segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Coalizão social está preservada, mas a dos políticos sofre corrosão lenta

Analistas e comentaristas podem dar-se ao luxo de levar a sério platitudes como “buscar a união nacional”, “fazer oposição construtiva”, “dizer não aos radicalismos”. A política real é mais crua. São apenas lutas tribais, em que o objetivo é ocupar o território da outra tribo e se possível eliminá-la, ou expulsá-la, ou escravizá-la. O verniz civilizatório oferece alguns disfarces para fazer isso de um jeito social e moralmente aceitável. E só. Assim é a vida real.

Há também as guerras dentro da tribo, disputas cujo grau de violência nada fica a dever. Veja-se por exemplo a atual conflagração no PSL. Partidos são tribos reunidas para disputa do poder, e não fraternidades voltadas para a promoção do bem comum. E a luta interna espelha a externa. E nunca se deve esquecer a lei número zero dos ecossistemas políticos: não seja tão amigo de alguém que você não possa romper com ele, nem tão inimigo que não possa se aliar.

Para saber como foi o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, e como ele termina, leve em conta os dois parágrafos acima. E outra providência é importante. Procure isolar por um momento o ruído, o que foi dito, especialmente pelo presidente mas também por quem a ele se opõe. Separe num canto as palavras e procure concentrar-se na consequência delas e nas ações. E tente também entender as motivações das palavras, em vez de simplesmente acreditar no que é dito.

Bolsonaro foi eleito por uma coalizão social complexa. O núcleo duro? Uma direita liberal-conservadora-nacionalista. A este grupo juntaram-se na hora “h” franjas de uma direita liberal-moderna-globalista e uma social-democracia antes de mais nada hoje antipetista. Contingentes que, por ação ou omissão, foram e permanecem stakeholders da ascensão bolsonarista. E tudo amalgamado por burocracias sócias e executoras do monopólio estatal da violência legítima.

É natural que haja disputas intrabloco. Mas qual das facções aceitaria hoje, por causa do antibolsonarismo, devolver o poder aos derrotados de 2016-18? Nenhuma. Talvez a social-democracia “de centro” gostasse de receber o apoio da esquerda para, aí sim, tornar-se alternativa. Mas falta-lhe por enquanto o mínimo da musculatura indispensável para subjugar o petismo. Quantos iriam à Paulista ou a Copacabana num domingo “contra os extremismos”?

Levou duas décadas para que o “centro” alijado do poder no pós-64 conseguisse estabelecer uma hegemonia sobre as forças políticas dominantes sob Getúlio-Jango. Fica a dica. Hoje tudo é mais rápido, mas ainda estamos longe de um cenário em que o “centro” consiga subjugar pacificamente a esquerda para estabelecer uma nova polarização, disfarçada de rompimento da polarização. Inclusive porque, diferente de então, ninguém está formalmente fora do jogo.

Seguidas pesquisas mostram a estabilidade do cenário. Apesar das tentativas de extrair lides de oscilações na margem de erro ou de pontos fora da curva. A explicação é simples. A coalizão social que elegeu Bolsonaro está essencialmente íntegra, e confundir o ruído das disputas internas com sinais de desmoronamento é, como se diz desde a Grécia, tomar a nuvem por Juno. Aquela ilusão produziu os centauros. Esta por enquanto não deu em nada.

Mas atenção.

O maior risco de curto prazo para Bolsonaro não está nas ameaças à integridade da base social. Isso está razoavelmente controlado, inclusive por causa dos respiros na economia. O problema está nas ambições que o ruído das disputas internas estimula na grande coalizão de políticos que entronizou o bolsonarismo no segundo turno de 2018. O risco é ver crescer os apetites por um bolsonarismo sem Bolsonaro. As atribulações do filho senador são um estímulo a jogos político-policiais já tradicionais no Brasil desde a volta das eleições diretas para presidente.

Mas tudo depende de quanto e como o presidente mantém ou perde base social, que em certo grau é também política. 2020 girará em torno dessa variável.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Como ser ao mesmo tempo cosmopolita, identitário, ambientalista, nacionalista, protecionista e desenvolvimentista?

Segue um resumo das urnas no Reino Unido. Os conservadores mantiveram a fatia dos votos da eleição anterior. Os trabalhistas perderam uns sete pontos percentuais. A diferença final foi cerca de dez pontos. O sistema de voto distrital permitiu aos conservadores formar uma maioria confortável no parlamento. Os trabalhistas perderam votos pró-Brexit para os conservadores e votos anti-Brexit para os Liberais-Democratas. Esse é o resumo.

Os votos operários pró-Brexit que os trabalhistas do RU perderam para a direita são parecidos com os do Rust Belt (cinturão da ferrugem, zonas de desindustrialização) que os democratas de Hillary Clinton perderam para Donald Trump. E esse movimento expõe o desafio fundamental enfrentado pelo discurso da esquerda nos países desenvolvidos. Como ser ao mesmo tempo cosmopolita, identitário, ambientalista, nacionalista, protecionista e desenvolvimentista?

Os três primeiros vetores costumam atrair os jovens, mas os três últimos falam ao coração dos nem tanto. E mesmo entre os jovens a bandeira do emprego tem forte potencial mobilizador. Daí verifica-se o desafio demográfico de uma esquerda cosmopolita e antenada, especialmente em países com crescimento populacional desacelerado ou negativo. O sujeito pode lacrar à vontade nas redes mas isso não garante uma coalizão social majoritária, e sem ela não se ganha eleição.

As pesquisas mais recentes mostram qualquer candidato democrata derrotando Trump no voto nacional, mas o presidente americano bateria qualquer candidato democrata no colégio eleitoral, se a eleição fosse hoje. O pedaço da classe trabalhadora perdido pelos liberais (esquerda nos Estados Unidos) para os republicanos nos estados volúveis continua vulnerável a Trump. Inclusive porque os empregos estão bombando. Protecionismo traz resultados ali.

Desemprego alto e/ou desconforto social são combustível para turbulências políticas e alternâncias de poder. Aqui, o governo Jair Bolsonaro aposta na retomada da economia, e em programas como a carteira verde-amarela. Iniciativas parecidas, como o Primeiro Emprego no mandato inicial de Luiz Inácio Lula da Silva, falharam. Na Argentina, Alberto Fernandez tenta medidas agressivas pró-emprego na largada. Não quer dar mole.

No fim a economia decide, na maioria das vezes. Mas é preciso uma leitura mais cuidadosa do que vem a ser “a economia”. As manchetes bonitas da imprensa especializada nem sempre se traduzem como satisfação social. Um exemplo? O aumento da produtividade das empresas na saída da crise, notícia positiva, na outra ponta são menos empregos e mais produção pela mesma remuneração. Pois é, tudo tem dois lados.

Talvez esteja na hora de fazer a leitura político-eleitoral da economia levando mais em conta o bem-estar social, objetivo e subjetivo. O Chile ensina isso. O Reino Unido também. Mas os números frios continuarão tendo sua força, como mostra Donald Trump. Ele só consegue resistir ao cerco do impeachment porque a economia americana e os empregos ali estão bombando.

A única certeza? Só se ganha eleição falando ao povão. Isso nunca muda.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Quer saber a aprovação? Pergunte

Em pesquisa, o regular não é neutralidade ou indecisão

As pesquisas mostram relativa estabilidade na avaliação do governo. Bom e ótimo pouco abaixo de um terço, o mesmo com o regular, e ruim e péssimo um pouco acima. Um quadro mantido nas margens de erro desde abril. O governo está no começo. Popularidades só mergulham ou explodem em início de mandato com algo extraordinário. Um estelionato eleitoral puxando para baixo, uma guerra lançando para cima. Nada parecido aconteceu aqui.

Mas números não precisam variar fantasticamente para trazer ensinamentos. Ou provocar erros. Um equívoco bastante comum é medir a aprovação do governo tomando apenas as respostas bom e ótimo. Quando você pergunta ao entrevistado se ele acha o governo ótimo, bom, ruim ou péssimo, a única conclusão possível a partir da resposta é quantos acham o governo ótimo, bom, ruim ou péssimo. Parece redundante. E é.

Para avaliar a aprovação só tem um jeito: perguntar se aprova ou desaprova. O outro método induz a erro. Você pode ter gente que aprova o governo mas acredita que ele está sendo apenas regular até o momento. Você pode encontrar, e encontra, gente que aprova mesmo entre quem o avalia como ruim ou péssimo. E o que dizem as taxas de aprovação? Que hoje metade aprova e metade desaprova. É consistente com outros achados dos levantamentos.

Um desses achados é a expectativa de que, ao final, o governo terá sido bom ou ótimo. Como mostrou a mais recente pesquisa Veja/FSB, publicada na edição anterior da revista, 44% aprovam a administração Jair Bolsonaro e 45% acreditam que ele será ótimo ou bom ao final. Faz muito sentido. Outra coisa consistente com esses dois dados: a margem estreita entre Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva num hipotético segundo turno entre ambos.

Os números refletem a chamada polarização, e deixam neste momento pouco espaço real a alternativas. Que entretanto são alimentadas por um autoengano habitual: afirmar que o regular indica um contingente nem-nem, que não aprova nem desaprova. Como visto, essa conclusão está completamente errada. De novo, numa pesquisa você só pode afirmar resultados com base no que você perguntou. Nunca no que não perguntou.

De acordo com a pesquisa, entre os 31% que acham o governo regular, 44% aprovam e 37% desaprovam. 15% nem aprovam nem desaprovam e 4% não sabem dizer. A fatia de regular que aprova dá 14% da amostra. É um regular com viés de alta. Do outro lado, o regular que desaprova dá 13%. É o regular com viés de baixa. Somados ótimo/bom mais regular/aprova temos 45% do eleitorado. E ruim/péssimo mais regular/desaprova dá 48%. Jogo empatado.

Imaginar que o regular é um conjunto vazio de afeições ou desafeições pode induzir a erro político grave. Como por exemplo atacar simultaneamente e no mesmo grau os dois polos dominantes. O fraco desempenho de quem buscou esse caminho em 2018 deveria servir como referência. Aliás, quando a pesquisa mede aprovação/desaprovação, o nem aprova/nem desaprova mais o não sabe/não respondeu dá 11%.

Este por enquanto é o espaço real do nem-nem.

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Publicado originalmente na edição 2.555 da revista Veja, de 18 de dezembro de 2019

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A “mãe de todas as reformas" está desaparecida. E o direito ao autoengano nas pesquisas

Poucas vezes o inferno da política esteve tão repleto das boas intenções de quem pretendeu aperfeiçoá-la. O tempo passou e tudo ou quase tudo do que pediram para melhorá-la foi aprovado e aplicado. E o resultado?

Fidelidade partidária, prazos duros de filiação a partidos e desincompatibilização de cargos, veto ao financiamento empresarial, verba pública, cota feminina nas vagas e no dinheiro, proibição de candidatura de parente no “cone” abaixo do detentor de mandato executivo, Lei da Ficha Limpa, regras draconianas para debates. Proibiram até show em comício.

É só uma parte do portfólio. Este espaço seria insuficiente para listar de modo exaustivo a profusão de regulamentos e restrições na esfera político-eleitoral. E a cada escândalo que aparece volta a grita por mais e mais legislação.

Está em linha com a cultura bem brasileira de fabricar leis e regras em escala industrial, o método que supostamente nos levaria ao paraíso de uma política limpa, sem as nódoas da inevitável inclinação humana a pecar.

A experimentação, entretanto, novamente desmentiu a teoria. O resultado é ruim. A única coisa que conseguimos foi transformar as eleições em rituais tão engessados quanto vazios, onde nada que interessa tem como ser debatido. E a floresta de regulamentos, como era natural, em vez de produzir um mundo sem pecados funciona como linha de produção de delinquências.

A cada dificuldade criada, os comerciantes de facilidades abrem um sorriso.

Tem mais. O sistema é presidencialista, mas o mecanismo está montado para negar a qualquer governo uma maioria própria no Parlamento. É um problema para Jair Bolsonaro, como foi para todos que o precederam após a Constituição de 1988.

E a Carta é um texto enciclopédico que, olha aí de novo, criado para dar conta de todos os problemas, acabou virando letra morta pela profusão de possibilidades interpretativas.

Talvez a esta altura o leitor atento tenha notado que um assunto desapareceu da pauta política e jornalística desde que Bolsonaro tomou posse em janeiro: a simplificação e o aperfeiçoamento da legislação partidária e eleitoral, a chamada reforma política.

Acontece com ela algo estranho: de vez em quando aparece no noticiário como “a mãe de todas as reformas”, para logo em seguida sumir sem deixar rastro. Ela costuma ser lembrada quando o Congresso coloca barreiras a alguma pauta querida do establishment. Quando os legisladores dançam conforme a música, é rapidamente esquecida.

