sábado, 29 de julho de 2023

O feitiço do tempo

No país cuja política se desenha como seguidos e incontáveis “dias da marmota” (o filme cult tem três décadas e aqui recebeu o título de “Feitiço do Tempo”), entramos agora naquele segundo período dos governos, quando eles se ocupam de “formar a base”.

Cooptar, com verbas e cargos, parlamentares em número suficiente não apenas para aprovar leis ou emendas constitucionais. Mas também, e talvez principalmente, para blindar o governo de, ou nas, comissões parlamentares de inquérito e para bloquear processos de impeachment.

Todo governo por aqui começa navegando em mar razoavelmente de almirante, contemplando em primeiro lugar os mais fiéis e dedicados e, dali a alguns meses, acorda cercado pelos hunos. E a negociação começa.

Quando os participantes desse jogo recorrente têm sorte,e quando os mecanismos que se enxergam formadores da opinião pública estão contemplados, política e programaticamente, o debate gira em torno do que se chama de “governabilidade”.

Quando não, os jogadores são obrigados a encarar um campo encharcado, às vezes impraticável, sob a chuva de acusações de "fisiologismo", “toma lá dá cá”, e submetidos aos caçadores ferozes de casos de corrupção que, no mais das vezes, lá na frente dão em nada.

O espectro de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo vem ajudando Luiz Inácio Lula da Silva a navegar nessas águas, pois toda negociação política destes dias acaba legitimando-se pela necessidade declarada de isolar o ex-presidente e os dele.

O que tampouco chega a ser novidade, basta recordar que alguns anos atrás a besta-fera eram Lula e o petismo, e eram moídos pela mesma engrenagem. A diferença é que Lula aproveita melhor as circunstâncias e facilita a operação de costura da rede de proteção de seu poder.

Até por ter mais experiência no métier. Lula domina as técnicas de negociação política e, como dito aqui no artigo anterior, aproveita a necessidade de ampliar a base, e supostamente distribuir poder, para concentrar poder.

Um dos mecanismos clássicos de concentração de poder é ter aliados em variedade e quantidade suficiente para não depender de nenhum deles isoladamente.

Dada a estreitíssima diferença de votos no segundo turno, é humano que cada apoiador de Lula ano passado se olhe no espelho e se veja como o elemento decisivo da vitória do petista. E é natural que o presidente tente aplicar o maior deságio possível nessas faturas.

Se o objetivo do político é manter e ampliar poder, e a regra não tem exceção, não será prudente para o mais que provável candidato à reeleição chegar a 2026 totalmente dependente de um ou outro personagem que, do mesmo jeito que cruzou o rio, pode facilmente fazer o caminho de volta.

Daí que Lula busque ampliar a base por aposição, agregando bolsonaristas eleitorais, mas também evite a excessiva e inconveniente, para ele, anabolização dos núcleos internos potencialmente concorrentes. É o que se está vendo nestes dias de feitiço do tempo.

sábado, 22 de julho de 2023

A volta do moderador

Passados quase sete meses de presidência, Luiz Inácio Lula da Silva vai reconcentrando poder no Executivo com um método paradoxal apenas na aparência: essa reconcentração se dá sob a aparência de desconcentração.

O presidente aceita a dança e até oferece espaços para colher fidelidades. E, assim, vai reconstruindo o poder moderador, abolido formalmente com a República, mas informalmente presente ao longo deste quase século e meio de republicanismo.

Poder cujo esvaziamento tem estado na base das crises que chacoalharam o país ao longo da década passada, com a prevalência de elementos centrífugos sobre os centrípetos.

Do que resultou uma multiplicação de centros de mando com boa autonomia em Brasília.

Jair Messias Bolsonaro conseguiu ter sucesso na sedução do Congresso Nacional, numa relação custo-benefício até melhor que a de Lula. Pois bastaram-lhe as emendas parlamentares, enquanto o petista precisa retroceder para a concessão generosa de cargos que evidentemente preferiria manter para os seus.

Mas o indivíduo não faz a história apenas com base em desejos, a realização deles está limitada às circunstâncias.

