A explicação difundida sobre as ditas jornadas de junho de 2013 no Brasil era a profunda insatisfação com os serviços públicos. Havia inclusive uma tese de a vida ter melhorado dentro de casa mas continuado ruim fora. Obviamente uma explicação errada. Ou pelo menos gravemente parcial. Pois os serviços públicos continuam do jeitinho que eram e nunca mais se viu nada remotamente parecido com 2013. Teve as mobilizações pelo impeachment, mas já era outra coisa.
Há um esforço intelectual disseminado para encontrar um fio condutor que ligue as rebeliões populares ao redor do planeta, e naturalmente cada um puxa a brasa para sua sardinha particular. Uns culpam o que chamam de neoliberalismo ali, outros a falta de liberdade acolá, outros o déficit de soberania nacional mais adiante. É provável que todas essas explicações estejam algo certas. E também por isso elas têm pouca utilidade para localizar o tal fio condutor.
A erupção de rebeliões populares, como agora no Chile, exige duas premissas: as pessoas comuns não estarem mais dispostas a aceitar as condições materiais e espirituais em que vivem e o sistema não mais deter força suficiente para obrigar as pessoas a continuar aceitando tais condições. E o segundo fator está associado diretamente à queda nas taxas de coesão entre os grupos que detêm o monopólio weberiano da "violência legítima”.
A ubiquidade da transmissão de informações e da conectividade, algo traduzido na expressão genérica “redes sociais”, afetou diretamente a possibilidade de aplicar essa violência. Ela persiste firme em situações, como na Síria, onde o poder consegue bloquear a informação. No Chile não dá. Sebastián Piñera chamar as Forças Armadas teve pouco efeito prático porque a tropa não pode atirar nos manifestantes para matar. O remédio pinochetista está vencido.
Qual seria então o tal fio condutor? Uma boa hipótese é o sentimento de a injustiça ter ultrapassado o limite do aceitável. Verdade que a régua para medir esse “aceitável" é bastante subjetiva, mas paciência. A subjetividade explica por que a rebelião popular pode perfeitamente acontecer, e acontece, mesmo quando as condições materiais objetivas não estão piorando, ou até quando estão melhorando. Um paradoxo que neutraliza as explicações mecanicistas e economicistas.
Esse viés subjetivo explica também a certa imprevisibilidade de acontecimentos como do Chile. Não existe um método quantitativo 100% confiável para medir quando os de baixo não mais estarão dispostos a viver como antes e os de cima não mais poderão obrigá-los a isso. Daí que duas atitudes sejam essenciais no exercício do poder: 1) ficar esperto e 2) não dar sopa pro azar. O primeiro depende de empatia. Já para o segundo contribui bastante a paranoia.
Um dia alguém disse que apenas os paranóicos sobreviverão. Mesmo se for verdade, não é suficiente constatar. É preciso dar consequência à paranoia. Por isso governos investem tanto em sistemas de informação, espionagem e repressão, mas também difundem platitudes do tipo “governarei para todos”, “precisamos unir o país”, “basta de polarização”. São platitudes, mas ajudam a atenuar o sentimento de estar excluído do jogo, e portanto de ser alvo de injustiça.
Outro detalhe: os mesmos atores colocarem o gênio de volta na garrafa pode exigir um nível da tal “violência legítima” acima do disponível em determinada correlação de forças. Também por isso governos caem. Aliás, as chamadas transições pacíficas costumam resultar não tanto de um caráter pacífico inerente aos atores, mas de correlações de força esmagadoras e que levam à situação ideal de vencer sem precisar guerrear. Só que nem sempre é possível.
Para o poder, bom mesmo é não deixar o gênio escapar.
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Bolsonaro precisa escolher um caminho. E tem uma oportunidade. O dito centrão está vestido de noiva esperando ser chamado para o altar
Os principais complicadores potenciais para a presidência de Jair Bolsonaro são três. 1) Uma base congressual apenas programática, 2) a ausência de partido(s) forte(s) para chamar de seu(s) e 3) o ritmo lento de recuperação da economia. Enquanto o povão não se cansa deste terceiro item, dá para ir levando os dois primeiros. Mas a paciência não é eterna.