Mas enfiar a cabeça na terra achando que vai resolver é a ilusão do avestruz. A taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos desde 1989 já bate 50%. O que fazer? Talvez uma solução seja aplicar à política a regra simples de diminuir o número e o alcance das regras, simplificar, aumentar o grau de liberdade.

Até agora, o que se tentou foi o contrário. Diminuir a taxa de liberdade na esperança de resultados melhores. Deu errado. Hora de experimentar outra coisa.

*

É compreensível e até comovente o esforço do jornalismo para arrancar lides de oscilações nas pesquisas dentro da margem de erro. Mas não vamos nos enganar: desde abril o quadro político e eleitoral anda essencialmente estabilizado.

Nem Jair Bolsonaro “estava caindo e parou de cair” nem o governo “está derretendo”. Basta olhar os números. Todas as pesquisas convergem para um ótimo/bom levemente abaixo de um terço, um regular na mesma faixa e um ruim/péssimo levemente acima.

E em todas as pesquisas a expectativa otimista está um pouco acima do ótimo/bom desde sempre. E em todas elas Bolsonaro mantém fiel o eleitor do primeiro turno e ainda retém a confiança do eleitor do segundo turno.

Mas o autoengano é livre, ainda que não seja grátis. Costuma sair caro aliás.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Um tipo de democracia para cada um

É possível estarem embutidas em “democracia” duas visões antagônicas. Pode ser a soberania dos freios e contrapesos. Ou a eleição direta de um César

A pesquisa VEJA/FSB, publicada na edição desta semana, revela que a maioria dos eleitores prefere a democracia a ditadura, mas não subestima a possibilidade da instalação de um regime autoritário. É um achado relevante. É alentador para quem acredita que o preço da liberdade é a eterna vigilância, e que a democracia é uma plantinha tenra a ser sempre bem cuidada.

Há alguma polêmica sobre a autoria da primeira frase, mas a segunda é mesmo de Octavio Mangabeira, o prócer udenista baiano. Depois, a UDN e os herdeiros políticos dela se meteram nas mais variadas ações para derrubar governos eleitos, e algumas até deram certo. Mas isso é outra história, e a máxima do Mangabeira continua atual.

Uma ampla maioria quer a democracia, mas talvez as próximas pesquisas devessem destrinchar a coisa. É possível estarem embutidas em “democracia” pelo menos duas visões com potencial de antagonismo. Uns podem acreditar que democracia é a soberania das instituições e dos mecanismos de freios e contrapesos ao poder. Outros, que é a eleição direta de um César.

O evento fundador da moderna democracia constitucional brasileira foi as Diretas Já, a campanha em 1984 pela eleição popular do presidente da República. Esse traço foi reforçado quando o presidencialismo derrotou o parlamentarismo no plebiscito de 1993, numa proporção de 7 a 3, apesar do apoio do establishment ao sistema parlamentar de governo.

Antes da primeira eleição presidencial direta tivemos a Constituinte, mas, conforme o tempo passa, a memória e a importância dela vão se diluindo e virando fumaça. Difícil achar hoje em dia quem defenda a sério cumprir a Carta de 1988 segundo a intenção original daqueles formuladores. E miniconstituintes de fato já funcionam para valer no Legislativo e no Judiciário.

Sobrou então a eleição direta dos governantes, em especial do presidente. E a força resiliente desse ritual, somada ao desgaste progressivo dos responsáveis pelos tais freios e contrapesos, alimenta o viés cesarista-bonapartista do Executivo. O que se encaixa na nossa tradição de ter um poder moderador, desde quando D. Pedro I fechou a primeira Assembleia Constituinte.

Freios e contrapesos para valer só existiram no Brasil quando o Executivo se enfraqueceu. Quando, por exemplo, José Sarney teve de dividir poder com o presidente do PMDB, da Câmara dos Deputados e da Constituinte, Ulysses Guimarães. Ou quando Fernando Collor e Dilma Rousseff foram lipoaspirados até cair. Ou quando Michel Temer teve de dedicar todas as energias para não sofrer o destino dos dois.

Jair Bolsonaro assumiu o governo numa Brasília balcanizada, depois de quase cinco anos de blitzkrieg da Lava-Jato contra a política realmente existente, e sabia-se que ele precisaria tentar reaver o poder moderador do Executivo. É o que está fazendo, com persistência. O Congresso joga razoavelmente livre? Sim, porque no essencial está tocando a pauta que interessa ao governo. Não tem opção.

De vez em quando alguém aposta que, a cada avanço da agenda governamental, o presidente se enfraquecerá e o Legislativo -e outros se fortalecerão. Aposta e perde.

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Publicado originalmente em www.veja.com.br

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Um benchmark para o centro

O pouco que há de instabilidade política deve-se, como já foi dito, à guerra pela hegemonia na direita. Estabeleceu-se quando as antigas forças dominantes tradicionalmente abrigadas sob o guarda-chuva do PSDB, ou que orbitavam em torno dele, foram ultrapassadas na eleição por Jair Bolsonaro. O bate-boca permanente do bolsonarismo é com a esquerda, mas seu inimigo principal está na direita inconformada que, sob o brand name de "centro", luta para retomar posições.

Não que a esquerda esteja protegida das balas. Para o bolsonarismo, bater no PT é a certificação permanente de autenticidade, de que merece ter a liderança do seu próprio bloco histórico. Daí os arreganhos e a guerra politico-cultural travada com a ordem expressa de não fazer prisioneiros. É uma tática que empareda o centro: se as tentativas de centrismo aproximarem-se da esquerda para construir uma alternativa, darão gás ao argumento de pavimentarem a volta do petismo; se não, ficará dificil distinguirem-se do bolsonarismo.

O centro precisará ter paciência e torcer para que um dia, exaurido, um dos lados conforme-se com a perda da capacidade hegemônica, e aceite ir para o segundo plano em nome do "combate ao mal maior”. Mesmo não havendo qualquer garantia de que este dia vai chegar. Se vier, poderá ser uma situação em que o bolsonarismo se mostre frágil no mano a mano com a esquerda. Ou o inverso, o adversário de esquerda se mostrar o melhor passaporte para Jair Bolsonaro ou uma alternativa (Mourão? Moro? Guedes?) faturar mais quatro anos em 2022.

Talvez o centro ande precisando de um benchmark. Há dois cases de sucesso. O primeiro é o velho MDB. Políticos que haviam apoiado a instalação da ditadura passaram a nuclear a oposição quando perceberam que o novo regime não lhes daria espaço. Os casos mais notáveis foram Franco Montoro e Ulysses Guimarães. Outro case foi Fernando Henrique Cardoso, quando convenceu o PFL de que ele, FHC, era o tíquete certeiro para evitar o então "mal maior", a vitória de Lula depois do impeachment de Fernando Collor.

Mas nos dois casos foi necessário as condições subjetivas, a consciência sobre a situação objetiva, alcançarem massa crítica. Por enquanto, o dito centro continuar acreditando que vai levar a taça denunciando “ambos os extremismos” parece política de pouca potência. É certo já haver em excluídos do poder, nos dois lados, alguma vontade de aderir à “frente ampla”, mas é movimento incipiente. Nem Lula quer aposentar-se, nem o eleitor de Bolsonaro parece tão vulnerável.

O paradoxo para o centro é que uma futura fragilidade do bolsonarismo estará inevitavelmente (advérbio perigoso) ligada à frustração na economia. E hoje o centro pode ser mais bem resumido em algo como “a política de Paulo Guedes, mas sem Bolsonaro, sem Olavo de Carvalho e sem o AI-5”. Ou seja, se a economia não trouxer resultados brilhantes na percepção do povão, vai restar ao centro o argumento de que Bolsonaro atrapalhou Guedes. Será preciso muita marquetagem, ainda que, atenção, a operação já esteja em andamento.

O maior problema, como sempre, é a teimosia dos fatos. A economia reage, mas lentamente e de modo muito desigual na pirâmide de renda. E o desemprego em torno de dois dígitos parece confirmar as análises de ter virado estrutural. O motivo é pinçado conforme a conveniência do analista. Quem não curte Bolsonaro diz que ele está atrapalhando. Outros falam em insegurança jurídica. Outros em instabilidade institucional. São todas explicações parecidas e não verificáveis, e portanto permitem a seus defensores argumentar ad nauseam impunemente.

O mais provável é que a recuperação esteja lenta porque não há qualquer expectativa de acontecer pelo menos uma de duas coisas (o ideal seria ambas simultaneamente): nem o Brasil vai virar uma plataforma de exportação competitiva da noite para o dia, nem há qualquer plano para uma expansão robusta do mercado interno no curto ou médio prazos. O capital vai atrás de oportunidades de retorno. O resto é o resto.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Só lamenta a polarização social e política quem acredita ter força para impor a unanimidade

Uma fábula persiste desde a campanha presidencial: a possibilidade de eliminar a polarização política e social por meio de um consenso majoritário centrista. A tese naturalmente fracassou nas urnas, como previsto, mas o prejuízo dos seus elaboradores e propagandistas foi apenas relativo, eles continuam por aí prestigiados e ouvidos para delinear caminhos futuros. Faz parte.

O hit do momento é que a saída de Luiz Inácio Lula da Silva da prisão vai acirrar aquela polarização, quando o desejável seria o contrário. Há de cara um problema nesse desejo: ele supõe que 1) Lula poderia de algum modo aderir a um status quo que lhe negasse protagonismo político ou 2) sem Lula, seria possível, com o tempo, ou atrair Jair Bolsonaro para a órbita centrista ou removê-lo.

São apostas arriscadíssimas, mas às quais se aplica a velha metodologia de repetir indefinidamente certas coisas nos jornais (lato sensu), esperando o milagre acontecer. Vai que rola... Entrementes, os fatos, costumeiramente teimosos, abastecem a linha de montagem da vida real e do próprio jornalismo, uma das poucas atividades no Brasil em que a escassez de oferta não tem dado as caras.

Vamos resumir. Impor o consenso só interessa e é possível a quem tem hegemonia. A falta de consenso no Brasil não é resultado da ação de pessoas más que desejam ver brasileiros brigando com brasileiros nas ruas, nas redes sociais e nos encontros de família, mas do fato banal de nenhum dos três blocos político-sociais-culturais deter força suficiente para se impor aos outros dois.

Os três blocos são o liberal-progressista, liderado por Fernando Henrique Cardoso, o social-progressista, liderado por Lula, e o liberal-conservador, liderado por Bolsonaro. Note que nenhum dos três precisa estar completamente de acordo com o ideário dominante em sua turma, precisa apenas evitar ser desafiado na tribo. E ficar por aí esperando a roda da fortuna lhe sorrir.

Só acha que Lula “radicalizou” ao deixar a PF quem achava possível ele propor uma união nacional em torno da agenda Guedes para a economia. Ou acreditava ser da conveniência do ex-presidente aceitar a priori a hegemonia liberal para a formação de uma frente ampla anti-Bolsonaro. Se não aceitou algo parecido em períodos muito mais desfavoráveis para ele, por que agora?

O Chile é a prova viva de que mesmo experimentos liberais economicamente exitosos produzem déficits sociais, reais ou na esfera da percepção, que podem bem ser trabalhados por uma oposição com olho na estratégia. Lula está focado nesse mercado potencial. E se até os resultados econômicos faltarem para Bolsonaro, o plano fica mais viável ainda. Assim é a política.

Nem Bolsonaro nem Lula serão derrotados por lamúrias contra a radicalização e a polarização, nem o liberal-centrismo vai atrair um dos dois simplesmente por prometer a paz dos cemitérios. Subestimar a inteligência das pessoas é sempre um erro.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O retorno de quem nunca se foi

Entusiastas do regime militar voltam a ser atores políticos plenos

A especulação do deputado Eduardo Bolsonaro sobre algum tipo de mecanismo jurídico nos moldes do AI-5 para enfrentar aqui uma rebelião de rua “chilena” teve um mérito. Mostrou que um pedaço a ser mensurado e provavelmente expressivo da sociedade brasileira está disposto a apoiar medidas ditatoriais, ainda que legais, para a defesa do poder constituído.

Foi o que revelaram, pelo menos, as redes sociais.

Mas prevaleceram a indignação e o desconforto. Isso tem explicação. De 1985 a 2018, enxergar aspectos positivos em ditaduras de direita era uma ideia alijada do espectro ideológico considerado legítimo. Era o tempo da hegemonia absoluta dos grupos que encerraram o ciclo dos generais-­presidentes e implantaram a Nova República.

Um tempo que agora acabou. Ainda que a consciência sobre essa realidade ande um pouco atrás da dita-cuja. Costuma acontecer.

