sábado, 30 de janeiro de 2021

Chegou a hora

Num passado algo remoto, as eleições para as mesas do Congresso Nacional não costumavam produzir noticiário tão abundante e atraente. A rotina era o partido majoritário e governista indicar os presidentes, de seus quadros ou de algum aliado, e as demais agremiações encaixarem-se nos outros cargos conforme a proporcionalidade. E a Câmara dos Deputados e o Senado Federal estavam habituados a viver numa "harmonia subordinada" ao Executivo.

A coisa começou a mudar, ainda timidamente, quando o PT nos anos 90 decidiu disputar com candidato próprio a presidência da Câmara, uma tática de demarcação de limites com o então governo tucano. Mas a ação se esgotava no terreno da propaganda, acabava não tendo efeito prático, visto que a ampla maioria governista terminava se impondo, mesmo quando vivia tensões internas.

O caldo desandou pela primeira vez em 2005, no primeiro governo petista, pois um racha no PT acabou permitindo a vitória de Severino Cavalcanti (PP-PE) na Câmara. Veio uma chacoalhada, mas o mandato dele durou pouco (teve de renunciar sob acusações de corrupção) e o governo conseguiu fazer o sucessor, numa votação apertada. Dali em diante, o PT, gato escaldado, buscou uma aliança-seguro com o então PMDB nos deputados.

Disso, em algum grau, também resultou a presença de Michel Temer na vice dos dois últimos mandatos petistas. Anos depois, esse “seguro-PMDB” não se comprovou tão funcional assim para o PT, mas aí já entraríamos em outro assunto. Que vale a pena discutir, mas é outro assunto.

Nunca mais, porém, o país voltou aos tempos da monotonia de antigamente. E chegamos onde chegamos. Em parte por causa da pulverização partidária. Não existe mais "partido majoritário". Mas também porque os dois impeachments entre os quatro presidentes eleitos antes de Jair Bolsonaro acabaram transformando o presidente da Câmara quase num dos árbitros supremos da República. Sem falar de seu poder para pautar ou deixar de pautar os assuntos de interesse do Executivo.

É esperado, portanto, que o ocupante do Palácio do Planalto lute para colocar aliados no comando do Legislativo, especialmente da Câmara. E a luta eleitoral de agora foi se tornando mais cruenta na medida em que ficou claro o objetivo dos candidatos oposicionistas: estimular a anabolização de um ambiente favorável a colocar a corda política em torno do pescoço do presidente da República. Esqueçam dos discursos de fachada: é só disso que se trata.

A candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP) trouxe novidades. É um primeiro ensaio de reaproximação entre a esquerda e a direita não bolsonarista, em alguns casos já francamente antibolsonarista. Veremos os músculos que a aliança será capaz de mostrar neste primeiro teste de fogo. E veremos se o PT conseguirá voltar à mesa da Câmara, claramente o objetivo principal, e põe "principal" nisso, do partido em todo esse agir frentista.

Se Rossi ganhar, a dinâmica do processo político acabará impondo que ele abra o caminhar do impedimento de Bolsonaro. Se der Arthur Lira (PP-AL), o governo ganha, se não um seguro (na política isso não existe em termos absolutos), pelo menos uma boa margem inicial de manobra para: 1) respirar em meio ao recrudescimento da Covid-19, 2) negociar em condições mais favoráveis a eventual extensão do auxílio emergencial e 3) resistir às múltiplas tentativas de criação de CPIs.

Agora é esperar a contagem dos votos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Volta às aulas

E segue a batalha em torno da volta ou não às aulas presenciais. Misturam-se e brigam decisões governamentais, nos diversos níveis, com sentenças judiciais. Um retrato da confusão institucional instalada no país com a pandemia. As maiores vítimas? Os estudantes e suas famílias.

Faz sentido manter as escolas fechadas até que a coisa toda passe, até que a maioria da população esteja imunizada? Para quem acha que sim, o problema é não se saber quanto tempo vai levar. O risco é os estudantes acabarem perdendo pelo menos dois anos de aulas presenciais.

Mas quem responde "não" também precisa colocar a mão na consciência, e em alguns casos fazer uma autocrítica. Se é razoável retornar às aulas agora, mesmo que os números da Covid-19 tenham voltado aos piores momentos da primeira onda, por que mesmo as escolas ficaram fechadas ao longo do semestre passado?

Os governantes não quiseram correr o risco de desgaste político abrindo as escolas antes da eleição municipal. Deveriam ter de explicar por que querem abrir agora, quando as estatísticas voltaram a piorar.

Deveriam.

Teste de resiliência

Este ano de 2021 vai merecer um rótulo já bem usado: “decisivo”. Atravessar politicamente vivo é condição sine qua non para Jair Bolsonaro chegar a 2022 competitivo. E vai ser um ano daqueles. Mesmo que a vacinação se prove um sucesso, seus efeitos macro só devem ser sentidos em (muitos) meses. Um período suficientemente longo para os adversários trabalharem com afinco o desgaste presidencial.

Três ameaças rondam o Palácio do Planalto. Um agravamento da Covid-19, um repique da recessão e uma instabilidade institucional. Esta última podendo vir do Legislativo ou do Judiciário. Para atravessar o ano, o presidente e seu governo precisarão mostrar capacidade operacional e política num cenário de turbulências, em que deixar o avião no piloto automático não será opção.

Sobre o agravamento dos índices da pandemia aqui no Brasil, mesmo países com vacinações muito mais agressivas enfrentam pioras de curto prazo nos índices da Covid-19. E há as novas variações do SARS-CoV-2. E junto vêm a dúvida sobre se as vacinas produzidas a partir do vírus “velho” servem para combater os novos. Ou quanto tempo levará para adaptar os imunizantes, se isso for necessário para serem eficazes contra as novas variantes.