Falar em crise política no Brasil de Bolsonaro em outubro de 2019 é jornalisticamente sexy, mas talvez algo exagerado. Basta ver as atribulações, por exemplo, de Donald Trump, Boris Johnson, Pedro Sánchez, Lenín Moreno, Sebastian Piñera, Benjamin Netanyahu e Carrie Lam. Shaky governments parece ser o novo normal na era da hiperconectividade e das redes sociais.
Todos esses nomes têm base congressual. Bolsonaro por enquanto não.
Até agora, mesmo sem resultados brilhantes, Bolsonaro vem se sustentando 1) no crédito de confiança do eleitor dele, que numericamente continua com ele, ou pelo menos não está contra. Como mostrou esta semana a pesquisa Veja/FSB. E 2) no fato de o Congresso, majoritariamente pró-mercado, não ter como rejeitar a agenda econômica liberal capitaneada por Paulo Guedes.
Mas a guerra no PSL deveria acender uma luz amarela no Planalto. Presidente sem partido e sem base congressual própria alguma hora acaba sinucado. Pode demorar, mas a conta chega. Enquanto tem um terço de bom/ótimo e meio a meio no aprova/desaprova, dá para manter o stand by. O problema? Não haver nenhuma previsão de retomada brilhante do emprego no curto ou médio prazos.
Esta costuma ser a época em que os políticos estão recolhidos, apenas amolando as facas à espera do momento em que o governante vai perder força e vai depender deles para atravessar o rio cheio de crocodilos. E esta é a hora em que o presidente pode ainda negociar em vantagem com o Congresso. Basta consultar a literatura. Quem fez se deu bem. Quem não...
E o cenário está montado. Há uma avenida aberta. O dito centrão anda com síndrome de abstinência de governo, E agora ele viria algo repaginado, depois de eleito pela imprensa como o salvador das reformas. E afinal o chamado centrão é de direita mesmo. Não à toa Bolsonaro ostenta uma média alta de apoio nas votações congressuais. Seria o casamento da fome e da vontade de comer.
Claro que precisaria ser feito sem macular muito o brand da “nova política”, mas não falta aos próceres do centrão expertise nesse tipo de coisa. Fazer sem parecer que está fazendo. E aliás Bolsonaro foi dessa turma, o dito centrão, durante todo o tempo de deputado federal. Tem muito mais a ver com esse pessoal do que com o jacobinismo do PSL, ainda que os mais jacobinos até ali estejam espremidos.
É preciso reconhecer em Bolsonaro um sujeito de sorte. A pipocada dos Estados Unidos no tema “Brasil na OCDE” abriu uma janela de oportunidade para o presidente fazer o que precisa ser feito: atrair os capitais chineses, especialmente em infraestrutura e tecnologia.
Vamos ver se a viagem à China vai ser um sucesso no estabelecimento de parcerias que ajudem a alavancar nosso desenvolvimento ou se as viseiras ideológicas vão impedir o governo de fazer o que é melhor.
Falar em crise política no Brasil de Bolsonaro em outubro de 2019 é jornalisticamente sexy, mas talvez algo exagerado. Basta ver as atribulações, por exemplo, de Donald Trump, Boris Johnson, Pedro Sánchez, Lenín Moreno, Sebastian Piñera, Benjamin Netanyahu e Carrie Lam. Shaky governments parece ser o novo normal na era da hiperconectividade e das redes sociais.
Todos esses nomes têm base congressual. Bolsonaro por enquanto não.
Até agora, mesmo sem resultados brilhantes, Bolsonaro vem se sustentando 1) no crédito de confiança do eleitor dele, que numericamente continua com ele, ou pelo menos não está contra. Como mostrou esta semana a pesquisa Veja/FSB. E 2) no fato de o Congresso, majoritariamente pró-mercado, não ter como rejeitar a agenda econômica liberal capitaneada por Paulo Guedes.
Mas a guerra no PSL deveria acender uma luz amarela no Planalto. Presidente sem partido e sem base congressual própria alguma hora acaba sinucado. Pode demorar, mas a conta chega. Enquanto tem um terço de bom/ótimo e meio a meio no aprova/desaprova, dá para manter o stand by. O problema? Não haver nenhuma previsão de retomada brilhante do emprego no curto ou médio prazos.