Os últimos quase trinta anos não foram apenas um intervalo histórico de governos social-democratas, como gosta de repetir o ministro Paulo Guedes, mas um período de quase ocupação político-cultural no campo da direita. Anos em que o eleitor direitista de raiz era obrigado a votar no PSDB, a única opção para tentar derrotar o PT. E era também obrigado a engolir a raiva e a frustração quando alguém descrevia o regime dos generais como a pior coisa que tinha acontecido ao Brasil.

Essa etapa da nossa história teve seu ponto-final no dia em que Jair Bolsonaro conquistou nas urnas a Presidência da República. E o mal-estar latente desde então entre os derrotados, e entre alguns taticamente vitoriosos mas infelizes com o resultado do voto popular, reflete o desconforto com o visitante indesejado que na reta final deixou para trás não só o PT, mas também a turma que tinha derrubado Dilma Rousseff e já se via com a mão na taça.

É outro mundo. Ninguém no bolsonarismo duro condenou as declarações do hoje líder do PSL na Câmara. O presidente da República disse que reeditar o AI-5 era coisa de sonhadores, que melhor seria endurecer a legislação antiterror, aliás aprovada no governo Dilma. Outro roteiro para o mesmo fim. O general e ministro Augusto Heleno, em um momento de talvez excessiva sinceridade, apenas observou que seria necessário ver como fazer. Depois tentou corrigir-se.

Uma ideia tem dado muito errado no Brasil: o “nunca mais”. A única certeza sobre essa palavra de ordem é que algum dia ela será desmentida. Pois o “nunca mais” supõe a possibilidade de excluir para sempre alguém do jogo, da alternância de poder. E isso vale para todos os lados. Assim como Bolsonaro enterrou o “nunca mais” gritado contra a direita, um dia alguém fará o mesmo do outro lado, e virá o troco. É só esperar para ver quem, e quando.

Os que desejam sinceramente a estabilização de algum tipo de democracia constitucional no Brasil deveriam estudar os casos de Portugal e Espanha. Ali construíram-se regimes políticos que permitem a convivência e a alternância entre saudosos do salazarismo e antissalazaristas ou entre admiradores do franquismo e antifranquistas.

Não se cobra de nenhum lado a renúncia a sua identidade, mas sim a aceitação estrita das regras democrático-­constitucionais.

Talvez seja um caminho.

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Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660

domingo, 3 de novembro de 2019

A lógica da dissuasão. E o Big Stick ao contrário

Já descrevi na análise anterior (“Por que de repente a coisa desanda…”) como a sensação de injustiça tem potencial para desencadear rebeliões que parecem brotar do nada. Há ainda outro fator. É preciso que as instituições políticas tenham perdido a necessária capacidade de absorver as ondas de choque quando a insatisfação da massa alcança um ponto crítico.

Ou seja, é preciso que as pessoas tenham se desiludido, ou ao menos atingido um patamar de ceticismo, sobre a possibilidade de resolver “pacificamente” as pendências com o governo. É a situação propícia a que correntes políticas busquem mudar rapidamente, por meio da “rua”, a correlação de forças, e portanto a configuração do poder.

É natural, também por isso, que em qualquer país e qualquer tempo a oposição trabalhe para dificultar que aquelas ondas de choque sejam absorvidas, ao menos enquanto ela própria não alcançar o objetivo de poder. Ou entrando no governo ou promovendo uma troca de guarda. Daí a inutilidade, para a oposição, de platitudes como o adjetivo “construtiva”.

E o governo? Precisa trabalhar dia e noite para impedir o atingimento do ponto nodal em que as pessoas passam a duvidar do “funcionamento” das ditas instituições. E precisa lembrar sempre à sociedade que tem instrumentos repressivos capazes de evitar a perda de poder, e tem também a disposição de usá-los, se for preciso para evitar a perda do controle.

Paulo Guedes é o principal instrumento de Jair Bolsonaro para manter acesa a esperança de que as coisas vão melhorar. Há porém dois complicadores. Nem os mais otimistas acham que a vida vai ficar muito melhor tão rápido, e os realistas sabem que é grande a possibilidade de uma turma expressiva acabar ficando para trás mesmo quando as coisas melhorarem.

Daí que o governo declare repetidamente a disposição de reprimir. É uma tática de dissuasão. E a referência ao AI-5 só chocou quem esqueceu que o bolsonarismo é uma força política externa ao bloco derrotou o ciclo militar em 1984/85. Ele não tem qualquer compromisso com a narrativa da Nova República. Aliás é a expressão atual dos derrotados naqueles dois anos.

Entretanto, a dissuasão pela exibição de força só tem efeito se há a disposição e a capacidade reais de usar a força. E tudo na vida tem dois lados. No Chile, por exemplo, Sebastián Piñera acabou perdendo a capacidade de dissuasão quando quis exibir uma força que não tinha como utilizar plenamente no plano operacional: as Forças Armadas.

E quando você ameaça usar uma força que na prática não está disponível você acaba mandando sinais de fraqueza, e reduzindo portanto a capacidade de dissuasão.

Fica a dica.

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Governos precisam mostrar permanentemente que estão fortes, e uma parte disso é evitar o isolamento, nas ruas e nos salões. A situação ótima é quando o governo convence a sociedade, especialmente as elites, de que ele é essencial para resolver os problemas. A situação razoável é quando ele dá a impressão de não estar atrapalhando.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Por que de repente a coisa desanda, como agora no Chile

A explicação difundida sobre as ditas jornadas de junho de 2013 no Brasil era a profunda insatisfação com os serviços públicos. Havia inclusive uma tese de a vida ter melhorado dentro de casa mas continuado ruim fora. Obviamente uma explicação errada. Ou pelo menos gravemente parcial. Pois os serviços públicos continuam do jeitinho que eram e nunca mais se viu nada remotamente parecido com 2013. Teve as mobilizações pelo impeachment, mas já era outra coisa.

Há um esforço intelectual disseminado para encontrar um fio condutor que ligue as rebeliões populares ao redor do planeta, e naturalmente cada um puxa a brasa para sua sardinha particular. Uns culpam o que chamam de neoliberalismo ali, outros a falta de liberdade acolá, outros o déficit de soberania nacional mais adiante. É provável que todas essas explicações estejam algo certas. E também por isso elas têm pouca utilidade para localizar o tal fio condutor.

A erupção de rebeliões populares, como agora no Chile, exige duas premissas: as pessoas comuns não estarem mais dispostas a aceitar as condições materiais e espirituais em que vivem e o sistema não mais deter força suficiente para obrigar as pessoas a continuar aceitando tais condições. E o segundo fator está associado diretamente à queda nas taxas de coesão entre os grupos que detêm o monopólio weberiano da "violência legítima”.

A ubiquidade da transmissão de informações e da conectividade, algo traduzido na expressão genérica “redes sociais”, afetou diretamente a possibilidade de aplicar essa violência. Ela persiste firme em situações, como na Síria, onde o poder consegue bloquear a informação. No Chile não dá. Sebastián Piñera chamar as Forças Armadas teve pouco efeito prático porque a tropa não pode atirar nos manifestantes para matar. O remédio pinochetista está vencido.

Qual seria então o tal fio condutor? Uma boa hipótese é o sentimento de a injustiça ter ultrapassado o limite do aceitável. Verdade que a régua para medir esse “aceitável" é bastante subjetiva, mas paciência. A subjetividade explica por que a rebelião popular pode perfeitamente acontecer, e acontece, mesmo quando as condições materiais objetivas não estão piorando, ou até quando estão melhorando. Um paradoxo que neutraliza as explicações mecanicistas e economicistas.

Esse viés subjetivo explica também a certa imprevisibilidade de acontecimentos como do Chile. Não existe um método quantitativo 100% confiável para medir quando os de baixo não mais estarão dispostos a viver como antes e os de cima não mais poderão obrigá-los a isso. Daí que duas atitudes sejam essenciais no exercício do poder: 1) ficar esperto e 2) não dar sopa pro azar. O primeiro depende de empatia. Já para o segundo contribui bastante a paranoia.

Um dia alguém disse que apenas os paranóicos sobreviverão. Mesmo se for verdade, não é suficiente constatar. É preciso dar consequência à paranoia. Por isso governos investem tanto em sistemas de informação, espionagem e repressão, mas também difundem platitudes do tipo “governarei para todos”, “precisamos unir o país”, “basta de polarização”. São platitudes, mas ajudam a atenuar o sentimento de estar excluído do jogo, e portanto de ser alvo de injustiça.

Outro detalhe: os mesmos atores colocarem o gênio de volta na garrafa pode exigir um nível da tal “violência legítima” acima do disponível em determinada correlação de forças. Também por isso governos caem. Aliás, as chamadas transições pacíficas costumam resultar não tanto de um caráter pacífico inerente aos atores, mas de correlações de força esmagadoras e que levam à situação ideal de vencer sem precisar guerrear. Só que nem sempre é possível.

Para o poder, bom mesmo é não deixar o gênio escapar.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Bolsonaro precisa escolher um caminho. E tem uma oportunidade. O dito centrão está vestido de noiva esperando ser chamado para o altar

Os principais complicadores potenciais para a presidência de Jair Bolsonaro são três. 1) Uma base congressual apenas programática, 2) a ausência de partido(s) forte(s) para chamar de seu(s) e 3) o ritmo lento de recuperação da economia. Enquanto o povão não se cansa deste terceiro item, dá para ir levando os dois primeiros. Mas a paciência não é eterna.

Falar em crise política no Brasil de Bolsonaro em outubro de 2019 é jornalisticamente sexy, mas talvez algo exagerado. Basta ver as atribulações, por exemplo, de Donald Trump, Boris Johnson, Pedro Sánchez, Lenín Moreno, Sebastian Piñera, Benjamin Netanyahu e Carrie Lam. Shaky governments parece ser o novo normal na era da hiperconectividade e das redes sociais.

Todos esses nomes têm base congressual. Bolsonaro por enquanto não.

Até agora, mesmo sem resultados brilhantes, Bolsonaro vem se sustentando 1) no crédito de confiança do eleitor dele, que numericamente continua com ele, ou pelo menos não está contra. Como mostrou esta semana a pesquisa Veja/FSB. E 2) no fato de o Congresso, majoritariamente pró-mercado, não ter como rejeitar a agenda econômica liberal capitaneada por Paulo Guedes.

Mas a guerra no PSL deveria acender uma luz amarela no Planalto. Presidente sem partido e sem base congressual própria alguma hora acaba sinucado. Pode demorar, mas a conta chega. Enquanto tem um terço de bom/ótimo e meio a meio no aprova/desaprova, dá para manter o stand by. O problema? Não haver nenhuma previsão de retomada brilhante do emprego no curto ou médio prazos.

Esta costuma ser a época em que os políticos estão recolhidos, apenas amolando as facas à espera do momento em que o governante vai perder força e vai depender deles para atravessar o rio cheio de crocodilos. E esta é a hora em que o presidente pode ainda negociar em vantagem com o Congresso. Basta consultar a literatura. Quem fez se deu bem. Quem não...

E o cenário está montado. Há uma avenida aberta. O dito centrão anda com síndrome de abstinência de governo, E agora ele viria algo repaginado, depois de eleito pela imprensa como o salvador das reformas. E afinal o chamado centrão é de direita mesmo. Não à toa Bolsonaro ostenta uma média alta de apoio nas votações congressuais. Seria o casamento da fome e da vontade de comer.

Claro que precisaria ser feito sem macular muito o brand da “nova política”, mas não falta aos próceres do centrão expertise nesse tipo de coisa. Fazer sem parecer que está fazendo. E aliás Bolsonaro foi dessa turma, o dito centrão, durante todo o tempo de deputado federal. Tem muito mais a ver com esse pessoal do que com o jacobinismo do PSL, ainda que os mais jacobinos até ali estejam espremidos.

*

É preciso reconhecer em Bolsonaro um sujeito de sorte. A pipocada dos Estados Unidos no tema “Brasil na OCDE” abriu uma janela de oportunidade para o presidente fazer o que precisa ser feito: atrair os capitais chineses, especialmente em infraestrutura e tecnologia.

Vamos ver se a viagem à China vai ser um sucesso no estabelecimento de parcerias que ajudem a alavancar nosso desenvolvimento ou se as viseiras ideológicas vão impedir o governo de fazer o que é melhor.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A marca da estabilidade

A segunda rodada da pesquisa Veja/FSB confirma uma tendência que se consolida desde abril/maio: a estabilidade dos índices de Jair Bolsonaro. O presidente atravessa as turbulências de opinião pública preservando o capital das urnas do ano passado. Uma proporção semelhante aos eleitores dele no primeiro turno perfila no bom e ótimo, e uma fração parecida com os do segundo turno mantém a esperança de o governo alguma hora entregar a mercadoria.