A segunda onda da Covid-19 terá necessariamente impacto na economia. Pois a reação natural das autoridades locais vai ser apertar o torniquete do isolamento e do distanciamento sociais. Haverá reação popular, então podem-se prever movimentos de sístole e diástole, por um período em que a única certeza será a incerteza sobre que medida governadores e prefeitos vão tomar no dia seguinte ao anúncio de novos números.

E tem o fim do auxílio emergencial e demais medidas protetoras da economia popular na pandemia. Aqui, é previsível o Congresso Nacional recriar algo parecido. Mas os parlamentares tentarão impedir que Jair Bolsonaro, ao contrário da vez anterior, fature politicamente sozinho as benesses para o povão. A dúvida? Qual será a reação do mercado financeiro a um eventual furo no teto de gastos?

E a chacoalhada institucional? Ela estará contratada se os candidatos apoiados pelo presidente não vencerem as disputas pelo comando das duas Casas do Congresso Nacional. Principalmente da Câmara dos Deputados. Saberemos em dias o que vai acontecer. Mesmo vitórias oficialistas não devem impedir que a oposição, agora anabolizada pela aliança entre a esquerda e a direita não bolsonarista de olho em 2022, coloque minas prontas a explodir no campo presidencial.

Se Jair Bolsonaro sair vitorioso das votações do dia 1º, poderá contar com a pressão do empresariado para o Legislativo voltar a dar foco à agenda liberal, em vez de paralisar-se numa guerra política sem solução de curto prazo. Já os políticos, mais ainda os que disputam com o presidente o apoio do establishment, têm planos próprios e não vão dar trégua.

Também por saberem que Bolsonaro mostrou em ocasiões anteriores resiliência, capacidade de voltar à forma e ao tamanho originais depois de uma crise.

E talvez ele nunca tenha precisado tanto disso quanto vai precisar agora.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.723, de 03/02/2021

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Duas leituras no emprego

Os números do emprego divulgados hoje podem ser lidos de duas maneiras, de acordo com a conveniência política do interessado. O desemprego continua alto, 14,1% no trimestre entre setembro e novembro, segundo o IBGE. Mas está em leve declínio desde a metade do ano passado (leia).

Já segundo o Caged, o Brasil conseguiu atravessar o ano um da pandemia sem reduzir o estoque de empregos formais. Até criou um tantinho a mais do que destruiu. Por outro lado, a não criação de empregos em quantidade mantém o desemprego alto, especialmente entre os jovens (leia).

O governo comemora os números, claro. E garante que comprovam a recuperação econômica em V (depois da queda aguda, retomada aguda). Já a oposição adverte que o fim do auxílio emergencial vai, entre outros prejuízos, comprometer o relançamento econômico.

É provável que a partir de fevereiro o Congresso se debruce sobre o tema da continuidade do auxílio, em algum grau. O governo já disse que aceita, desde que se cortem outras despesas. De todo modo, política à parte, 2020 não foi no fim das contas tão ruim assim na economia, para um ano de pandemia.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Passaporte furado

Sobre a Covid-19, vale cada vez mais a velha máxima "tudo que é sólido desmancha no ar". Um exemplo são países antes exemplo e agora assolados pela doença. Brilham no topo Portugal, Argentina e Alemanha. Mas as surpresas não param. 

Agora, cientistas em Israel colocam em dúvida a validade do tal "passaporte verde" baseado na presença de anticorpos contra o SARS-CoV-2 (leia).

Pela simples razão de que, segundo o estudo, a pessoa pode perfeitamente estar imune ao vírus sem apresentar anticorpos no sangue. Mesmo após a taxa de anticorpos recuar a zero em alguns meses após a doença ou a vacina, o indivíduo pode continuar protegido contra o novo coronavírus (leia).

Israel é no momento um grande laboratório e observatório da Covid-19, por ser um dos únicos que já vacinou boa parte da população (leia). E mesmo ali os fatos mostram que é preciso cautela. 

As curvas de casos e mortes vão em alta, e o próprio premiê, apesar de se reconhecer um não especialista, mas informado por eles, disse hoje que se trava uuma corrida entre as vacinações e as mutações (leia).



terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Gastar e cortar

O fim do auxílio emergencial pago ao longo de 2020 por causa da pandemia é talvez a ameaça mais imediata à recuperação econômica ensaiada no final do ano passado. E a reinstalação de um auxílio emergencial com cara de permanente será sinal claro de fraqueza política do governo.

Daí que o ministro da Economia tenha aparecido hoje ao lado do presidente da República para defender que, se pensam em novas despesas, deem um jeito de cortar das já existentes (leia). E o presidente aproveitou para dizer que as reformas liberais vão andar, inclusive as privatizações.

Na luta de vida ou morte em torno do comando da Câmara dos Deputados, ninguém quer perder o apoio empresarial. Depois de definida essa refrega, o Congresso se verá às voltas com outro tipo de pressão, a popular. Se a economia sofrer nesta largada de 2021, essa pressão vai subir muito.

A economia depende de imunizar a população, já havia lembrado o ministro da Economia (leia). Se é assim, melhor ter cautela. Vamos esperar para ver que bicho dá na Câmara e como vai andar a vacinação. E mesmo se tudo der certo para o governo nas duas frentes ainda será um processo de, no mínimo, meses.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Lacrou

Agora, quando a pandemia dá sinais de pretender durar mais tempo que o inicialmente projetado, e quando os efeitos globais mais abrangentes da vacinação estão previstos apenas para o final deste ano, governos e sociedades veem-se às voltas com a pergunta clássica: o que fazer?

No cenário utópico, a vida social seria congelada até atingir-se a taxa de imunes que inviabilizaria a circulação viral. Porém, dado ser uma impossibilidade prática, governantes são empurrados a fazer algo, qualquer coisa, mesmo que apenas para dizer que estão fazendo.

Por enquanto, quem lidera a corrida dos factoides é o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, que enfrenta em março (mais) uma dura eleição. Na era da lacração, ele literalmente decidiu lacrar o país por uma semana. Ninguém entra. Para evitar a chegada de novas variantes do SARS-CoV-2, diz (leia).

