domingo, 31 de maio de 2020

O novo ator

No nosso ambiente de tensão institucional tem razão quem diz “o jogo ainda não começou”. O que há por enquanto são rugidos de parte a parte. Quando é que o jogo vai começar para valer? Quando -e se- alguém decidir fazer o primeiro lance fora das regras. Dar o primeiro passo.

Aqui o presidente da República está em alguma desvantagem, pois quem define se uma coisa anda dentro ou fora da regra é o Supremo Tribunal Federal. E no momento este virou o principal problema para o ocupante do Planalto.

Na Câmara Jair Bolsonaro parece ter reunido votos suficientes para bloquear um eventual impeachment ou uma igualmente eventual licença para processo por crime comum. A frente legislativa parece no momento controlada.

Na rua, o que há até agora são pequenos grupos, com a novidade de que hoje o outro lado começou a mobilizar-se. Mas para a coisa desandar alguém precisará acender um pavio. A exemplo de Minneapolis.

Atenção mesmo? No Judiciário. No STF e no Tribunal Superior Eleitoral, o novo ator que prepara a entrada no palco.


sábado, 30 de maio de 2020

O que nunca aconteceu

Segundo a mais recente pesquisa Datafolha, a ampla maioria dos entrevistados criticam as negociações do governo com os partidos chamados “de centro”, o dito centrão. Um resultado esperado. 

Para quem não lembra, ou é muito novo, o bombardeio contra alianças políticas baseadas em distribuição de poder (cargos, verbas orçamentárias para as bases) é objeto de demonização desde o governo José Sarney (1985-1990).

Já virou traço cultural.

Apesar de funcionar assim em todo lugar do mundo, desde que existe a política.

De lá para cá reforçaram esse sentimento os diversos escândalos, e de tempos em tempos o governante acredita na conversa bonita de que poderá governar sem base parlamentar.

Quando tem sorte, o iludido governante cai na real e consegue alterar o curso ainda em tempo de salvar-se. Quando não, derrubam-no. O que nunca aconteceu? Os detratores da negociação política explicarem como faz para governar sem maioria parlamentar.

Aliás, é comum os que exigem do governante virar as costas ao Parlamento serem os primeiros a querer derrubá-lo aproveitando ele não ter apoio no Legislativo.

O efeito colateral e o “critério científico”

As medidas de isolamento e afastamento sociais são apontadas desde o começo da ação do SARS-CoV-2 como essenciais para, como se diz, achatar as curvas de infecção e mortes pelo novo coronavírus.

O objetivo desejado, e totalmente legítimo, é evitar o colapso do sistema hospitalar.

Mas o achatamento tem efeito sobre os dois eixos, o horizontal (x) e o vertical (y). Se empurram para baixo o y máximo, jogam para adiante os valores de x onde o y ainda é significativo. O já célebre gráfico abaixo (clique nele para ampliar), um hit desde o começo da pandemia, explica bem:

Outro gráfico, agora obtido a partir de dados colhidos na vida real (clique na imagem para ampliar), mostra que as iniciativas para achatar a curva por aqui talvez tenham mesmo alcançado algum sucesso. Comparado com os países mais em evidência na pandemia, o Brasil parece ter reduzido a inclinação da curva na sua etapa ascendente:

 

A fonte é o hotsite do Financial Times especializado na Covid-19, e as curvas representam a média móvel dos sete dias mais recentes de novas mortes registradas diariamente. O que é, atenção!, diferente de mortes diárias.

Mas todo sucesso tem um preço, um efeito colateral. O nosso é as medidas de isolamento já estarem de língua de fora, perdendo o fôlego, enquanto a curva ainda sobe.

Outro efeito colateral: a bagunça política, sem par no planeta, impediu que a curva achatasse o tanto que podia.

Como o Brasil não é um país nórdico, nem uma Nova Zelândia, não dá para estender indefinidamente o isolamento à espera de a curva começar a descer.

Ou talvez desse, desde que o governo e a opinião pública estivessem verdadeiramente dispostos a sustentar a economia (imprimir dinheiro, fazer dívida) até a curva embicar para baixo.

Tem gente boa que defende fazer assim, mas a hegemonia intelectual está do outro lado. Por isso, vivemos um período de certa loucura, em que se defende simultaneamente 1) o lockdown “até a vitória final” e 2) manter a aversão à expansão ilimitada do gasto público.