Bolsonaro beneficia-se também da recente inversão estatística entre os blocos de eleitores que tendem à direita e os que se inclinam à esquerda. Entre Collor e FHC, o primeiro grupo manteve sobre o segundo uma margem na ordem de grandeza de dois dígitos. Lula inverteu esse balanço em 2002, com vantagem, movimento produto da frustração econômica no segundo mandato do tucano, e também da fadiga de material.

Essa inversão propiciou ao PT/esquerda uma gordura eleitoral que, mesmo sendo progressivamente queimada, trouxe a seus candidatos mais vitórias seguidas no mano a mano contra o PSDB nas três sucessões presidenciais seguintes. A balança só voltou a inverter ano passado, quando o tsunami anticorrupção se somou aos péssimos resultados econômicos, que caíram na conta do candidato do PT, apesar de o partido ter deixado o poder em 2016.

A pesquisa publicada nesta edição de Veja mostra que se Lula continua o nome mais competitivo da esquerda, Jair Bolsonaro só é ameaçado quando desafiado por alguém de seu próprio campo político. Esse dado é consistente com a inversão de blocos descrita acima. Outra conclusão: marcas autodeclaradas de centro são competitivas no segundo turno, mas o desafio delas é chegar lá. Como as propostas de “terceira via” puderam notar nas três últimas eleições presidenciais.

Mas os números exibem também que hoje Lula está praticamente ilhado no eleitorado do PT, pois sua vantagem sobre Fernando Haddad nas simulações de segundo turno fica apenas algo acima da margem de erro. O que leva o analista a uma hipótese que jamais poderá ser comprovada, e portanto tampouco refutada: é bastante provável que se Lula estivesse elegível, mesmo assim Bolsonaro seria favorito em 2018 num hipotético segundo turno contra o ex-presidente.

Ou seja, a ideia de que Lula solto seria imbatível serve bem à narrativa de seus apoiadores para travar a luta política contra Bolsonaro e Sergio Moro, mas não necessariamente traduz o cenário eleitoral recente e muito menos o vindouro. O desafio da esquerda é retomar uns 10% do eleitorado, grupo cujo deslocamento à direita deu ao atual presidente os votos necessários para fechar a fatura em 2018. E esse grupo vem mantendo a confiança em Bolsonaro.

As simulações de segundo turno traduzem que a esquerda retém seus apoiadores do ano passado, mas ainda não penetrou no voto bolsonarista. Uma hipótese: o presidente está em início de mandato, e não há mesmo motivo para fazer julgamentos definitivos do que será afinal o governo dele. Outra hipótese: a esquerda está por enquanto apenas repisando nos temas caros ao eleitorado dela, atacando o conservadorismo de Bolsonaro. Ainda não abordou a economia.

Eis o ponto chave. Bolsonaro mantém uma margem boa sobre a esquerda, mas não pode ser considerada confortável. Para evitar um “efeito-Macri”, a cruzada conservadora e a pregação contra o Foro de São Paulo não serão suficientes. Pois os principais concorrentes do presidente e candidato à reeleição são dois nomes não filiados a nenhum partido, e que nem podem concorrer em 2022: a “estagnação econômica” e a “taxa de desemprego”. ====================

Publicado originalmente em www.veja.com.br

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Uma ideia para os partidos: mais democracia. E o direito do analista a uma ingenuidade anual

Eis que Jair Bolsonaro está às voltas com o problema costumeiro dos presidentes da República. Para consolidar e ampliar a dominância sobre o cenário político, precisa de um (ou mais de um) partido para chamar de seu, e precisa que este(s) lute(m) por capilaridade nos processos eleitorais.

E tudo começa pela eleição municipal. É nela que se elegem os cabos eleitorais dos deputados federais, sem quem o presidente da República, aí sim, está arriscado a virar rainha da Inglaterra, ou a sofrer coisas ainda piores.

A política brasileira é peculiar. Aqui o sujeito não chega ao poder por ter um partido forte, mas precisa usar o poder para construir um partido forte, sem o que fica ainda mais sujeito a instabilidades, dada a entropia do sistema.

Nenhum presidente eleito desde a democratização contava com, ou conseguiu eleger junto, uma legenda hegemônica, e todos usaram o poder da caneta para alavancar, depois, gente para lhes dar sustentação. Aliás foi, e é, a fonte dos grandes escândalos nacionais.

*

Administrações partidárias são complicadas sempre, ainda mais com a massa de recursos proporcionada no Brasil pelo financiamento público. É muito poder. Todo mundo depende do proprietário, ou proprietários, de partido.

Proprietários regra geral eternos, pois inexiste na legislação mecanismo que os obrigue a praticar democracia interna. Eis um motivo, talvez o principal, para tantos partidos: a única garantia de quem tem projeto próprio é ser dono de legenda. Assim é a vida de quem faz política no Brasil.

O sintomático na guerra interna do PSL é inexistir qualquer proposta de resolver a disputa no voto. Nos Estados Unidos seria assim. Ali todas as candidaturas são decididas em primárias.

Ali foi possível Barack Obama derrotar no voto Hillary Clinton. Ali foi possível Donald Trump tratorar todo o establishment republicano.

É curioso que apesar de toda a conversa no Brasil sobre reforma política ninguém proponha uma lei que obrigue os partidos a praticar democracia interna. Curioso e compreensível. Essa mudança não virá nem do Executivo nem do Legislativo.

Já que o Judiciário está curtindo legislar, talvez ele pudesse dar um empurrão. E há argumentos. Se os partidos se financiassem apenas com dinheiro privado seria razoável ninguém meter o bedelho no funcionamento. Mas não é o caso, principalmente depois que passaram a receber montanhas de dinheiro público.

O partido só deveria poder lançar candidato nos municípios onde tivesse diretório eleito em convenção com voto direto e secreto. De preferência eletrônico. Comissão provisória não deveria ser suficiente. E todos os candidatos deveriam ser escolhidos em primárias.

É uma maneira simples de resolver imbroglios como este do PSL. Uma ideia simples e ingênua. Analistas políticos também deveriam ter o direito a, digamos, pelo menos uma ingenuidade anual.

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O bom de ser considerado "do bem" é poder fazer tudo que faz quem é "do mal", sem entretanto deixar de ser considerado alguém "de bem". Quem duvida deve comparar os vieses da abordagem nas crises venezuelana, equatoriana e de Hong Kong.

sábado, 5 de outubro de 2019

Por que a Lava-Jato era unanimidade e não é mais. E o foco de instabilidade na conjuntura estável. E um pouco de humor

O sucesso da Operação Lava-Jato vinha sendo produto, antes de mais nada, da correlação de forças políticas extremamente favorável. Platitudes como “o povo não aceita mais a corrupção sistêmica”, ou “o eleitor quer virar a página da velha política” servem para brilhareco retórico, mas escondem o essencial. Sergio Moro et al só chegaram onde chegaram por reunir apoio político amplíssimo, inclusive entre potenciais acusados de corrupção e próceres da política tradicional. Inclusive no poder muito bem constituído.

A Lava-Jato na sua primeira etapa (2014-2018) era útil para amplos segmentos do poder, real ou na expectativa de. Servia para quem desejava apear o PT. Mas também para quem, no PT, gostaria de trocar a hegemonia. Servia ao PSDB, mas também para quem ali sonhava com destronar os tucanos ditos de alta plumagem. E servia muito a quem imaginava reforçar seu próprio cacife político ou comercial investindo na luta contra a corrupção. Era muita gente. E foi faca na manteiga.

E veio a ruptura de outubro de 2018. Só que não do jeito desejado pelo establishment que surfara na luta contra a corrupção, contra a política estabelecida e contra o governo do PT, nem sempre nesta ordem. A coalizão do impeachment tinha a hegemonia parlamentar da aliança PMDB-PSDB, coadjuvada pelo dito centrão e lastreada socialmente na elite do Sul-Sudeste. Mas em janeiro de 2019 quem subiu a rampa foi a aliança do bolsonarismo com Olavo de Carvalho e um amplo espectro de militares.

Essa assimetria é o principal foco de instabilidade numa conjuntura bastante estável. Note o leitor como as graves crises anunciadas passam sempre sem deixar rastro. A mais permanente, com episódios recorrentes, é a da “falta de articulação política”. Como se algum governo, qualquer um, conseguisse passar praticamente todo o seu programa econômico no Legislativo sem ter articulação política funcional. No popular, é o #mimimi da turma que ganhou, mas não levou.

Vêm daí também as teses de Jair Bolsonaro precisar “descer do palanque”, “livrar-se dos filhos”, “governar para todos”, “respeitar a autonomia das carreiras de Estado”. Como se o governante cioso de seu próprio pescoço em algum momento devesse deixar de falar aos eleitores dele, trocar os mais fiéis pelos menos fiéis, parar de enfraquecer os adversários, visíveis ou ainda escondidos, e deixar as corporações fazer o que dá na telha em defesa do poder, dos privilégios e dos interesses umbilicais delas.

De volta à Lava-Jato, o principal problema dela é não mais servir ao poder. Talvez a algumas expectativas frustradas de poder, mas não está sendo suficiente. O Poder (com maiúscula) nas três pontas da Praça dos Três Poderes precisa conter a Lava-Jato para conseguir governabilidade. E o pessoal que precisa dessa governabilidade para passar as mexidas legais do programa econômico liberal vitorioso nas urnas enxerga, cada vez mais, a operação como um estorvo. Agora, a ampla coalizão não é mais a favor, é contra.

*

O principal argumento dos defensores por aqui do impeachment (que lá ainda não é saída) de Donald Trump é que ele se associou a um governo estrangeiro para, a pretexto da necessidade de combater a corrupção, criar dificuldades políticas ao principal adversário dele na disputa pela Casa Branca em 2020.

Pedir coerência na política é amadorismo. Mas pelo menos rir ainda não está proibido. Só rindo mesmo.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Uma conjuntura muito favorável ao poder, mas com aquele probleminha

O modus operandi congressual do bolsonarismo vai ficando cada vez mais nítido. Não há obsessão por tratorar o Legislativo. No plano parlamentar, aceita-se o jogo. O que os parlamentares perderam em espaço político na Esplanada, ganharam em oportunidades de protagonismo. O governo manda os projetos, o Parlamento faz quase o que bem entende, depois o presidente veta, e o Legislativo também derruba os vetos que deseja.

Não sei se chega a ser uma nova política, mas tem boa dose de novidade, ao menos neste último meio século. Nos governos militares, o Congresso, quando estava aberto, era uma máquina carimbadora do Executivo, graças também ao bipartidarismo, aos atos institucionais e às cassações periódicas de mandatos. Quando nada disso era suficiente vinha o fechamento. Como por exemplo no Pacote de Abril de 1977.

Depois nasceu a Nova República, uma oportunidade do país aos políticos. Mas Tancredo Neves morreu, José Sarney virou um presidente não tão forte, e sofreu a dualidade de poder imposta pela Constituinte e Ulysses Guimarães. E teve de escancarar a máquina aos políticos para sobreviver. Sucedeu-o Fernando Collor, que quis fazer uma nova política e acabou derrubado. Por questiúnculas, como Dilma Rousseff um quarto de século depois.

E surgiu Fernando Henrique Cardoso para derrotar o PT de Luiz Inácio Lula da Silva, que estava forte depois da queda do seu antípoda, Collor. FHC governou à moda tradicional, e teve tranquilidade, também porque a nova política tinha dado errado. E graças à velha e boa política o tucano sobreviveu à debacle do Real na transição do primeiro para o segundo mandato. O país parecia vacinado contra impeachments. Parecia.

Lula governou conforme a cartilha da Nova República. Aprendendo com Sarney, Collor e Fernando Henrique, procurou montar uma base sólida no Congresso para evitar surpresas. Também por isso, escapou na crise do chamado mensalão, reelegeu-se e elegeu a sucessora. Que se sentiu num momento suficientemente forte para deixar os aliados na rua da amargura da Lava Jato. Deu no que deu.

Agora Jair Bolsonaro propõe uma nova oportunidade para um modelo que falhou duas vezes.

Verdade que o atual presidente faz isso numa conjuntura excepcionalmente favorável. Para começar, dois terços do Congresso estão potencialmente alinhados com a agenda do Executivo. O governo acha, e tem uma dose de razão, que mesmo se nada fizer o Legislativo terá de andar na linha do Executivo, pois os deputados e senadores não t terão como explicar aos seus eleitores se fizerem diferente.