Esta costuma ser a época em que os políticos estão recolhidos, apenas amolando as facas à espera do momento em que o governante vai perder força e vai depender deles para atravessar o rio cheio de crocodilos. E esta é a hora em que o presidente pode ainda negociar em vantagem com o Congresso. Basta consultar a literatura. Quem fez se deu bem. Quem não...
E o cenário está montado. Há uma avenida aberta. O dito centrão anda com síndrome de abstinência de governo, E agora ele viria algo repaginado, depois de eleito pela imprensa como o salvador das reformas. E afinal o chamado centrão é de direita mesmo. Não à toa Bolsonaro ostenta uma média alta de apoio nas votações congressuais. Seria o casamento da fome e da vontade de comer.
Claro que precisaria ser feito sem macular muito o brand da “nova política”, mas não falta aos próceres do centrão expertise nesse tipo de coisa. Fazer sem parecer que está fazendo. E aliás Bolsonaro foi dessa turma, o dito centrão, durante todo o tempo de deputado federal. Tem muito mais a ver com esse pessoal do que com o jacobinismo do PSL, ainda que os mais jacobinos até ali estejam espremidos.
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É preciso reconhecer em Bolsonaro um sujeito de sorte. A pipocada dos Estados Unidos no tema “Brasil na OCDE” abriu uma janela de oportunidade para o presidente fazer o que precisa ser feito: atrair os capitais chineses, especialmente em infraestrutura e tecnologia.
Vamos ver se a viagem à China vai ser um sucesso no estabelecimento de parcerias que ajudem a alavancar nosso desenvolvimento ou se as viseiras ideológicas vão impedir o governo de fazer o que é melhor.
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
A marca da estabilidade
A segunda rodada da pesquisa Veja/FSB confirma uma tendência que se consolida desde abril/maio: a estabilidade dos índices de Jair Bolsonaro. O presidente atravessa as turbulências de opinião pública preservando o capital das urnas do ano passado. Uma proporção semelhante aos eleitores dele no primeiro turno perfila no bom e ótimo, e uma fração parecida com os do segundo turno mantém a esperança de o governo alguma hora entregar a mercadoria.
Bolsonaro beneficia-se também da recente inversão estatística entre os blocos de eleitores que tendem à direita e os que se inclinam à esquerda. Entre Collor e FHC, o primeiro grupo manteve sobre o segundo uma margem na ordem de grandeza de dois dígitos. Lula inverteu esse balanço em 2002, com vantagem, movimento produto da frustração econômica no segundo mandato do tucano, e também da fadiga de material.
Essa inversão propiciou ao PT/esquerda uma gordura eleitoral que, mesmo sendo progressivamente queimada, trouxe a seus candidatos mais vitórias seguidas no mano a mano contra o PSDB nas três sucessões presidenciais seguintes. A balança só voltou a inverter ano passado, quando o tsunami anticorrupção se somou aos péssimos resultados econômicos, que caíram na conta do candidato do PT, apesar de o partido ter deixado o poder em 2016.
A pesquisa publicada nesta edição de Veja mostra que se Lula continua o nome mais competitivo da esquerda, Jair Bolsonaro só é ameaçado quando desafiado por alguém de seu próprio campo político. Esse dado é consistente com a inversão de blocos descrita acima. Outra conclusão: marcas autodeclaradas de centro são competitivas no segundo turno, mas o desafio delas é chegar lá. Como as propostas de “terceira via” puderam notar nas três últimas eleições presidenciais.
Mas os números exibem também que hoje Lula está praticamente ilhado no eleitorado do PT, pois sua vantagem sobre Fernando Haddad nas simulações de segundo turno fica apenas algo acima da margem de erro. O que leva o analista a uma hipótese que jamais poderá ser comprovada, e portanto tampouco refutada: é bastante provável que se Lula estivesse elegível, mesmo assim Bolsonaro seria favorito em 2018 num hipotético segundo turno contra o ex-presidente.
Ou seja, a ideia de que Lula solto seria imbatível serve bem à narrativa de seus apoiadores para travar a luta política contra Bolsonaro e Sergio Moro, mas não necessariamente traduz o cenário eleitoral recente e muito menos o vindouro. O desafio da esquerda é retomar uns 10% do eleitorado, grupo cujo deslocamento à direita deu ao atual presidente os votos necessários para fechar a fatura em 2018. E esse grupo vem mantendo a confiança em Bolsonaro.