Bolsonaro hipertrofiou as emendas parlamentares e, no final, o lero-lero em torno de “acabar com o orçamento secreto” não apenas manteve o caráter “secreto” de parte gorda do orçamento, mas também reduziu o poder dos presidentes das Casas, ao aumentar consideravelmente o volume de emendas de execução obrigatória.

Ampliando assim a margem de potencial independência do parlamentar em relação ao presidente da respectiva Casa e ao próprio governo. Ou seja, o preço político de formar uma base aumentou.

Para dificultar um pouco mais, as inclinações ideológicas do governo e do Legislativo opõem-se em algum grau. É menos natural um deputado ou senador de direita apoiar Lula do que era apoiar Bolsonaro. E isso tem um custo.

Daí o presidente ter de retroagir ao modelo pleno da “velha política”. Nessa operação, Lula leva duas vantagens sobre Bolsonaro.

A primeira: o atual ocupante do Planalto, ao contrário do anterior, não está em guerra aberta contra as condições objetivas e a correlação de forças. Vai comendo pelas beiradas ou, como dizia Leonel de Moura Brizola, costeando o alambrado.

A segunda: o discurso udenista que inferniza a vida dos presidentes desde José Sarney anda fora de moda. Os atores e condutores tradicionais desse estilo teatral andam algo recolhidos, por 1) simples simpatia ou adesão ao novo establishment ou 2) não querer ser acusados de enfraquecer a democracia e ajudar o golpismo.

Assim, um período que começou como presidencialismo de coalizão com o Judiciário e em tensão com o Legislativo vai retomando a inércia da Nova República. E em condições até mais favoráveis ao poder, dada a crescente tolerância intelectual e social à restrição de certos direitos e prerrogativas previstos formalmente na Carta que a redemocratização de 1984-85 produziu.

A estabilidade desse azeitamento do arcabouço institucional costumeiro da política brasileira depende de o Executivo entregar resultados perceptíveis ao povão. Lula tem se empenhado em retomar programas de resultado setorial, o que sempre ajuda, mas é preciso prestar atenção aos grandes números.

A inflação vem caindo, mas a atividade começa a mostrar algum sofrimento. As previsões para o PIB melhoram, mas com base quase unicamente no crescimento explosivo do agro. Indústria e serviços, que geram mais emprego, continuam com projeções medíocres.

sábado, 15 de julho de 2023

Nem sempre é a economia

A prevalência da economia sobre as demais variáveis numa eleição cristalizou-se na literatura a partir do “É a economia, estúpido”. Atribui-se a James Carville, na campanha em que seu assessorado e desafiante, William Jefferson Clinton, derrotou o incumbente, George Herbert Walker Bush (pai), na disputa presidencial americana em 1992. É dogma desde então.

E faz mesmo algum sentido, dado que as grandes maiorias movem-se na política por fatores conectados à vida material. Daí as pesquisas eleitorais e de avaliação de governo buscarem sempre saber se o entrevistado está melhorando de vida, tem esperança de melhorar de vida, acha que o país e a economia estão no caminho certo etc.

Mas, se a economia responde pelas tendências mais estruturantes do eleitorado, seria um erro subestimar os fatores subjetivos. São conhecidas as situações em que o incumbente mal avaliado na gestão derrota um desafiante. Caso clássico é a vitória de Mário Covas sobre Paulo Maluf em 1998 na disputa do governo de São Paulo.

Uma campanha anticorrupção extremamente agressiva permitiu ao tucano virar no segundo turno uma corrida que tinha tudo para perder.

Há situações em que o líder se impõe mesmo quando as coisas não vão bem, e por uma razão simples: ele acaba sendo visto como o mais apetrechado para conduzir o barco a um futuro melhor ou então como quem melhor pode liderar o grupo na busca da sobrevivência. Em guerras, é bastante comum.

E no Brasil? A última eleição presidencial foi paradigmática quanto aos aspectos subjetivos. A economia vinha se recuperando ao longo do ano. O desemprego já caía desde meados do ano anterior, e a inflação começou a recuar no final da primeira metade de 2022. Efeitos também da normalização econômica do final da pandemia.