E o financiamento empresarial de campanhas está vetado, o que diminui a atratividade da ocupação de certos espaços ministeriais e nas estatais. Claro que sempre o olho pode crescer. Mas o mar não está pra peixe. E os partidos estão razoavelmente abastecidos pelos recursos públicos para sobreviver e fazer suas campanhas. Então, se o Planalto executa com competência o orçamento das emendas, tem combustível para navegar.

Para ajudar, o reinado absolutista da Lava Jato parece ter entrado no seu até agora pior inverno. E Bolsonaro tem assim facilitada a tarefa de recolocar o gênio dentro da garrafa, ou pelo menos tentar. Era previsível, e foi previsto, que o Bonaparte saído das urnas precisaria restabelecer o Poder Moderador do Executivo, tradicional desde que D. Pedro I fechou a Constituinte e outorgou a primeira Carta do Brasil independente.

Nisso, no essencial, Planalto, Congresso e Supremo vêm jogando juntos, pois interessa a todos acabar, ou pelo menos reduzir, a disfuncionalidade institucional em que o país foi atirado desde que Executivo e Legislativo ficaram acuados pela Lava Jato. E, enquanto esta permanece uma ameaça letal, seria pouco inteligente os três lugares geométricos da Praça dos Três Poderes ficarem de mimimi uns com os outros.

Sem contar que o PT não está propriamente infeliz com o esforço bolsonarista para controlar a fera. Sempre há a possibilidade, claro, de a Lava Jato voltar a se concentrar só no PT, mas até isso teria um lado útil para o petismo: reforçaria a narrativa de vitimização, já bem nutrida pelas interessantes revelações do The Intercept e parceiros. Depois da VazaJato, a Lava Jato nunca mais será a mesma, apesar das juras de amor do novo PGR.

Então está tudo bem? Não, tem aquele probleminha: quase 13 milhões de desempregados, fora os subempregados e desalentados em geral. Eis a fenda na represa, fenda que se não for fechada embaralha bem esse jogo. Ninguém vai querer ser sócio do fracasso. Mas enquanto não chega o dia do juízo político o bolsonarismo aproveita o mar de almirante para radicalizar na guerra de posição, inclusive no campo cultural. Já que Gramsci está na moda.

sábado, 21 de setembro de 2019

Alinhamento político-ideológico reduz o custo político e acrescenta resiliência à governabilidade

O custo orçamentário, para o governo, de aprovar as mudanças na previdência social está sendo significativo. O Palácio do Planalto vem executando o orçamento relativo às emendas parlamentares na medida necessária para para fazer passar “a mãe de todas as reformas”. Mas o custo político é baixo, baixíssimo. O que em outras circunstâncias seria objeto de escândalo (“compra de votos!”) desta vez é deglutido sem maior dificuldade.

A constatação não chega a ser nova. A governabilidade de Jair Bolsonaro é sólida pois o núcleo da agenda governamental, o programa econômico liberal, tem o apoio de pelo menos dois terços do Congresso, é quase unânime no empresariado e continua bem sustentado na esmagadora maioria da imprensa. Daí por que as “crises” vêm, parecem por um instante terminais, e logo viram poeira. Ou fumaça. Como foi a mais recente, dos incêndios florestais. Olha o trocadilho.

Há, é claro, mercado para os projetos em torno de um liberalismo bem-educado e cosmopolita, autointitulado progressista, e daí as versões repaginadas do Velho do Restelo, a advertir que tudo vai dar errado. Para esse “bolsonarismo sem Bolsonaro", o país estaria à beira do caos, se já não mergulhado nele. Mas a cada episódio o que leva jeito de tsunami, quando chega à praia de Brasília fica mais com cara de marolinha.

Inclusive por esse cosmopolitismo arejado chocar-se com a linha nacionalista, ainda que fortemente ocidentalista, hegemônica nas Forças Armadas. A polêmica amazônica comprova.

Outro aspecto reforça a resiliência governamental. O partido mais forte capaz de lhe fazer oposição, com ramificações sólidas e profundas nas diversas instâncias de poder, está isolado. O aqui livremente chamado de Partido da Lava Jato (PLJ) mantém musculatura e apoio popular, pode inclusive continuar produzindo fatos político-policiais em série, mas sua capacidade de alterar a correlação de forças operacional está contida por causa do isolamento.

Mais um mérito (ou demérito) da agenda econômica.

O caráter consensual da agenda, mais o amplo espectro dos alvos do PLJ, mais a objeção a que o PLJ provoque uma disrupção (e viva os anglicismos e neologismos) num quadro tão produtivo, tudo induz a um alinhamento raro entre os poderes, pelo menos desde a instalação da hoje carcomida Nova República. O estilo do presidente da República é uma linha de produção de manchetes, mas na vida prática os vetores executivo, legislativo e judiciário produzem boa resultante.

Onde estão os riscos? Principalmente 1) na nova modalidade de enquadramento do Legislativo pelo Executivo e 2) na sede de protagonismo do braço judiciário do PLJ. Se a velocidade da recuperação da economia e dos empregos seguir baixa, quanto tempo o Congresso levará para voltar a exigir o dito loteamento da Esplanada e das estatais? E até onde irão os torquemadas dos tribunais, especialmente nos superiores, para revitalizar o próprio protagonismo, hoje corroído?

No instável presidencialismo brasileiro, onde a pulverização do Congresso é um foco permanente a ameaçar a saúde política do ocupante do Planalto, é sempre bom ficar esperto. Mas por enquanto as coisas para o governo caminham bastante bem nesse terreno.

*

O Tribunal Superior Eleitoral decidiu que candidatura laranja leva à cassação de toda a chapa. Mas como provar que a candidatura é laranja? Fácil, candidatas-laranja não são de verdade, são de mentirinha, nem fazem campanha. Mas, e se alguém decide ser candidata e depois desiste de fazer campanha a partir de um certo ponto, como é que fica? E se a candidata faz uma campanha pra inglês ver, gasta uma graninha, então está tudo bem?

Outra consequência da decisão do TSE: o sujeito entra numa chapa, faz sua campanha direitinho, elege-se. Aí alguém diz que tinha uma (ou um?) laranja na chapa. O sujeito perde o mandato sem ter cometido nenhuma irregularidade, nenhum crime? Talvez o STF tenha, um dia, de verificar se a decisão do TSE não viola algum direito constitucional. Ainda que esteja fora de moda argumentar com Constituição contra o que parece ser “certo” e “justo”.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Que anti vai dar as cartas em 2022? E a falta que faz uma rua para a turma do terceiro turno

A máxima “é a economia, estúpido", universalizada a partir da vitória de Bill Clinton em 1992 contra George Bush Primeiro, deve enfrentar um bom teste ano que vem. Se as previsões de recessão americana não se confirmarem, Donald Trump vai às urnas surfando crescimento sólido e pleno emprego. Restará aos democratas navegar no antitrumpismo, uma convergência de rejeições variadas, com foco comportamental e ambiental. Que bicho vai dar?

E por aqui? Se a economia continuar mal, o bolsonarismo chega a 2022 capenga. E sua melhor aposta seria o antipetismo. Mas é ingênuo imaginar que o bolsonarismo vai assistir passivamente à perenização da mediocridade econômica, e caminhar mugindo para o matadouro eleitoral. Se é verdade que Paulo Guedes resta como o último dos ministros ainda com crachá de super, a esta altura o mundo já percebeu: quem acreditou em carta branca caiu no conto do vigário.

O seguro morreu de velho e, na dúvida, o bolsonarismo e o lavajatismo continuam batendo no PT. Mas o presidente parece ter um olho no peixe e outro no gato, também abre fogo regular contra um nascente antibolsonarismo antipetista que lança raízes na direita, no autodeclarado centrismo, e até numa fatia da esquerda, esta em busca da plástica que remova as rugas de quase duas décadas de governos PT, e lhe permita aparecer como novidade.

Não será fácil vertebrar esse antitudo. Em 2018 naufragou, apesar da torcida. Talvez porque sua melhor aposta fosse o PSDB, ele próprio atingido pela marcha do lavajatismo. Mas convém não subestimar. Agora são vários candidatos "contra os extremismos”, desde o ainda tucano João Doria até a franjinha do PT ansiosa por livrar-se da liderança de Lula. Passando por Luciano Huck e por um Ciro Gomes cada vez mais disposto a bater nos outrora aliados.

Diz a sabedoria política: mais que para eleger alguém, a pessoa sai de casa no dia da eleição para derrotar alguém. Principalmente num segundo turno. Daí a importância de monitorar em tempo real a temperatura dos vários anti. Dois parâmetros são úteis aqui: a taxa de rejeição de cada nome/partido e as simulações de segundo turno. É um erro achar que a distância das eleições diminui a importância dessa medição. É o contrário.

Que anti será hegemônico daqui a três anos? O vacilo na medição dessa variável costuma ser fatal. Ano passado, a campanha de Fernando Haddad parece ter acreditado por um momento que a ida de Bolsonaro ao segundo turno desencadearia a aglutinação de um amplo movimento democrático antibolsonarista. Não rolou. O antipetismo mostrou-se bem mais forte. Pelo menos, Haddad teve um final digno. Não foi o caso do massacrado centrismo antiextremista.

Registre-se que na história do Brasil frentes da esquerda com os liberais só existiram com sucesso quando os primeiros aceitaram a liderança dos segundos. #ficaadica

É corajoso, e curioso, que as mais animadas articulações políticas opositoras apostem exatamente no que deu errado na eleição. Na esquerda, a frente ampla não programática. Na direita e no autonomeado centro, a advertência contra o risco de supostos extremismos. Talvez essa coragem se pague, mas por enquanto é visível a dificuldade de os atores concordarem em qualquer coisa que não seja a vontade de chegar ao poder só surfando na rejeição alheia.

Mas, se isso deu certo para o presidente por que não daria certo contra ele? Aliás, o fato mais vistoso da conjuntura é a agitação dos que apoiaram Bolsonaro contra o PT e agora conspiram a céu aberto para tentar se livrar dele. Exibem músculos na opinião pública, mas falta-lhes rua. Quem poderia fornecer? A esquerda. Mas esta não parece especialmente motivada, ainda, a injetar o combustível político indispensável aos algozes de tão pouco tempo atrás.

Pode ser também a Lava Jato. Daí as piscadelas cada vez mais explícitas, a pretexto de não deixar morrer a luta contra a corrupção. A dificuldade? A relação íntima do bolsonarismo com o lavajatismo. E como Bolsonaro não nasceu ontem, vetou sem medo de ser feliz um monte de coisas na Lei de Abuso de Autoridade. E seu indicado à Procuradoria Geral da República já estendeu o tapete vermelho à turma de Curitiba, lato sensu.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Falta o centrismo dizer o que faria diferente, aí se verá se é mesmo uma alternativa

O que diferencia a centro-direita e a centro-esquerda da direita e da esquerda ditas de raiz? Um caminho é a autocaracterização, aquele autoembelezamento básico do candidato, partido ou coligação para se diferenciar de alguém que rotulou de extremista. Mas não basta se dizer de centro, ou moderado, é preciso explicar qual é a sua, e aí parece residir certa dificuldade dos candidatos a ocupar hoje o meio-termo.

Viu-se isso na eleição. O centro tentou se constituir só falando mal dos outros. Não funcionou.

Centro excludente é uma contradição em termos. Para haver centro-esquerda e/ou centro-direita reais é necessário serem esquerda e/ou direita com disposição para fazer concessões programáticas e de poder ao outro lado. Aqui, Luciano Huck está mais perto de ocupar espaço que João Doria. Este parece na dúvida sobre quanto deve ser parecido ou diferente de um Bolsonaro crescentemente belicoso contra concorrentes do mesmo campo político.

Mas a tentativa de um liberal-progressismo, a nova moda, tem limitações. Cravar que a modernidade é se dizer liberal na economia e mais arejado nos costumes pode até ser uma linha mercadológica, mas vai enfrentar a barreira conhecida: com variações, todas as pesquisas confirmam que a maioria do eleitorado pensa exatamente o contrário, defende o conservadorismo no comportamento e não abre mão de alguma proteção estatal.

Verdade que as coisas estão mudando. A incógnita é quanto. O colapso econômico na reta final dos governos petistas abriu espaço inédito para a defesa das ideias liberais no Brasil. Mas é claro que o troféu só virá se vierem também os resultados. E é cedo para prognosticar. A Argentina está aí para não deixar o analisa se acomodar em prognósticos automáticos. Inclusive agora, depois da folgada vitória do peronismo nas PASO.

Do lado esquerdo, o centrismo clássico é aceitar políticas econômicas ditas de direita e acomodar-se à democracia representativa pura. “Lulinha Paz e Amor” foi o exemplo mais recente. Mas o ambiente agora e o que vem por aí não levam jeito de acomodação, têm viés de conflagração. No cenário polarizado, se for para fazer igual por que o eleitor escolheria hoje a esquerda? Só pelo desconforto com o estilo de Bolsonaro? Não parece suficiente.