As simulações de segundo turno traduzem que a esquerda retém seus apoiadores do ano passado, mas ainda não penetrou no voto bolsonarista. Uma hipótese: o presidente está em início de mandato, e não há mesmo motivo para fazer julgamentos definitivos do que será afinal o governo dele. Outra hipótese: a esquerda está por enquanto apenas repisando nos temas caros ao eleitorado dela, atacando o conservadorismo de Bolsonaro. Ainda não abordou a economia.
Eis o ponto chave. Bolsonaro mantém uma margem boa sobre a esquerda, mas não pode ser considerada confortável. Para evitar um “efeito-Macri”, a cruzada conservadora e a pregação contra o Foro de São Paulo não serão suficientes. Pois os principais concorrentes do presidente e candidato à reeleição são dois nomes não filiados a nenhum partido, e que nem podem concorrer em 2022: a “estagnação econômica” e a “taxa de desemprego”. ====================
Publicado originalmente em www.veja.com.br
Bolsonaro beneficia-se também da recente inversão estatística entre os blocos de eleitores que tendem à direita e os que se inclinam à esquerda. Entre Collor e FHC, o primeiro grupo manteve sobre o segundo uma margem na ordem de grandeza de dois dígitos. Lula inverteu esse balanço em 2002, com vantagem, movimento produto da frustração econômica no segundo mandato do tucano, e também da fadiga de material.
Essa inversão propiciou ao PT/esquerda uma gordura eleitoral que, mesmo sendo progressivamente queimada, trouxe a seus candidatos mais vitórias seguidas no mano a mano contra o PSDB nas três sucessões presidenciais seguintes. A balança só voltou a inverter ano passado, quando o tsunami anticorrupção se somou aos péssimos resultados econômicos, que caíram na conta do candidato do PT, apesar de o partido ter deixado o poder em 2016.
A pesquisa publicada nesta edição de Veja mostra que se Lula continua o nome mais competitivo da esquerda, Jair Bolsonaro só é ameaçado quando desafiado por alguém de seu próprio campo político. Esse dado é consistente com a inversão de blocos descrita acima. Outra conclusão: marcas autodeclaradas de centro são competitivas no segundo turno, mas o desafio delas é chegar lá. Como as propostas de “terceira via” puderam notar nas três últimas eleições presidenciais.
Mas os números exibem também que hoje Lula está praticamente ilhado no eleitorado do PT, pois sua vantagem sobre Fernando Haddad nas simulações de segundo turno fica apenas algo acima da margem de erro. O que leva o analista a uma hipótese que jamais poderá ser comprovada, e portanto tampouco refutada: é bastante provável que se Lula estivesse elegível, mesmo assim Bolsonaro seria favorito em 2018 num hipotético segundo turno contra o ex-presidente.
Ou seja, a ideia de que Lula solto seria imbatível serve bem à narrativa de seus apoiadores para travar a luta política contra Bolsonaro e Sergio Moro, mas não necessariamente traduz o cenário eleitoral recente e muito menos o vindouro. O desafio da esquerda é retomar uns 10% do eleitorado, grupo cujo deslocamento à direita deu ao atual presidente os votos necessários para fechar a fatura em 2018. E esse grupo vem mantendo a confiança em Bolsonaro.
As simulações de segundo turno traduzem que a esquerda retém seus apoiadores do ano passado, mas ainda não penetrou no voto bolsonarista. Uma hipótese: o presidente está em início de mandato, e não há mesmo motivo para fazer julgamentos definitivos do que será afinal o governo dele. Outra hipótese: a esquerda está por enquanto apenas repisando nos temas caros ao eleitorado dela, atacando o conservadorismo de Bolsonaro. Ainda não abordou a economia.