Como não há estudo científico que preveja o desaparecimento delas daqui a algumas semanas, depreende-se que o movimento de Bibi (apelido dele) é para dar uma freada que lhe permita chegar no dia da urna com números não tão ruins.

Israel é líder mundial em vacinação, mas o resultado não é imediato. Nem seria sensato esperar uma solução instantânea. E Israel acaba de passar o Brasil na taxa de novas mortes proporcionalmente à população.

Depois de ultrapassada a eleição, aí será menos custoso dar a real ao eleitor, como aliás fez estes dias Joe Biden. Na campanha, ele dissera "ter um plano" (sempre lembro do filme "Parasita" quando alguém diz ter um plano). Agora informa que nada pode mudar a trajetória da pandemia nos EUA nos próximos meses (leia). 

E isso porque lá se está vacinando em massa. Como aliás deve mesmo ser feito. Mas sem enganar o povo.



sábado, 23 de janeiro de 2021

Impeachments (e ensaios de impeachment) comparados

E o governo Jair Bolsonaro chegou naquele momento bastante comum no Brasil dos últimos trinta anos, desde a volta das diretas, quando a popularidade cai e a oposição joga o impeachment na roda para mobilizar a rua. Cada situação específica tem seus predisponentes e desencadeantes, mas o cenário por aqui costuma repetir-se. É interessante então traçar as comparações. Bolsonaro está melhor ou pior que os antecessores nessa hora?

Está, sem dúvida, melhor que Fernando Collor de Mello. Ao menos por enquanto. Collor vinha de ver falhar o plano econômico com o qual pretendera matar a superinflação. A popularidade tinha despencado. E seu apoio orgânico na imprensa tendia a zero. E seu projeto de Brasil Novo, do qual a “nova política” é legítima descendente, pressupunha a rejeição aos políticos e ao chamado fisiologismo, rótulo recentemente repaginado com o nome de velha política.

Quando Collor foi emparedado pelas acusações do irmão Pedro, faltaram-lhe redes de proteção.

Bem diferente de Fernando Henrique Cardoso no episódio do chamado estelionato eleitoral de 1998-99.

Depois de reeleger-se cavalgando o real forte, FHC viu desvalorizar a moeda na largada do segundo mandato. Sua popularidade ruiu. O impeachment chegou a ser aventado por grupos petistas não majoritários no partido, mas FHC beneficiou-se de quatro fatores: apoio empresarial, de imprensa e parlamentar sólidos e uma certa aversão social a ”impichar” o segundo presidente eleito na redemocratização, pouco depois de terem feito isso com o primeiro.

Luiz Inácio Lula da Silva tomou pela proa uma ameaça de impeachment na crise de 2005, desencadeada pelas acusações de Roberto Jefferson. Mas nunca perdeu o núcleo de sua base de sustentação social, e um ano antes tinha começado o movimento de abrir o primeiro escalão à participação do que hoje se chama de partidos de centro. Depois de navegar em mar turbulento naquele ano, Lula entrou em 2006 com águas bem mais tranquilas.

E Dilma Rousseff?

Mesmo com a popularidade declinante após as manifestações de 2013, conseguiu reeleger-se em 2014 imputando aos adversários a intenção de uma economia duramente austera. Quando ela própria aplicou algo assim, a oposição aproveitou o colapso do apoio social ao governo para derrubá-la. Ajudaram para isso as circunstâncias do então presidente da Câmara dos Deputados. Que fora eleito contra a presidente da República.

Dilma não teve em 2016 as redes de proteção de FHC em 1999.

E é bom lembrar também as diferentes atitudes dos vices. Se o vice não é parte da articulação, a missão de remover o titular fica bem mais complicada.

E Jair Bolsonaro? O núcleo da base social dele está preservado em termos numéricos. Há alguma corrosão por causa do manejo da Covid-19, mas será preciso acompanhar para saber se o presidente voltará a mostrar resiliência ou se desta vez vai continuar murchando. A barragem de imprensa é forte, mas ele tem seus canais para articular alguma resistência. E no parlamento os candidatos dele têm boas chances por enquanto de presidir as duas Casas.

O que não chega a ser garantia absoluta, mas é útil quando o jogo começa.

Este é o quadro no momento. E essas são as variáveis a acompanhar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O pilar da sabedoria

O premiê Boris Johnson deu a má notícia da sexta-feira. A mortalidade provocada pela nova cepa do SARS-CoV-2 detectada inicialmente no Reino Unido pode ser uns 30% ou 40% maior que a produzida pelo vírus na primeira onda (leia). 

Já se sabia que a transmissão era bem maior, de 30 a 70%. Mas é a primeira vez que se fala em mais mortalidade.

A Covid-19 continua portanto uma caixinha de surpresas. Não é o caso de aderir ao relativismo, mas talvez seja prudente aceitar que se sabe ainda pouco sobre o patógeno.

Algumas coisas são conhecidas, claro. Distanciamento e isolamento sociais dificultam a propagação do vírus. E vacinas ajudam a pelo menos evitar as formas mais graves da doença provocada por ele. Mas não dá para o mundo todo ficar trancado e isolado em casa até todo mundo ser vacinado. Infelizmente.

O que fazer então? Uma coisa útil é lembrar sempre de Sócrates (o ateniense). E entender que a consciência da própria ignorância talvez seja o pilar fundamental da sabedoria.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O mar, os rochedos e o marisco

Segundo a Reuters, a Índia começa amanhã exportar a vacina AstraZeneca/Oxford para países que contrataram o imunizante. Começando por Brasil e Marrocos. Na sequência, África do Sul e Arábia Saudita. É a boa notícia do dia (leia).