A economia manteve Bolsonaro competitivo na corrida, mas ele acabou perdendo. Por pouco, mas perdeu. E há um quase consenso de que os tais aspectos subjetivos foram decisivos para a derrota dele. Dois em particular: 1) a atitude negativa diante das medidas contra a Covid-19, especialmente o antivacinismo; e 2) o combate ao voto eletrônico.

Bolsonaro ficou dois pontos percentuais atrás de Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente por ter recuado de maneira significativa no Sudeste em relação a quatro anos antes. No Nordeste, no essencial, o PT teve em 2022 o desempenho que tivera em 2018. Uma hipótese bem razoável é os fatores subjetivos terem ajudado essa lipoaspiração “sudestina” de Bolsonaro.

O desempenho da economia concentra as atenções agora quando se trata de prospectar a política para 2026. Mas, num país dividido quase ao meio, talvez seja prudente levar também em conta a luta ideológica, simbólica e de valores. Entendê-la é essencial para medir em algum grau a sensação e a convicção de pertencimento, saber de que tribo alguém sente que faz parte.

Pode não ser o combustível da maioria dos eleitores, mas eventualmente é o motor daquela minoria que, indo para um lado ou outro, decide a eleição.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Inércia cultural e pacificação

As votações da pauta econômica expuseram com nitidez o ambiente de acomodação das forças políticas, com a notável exceção do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores mais incondicionais. Faz algum sentido, pois são o único grupo e o único líder desprovidos de poder formal. Os demais precisam cuidar de seus espaços conectados a obrigações administrativas. A eleição passou, vida que segue, exigindo cuidado especial dos políticos cuja reprodução de poder em 2026 dependerá de mostrar serviço na vida dos governados.

Mas, se a acomodação geral era tendência já detectada, há outro sintoma no ecossistema: o congelamento radical da “nova política”. Na indiferença geral que hoje cerca as pautas antes capazes de desencadear ondas de choque “éticas”, é igualmente notável a naturalização dos mecanismos clássicos de arregimentação de votos no Congresso Nacional. A maciça execução orçamentária e a antevisão de uma reforma ministerial receberam dos mecanismos ditos formadores de opinião pública uma atenção quase técnica.

É outro tempo, em que a inércia cultural vai reabsorvendo e digerindo o que resta de elementos de ruptura herdados do passado recente. Dificilmente haveria um ambiente mais confortável para os parlamentares, que pouco tempo atrás, sempre é bom recordar, preferiam quando em público retirar da roupa o broche funcional, com receio do tratamento que poderiam receber do eleitor. Até por alguns terem de fato sofrido ataques em aviões, restaurantes etc.

Como já previa a literatura, tudo que um dia foi sólido desmanchou no ar.

O que poderia desestabilizar a tendência inercial de o sistema derivar para um equilíbrio estável? A aproximação das eleições gerais em 2026, naturalmente, é o primeiro fator. Mas elas ainda estão muito longe, faltam três anos para as convenções, e antes disso, já no próximo ano, haverá eleições municipais. Período em que os parlamentares ficam ainda mais sensíveis aos poderes atrativos do governo, em função das demandas das bases por recursos capazes de trazer votos e apoios indispensáveis a quem deseja ser competitivo.

Pois são essas bases que darão a palavra final em 2026 sobre quem vai voltar e quem não vai voltar para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal. E, se a taxa de descarte de parlamentares ficar em torno da média histórica - e até no auge do prestígio da “nova política” ela mudou pouco -, um em dois deputados federais não voltarão em 2027. Se brigar de verdade com o governo federal nunca é a primeira escolha de suas excelências, menos ainda na véspera de disputa municipal.

Não se engane o eleitor: em Brasília, bem dizia Ulysses Guimarães, até a raiva é combinada.