Eis o ponto chave. Bolsonaro mantém uma margem boa sobre a esquerda, mas não pode ser considerada confortável. Para evitar um “efeito-Macri”, a cruzada conservadora e a pregação contra o Foro de São Paulo não serão suficientes. Pois os principais concorrentes do presidente e candidato à reeleição são dois nomes não filiados a nenhum partido, e que nem podem concorrer em 2022: a “estagnação econômica” e a “taxa de desemprego”. ====================
Publicado originalmente em www.veja.com.br
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
Uma ideia para os partidos: mais democracia. E o direito do analista a uma ingenuidade anual
Eis que Jair Bolsonaro está às voltas com o problema costumeiro dos presidentes da República. Para consolidar e ampliar a dominância sobre o cenário político, precisa de um (ou mais de um) partido para chamar de seu, e precisa que este(s) lute(m) por capilaridade nos processos eleitorais.
E tudo começa pela eleição municipal. É nela que se elegem os cabos eleitorais dos deputados federais, sem quem o presidente da República, aí sim, está arriscado a virar rainha da Inglaterra, ou a sofrer coisas ainda piores.
A política brasileira é peculiar. Aqui o sujeito não chega ao poder por ter um partido forte, mas precisa usar o poder para construir um partido forte, sem o que fica ainda mais sujeito a instabilidades, dada a entropia do sistema.
Nenhum presidente eleito desde a democratização contava com, ou conseguiu eleger junto, uma legenda hegemônica, e todos usaram o poder da caneta para alavancar, depois, gente para lhes dar sustentação. Aliás foi, e é, a fonte dos grandes escândalos nacionais.
Administrações partidárias são complicadas sempre, ainda mais com a massa de recursos proporcionada no Brasil pelo financiamento público. É muito poder. Todo mundo depende do proprietário, ou proprietários, de partido.
Proprietários regra geral eternos, pois inexiste na legislação mecanismo que os obrigue a praticar democracia interna. Eis um motivo, talvez o principal, para tantos partidos: a única garantia de quem tem projeto próprio é ser dono de legenda. Assim é a vida de quem faz política no Brasil.
O sintomático na guerra interna do PSL é inexistir qualquer proposta de resolver a disputa no voto. Nos Estados Unidos seria assim. Ali todas as candidaturas são decididas em primárias.
Ali foi possível Barack Obama derrotar no voto Hillary Clinton. Ali foi possível Donald Trump tratorar todo o establishment republicano.
É curioso que apesar de toda a conversa no Brasil sobre reforma política ninguém proponha uma lei que obrigue os partidos a praticar democracia interna. Curioso e compreensível. Essa mudança não virá nem do Executivo nem do Legislativo.
Já que o Judiciário está curtindo legislar, talvez ele pudesse dar um empurrão. E há argumentos. Se os partidos se financiassem apenas com dinheiro privado seria razoável ninguém meter o bedelho no funcionamento. Mas não é o caso, principalmente depois que passaram a receber montanhas de dinheiro público.
O partido só deveria poder lançar candidato nos municípios onde tivesse diretório eleito em convenção com voto direto e secreto. De preferência eletrônico. Comissão provisória não deveria ser suficiente. E todos os candidatos deveriam ser escolhidos em primárias.
É uma maneira simples de resolver imbroglios como este do PSL. Uma ideia simples e ingênua. Analistas políticos também deveriam ter o direito a, digamos, pelo menos uma ingenuidade anual.
O bom de ser considerado "do bem" é poder fazer tudo que faz quem é "do mal", sem entretanto deixar de ser considerado alguém "de bem". Quem duvida deve comparar os vieses da abordagem nas crises venezuelana, equatoriana e de Hong Kong.
E tudo começa pela eleição municipal. É nela que se elegem os cabos eleitorais dos deputados federais, sem quem o presidente da República, aí sim, está arriscado a virar rainha da Inglaterra, ou a sofrer coisas ainda piores.
A política brasileira é peculiar. Aqui o sujeito não chega ao poder por ter um partido forte, mas precisa usar o poder para construir um partido forte, sem o que fica ainda mais sujeito a instabilidades, dada a entropia do sistema.
Nenhum presidente eleito desde a democratização contava com, ou conseguiu eleger junto, uma legenda hegemônica, e todos usaram o poder da caneta para alavancar, depois, gente para lhes dar sustentação. Aliás foi, e é, a fonte dos grandes escândalos nacionais.
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Administrações partidárias são complicadas sempre, ainda mais com a massa de recursos proporcionada no Brasil pelo financiamento público. É muito poder. Todo mundo depende do proprietário, ou proprietários, de partido.