Todo esse episódio das vacinas para a Covid-19 deveria levantar um debate. Já faz algum tempo, os países depositam a segurança do abastecimento farmacêutico na conta da neutralidade da divisão técnica internacional do trabalho. Faz sentido economicamente.

O problema é que a geopolítica não segue estritos critérios econômicos, ainda mais em tempos de fricção crescente entre as potências pela hegemonia planetária. Por isso, recordando o antigo adágio, vem o risco de na briga entre o mar e os rochedos quem acabar se dando mal é o marisco.

Não dá para cada país produzir tudo do que precisa, é lógico. Mas tampouco é razoável que países da dimensão do nosso sejam tão dependentes de importar coisas tão estratégicas. Infelizmente, é mais uma consequência de quase quatro décadas de desindustrialização.

Ou, pelo menos, de falta de atenção à industrialização.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Soft power

A aguda demanda global por vacinas anti-Covid-19 é uma bela oportunidade para o exercício do soft power. Mas mesmo isso tem um limite: a óbvia premência de os países produtores atenderem em primeiro lugar suas próprias populações. Ter amigos mundo afora é sempre bom, essencial até, mas quem coloca ou derruba os governos são em última instância seus próprios povos.

Porém a oportunidade de soft power é real, e vem sendo mais bem aproveitada por três jogadores: Índia, Rússia e China. E o motor fundamental nessa disputa em escala mundial é a capacidade de fornecer vacinas na quantidade e velocidade desejadas, diante das circunstâncias. A partir daí, talvez seja precipitado achar que esses países vão sonegar o imunizante para fazer política (leia).

Mais provável é os três concorrerem entre si para ver quem faz mais amigos mundo afora com a vacina.

E a janela de oportunidade está aberta também pela situação do presidente americano hoje empossado, Joe Biden. O principal desafio dele no curto prazo é vacinar em massa nos Estados Unidos, país mais afetado em números absolutos pelo SARS-Cov-2. Não é demais suspeitar que ele vai gastar pelo menos uns 20 a 25% deste mandato quebrando a cabeça em torno do assunto.

E segurando o que puder de vacinas para aplicar lá mesmo.


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Saúde pública

Com o início da vacinação em larga escala mundo afora, começam a aparecer alguns problemas. Nada muito grave por enquanto, mas a situação naturalmente merece atenção. Há casos de efeitos colaterais importantes (leia), possíveis achados de reinfecção pelas novas cepas, mais contagiosas, em quem já tinha anticorpos (leia) e dúvidas sobre a efetividade anunciada pelos fabricantes (leia).

É absolutamente esperado que essas circunstâncias deem a cara quando a vacina de fato começa a rodar em grandes populações. Afinal, estamos terminando de montar o avião em pleno voo. Mas vale a pena. Vacinas não precisam ser infalíveis. Precisam reduzir significativamente o número de infectados, e portanto de hospitalizados, e portanto de falecidos.

É isso que interessa. Pois vacinas são importantes para proteger o indivíduo, e mais fundamentais ainda para proteger populações. E indivíduos tomados isoladamente estão tão mais protegidos quanto mais protegida está a população no seu conjunto. Vacinações são antes de tudo campanhas de saúde pública. Essa é a ideia que nunca deveria ser esquecida.


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Maratona

O ínicio da aplicação de vacinas anti-Covid-19 no Brasil e mundo afora vai abrir uma janela de oportunidade para responder certas perguntas ainda em aberto. Mas para isso precisaremos esperar pela vacinação em grande escala, o que ainda vai levar alguns meses.

Uma coisa é certa: as vacinas reduzem o número das pessoas que adoecem, e por isso também reduzem o número das que morrem. Só por isso já valem a pena. Quando tivermos um grande número de vacinados saberemos medir melhor o efeito. Então que se vacine o maior número possível.

Vamos torcer também para as recentes mutações do vírus, para formas mais contagiosas, estarem cobertas pela capacidade protetora das vacinas produzidas a partir do vírus "velho". Se isso for confirmado, teremos evitado um problemão.

A largada da vacinação produz compreensivelmente um alívio de momento. Mas com o tempo a realidade vai acabar impondo-se. Há ainda muitas perguntas no ar e novas certamente vão aparecer conforme o andar da carruagem. Elas devem ser um estímulo para a ação, não para a inação.

E os cuidados precisam continuar. Isso é maratona, não corrida de cem metros.


sábado, 16 de janeiro de 2021

A urgência faz a diferença

A pandemia da Covid-19 está demorando mais a passar do que inicialmente se previa, ou sonhava. A gripe espanhola durou mais de dois anos. Nessa hipótese, estamos a meio caminho no ciclo. E se a duração projetada está mudando, ou se a ficha está caindo (tanto faz), mudam junto os cenários políticos. Alguns personagens entram em zona de risco e outros veem abrir-se a janela de oportunidade. E na política não tem mercê.

Se olhados só os números, uma bela quantidade de países estão mal na foto, ou ficando mal. Quem ainda navega bastante bem é a Nova Zelândia, sempre lembrada como exemplo positivo. Mas é uma pequena ilha, ou um conjunto de pequenas ilhas. Fácil controlar a entrada e a saída. Claro que não é só isso, há muitas outras ilhas sem os mesmos bons resultados. Mas ajuda bem.

O Brasil nunca esteve bonito nos números da Covid-19. Porém algumas estrelas na largada agora também sofrem. Um exemplo é a Argentina, do lockdown mais longo e rígido (pelo menos no papel). Quase um ano depois, os vizinhos estão numericamente acima do Brasil em mortes por milhão de habitantes e terão registrado ano passado uma recessão mais que o dobro da nossa. A notícia boa? Os números da pandemia ali parecem estar caindo. Sorte aos hermanos.

Um país em que a curva de mortes vai firme para cima é a Alemanha, cuja chanceler é um prodígio global de construção de imagem, pois vai passando incólume por este último grande teste de management e popularidade do seu longo reinado. Outro ex-exemplo de eficiência é Portugal, que nas taxas proporcionais de mortes pela Covid-19 anda junto com seu irmão maior e mais poderoso da União Europeia.