Qual seria o dividendo que alguém de esquerda colheria se aceitasse manter a linha Paulo Guedes e a do comando do Banco Central, e continuar tocando agressivamente as privatizações? Complicado. E quantos votos alguém da direita agregaria se propusesse, por exemplo, a soltura de Lula, a volta de algum financiamento sindical e das entidades estudantis, a retomada da reforma agrária? A impressão é não haver clima agora. E dificilmente no futuro.

Os desafios do centrismo ficam mais visíveis quando, à direita, ele se reduz a um bolsonarismo sem Bolsonaro, com pequenos ajustes comportamentais e ambientais. À esquerda, quando a ideia da frente ampla de oposição patina no universo das intenções. Sobre isso, aliás, falta à tese frenteamplista aquela ajuda providencial que os governos militares deram à oposição, ao oferecer o programa e o molde da organização partidária.

Ao preocupar-se com as formalidades e editar atos institucionais e toda uma legislação excepcional para embasar processos e perseguições contra os derrotados em 1964, o regime militar também presenteou os oponentes com um programa imediato: reconstruir a democracia começava por revogar aquela legislação excepcional. A necessidade da Constituinte foi apenas consequência lógica.

Ao dissolver os partidos e impor o bipartidarismo com o AI-2 de 1965, o regime na prática canalizou a resistência política (havia a militar) para o único partido oposicionista legal, o MDB. E estava pronta a receita. A frente ampla organizou-se no MDB e lutava em primeiro lugar pela revogação dos atos institucionais e da legislação de exceção.

Talvez esteja aí o desafio primeiro de quem pretende se opor a Bolsonaro, no campo dele e no outro. Antes de pensar em quem juntar, explicar por que juntar, para fazer o quê, no que exatamente diferente do que vem sendo feito. Falta isso ao autointitulado centro na direita e na esquerda.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Se o duelo Bolsonaro-Macron é um jogo de ganha-ganha, quem são os perdedores?

À medida que a fumaça (sem ironia) da batalha se dissipa, fica claro: a disputa entre Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron leva jeito de ganha-ganha. O francês afagou seus agricultores e lustrou o figurino de líder mundial na luta pela salvação do planeta. Já o brasileiro reagrupou as tropas. O ambientalismo é a corrente política ascendente na Europa. E o apoio das Forças Armadas é um passaporte para a estabilidade do governante no Brasil.

Bolsonaro terminou bem a semana. Além de varrer do noticiário os resmungos internos, sempre em off, pelo tratamento sem deferência dispensado aos militares graduados palacianos, parece ter fechado um acordo de procedimentos com Sergio Moro. E este leva jeito de ter percebido que não lhe convém sair do governo. Deixaria sua tropa exposta a retaliações. E, após as manchetes lácrimo-laudatórias, ou iria para o ostracismo ou viraria coadjuvante de João Doria.

Coadjuvante por coadjuvante, melhor ser do presidente da República.

Do lado de Macron, o protagonismo ambientalista ajuda-o também a receber um olhar mais condescendente nos problemas internos. O chefe do Eliseu foi neste episódio um mestre no manejo do “jornalismo de causas”. Funciona assim: Se você defende uma causa pré-definida como certa, você está certo a priori em qualquer debate relacionado à causa em questão. E não só. Aos amigos, tudo; aos inimigos, nem o manual da redação.

No campo bolsonarista, ganharam muitos pontos os militares, cujos líderes foram os únicos a repudiar expressamente a proposta macroniana de abrir o debate sobre a internacionalização da Amazônia. Já registrei aqui mas não custa repetir. A bandeira “A Amazônia é nossa”, que enfeitou por décadas os ambientes da esquerda, hoje está pendurada como troféu de guerra nas paredes da direita. A raiva é uma péssima conselheira, sempre costuma lembrar o ex-presidente Lula.

Mas, e o risco de isolamento global? No momento é baixo. A força da agropecuária nacional leva França e Irlanda a resistir à invasão do agronegócio brasileiro. Mas para a Alemanha a abertura aqui do mercado de compras públicas e para importar manufaturados é um negócio irresistível. Cada um com seus problemas, deve ter pensado Frau Merkel diante da belicosidade verbal de Monsieur Macron. Ainda que ela também esteja sob pressão dos Verdes.

Bolsonaro move-se em circunstâncias geopolíticas favoráveis. Interessa aos Estados Unidos manter o Brasil sob seu guarda-chuva, pois a alternativa é o deslocamento brasileiro para mais perto da órbita da China. E se Trump perder a eleição? Aí teríamos um replay das tensões entre Jimmy Carter e Ernesto Geisel. Bem, nesse caso sempre restará a carta chinesa para colocar na mesa. Como Geisel manejou a carta alemã. E, afinal, cada dia com sua agonia.

Por falar em carta chinesa, veio da embaixada da China em Brasília o apoio verbal mais musculoso ao Brasil no caso dos incêndios amazônicos. Fica a dica.

*

O presidente disse que vai vetar coisas na Lei de Abuso de Autoridade. Aí caberá a Moro lutar no Congresso Nacional para evitar a derrubada. Vetos são derrubáveis pela maioria absoluta dos deputados (257) e senadores (41). Quanto Bolsonaro vai se meter nisso? Mais provável é que se meta pouco, muito pouco. Já está claro que ele dá um boi para não entrar numa briga com o Legislativo, e dá uma boiada para sair.

*

A economia dá sinais de retomada lenta. Mas os empregos gerados são por enquanto poucos e de baixa qualidade. O que vai pesar mais no povão na hora de avaliar o governo? As coisas estarem melhorando? Ou elas melhorarem pouco e devagar? Façam suas apostas.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Inimigo externo costuma ser útil, mas estimular permanentemente a divisão doméstica cobra um preço quando a ameaça real vem de fora

Jair Bolsonaro foi pego no contrapé por Emmanuel Macron. O francês deu o troco à desfeita sofrida aqui pelo chanceler dele, quando o presidente brasileiro preferiu ir ao barbeiro e cancelou a agenda com o ministro. O ocupante do Eliseu vem oferecendo um show de timing e iniciativa no debate global em torno dos incêndios na Amazônia. O inquilino do Alvorada deve ter percebido que curvas de aprendizagem em posições altas de poder costumam ser doloridas.

O problema de Macron é a falta de meios para impor-se a Bolsonaro no terreno, se não tiver o apoio político e operacional de Donald Trump. Como no judô, o francês conseguiu boa pegada no quimono adversário. Mas faltam-lhe músculos para executar o ippon. E chegamos à situação curiosa: a Doutrina Monroe talvez venha a servir para seu anunciado propósito original, avisar aos europeus que fiquem longe das Américas.

As coisas estão meio desarrumadas nesse assunto, a ponto de uma bandeira histórica da esquerda, “A Amazônia é nossa”, passear agora pelas mãos da direita, enquanto o progressismo parece acreditar que as potências ditas ocidentais querem salvar o planeta. E o General Eduardo Villas Bôas, referência política maior do Exército, recordou com viés positivo a memória do comunista Ho Chi Minh para dizer o que pensa a respeito dos ímpetos coloniais franceses.

É sempre bom ter cautela nestas situações, os laços de solidariedade entre os países do chamado mundo livre costumam prevalecer quando se trata de impor a ordem neocolonial. Que o diga Leopoldo Galtieri, miseravelmente abandonado por Ronald Reagan na Guerra das Malvinas. Ficar mais inteligente com o infortúnio alheio, no caso um infortúnio argentino, também é sinal de sabedoria. E dói muito menos para quem precisa aprender.

Algumas lições já estão disponíveis do episódio. Uma é a exigência de profissionalismo nas relações com outros países. Outra, e muito mais importante: nas Américas e no dito Ocidente persiste uma contradição potencial entre buscar a soberania nacional e alinhar-se ao ocidentalismo radical, hoje na moda. A contradição não é insolúvel, mas precisa ser administrada com cuidado porque a chance de desandar é permanente.

Para complicar, o mundo anda em guerra, por enquanto comercial e de informação, mas não só. A Europa ambiciona estender sua área de influência contra a Rússia mais e mais a leste, os Estados Unidos estimulam o separatismo entre os chineses e fazem tudo pera evitar que o Império do Meio assuma a liderança da economia mundial, inevitável se os herdeiros de Mao continuarem se beneficiando das khruschevistas coexistência e competição pacíficas.

Haja desarrumação.

Bolsonaro precisa então, simultaneamente, 1) continuar amigo de Trump confiando que este vai protegê-lo do apetite europeu/francês, 2) não se afastar tanto assim da China e da Rússia pois ninguém sabe o dia de amanhã, 3) explorar a contradição entre a França, que resiste a precisar importar mais comida brasileira, e a Alemanha, que quer exportar mais máquinas para o Brasil, e 4) administrar a opinião pública interna, intoxicada pela narrativa benevolente pró globalização com face humana.

Talvez a tarefa de aprender a pilotar o avião em pleno voo e com fortes turbulências acabe convencendo o presidente de duas coisas. A primeira: ideologia demais atrapalha. A segunda, e um princípio fundamental da política: nunca seja tão amigo de alguém a ponto de não poder romper com ele, nem tão inimigo que você não possa um dia se aliar. Principalmente quando você não é a força dominante no tabuleiro político, ou militar.

Sempre é tempo de aprender e melhorar. Uma dica: a biografia de Getúlio Vargas do Lira Neto. Especialmente o trecho sobre a Segunda Guerra. Outra dica: os livros do Elio Gaspari sobre a ditadura, especialmente o pedaço das relações de Ernesto Geisel com os americanos. Uma terceira dica: um inimigo externo sempre é útil nas crises, mas estimular permanentemente a divisão doméstica cobra um preço quando a ameaça real vem de fora.

sábado, 17 de agosto de 2019

Só o príncipe pode criar a tempestade perfeita para ele mesmo

Era previsível que as principais turbulências políticas em 2019 viessem dos movimentos do Executivo para retomar o poder moderador, presente no Brasil desde que D. Pedro I deu seu golpe contra a Constituinte de 1823 mas esvaziado no período recente. Escrevi sobre o assunto há exatamente dois anos, em “A calmaria de hoje e a tempestade que vem…". Um motivo estrutural: vacinados pela experiência com a ditadura, os constituintes de 1988 fizeram de tudo para esvaziar o Executivo. Ainda que tenham cedido em aspectos pontuais, por exemplo quando mantiveram o decreto-lei sob o nome de medida provisória.

Assim, a atual Constituição trouxe as bases objetivas para órgãos de Estado dotados de poder de investigação e polícia passarem a operar sem estar subordinados ao governo civil eleito na urna. Mas condições objetivas não bastam para desencadear turbulências políticas, as subjetivas são indispensáveis. E elas amadureceram nos últimos anos, com o enfraquecimento extremo dos ocupantes do Palácio do Planalto. E com o apoio da opinião publica a toda violação de normas legais, desde que para alcançar alvos políticos por meio do combate à corrupção.

A Brasília que Jair Bolsonaro assumiu em janeiro não era uma terra arada à espera da semeadura bolsonarista. É um território ocupado por núcleos de poder anabolizados, musculosos depois de intensa malhação. Afinal, derrubaram uma presidente, prenderam e tornaram inelegível um outro e transformaram o último em pato manco. Em meio aos embates com a Constituinte, o então presidente José Sarney previu que, por múltiplas razões, a nova Constituição tornaria o Brasil ingovernável. O eleito em outubro de 2018 apenas constatou o previsto três décadas antes.

É razoável opor a esse meu raciocínio a objeção de os três últimos presidentes terem sido alvejados por cometerem erros -ou crimes. Mas é razoável também eu objetar que outros praticaram erros e crimes parecidos, sem consequências parecidas. Argumenta-se ainda que a sociedade reduziu a tolerância a malfeitos. Isso fica em xeque quando se nota a elevada complacência de cada segmento social e político específico diante de malfeitos praticados pelos seus líderes e personagens prediletos. A frase “não tenho bandido de estimação” anda órfã, coitada.

Este último aspecto, aliás, faz a política brasileira ficar cada vez mais com cara de faroeste, onde a única lei em vigor é a “quem pode mais chora menos”. E é razoável que nesse bangue-bangue o presidente da República esteja ocupado em se proteger das balas, e em ter o revólver sempre carregado para atirar, metaforicamente falando, óbvio. Vale para Bolsonaro, e valeria para Fernando Haddad ou outro eleito. Atenção: isso independe de você curtir ou não o Bolsonaro, o PT, o Lula, o Sergio Moro, o Deltan Dallagnol ou o The Intercept.