Proprietários regra geral eternos, pois inexiste na legislação mecanismo que os obrigue a praticar democracia interna. Eis um motivo, talvez o principal, para tantos partidos: a única garantia de quem tem projeto próprio é ser dono de legenda. Assim é a vida de quem faz política no Brasil.
O sintomático na guerra interna do PSL é inexistir qualquer proposta de resolver a disputa no voto. Nos Estados Unidos seria assim. Ali todas as candidaturas são decididas em primárias.
Ali foi possível Barack Obama derrotar no voto Hillary Clinton. Ali foi possível Donald Trump tratorar todo o establishment republicano.
É curioso que apesar de toda a conversa no Brasil sobre reforma política ninguém proponha uma lei que obrigue os partidos a praticar democracia interna. Curioso e compreensível. Essa mudança não virá nem do Executivo nem do Legislativo.
Já que o Judiciário está curtindo legislar, talvez ele pudesse dar um empurrão. E há argumentos. Se os partidos se financiassem apenas com dinheiro privado seria razoável ninguém meter o bedelho no funcionamento. Mas não é o caso, principalmente depois que passaram a receber montanhas de dinheiro público.
O partido só deveria poder lançar candidato nos municípios onde tivesse diretório eleito em convenção com voto direto e secreto. De preferência eletrônico. Comissão provisória não deveria ser suficiente. E todos os candidatos deveriam ser escolhidos em primárias.
É uma maneira simples de resolver imbroglios como este do PSL. Uma ideia simples e ingênua. Analistas políticos também deveriam ter o direito a, digamos, pelo menos uma ingenuidade anual.
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O bom de ser considerado "do bem" é poder fazer tudo que faz quem é "do mal", sem entretanto deixar de ser considerado alguém "de bem". Quem duvida deve comparar os vieses da abordagem nas crises venezuelana, equatoriana e de Hong Kong.
sábado, 5 de outubro de 2019
Por que a Lava-Jato era unanimidade e não é mais. E o foco de instabilidade na conjuntura estável. E um pouco de humor
O sucesso da Operação Lava-Jato vinha sendo produto, antes de mais nada, da correlação de forças políticas extremamente favorável. Platitudes como “o povo não aceita mais a corrupção sistêmica”, ou “o eleitor quer virar a página da velha política” servem para brilhareco retórico, mas escondem o essencial. Sergio Moro et al só chegaram onde chegaram por reunir apoio político amplíssimo, inclusive entre potenciais acusados de corrupção e próceres da política tradicional. Inclusive no poder muito bem constituído.
A Lava-Jato na sua primeira etapa (2014-2018) era útil para amplos segmentos do poder, real ou na expectativa de. Servia para quem desejava apear o PT. Mas também para quem, no PT, gostaria de trocar a hegemonia. Servia ao PSDB, mas também para quem ali sonhava com destronar os tucanos ditos de alta plumagem. E servia muito a quem imaginava reforçar seu próprio cacife político ou comercial investindo na luta contra a corrupção. Era muita gente. E foi faca na manteiga.
E veio a ruptura de outubro de 2018. Só que não do jeito desejado pelo establishment que surfara na luta contra a corrupção, contra a política estabelecida e contra o governo do PT, nem sempre nesta ordem. A coalizão do impeachment tinha a hegemonia parlamentar da aliança PMDB-PSDB, coadjuvada pelo dito centrão e lastreada socialmente na elite do Sul-Sudeste. Mas em janeiro de 2019 quem subiu a rampa foi a aliança do bolsonarismo com Olavo de Carvalho e um amplo espectro de militares.
Essa assimetria é o principal foco de instabilidade numa conjuntura bastante estável. Note o leitor como as graves crises anunciadas passam sempre sem deixar rastro. A mais permanente, com episódios recorrentes, é a da “falta de articulação política”. Como se algum governo, qualquer um, conseguisse passar praticamente todo o seu programa econômico no Legislativo sem ter articulação política funcional. No popular, é o #mimimi da turma que ganhou, mas não levou.