O que Argentina, Alemanha e Portugal têm em comum, além dos números ruins e de seus governantes estarem apesar disso atravessando a borrasca só com escoriações leves, até agora? Claro que as simpatias político-ideológicas explicam em parte, mas creditar só a isso teria algo de teoria da conspiração. Melhor procurar outras razões. Uma? Seus líderes costumam exibir na pandemia um sentimento de urgência, até quando erram.

Na véspera das festas de fim de ano, a chanceler alemã fez um apelo dramático para as pessoas não confraternizarem presencialmente com os entes queridos de mais idade. Nunca se saberá se foi atendida, mas pelo menos mostrou estar preocupada. Mesmo quem não a atendeu - e os números destes dias podem ser um indicador de que muitos não deram mesmo pelota - notou que Angela Merkel estava sinceramente preocupada. Ou pelo menos parecia.

Se além de mostrar preocupação o líder também consegue agir, aí já sobe para outro patamar. Em Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu enfrenta crises políticas sucessivas provocadas por acusações seriais de corrupção e precisa sobreviver mostrando serviço. A Covid-19 para ele foi um achado. É lockdown atrás de lockdown, e agora opera a maior (proporcionalmente), mais rápida e mais bem propagandeada vacinação do planeta.

Ninguém está certo o tempo todo, e errar é humano. Mais que provar que estão com a razão, governos precisam mesmo é mostrar nas grandes crises que têm senso de urgência e estão tomando providências. Do contrário, viram alvos fáceis para o inimigo. E a política, de novo, é como a guerra: quem pode mais chora menos.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Manaus

A tragédia em Manaus leva jeito de ter na raiz, além de eventuais crimes, o surgimento de uma variante bem mais contagiosa do SARS-CoV-2, a precariedade crônica da infraestrutura e a subestimação dos riscos ainda presentes da Covid-19.

Parece haver também casos de reinfecção. Será o caso de fazer duas perguntas aos especialistas (que parecem ainda não ter respostas): 1) Os anteriormente infectados e curados estão imunizados contra a nova variante do vírus? e 2) As vacinas disponíveis funcionam contra ele?

De todo modo, os novos acontecimentos do Reino Unido, África do Sul e Manaus mostram que a guerra será prolongada. Qualquer ilusão de vencê-la no curto prazo é só ilusão mesmo. E a vitória depende de clareza estratégica, firmeza, capacidade operacional e também bom senso.

Já foi dito aqui mas não custa repetir, pela urgência: precisamos de um plano que combine a vacinação em massa e a volta progressiva às atividades com medidas sanitárias e de distanciamento social que possam ser aplicadas, realisticamente falando.

Difícil para um país tão politicamente bagunçado.

E o interesse nacional?

O debate público sofre quando é inteiramente capturado pela fratura política, e daí a independência do pensamento entra em bloqueio. Uma consequência é o efeito-manada, as pessoas são arrastadas pela turba e frequentemente acabam indo contra o próprio interesse.

Acontece agora, no episódio do cartão vermelho das big techs para Donald Trump.

Alguns até pararam para pensar “o que eu ganho se as big techs, sob a batuta -ou com medo- da Casa Branca e do Capitólio, tiverem o poder de eliminar qualquer um do espaço de formação da opinião pública?”. Entretanto são poucos os sinceramente preocupados. A esmagadora maioria do campo antitrumpista, lá e aqui, vibrou.

Mas e nós? Se o Brasil fosse um jogador potente na corrida global da alta tecnologia, ainda vá lá. Poderíamos ser sócios minoritários da inédita concentração de poder pelos monopólios tecnológicos sediados nos Estados Unidos. 

Porém neste jogo nós temos força apenas relativa. Interessa ao Brasil que decisões de tamanha gravidade sejam tomadas sem que ninguém mais no mundo, além da Casa Branca e do Capitólio, possa influir?

Trump não foi apenas banido das redes. Sites e aplicativos ligados ao campo político que ele representa passaram a ser excluídos do acesso ao hardware indispensável às operações. E a gravidade da coisa foi tanta que levou líderes como Angela Merkel, insuspeita de simpatia ao trumpismo, a demonstrar insatisfação.

Um ponto de quem apoia o banimento é as redes sociais serem propriedade de empresas privadas, podendo portanto decidir o que vão, ou não, deixar postar. Mas se as empresas devem ter essa liberdade, junto deve vir a responsabilidade pelo conteúdo que elas permitem veicular em suas plataformas. 

Além do mais, elas operam em regime de monopólio. Não cabe aqui o argumento do livre-mercado.

As big techs querem ser tratadas estritamente como empresas de telecomunicações e tecnologia? Então o jogo será outro. A companhia telefônica não pode ser responsabilizada pelos que dizemos ao telefone, ou escrevemos nas mensagens de texto. Em compensação, tampouco pode cortar a linha do assinante por discordar do que ele diz ou escreve.

Só o Estado, por meio da Justiça, deve ter tal poder. Exatamente pelo fato de Estado e a Justiça não serem propriedade privada. Pelo menos na teoria.

Talvez seja ilusão pedir que este debate aconteça aqui no Brasil em torno de princípios e convicções, num tempo em que eliminar o adversário é a única regra válida do jogo político, um jogo aliás no qual ambos os lados se pretendem gladiadores em defesa da liberdade. Seria cômico se não fosse trágico.

Então que pelo menos não sejamos inteiramente submissos como nação a um poder que nos escapa.

Somos um país grande, com território, população e recursos econômicos suficientes para pretender um bom grau de autonomia nacional e projeção global. Mas este episódio exibe qual é talvez nosso principal obstáculo: a absoluta incapacidade de enxergar por cima das momentâneas disputas políticas e entender onde está o interesse nacional.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.721, de 20/01/2021


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Planejar o longo prazo

Situações de stress extremo induzem à busca de soluções milagrosas e imediatas, com o pensamento mágico servindo de motor. É normal, portanto, o que vemos agora na pandemia da Covid-19: a ilusão de que a largada da vacinação vai trazer um alívio quase instantâneo.