O que só seria possível se amplas camadas da população estivessem dispostas a ficar sem ter o que comer à espera de o vírus ser finalmente neutralizado. Improvável.

Então a vida impõe-se. As atividades vão voltando pouco a pouco de modo irrefreado e na prática caótico, enquanto os governantes se escondem atrás de marquetagens disfarçadas de “critério científico” para justificar a volta nestas circunstâncias, só para não admitir que estão sendo atropelados pelos acontecimentos.

Havia opções, claro. Uma era bloquear geograficamente a expansão do vírus desde muito antes de este espalhar. Fechar o país, e no país fechar as cidades e regiões em que aparecessem casos.

Vem dando certo em Hubei, e no resto da China. Mas agora é engenharia de obra feita. Ninguém com poder decisório propôs isso a tempo.

E vamos pagar por esse lapso não apenas em mortes. Pagaremos também em um prolongamento do sofrer econômico. Que é função direta da falta de confiança do público. Confiança que anda em baixa e assim ficará por um bom tempo.

Também porque a descoordenação e os conflitos na política levam o cidadão e a cidadã com um mínimo de bom senso a puxar o freio de mão nas despesas, pessoais e empresariais.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

O buraco

O PIB do primeiro trimestre recuou 1,5% em relação ao anterior. E os diversos isolamentos sociais pelo país só começaram mesmo na segunda quinzena de março. Só pegaram 1/6 do período. Tudo indica portanto que o segundo trimestre fechará pior.

É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão, diz o ditado. Então em vez de praguejar contra o que passou seria o caso de espremer o cérebro para ver como sair da sinuca. E o único caminho racional é fazer do país um destino preferencial de investimento.

Um problema: a turbulência política. Outro problema: um mercado interno que tende a andar de lado, freado pelo alto desemprego, pela retração na renda e, principalmente, pela queda na confiança do consumidor. E bote queda nisso.

Uma coisa boa: a desvalorização do real, reforço e tanto para a competitividade das nossas exportações. Apesar de a economia mundial não estar numa fase exuberante, ao contrário. Mas uma hora isso vai passar. Aliás nossas exportações para a China só crescem.

Talvez as exportações sejam mesmo o jeito de sair do buraco.


O trunfo e a fragilidade

O presidente da República opera a política de um jeito fixo, na ofensiva o tempo todo. Mais ainda agora quando entende que as instituições ensaiam cercá-lo. Para romper a tentativa de cerco ele mira no elo mais fraco, o desgaste delas junto à sociedade. E apoia-se na figura mais preservada da demolição institucional dos anos recentes: as Forças Armadas. Vai dar certo?

Depende também de como será executado. Mas é uma tentativa, sem dúvida.

Ganha a guerra não necessariamente quem tem mais recursos, ganha quem sabe empregá-los com mais eficiência. Algo que funciona é concentrar o fogo no ponto mais débil da linha de defesa adversária. Para um governo e um presidente acossados por subestimar o SARS-CoV-2 é ouro em pó ver introduzida a variável da corrupção nas iniciativas destinadas a enfrentar a pandemia.

Jair Bolsonaro vem acumulando pontos na sacola. Livrou-se do festejado ministro da Saúde e do festejadíssimo ministro da Justiça. O custo de imagem foi baixo. O custo político foi próximo de zero. E decepou uma perna da resistência congressual quando dividiu o dito centrão e atraiu o presidente do Senado. O da Câmara dá sinais de entender a nova situação.

Quem tem o poder só perde a iniciativa por distração ou imperícia. Mas de vez em quando os súditos rompem a barreira do ponto crítico e passam a não mais suportar a dominação, se o custo de enfrentar o poder é menor que o de continuar passivo. As medições de popularidade nem sempre conseguem calcular isso. Muitas vezes o problema cresce silenciosamente. Você só percebe quando é tarde.

Uma coisa que ajuda é olhar sempre para o ponto futuro, para onde caminham as tendências. A favor de quem opera a inércia. Se nada acontecer, acontece o quê? Se ninguém introduzir o fato novo relevante, no final dá em quê?

A inércia está em parte a favor do presidente. Os governadores, alguns disfarçando, organizam a reabertura das atividades econômicas mesmo na subida da Covid-19. Pois não há mais condições políticas de segurar, especialmente na população que ganha menos e na turma que depende das atividades informais. Só quem continua podendo ficar em casa são os de renda garantida.