Vêm daí também as teses de Jair Bolsonaro precisar “descer do palanque”, “livrar-se dos filhos”, “governar para todos”, “respeitar a autonomia das carreiras de Estado”. Como se o governante cioso de seu próprio pescoço em algum momento devesse deixar de falar aos eleitores dele, trocar os mais fiéis pelos menos fiéis, parar de enfraquecer os adversários, visíveis ou ainda escondidos, e deixar as corporações fazer o que dá na telha em defesa do poder, dos privilégios e dos interesses umbilicais delas.
De volta à Lava-Jato, o principal problema dela é não mais servir ao poder. Talvez a algumas expectativas frustradas de poder, mas não está sendo suficiente. O Poder (com maiúscula) nas três pontas da Praça dos Três Poderes precisa conter a Lava-Jato para conseguir governabilidade. E o pessoal que precisa dessa governabilidade para passar as mexidas legais do programa econômico liberal vitorioso nas urnas enxerga, cada vez mais, a operação como um estorvo. Agora, a ampla coalizão não é mais a favor, é contra.
O principal argumento dos defensores por aqui do impeachment (que lá ainda não é saída) de Donald Trump é que ele se associou a um governo estrangeiro para, a pretexto da necessidade de combater a corrupção, criar dificuldades políticas ao principal adversário dele na disputa pela Casa Branca em 2020.
Pedir coerência na política é amadorismo. Mas pelo menos rir ainda não está proibido. Só rindo mesmo.
A Lava-Jato na sua primeira etapa (2014-2018) era útil para amplos segmentos do poder, real ou na expectativa de. Servia para quem desejava apear o PT. Mas também para quem, no PT, gostaria de trocar a hegemonia. Servia ao PSDB, mas também para quem ali sonhava com destronar os tucanos ditos de alta plumagem. E servia muito a quem imaginava reforçar seu próprio cacife político ou comercial investindo na luta contra a corrupção. Era muita gente. E foi faca na manteiga.
E veio a ruptura de outubro de 2018. Só que não do jeito desejado pelo establishment que surfara na luta contra a corrupção, contra a política estabelecida e contra o governo do PT, nem sempre nesta ordem. A coalizão do impeachment tinha a hegemonia parlamentar da aliança PMDB-PSDB, coadjuvada pelo dito centrão e lastreada socialmente na elite do Sul-Sudeste. Mas em janeiro de 2019 quem subiu a rampa foi a aliança do bolsonarismo com Olavo de Carvalho e um amplo espectro de militares.
Essa assimetria é o principal foco de instabilidade numa conjuntura bastante estável. Note o leitor como as graves crises anunciadas passam sempre sem deixar rastro. A mais permanente, com episódios recorrentes, é a da “falta de articulação política”. Como se algum governo, qualquer um, conseguisse passar praticamente todo o seu programa econômico no Legislativo sem ter articulação política funcional. No popular, é o #mimimi da turma que ganhou, mas não levou.
Vêm daí também as teses de Jair Bolsonaro precisar “descer do palanque”, “livrar-se dos filhos”, “governar para todos”, “respeitar a autonomia das carreiras de Estado”. Como se o governante cioso de seu próprio pescoço em algum momento devesse deixar de falar aos eleitores dele, trocar os mais fiéis pelos menos fiéis, parar de enfraquecer os adversários, visíveis ou ainda escondidos, e deixar as corporações fazer o que dá na telha em defesa do poder, dos privilégios e dos interesses umbilicais delas.
De volta à Lava-Jato, o principal problema dela é não mais servir ao poder. Talvez a algumas expectativas frustradas de poder, mas não está sendo suficiente. O Poder (com maiúscula) nas três pontas da Praça dos Três Poderes precisa conter a Lava-Jato para conseguir governabilidade. E o pessoal que precisa dessa governabilidade para passar as mexidas legais do programa econômico liberal vitorioso nas urnas enxerga, cada vez mais, a operação como um estorvo. Agora, a ampla coalizão não é mais a favor, é contra.
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O principal argumento dos defensores por aqui do impeachment (que lá ainda não é saída) de Donald Trump é que ele se associou a um governo estrangeiro para, a pretexto da necessidade de combater a corrupção, criar dificuldades políticas ao principal adversário dele na disputa pela Casa Branca em 2020.
Pedir coerência na política é amadorismo. Mas pelo menos rir ainda não está proibido. Só rindo mesmo.
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