Haverá algum alívio, sim, mas por enquanto ele estará restrito principalmente aos limites da psicologia. Na vida real, o vírus continuará circulando firme, fazendo adoecer e infelizmente matando, até a maioria da população estar imunizada. 

A partir daí é que se poderá falar em algum controle em grande escala. É o que dizem os especialistas (leia).

Então preparemo-nos para um 2021 duro. No qual não será possível trancar todo mundo em casa até a próxima São Silvestre nem será sensato fingir que o problema não existe. Precisamos de uma política de volta progressiva às atividades e que combine com as necessárias medidas de distanciamento social.

Isso é particularmente urgente na Educação (leia). As maiores vítimas da guerra político-judicial e da ausência de qualquer coordenação nacional para a retomada têm sido nossas crianças e jovens. Especialmente os da escola pública.



Clandestinidade

Costumo recorrer amiúde ao Conselheiro Acácio, personagem imortalizado na literatura por Eça de Queiroz, porque até hoje não achei expressão melhor que "as consequências vêm sempre depois" para descrever certas situações. Uma agora é isso de banir, ou quase, o trumpismo das redes sociais abertas. O que aconteceu? Ele vai migrando para a clandestinidade ou semiclandestinidade digital.

Aliás a clandestinidade pode ser um meio excelente para a multiplicação de militantes, com a vantagem de dificultar o rastreamento e monitoramento desses movimentos. Os exemplos históricos são abundantes. Um movimento político não precisa ser necessariamente grande para ser importante. Se for coeso e bem organizado, estará a postos para emergir quando a conjuntura política exigir, e permitir.

Mas nem sempre a racionalidade prevalece. Nem sempre se enxergam lances à frente no tabuleiro. A verdade é que as duas correntes, o trumpismo e o antitrumpismo, permanecerão vivas. O melhor para o sistema seria absorvê-las e fazê-las disputar a política por dentro da institucionalidade. Vale para os Estados Unidos mas vale também para o Brasil.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sejamos otimistas

O governo federal empenha todo o seu poder de logística para iniciar semana que vem a vacinação contra a Covid-19. Aviões vão à Índia buscar milhões de doses da AstraZeneca/Oxford. E tem também os outros milhões da CoronaVac já aqui no Brasil. A palavra final da Anvisa está prevista para domingo.

Quando começar a vacinação, começará também o novo round da guerra de narrativas, sobre quem "sempre teve razão". Mas, para suas excelências, o cidadão e a cidadã comuns, isso pouco importará: a brasileira e o brasileiro querem é ser vacinados.

E como isso vai repercutir em 2022? Se Deus quiser, até ali a vacinação já terá imunizado a grande maioria, e a vida terá retornado ao quase normal. O "quase" fica por conta da necessária desconfiança, pois a ponte para o futuro está sendo construída com os carros já passando por cima dela.

Sejamos otimistas. Pensemos no melhor cenário. Nele, chegaremos a 2022 com os candidatos aos diversos cargos, a começar da Presidência, tendo de procurar outro assunto para brigar, pois a Covid-19 será bananeira que deu cacho.

Não custa sonhar.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Números relativos

Israel já vacinou mais de 20% da população, e uns 80% dos idosos. Claro que não dá para comparar um país de nove milhões de habitantes (bem menos que a cidade de São Paulo) com um das dimensões do Brasil, mas é campo interessante para acompanhar resultados da vacinação.

A vacina ali aplicada é a da Pfizer e alguns resultados iniciais mostram taxas de infecção entre os vacinados caindo cerca de 50% catorze dias após a primeira dose. Há porém números concorrentes. Outro estudo diz que essa queda é de 33%. Um outro diz que é de 60%.

Fica a dica: qualquer certeza absoluta sobre números a esta altura é perigosa, muito perigosa. Na prática, os estudos sobre efeitos das vacinas estão caminhando junto com a vacinação, dado o caráter de emergência do problema sanitário global trazido pela Covid-19.

No mundo ideal, deixaríamos o marketing e as disputas políticas para depois e procuraríamos vacinar a maior população possível o mais rapidamente possível. Não sabemos que número vai dar no final, mas podemos ter certeza de que mais gente vai sobreviver à doença se fizermos isso.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Que comece o jogo

Como já foi dito aqui, uma vantagem da disputa política entre o governo federal e o paulista em torno da vacinação contra a Covid-19 é a corrida ter entrado no estágio em que ambos querem mostrar serviço. Bom para a população que precisa ser vacinada. Afinal de contas, que os políticos briguem, mas o cidadão e a cidadã comuns querem mesmo é uma vacina segura e eficiente.

O ministro da Saúde informou que os estados receberão as vacinas três a quatro dias após a chegada delas ao país ou a liberação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) (leia). Que este dia chegue o mais rápido possível. Há muita espuma no debate, mas ainda estamos em tempo, na comparação com outros países da dimensão do nosso.

E temos uma vantagem: uma máquina de vacinação construída e azeitada ao longo de décadas. Basta que a entropia política dê uma folga e as autoridades se concentrem na missão de fazer a coisa acontecer. Pois, ao fim e ao cabo, elas serão julgadas nas urnas de 2022 pelo que fizeram ou deixaram de fazer, e não tanto pelo que se disse delas.

Acabou o pré-jogo, agora a decisão é em campo.


sábado, 9 de janeiro de 2021

Para a defesa de interesses, manobras complexas

Governos que se mantêm apesar das crises induzem a celebrar e elogiar a institucionalidade; já governos que fracassam e caem têm sempre a tentação das teorias conspiratórias. Mas a realidade, em última instância, é uma só: cabe a qualquer governo cuidar de suas bases de sustentação, sem elas está fadado à ruína. Seja qual for a "institucionalidade".