Então todo chefe de governo é um ditador? Não necessariamente, desde que o sistema formal de freios e contrapesos esteja lastreado em normas suficientemente rígidas. Agora nos Estados Unidos, por exemplo, não houve como a investigação sobre o suposto conluio dos russos com Donald Trump na eleição de 2016 acusar o presidente de qualquer coisa. Ali eles ainda não chegaram no nosso patamar, onde procuradores e juízes fazem o que lhes dá na telha desde que o fim justifique o meio. Inclusive com saborosos prêmios pecuniários.

Claro que a política não pode se orientar pela coerência. É humano os defensores da criminalização da homofobia exultarem quando o STF se mete a constituinte, e revoltarem-se quando os ministros se põem a legislar contra as pressões do setor mais à esquerda na sociedade. A mesma coisa vale para o outro lado. Tirar o Coaf do ministério da Justiça antes era inaceitável. Quando o Congresso fez isso teve passeata de protesto. Agora aplaudem que o Coaf vá para o BC. Afinal, é preciso evitar a politização e o uso com objetivos políticos.

É lógico que o presidente da República manobre para controlar ou neutralizar as instituições de Estado que podem vir a trabalhar para manietar ou eventualmente até derrubar o governo. Ainda mais numa conjuntura econômica complicada, quando ameaçam virar fumaça as promessas de um crescimento econômico menos medíocre. E note-se que Bolsonaro costuma reclamar do Congresso, mas nunca bate de frente com ele. Se fizer isso na Lei de Abuso de Autoridade será uma surpresa. Afinal, só quem pode criar a tempestade perfeita para o príncipe é ele mesmo.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

A delícia e a dor de apostar no “anti”. E os números que deveriam acender a luz amarela

1) Eleições em dois turnos oferecem a oportunidade de o eleitor não só eleger alguém, mas principalmente derrotar alguém. Isso vale inclusive para ondas já no primeiro turno, o voto útil antecipado, como se viu na sucessão presidencial. É frequente eleições decidirem-se não no confronto entre amores, mas na guerra entre ódios. E é inevitável que governantes construam a rejeição e o ódio a eles mesmos quando decidem, ou falam, qualquer coisa.

2) Também e principalmente por isso, tão ou mais importante que escolher aliados é escolher adversários. É inteligente preferir um adversário cuja rejeição, real ou potencial, permita ao político atravessar barreiras eleitorais mesmo se o amor que este político provoca não é tão intenso assim. Muitas vezes a solução à mão é apresentar-se como mal menor. Daí a utilidade do antipetismo, do antibolsonarimo e dos antis em geral. E costuma funcionar.

3) Em 2014, por exemplo, Dilma e Aécio escolheram-se como adversários, o que permitiu à candidata do PT reeleger-se mesmo naquele ambiente deteriorado que resultou das manifestações de junho de 2013. O antitucanismo acabou derrotando o antipetismo. Depois, na largada do governo, Dilma cometeu o erro de ensaiar um afastamento do petismo/lulismo, com as consequências conhecidas. Mas isso agora é para os historiadores.

4) Ao cultivar diariamente o antipetismo. Bolsonaro dá um gás no bolsonarismo e, de quebra, escolhe um adversário que lhe parece mais conveniente. Vale igualmente para o PT, quando bate 24x7 no bolsonarismo/lavajatismo, ação agora anabolizada pelas revelações sobre os intestinos da operação curitibana. Na guerra de narrativas, o petismo está retomando algum fôlego. Mas não convém subestimar a LavaJato e suas conexões, como se viu nos últimos dias.

5) Qual é o problema do governo, então? É que governar só com os fiéis, e tocando gasolina na polarização, é perigoso quando faltam resultados no bem-estar. O que confere imunidade a qualquer governo, descontada a repressão política, é as pessoas acharem que a vida está melhorando ou vai melhorar. E neste quesito os últimos números deveriam acender a luz amarela no Palácio do Planalto. Pois a falta de resultados vem alimentando o antibolsonarismo.

6) A pesquisa XP/Ipespe divulgada esta semana diz que o ruim/péssimo do governo bateu em 38%, cresceu 21 pontos desde fevereiro. O bom/ótimo caiu menos, sete pontos, de 40% para 33%. O bolsonarismo mostra alguma resiliência no cenário de falta de resultados para entregar. Mas há um deslocamento para o polo negativo entre quem antes avaliava o governo como regular, ou dizia não ter opinião, ou não queria responder.

7) O levantamento também mostrou alguma deterioração quanto ao que se espera do futuro. A expectativa de um governo Bolsonaro ótimo ou bom recuou 19 pontos, de 63% para 44% desde janeiro. E a visão de um futuro ruim ou péssimo cresceu 16 pontos, de 15% para 31%. A maioria simples continua otimista, mas a curva é clara e o otimismo perdeu a maioria absoluta. Se a fotografia não é ruim, o filme, mantida a tendência, não faz antever um final tão feliz assim.

8) E é revelador que a certa deterioração de expectativas sociais venha exatamente quando o Congresso engrena bem a marcha das reformas econômicas liberais. Resta saber se aumentou o otimismo e a vontade de investir dos investidores, o que poderá ser verificado nos números da economia. Mas no povão não é fulgurante o entusiasmo com o deslanchar das mexidas econômicas propostas pelo governo.

*

9) O governo diz que vai apresentar uma PEC para implantar o sistema de capitalização na previdência. Tem uma arma poderosa para pressionar os parlamentares. Ou aprovam, ou não recebem os recursos de emendas prometidos para suas bases quando aceitaram votar a reforma da previdência. Se vai funcionar, vamos esperar para ver.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A resistência a Bolsonaro está destreinada para o reset ideológico que ele propõe

Todo início de governo forte (FHC 1995, Lula 2003, Bolsonaro 2019) apresenta dificuldades redobradas para a oposição. Governos novos e fortes no Brasil tendem a conseguir rapidamente maioria esmagadora no parlamento. Desde que saibam - e possam - usar os mecanismos tradicionais de cooptação. Aqui as maiorias não se consolidam na eleição, mas nos primeiros meses de atividade no Congresso. Governo que faz a leitura certa do jogo não tem problemas.

Ficar por aí falando mal da oposição de agora, por exemplo por vir sendo largamente derrotada na reforma da previdência, embute uma dose de oportunismo político. Não que oportunismos sejam proibidos na política, mas fica aqui o registro necessário. O andamento da previdência até que vem sendo razoável, graças também ao desejo do presidente da Câmara de mostrar alguma autonomia. E no Legislativo a oposição vem mostrando flexibilidade tática, com resultados.

O problema da oposição não está no parlamento, onde o chamado centrão oferece margem de manobra pontual ao antigovernismo. Está num terreno antes dominado pela esquerda e pela "social-democracia" à brasileira nos últimos pelo menos quarenta anos, se não mais. A luta ideológica, a guerra entre narrativas, a batalha das ideias, a disputa pela visão de futuro. Que necessariamente depende de como se vê o passado. Bolsonaro propõe um reset nisso aí.

Ao longo das últimas quatro décadas o debate político-ideológico estava organizado mais ou menos assim. O golpe de 1964 tinha sido ruim, por suprimir a democracia. As diretas já e Tancredo-Sarney, bem como a Constituinte, foram bons, por fazer retornar a democracia. Os militares não darem palpite na política era bom. Bons também eram os movimentos sociais e as organizações da chamada “sociedade civil”, por injetarem participação social no poder.

O colapso dessa narrativa se revelou finalmente e pôde ser medido em números quando fracassou em grande estilo a política petista de "frente ampla democrática” no segundo turno presidencial. Se não tivesse sido abandonada na reta final da campanha, provavelmente Jair Bolsonaro teria colocado não dez, mas uns vinte pontos de vantagem sobre Fernando Haddad. Era o que diziam as boas pesquisas quinze dias antes da decisão.

Esse colapso tem raízes objetivas, incluído aí o desaparecimento do que em tempos imemoriais se chamou "burguesia nacional”. Um segmento terminado de finalizar pela LavaJato. E subjetivas, incluído o pânico instalado nos mecanismos de reprodução social ideológica pela possibilidade de perenização do PT no poder. Bolsonaro sintetiza de um jeito algo primitivo, quando diz “ter salvo o Brasil do comunismo”. No fundo, o antibolsonarismo de salão concorda.

A recente artilharia verbal do presidente acabou por confirmar o viés lisérgico das análises que supuseram ele ter se enfraquecido com a vitória esmagadora da previdência na Câmara. Ultrapassada a primeira cancela das dúvidas sobre a principal medida econômica, Bolsonaro voltou-se para o objetivo principal: a instalação ou reinstalação da hegemonia operacional sobre o aparelho de Estado, e da hegemonia político-cultural. Que precisam sempre andar juntas.

A artilharia verbal do presidente abre caminho para o avanço da infantaria na máquina estatal e para o acirramento das batalhas na nova “rua”: as redes sociais. Enfrenta, claro, a resistência crescente de ex-parceiros institucionais e sociais que agora percebem não haver lugar para eles no assim chamado projeto. É uma resistência prevista. Mas o combustível bolsonarista também é bom: a rejeição absoluta ao passado recente.

Na ofensiva ideológica do bolsonarismo, esse passado produziu apenas estagnação e recessão econômicas, não reduziu significativamente a desigualdade, disseminou e entranhou a corrupção e colocou em risco a liberdade individual. A resistência, ao evocar a apenas a velha política da Nova República, e a Constituição de 1988, realimenta o discurso de que Bolsonaro é o “novo" que veio dar um jeito nas degraças produzidas pelo cada vez mais distante ancien régime.

Até porque a narrativa bolsonarista trata de alguns problemas reais. E enquanto seu discurso for recebido como simples enfileirar de bizarrices ele não enfrentará resistência digna do nome.

sábado, 27 de julho de 2019

Como saber quem está mais perto de ganhar a guerra entre a LavaJato e a VazaJato

A propaganda e a guerra psicológica têm seu papel nos conflitos, mas só podem ser declaradas decisivas quando um lado decide capitular apesar de ainda ter recursos suficientes para virar o jogo. Outro jeito de ganhar guerras é eliminar o inimigo. Outro desfecho é o armistício sem capitulação. A Alemanha perdeu a Primeira Guerra Mundial do primeiro jeito, e a Segunda do segundo. A Guerra da Coreia terminou do terceiro jeito.

Ganhar ou perder depende também, e muito, do objetivo proposto. Se a meta é eliminar o inimigo mas ao final ele foi apenas contido, fica aquele gostinho ruim. Tipo a Guerra do Golfo contra Saddam Hussein. Também por isso, ninguém deveria começar uma guerra sem ter ideia de como acabar a dita cuja. Às vezes dá zebra. Só olhar as invasões inglesa, soviética e americana no Afeganistão. Errar a conta do custo de ganhar uma guerra é sempre complicado.

A leitura das manchetes e #hashtags na disputa da LavaJato contra a VazaJato é divertida de ver, pois diz algo sobre quem ganha e quem perde cada batalha, mas infelizmente diz quase nada sobre quem vai ganhar a guerra. O que é preciso olhar? O objetivo de cada um, e que lado tem mais recursos, ou recursos suficientes, para atingir o objetivo proposto. Na Segunda Guerra morreram na Europa duas vezes mais militares soviéticos do que alemães. E todo mundo sabe quem ganhou no fim. #FicaaDica.

A LavaJato vinha em vantagem havia cinco anos, principalmente por causa da superioridade esmagadora em recursos. Um essencial, como a operação sempre fez questão de enfatizar, era a aliança com a imprensa. Com o controle quase absoluto dos instrumentos policiais e judiciais, a LavaJato vinha voando este tempo todo em céu de brigadeiro, navegando em mar de almirante. Mas a realidade mudou.

A LavaJato foi arrastada agora a uma guerra de atrito contra uma tropa irregular aliada a parte dos antigos aliados da LavaJato na imprensa. O que a LavaJato precisa para declarar vitória? Interromper as revelações da VazaJato e impedir eventuais efeitos judiciais. Esta segunda coisa ainda está à mão. Já a primeira, não. E do que a VazaJato precisa? Apenas sobreviver. Isso está totalmente ao alcance dela, também por a disputa envolver a liberdade de imprensa.

A linha de “caça ao hacker” faz sentido para a construção de uma narrativa, mas não mata a VazaJato. Até agora, ao contrário, apenas reforçou a autenticidade das revelações. Mesmo que as autoridades consigam levar os hackeadores a admitir algum ilícito em associação com Glenn Greenwald, isso não implicará os demais jornalistas do TheInterceptBR ou o próprio veículo, uma pessoa jurídica, em qualquer crime.

