplesmente bobagem.

 
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Publicado na revista Veja de 20 de julho de 2022, edição nº 2.794