E quando a ruína vem, abre-se a possibilidade de uma ofensiva do inimigo, que costuma ser implacável e brutal. E que só freia quando se estabelece uma nova correlação de forças, mais equilibrada. Ainda não chegamos a esse ponto nos Estados Unidos. A coalizão política, social e cultural organizada pelo Partido Democrata contra Donald Trump só começou seu avanço.

E com a ordem de não fazer prisioneiros.

E a ofensiva ali se espalhará por todos os fronts. A guerra cultural será particularmente cruenta, na tentativa de ajustar as contas com as raízes mesmo da formação nacional norte-americana e daí buscar uma legitimidade de tipo completamente novo. Até chegar o dia em que tudo isso vai cansar e os robespierres de hoje forem encaminhados à guilhotina.

Claro que em pleno século 21 essa é apenas uma figura de linguagem. Mas os precedentes históricos são vários.

E o que temos a ver com isso, tirando o óbvio interesse pelo espetáculo? O que os americanos vão fazer com o país deles é assunto deles, mas o problema é se tratar de uma superpotência, a maior, e com armamento capaz de destruir a civilização algumas vezes. E qual será o melhor meio para os novos detentores do governo ali buscarem mais apoio num país fraturado?

Além de fazer a revolução interna, tentar restabelecer a liderança planetária que vai escorrendo pelo ralo do fantasma da decadência econômica.

A política de Donald Trump para fazer a América grande de novo sustentava-se no resgate das raízes nacionais e, principalmente, no buy american and hire american. Os americanos comprarem produtos americanos e produzirem em casa. Joe Biden repete o buy american, mas a ambição dele é maior: remontar a hegemonia planetária.

Aí cada país, dos maiores aos menores, precisará entrar num jogo de manobras complexas, buscando no todo e em cada situação defender seus próprios interesses, e ao mesmo tempo adaptar-se aos interesses de quem tem a vantagem da força. Porque, novamente, nunca é prudente subestimar a correlação de forças.

E qual o desafio maior do Brasil na nova conjuntura? Talvez saber qual é exatamente o interesse nacional neste momento da nossa história. Dificuldade que aliás começa pela dúvida, espalhada sistematicamente na periferia do sistema global: faz sentido falar em “interesse nacional” já passadas duas décadas deste novo século?

Fazendo um certo reducionismo caricatural, o Brasil parece estar dividido entre quem preferia engatar incondicionalmente nosso vagão na locomotiva trumpista e quem agora está pronto a bater continência à nova ordem, também de modo incondicional, desde que receba de fora o apoio suficiente para fazer aqui dentro seu próprio ajuste de contas.

Não chega a ser animador.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Lição de Brasil

De vez em quando é preciso ser otimista. E hoje é um dia assim. Depois da espera, não um, mas dois registros de vacinas contra a Covid-19 foram pedidos à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. 

Da CoronaVac, parceria entre a chinesa Sinovac e o Butantan, e da AstraZeneca/Oxford, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz. A primeira é a aposta do governo de São Paulo (João Doria). A segunda é a aposta principal do governo federal (Jair Bolsonaro).

Está instalada a competição, começou a corrida. Em disputa, não apenas os imunizantes, mas a estrutura e os instrumentos, principalmente as seringas. Quem vai ganhar ao final? Quem mais eficazmente realizar a missão nos próximos meses. E a vacina que se provar mais efetiva no essencial: imunizar a população contra o SARS-CoV-2, inclusive suas novas variantes.

Restam dúvidas? Que sejam esclarecidas pela Anvisa, perfeitamente equipada para tanto.

O episódio é mais uma lição de Brasil. Sobre nosso país, nunca convém otimismo excessivo sobre as possibilidades, mas tampouco é conveniente ceder ao catastrofismo. É o caso agora. A Covid-19 não vai desaparecer num passe de mágica por aqui, mas não seria sensato supor que ficaríamos para trás enquanto o mundo todo já estivesse se vacinando em massa.



quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Free speech e controle

O Facebook e o Twitter cortaram temporariamente a possibilidade de o presidente Donald Trump postar nas redes sociais dos dois conglomerados. É um dos mais nítidos sinais de já haver, na prática, um novo governo em Washington.

Ao longo do mandato de Trump, as redes conviveram bem com a utilização desses canais pelo presidente, inclusive quando ele propagava informações não comprovadas, ou não comprováveis. As sobre a pandemia são um exemplo. A preocupação com o combate às fake news só apareceu depois que ele perdeu a reeleição.

Seria ingenuidade imaginar que mesmo os maiores conglomerados econômicos não precisem, em algum momento, bater continência para o poder. Mais confortável é quando podem fazer isso alegando a "defesa da democracia e das liberdades". É o best-case scenario de agora.

Do episódio, fica pelo menos uma preocupação. Quem define o que pode ou não ser postado nas redes? Dar esse poder aos governos parece excessivo? E dar esse poder às próprias empresas, é aceitável? E como o direito ao free speech sobreviverá a tudo isso?

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Uma data (realmente) histórica

Todo fenômeno histórico precisa, quando estudado, receber uma data fundadora, com um acontecimento determinado. É apenas uma convenção, mas útil para estudar a explicar o andamento da história em termos mais didáticos.

Foi assim com o século 20, dito o século curto, pois teria começado na Primeira Guerra Mundial e terminado no colapso da União Soviética. E a metodologia vale sempre, com a vantagem de conferir ao analista e estudioso o poder de ajeitar o calendário para fundamentar uma tese.

Hoje é um dia assim, ficará disponível para os historiadores quando precisarem explicar os acontecimentos que contribuíram para a disfuncionalidade da democracia nos Estados Unidos. Pois nunca antes ali os derrotados recusaram reconhecer a vitória do adversário depois de abertas as urnas.