Mesmo que as autoridades conseguissem fechar o TheIntercepBR, isso não impediria os demais veículos parceiros de continuar publicando reportagens a partir do vasto material. E se a Justiça brasileira decretasse, numa hipótese hoje alucinada, a censura, a coisa poderia continuar a ser divulgada a partir do exterior. Aí a proibição teria de partir, por exemplo, do governo ou da Justiça nos Estados Unidos. Mas ali a liberdade de imprensa é ainda mais protegida do que aqui.

Onde está a brecha das defesas até agora erguidas pela LavaJato contra a VazaJato? Para matar a divulgação, a LavaJato precisa atacar e derrotar seu principal aliado dos últimos cinco anos e meio: a imprensa. E se é verdade que a imprensa gosta da LavaJato, é natural que goste ainda mais de preservar seu próprio poder. Pois ninguém sabe o dia de amanhã. Por isso a imprensa está dividida. E também por isso o objetivo da LavaJato na guerra contra a VazaJato é tão difícil de alcançar.

Claro que há sempre a hipótese de a LavaJato recooptar toda a imprensa. Mas esse haraquiri do jornalismo ainda não está no radar.

E um detalhe: se a VazaJato é uma ameaça para Sergio Moro, Deltan Dallagnol e outros menos visíveis, não chega a ser um problema relevante para Jair Bolsonaro ou Paulo Guedes. E à medida que os personagens principais vão se enrolando, as instituições a que pertencem são estimuladas a ir se distanciando, mesmo que esse distanciamento seja disfarçado por grandiloquentes declarações de apoio e solidariedade.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

A equação bolsonarista supõe ser impossível, ou no mínimo improvável, a união dos demais. E ele não está tão errado assim na suposição

Já está explícito que o objetivo do presidente Jair Bolsonaro é a reeleição. Dois obstáculos têm potencial para bloquear esse desfecho. Um importante é a economia. O projeto continuísta vai sofrer se o crescimento e o emprego não trouxerem novidades boas em dose suficiente. Mas, como mostra a Argentina, até um governo muito aquém na economia pode ser eleitoralmente competitivo, basta tornar impossível a união dos demais.

Há alguma idealização sobre a frente ampla que, no final, promoveu a transição dos governos militares para a Nova República em 1984-85. Histórias oficiais têm um componente de embelezamento artificial. Quem olha as fotos das Diretas Já pode achar que aquela turma esteve sempre unida contra o regime de 1964. Belo engano. Boa parte deles ajudaram a derrubar João Goulart, e só foram passando à oposição por falta de espaço no lado vencedor.

E o processo levou vinte anos.

Quando o PT foi ao segundo turno no ano passado, parte da campanha petista acreditou ser quase natural retomar, agora contra Bolsonaro, aquela frente ampla de trinta e tantos anos antes. O investimento de tempo e energia teve retorno paupérrimo. Pois aderir à frente pró-Fernando Haddad implicava manter o PT no poder. Diante do custo, a esmagadora maioria das supostas forças democráticas preferiu a eleição de um entusiasta do regime militar.

É um erro primário olhar essas coisas pela lente da emoção e dos juízos morais. É só política.

Onde estão os maiores riscos políticos de Bolsonaro? Um é a possibilidade de o autonomeado centro liberal preferir a volta do PT à continuidade do bolsonarismo. A probabilidade de isso acontecer em prazo curto é a mesma que havia de vingar a Frente Ampla de Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart quando ficou claro o desejo continuísta dos vencedores de março/abril de 1964. Probabilidade perto de zero.

Outro risco é a direita dita de centro, pulverizada nas urnas, recolher o apoio da esquerda, especialmente do PT, por uma alternativa de viés econômico bolsonarista atenuado e sem Bolsonaro. E com algumas concessões à pauta multicultural, identitária e ambiental. Não está no horizonte, pois implicaria concessões econômicas e políticas à esquerda, e o primeiro político dito de centro que as propusesse seria, na metáfora, guilhotinado em praça pública pela base.

Mas a esquerda poderia eventualmente apoiar um bolsonarismo sem Bolsonaro em troca de alívios pontuais, desde que estivesse totalmente esmagada no canto do ringue. Por enquanto não é o caso. Diferente do pós-64, a esquerda mantém poder nos estados e municípios. E o movimento sindical e popular de esquerda foi lipoaspirado mas preserva o esqueleto, e espaços bem razoáveis na esfera dos debates públicos.

E a Lava-Jato parece ter deixado para trás seu momento de glória consensual.

Ou seja, mantido o estado das variáveis, mais provável é continuar a polarização nacional entre o bolsonarismo e a esquerda, com vagidos centristas aqui e ali. Pois conter o aparecimento de um competitivo direitismo maquiado de centrismo, e sem Bolsonaro, interessa a ambos. E o melhor caminho para tanto é um continuar escolhendo o outro como adversário principal. E esperar para decidir no mano a mano em 2022. Ou em 2026. Ou...

Esse é o racional da coisa. Mas nem sempre as decisões na política são racionais. E erros acontecem. Especialmente quando o poder opera no limite da radicalização, o que parece o caso. E, como frequentemente lembramos aqui, a coisa mais difícil de prever, e portando de se preparar para quando vier, é o imprevisível.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Um balanço inicial da votação da reforma da previdência. Por enquanto Bolsonaro é o maior vencedor

1. A folgada maioria a favor da reforma foi construída com a liberação maciça de verba orçamentária para os deputados, em escala inédita. Outro empurrãozinho foi o início da ocupação de cargos de segundo escalão por indicação de parlamentares. Quem aciona essas chaves é o Executivo, por ordem direta do presidente. Os congressistas sabem que dependem dele para os empenhos virarem pagamentos, e para o D.O. trazer e manter o combinado.

2. Ao entoarem “Rodrigo, Rodrigo” os deputados não estavam saudando o presidente da Câmara apenas pelo resultado. Saudavam Rodrigo Maia pelo sucesso na operação política de arrancar do Planalto o máximo possível de concessões em troca de aprovar a chamada nova previdência, algo que teriam de entregar à opinião pública por bem ou por mal. Não estavam louvando uma alternativa a Bolsonaro, mas alguém capaz de negociar com ele.

3. O que consolida o apoio congressual ao Planalto é a operação política clássica. Ao contratar uma base com folga nesta votação, Bolsonaro contrata também para as próximas, pois deverão continuar votando com o governo para os empenhos orçamentários virarem pagamentos, e os nomeados continuarem na cadeira. E a maioria ampla alcançada diminui o poder de barganha de parlamentares isolados, ou de pequenos grupos e legendas.

3. Bolsonaro cruzou a primeira cancela com desgaste social perto de zero na sua base. Neutralizou a massa das Forças Armadas, ao acoplar um generoso plano de carreira no projeto sobre pagamentos aos reservistas. Assim, a participação resultante dos militares no sacrifício coletivo, por enquanto, gira em torno de zero. E a comunidade da segurança pode não ter ficado 100% feliz, mas sabe que Bolsonaro agiu para agradar a turma.

4. Este governo promoveu a maior execução orçamentária vinculada a votações no Congresso. 20 milhões de reais anuais por deputado, e 40 por líder. Juntando com o Senado, e arredondando, dá em torno de 10 bilhões em ordem de grandeza. Em quatro anos, uns 40 bilhões. E o presidente atravessou a pinguela ouvindo apenas alguns resmungos na imprensa, pois a operação política do orçamento sustenta uma agenda com amplo apoio jornalístico.

(Qual é a mesmo a diferença entre articulação política e fisiologismo? Fisiologismo é quando o governo faz articulação para aprovar o que eu não quero. Articulação é quando o governo faz fisiologismo para aprovar o que eu quero)

5. O ministro da Economia errou a mão e saiu politicamente desgastado mesmo com o avanço da agenda dele. Nada que não possa ser revertido, ou com a reinclusão da capitalização no Senado, ou, principalmente, com a entrega de resultados no PIB e do emprego. E Paulo Guedes parece estar se movimentando para isso. Mas ficou para trás o tempo das ilusões de que o presidente seria tutelado pelo seu superministro da Economia.

6. “Ah, mas se o Congresso não entregar a reforma da previdência tão rapidamente quanto o mercado espera?” Bem, neste caso o desgaste será todo do Legislativo, no curto prazo. No médio prazo (passagem de 2019 para 2020), o prejuízo político será distribuído entre os diversos atores. No longo prazo (eleição de 2022), a conta irá mesmo para Jair Bolsonaro, inclusive se o Legislativo comportar-se maravilhosamente bem mas a economia não reagir. Só que o presidente da República tem três anos para cuidar desse teimoso problema.

Que é, a rigor, o único problema real dele. Um problema e tanto.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Previdência é sinal da estabilidade do ornitorrinco. O fim da Era Geisel. E o “supostas”

Era previsível, e foi previsto, que a previdência teria tráfego suave no Congresso. O governo Jair Bolsonaro caminha para liquidar o principal item desta primeira etapa sem precisar ceder espaço político real no Executivo. A promessa formal de execução orçamentária vem sendo suficiente para disciplinar a base potencial. Se o prometido acontecer, serão 10 milhões de reais extras anuais por parlamentar, e 20 milhões para os líderes. Este ano é o empenho, no próximo começa a execução.

Dois fatores adicionam tranquilidade. A opinião pública considera vital a reforma da previdência, e também por isso absorve melhor o que em outra circunstância seria tratado como escândalo de “fisiologismo”. E a maioria esmagadora do Congresso desde sempre orienta-se à direita do centro. Para ela, votar a favor neste caso tem custo político-social aceitável. Uma reforma da previdência custa muito menos para Bolsonaro do que seria para Fernando Haddad.

O governo tem estabilidade porque é um ornitorrinco, aquele animal meio ave e meio mamífero. Controla a base radical com a agenda conservadora nos costumes, a agressividade verbal contra os demais poderes e a exploração da grife Sérgio Moro, o algoz judicial do petismo. E com a retórica antiglobalista. E encanta a direita autonomeada “civilizada”, com a adesão prática ao liberal-globalismo na política econômica, o alinhamento aos Estados Unidos e o acordo Mercosul-UE.

Se PSDB e PT, este nos primórdios, propuseram encerrar a Era (Getúlio) Vargas, o bolsonarismo parece pretender pôr fim a Era (Ernesto) Geisel. Por razões econômicas mas também político-ideológicas. Une o supostamente útil ao certamente agradável. Os economistas prometeram a Bolsonaro que desmontar o Estado vai alavancar o crescimento econômico e portanto produzir empregos. E menos Estado, para o bolsonarismo, é também menos base objetiva para um renascimento socialista.

Geisel era nacionalista, industrialista e, em algum grau, terceiro-mundista. Não podia ser acusado de simpatias à esquerda. Uma prioridade dele foi a eliminação, inclusive física, das cúpulas comunistas, operação executada entre 1974 e 1976. Mas era um governo que enxergava para o Brasil um papel não caudatário, e tomou providências nesse sentido. Uma parte da oposição democrática a ele, inclusive, centrava a crítica na “denúncia" do "sonho de um Brasil-potência".

É exatamente a turma que depois chegou ao poder se propondo a encerrar a Era Vargas. Ligue os pontos. É divertido.

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Uma lógica tão eficaz quanto útil na análise política e jornalística é o reductio ad absurdum. Em vez de supor que as pessoas estão mentindo, ou dissimulando, suponha que elas dizem a verdade. Você conseguirá fazer deduções interessantíssimas.

Os veículos de comunicação que se excluíram da operação #VazaJato tratam sistematicamente o conteúdo das revelações como “supostas mensagens”. Uma hipótese é quererem desqualificar o trabalho alheio. Isso não chegaria a ser incomum no ambiente da imprensa e dos jornalistas.

Mas vamos dar um crédito. Vamos supor que o “supostas" aparece porque esses veículos não estão seguros da autenticidade dos conteúdos revelados inicialmente pelo The Intercept, e depois também pela Folha de S.Paulo e pela Veja. Neste caso, o “supostas" faz muito sentido.

Bem, mas ao longo destes mais de cinco anos a imprensa publicou centenas de vazamentos ilegais da Operação Lava-Jato, e tento mas não lembro nenhuma vez em que usou algo parecido com “supostas”. Então, na minha hipótese benigna, ela tinha 100% de confiança na seriedade das fontes.

Ora, mas só quem podia certificar plenamente a autenticidade de documentos ilegalmente vazados da Lava-Jato era a própria operação. Ou seja, ao usar agora um “supostas" que nunca usou antes a imprensa revela que sua fonte nos vazamentos ilegais da Lava-Jato sempre foi a própria Lava-Jato.

Nossa imprensa deveria ser mais cuidadosa na preservação de suas fontes.