O segundo fator é a economia. O teatro parlamentar será capaz de monopolizar a atenção complacente por um tempo, mas os três números a acompanhar estrategicamente são os de sempre: inflação, crescimento e emprego. A primeira está mergulhando, e fica para a política o bate-boca sobre o mérito. No segundo, as previsões vão sendo ajustadas algo para cima. Mas, para blindar-se de eventos desagradáveis nas pesquisas e no Legislativo, o governo precisará mostrar serviço no terceiro índice.

sábado, 1 de julho de 2023

Estados Unidos, Israel, Brasil

A Suprema Corte norte-americana vem escalando decisões contrárias à orientação do governo Joe Biden. Os temas vão das cotas raciais ao perdão de dívidas estudantis. Em Israel, segue firme a sublevação oposicionista contra a tentativa do governo Benjamin Netanyahu de, segundo alguns, reduzir a judicialização da política ou, segundo outros, limitar a independência do Judiciário.

No Brasil, o mais recente movimento de protagonismo judicial foi nesta semana retirarem os direitos eleitorais de um ex-presidente da República.

O leitor atento notará que o traço comum é a flutuação das opiniões conforme as conveniências políticas.

Nos EUA, a Suprema Corte ostenta uma sólida maioria conservadora, consolidada pelo então presidente Donald Trump. O feito está entre os principais legados dele. Naturalmente, enfrenta a resistência, ou até a fúria, do progressismo, revolta que emergiu mais claramente meses atrás a partir de uma decisão sobre o aborto legal.

Ali a esquerda reclama de um fato: a vontade popular expressa nas urnas ser revertida por um colegiado que não expressa mais a correlação de forças na sociedade. Um atentado à democracia, dizem. Biden nega, mas entre os democratas (do Partido Democrata) corre solta a tese de ampliar o número de juízes da Suprema Corte e aproveitar a atual maioria do partido no Senado para esculpir uma corte mais ao paladar progressista.

O leitor atento notará que a eventual manobra espelharia, com precisão, as acusações dos estadunidenses contra quem rotulam de “autocratas” mundo afora, líderes políticos que procuram moldar as instituições, em particular o Judiciário, conforme as próprias conveniências.

Em Israel, a coalizão de centro-esquerda que se opõe a Netanyahu vem tendo grande dificuldade de chegar ao poder pelas urnas. Um governo liberal-progressista nascido da penúltima eleição foi bem breve. A principal aposta da oposição têm sido os múltiplos processos contra o primeiro-ministro por corrupção. Daí a ênfase na luta em torno da, segundo essa oposição, independência do Judiciário.

Aqui o leitor brasileiro, mesmo o não tão atento assim, certamente sentirá alguma semelhança com cenários locais de anos atrás. Dificuldades eleitorais levam a oposição a depositar em acusações de corrupção, manifestações de rua e movimentos judiciais a esperança de remover um líder político duro de derrubar na urna.

Na década passada, depois de perder quatro eleições consecutivas, a oposição brasileira cansou-se e aproveitou as circunstâncias, sempre elas, para depor a presidente da República. Em paralelo, processos judiciais heterodoxos removeram da corrida presidencial um ex-presidente muito popular, que, além do mais, foi mantido preso durante a campanha eleitoral por um único voto de diferença no Supremo Tribunal Federal (6 a 5).

Mas nem tudo ali saiu conforme o plano, pois quem preparou o bolo no impeachment de Dilma Rousseff não comeu o bolo na eleição. Deu zebra.

Quatro anos depois, os múltiplos erros políticos de Jair Bolsonaro e a competente campanha de reabilitação política de Luiz Inácio Lula da Silva somaram-se para reverter a situação. O petista, reabilitado, conseguiu o feito inédito de derrotar na urna um presidente na cadeira.

E a musculosa Justiça entra em campo novamente, com sinal trocado. Os paṕéis invertem-se. Os antes garantistas viram punitivistas, e os antes entusiastas do ativismo judicial levantam-se em defesa do que chamam de “devido processo legal”.

Há certamente exceções nessa dança, e entre elas destacam-se os que antes defendiam a perseguição implacável a Lula, sem medo de quebrar os ovos para fazer a omelete, e agora defendem o mesmo em relação a Bolsonaro. Uma coerência rara, que é preciso registrar.