Outros poderão argumentar que não, que a confusão toda começou quando os democratas tiraram do baralho a carta da "conspiração russa que elegeu Trump", e que levou ao impeachment dele. Bem, fica a critério de cada um, e cada um tem o direito de ter suas preferências.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Torcendo pelo empate

Segundo o Banco Mundial, a economia global deve crescer 4% este ano após ter encolhido 4,3% ano passado (leia). Previsões de como o ano vai terminar feitas assim no comecinho devem ser vistas com reservas. Mas um número é sempre um número. E quem faz as previsões tem bastante tempo para ir depois ajustando a vela conforme a direção do vento.

Se bem que a própria previsão contrata um seguro-calamidade. Se a pandemia piorar e a vacinação tropeçar, o banco diz que a recuperação global pode ficar em minguados 1,6%. Assim não é tão difícil acertar previsão. É o óbvio ululante: a recuperação econômica depende de as pessoas se sentirem seguras para produzir e, mais que tudo, consumir.

Puxada pela China (previsão de 7,9% em 2021), a economia dos emergentes deve escalar 5%, o dobro do que contraiu em 2020. Pena que no Brasil, na melhor das hipóteses, a subida este ano só vai compensar a queda do ano passado. Esse "só" é exagero meu. Se conseguirmos o empate, será motivo de queima do fogos no -esperamos- animado réveillon de 2022.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O túnel é comprido

É humano o animar com o início da aplicação, mundo afora, das vacinas contra a Covid-19. É uma luz no fim do túnel. O problema? O túnel é bem comprido. Normalidade? Talvez em 2022. Pois será necessário que mais da metade da humanidade esteja vacinada. E isso vai demorar.

Países menores e mais organizados, como Israel, levam vantagem. Mesmo que Israel esteja mergulhado numa crise política crônica. Por razões historicamente óbvias, persistem ali uma capacidade operacional do Estado e uma certa coesão social. Mesmo quando os políticos brigam.

Por aqui, segue a contenda. Quem vai levar? Um troféu irá para o que primeiro começar a vacinar, mas a maior taça está reservada para as mãos de quem bem resolver a coisa no macro: com vacinas, seringas, postos de vacinação e profissionais treinados, tudo Brasil afora.

E tem também agora o debate em torno das clínicas privadas de vacinação. Que querem importar vacina da Índia. Diz o Ministério da Saúde que precisarão respeitar a ordem de grupos prioritários estabelecida para a população em geral (leia). Tem lógica.



sábado, 2 de janeiro de 2021

A sorte, o azar e o calendário

Na política, às vezes a sorte ou o azar estão conectados ao calendário. Barack Obama teve sorte quando a crise financeira de 2008 estourou na véspera das eleições presidenciais. Azar do John McCain. Donald Trump teve azar quando a eleição do ano passado aconteceu já com uma montanha de mortos ali pela Covid-19 mas antes de as vacinas entrarem em campo. Sorte do Joe Biden.

Se as coisas no Congresso Nacional não desandarem antes para Jair Bolsonaro – um round fundamental será jogado na eleição para presidente da Câmara dos Deputados –, o ponto a monitorar serão as projeções para a situação do presidente e candidato à reeleição em meados do segundo semestre de 2022. Como estarão ali as três variáveis mais presentes hoje em qualquer análise prospectiva?

São elas, não necessariamente na ordem de importância: 1) a assim chamada guerra cultural, 2) a economia e 3) a Covid-19. Sobre a primeira, é visível que pelo menos no plano internacional a corrente a que o bolsonarismo se filia sofre revezes. O mais vistoso foi a derrota de Trump, porém não o único. 2022 ainda vai politicamente longe, mas não se enxergam por enquanto possibilidades que revertam essa tendência até lá.

Sobre a economia, os dados de atividade, emprego e confiança apontam recuperação. A dúvida é se o paciente continuará recuperando depois de extubado do auxílio emergencial e demais medidas extraordinárias. E ainda tem a inflação a acompanhar, com uma possível elevação de juros no horizonte. Os mercados andam otimistas, mesmo descontado o fator excesso de liquidez.

E a Covid-19? O cenário mais provável é chegarmos a meados do segundo semestre de 2022 com uma contabilidade estonteante de mortes, mas também com o grosso da população brasileira vacinado. O que vai prevalecer? A polêmica sobre quem foi o culpado pelos números trágicos? Ou o alívio pelo sucesso da imunização? Sempre supondo, é claro, que a vacina seja mesmo um sucesso. Mas não custa otimismo de vez em quando.

Por enquanto, o presidente leva a melhor na guerra das narrativas, como mostrou o Datafolha. Só 8% acham que ele é o principal culpado pelas mortes da pandemia. E 52% acreditam que ele não tem culpa nenhuma. Um aspecto intrigante nesses números é eles estarem descolados da clássica divisão do eleitorado em três terços: pró, contra e centristas. Ou seja, os números da pesquisa não foram capturados pela dita polarização.

Cada um que faça seu prognóstico. O meu é que a Covid-19, e quem foi o culpado pelas mortes por ela provocadas, talvez não venha a ser o filé mignon da campanha de 2022. E se a economia estiver razoável, tampouco esta será. É possível que a eleição aqui mimetize em algum grau a americana do ano passado, onde a chave foi a formação de uma frente sócio-política-cultural anti-Trump cujo único ponto de convergência era tirá-lo do poder.

Por isso, não basta ao presidente chegar forte e competitivo em 2022, com a economia bem e senhor da narrativa que coesiona seu campo. Trump chegou e perdeu, também pelo azar com o calendário. E apesar dos sucessos na economia. Bolsonaro precisará dar um jeito de evitar a convergência do oposicionismo. Por enquanto, ele vem trabalhando para fazer o contrário, para juntar os que a ele se opõem. 

O primeiro grande sinal é a ensaiada união do PT com os algozes de Dilma Rousseff no impeachment dela.