E os governadores e prefeitos têm um encontro marcado com o calendário eleitoral. Pode até atrasar umas semanas, mas vai acontecer.

Mas a inércia também joga contra. O exercício do poder faz acumular descontentamentos, mágoas, ressentimentos, insatisfações. Em última instância é sempre o governo quem acaba organizando e engrossando a oposição. Acontece novamente agora na Praça dos Três Poderes.

Por enquanto, a dificuldade momentânea de os insatisfeitos juntarem-se todos contra ele ajuda Bolsonaro.

O governo supõe que capturar um punhado de votos congressuais vai ser suficiente para neutralizar o cerco e a tentativa de aniquilamento. Ou que vai conseguir intimidar todos os potenciais inimigos o tempo todo, ou por tempo suficiente. Ou que as barreiras que separam os inimigos entre eles serão para sempre mais fortes que o desejo, de todos e de cada um, de se livrar de Sua Excelência.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.689, de 03 de junho de 2020



quinta-feira, 28 de maio de 2020

Repolarização

O padrão das avaliações presidenciais ao longo do mandato de Jair Bolsonaro desde abril do ano passado tem sido o famoso “um terço, um terço, um terço”. Fatias mais ou menos equivalentes de bom/ótimo, regular e ruim/péssimo. 

Antes de abril de 2019 os positivos prevaleciam, esperado para um presidente recém-eleito.

Mas alguma coisa parece estar se movendo no eleitorado. Não é uma pesquisa que diz, são várias.

A mais recente é o Datafolha (gráfico abaixo). Uma parte não desprezível do regular continua migrando para a avaliação negativa. Se o movimento consolidar, configurará um certo cerco do eleitorado presidencial pelo não presidencial.

Aí então se poderá falar em polarização. Uma nova. Não entre petismo e bolsonarismo, mas entre este e o antibolsonarismo. Ou, pelo menos, com um “não bolsonarismo”.

Seria uma novidade.



quarta-feira, 27 de maio de 2020

Aquecimento

Enquanto as pesquisas mostram uma corrosão progressiva, ainda que lenta, da convicção e da disposição dos brasileiros ao isolamento, segue o aquecimento para o duelo institucional.

O leitor ou leitora perguntará: “como assim aquecimento, a coisa já não está suficientemente quente?”. É uma dúvida razoável. Entretanto, o fato é que ainda não chegamos ao impasse.

Quando, e se, chegarmos você terá a oportunidade de reavaliar a razoabilidade da dúvida. Quando, por exemplo, o Executivo simplesmente não cumprir uma decisão judicial.

Ou quando o Legislativo for empurrado a uma ação contra o Executivo exatamente por este ter cruzado o Rubicão. Se isso vier a acontecer.

O fato é que o inquérito sobre as ditas fake news mais a CPI sobre o mesmo tema levam jeito de somadas provocarem uma reação química capaz de produzir muita luz, e mais calor ainda.

Porque a vocação de ambas é fornecer matéria-prima para o Tribunal Superior Eleitoral, agora com forte presença, digamos, jacobina.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Mistério

A disputa saúde x economia não é exclusividade brasileira. Mas aqui, como previsto, chegamos a uma situação perigosa. Vamos reabrir a economia com os casos e mortes ainda subindo. 

A contabilidade de infectados não é tão crítica, dada a natural subnotificação numa doença em que a esmagadora maioria são assintomáticos ou leves. A de mortes é.

A reabertura quando as mortes estão crescendo parece mesmo um contrassenso, não fosse um detalhe: não há opção para a ampla maioria das firmas, das famílias ou das pessoas. Talvez grandes empresas com o caixa bem abastecido possam queimá-lo por mais tempo. Querer generalizar seria irrealista.

Um mistério: por que depois de mais de dois meses de isolamento social, em maior ou menor grau, nossa curva continua empinada para cima? Uns dirão que é porque não fizemos a coisa direito, e terão sua dose de razão.

Outros poderão argumentar que o achatamento aconteceu, e se reflete no fato de termos retardado a escalada. Tanto que somos um dos últimos a escalar.

A ciência, tão invocada, que explique.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

Aprender com eles

Poucas vezes na nossa história a política exterior teve tanto rebatimento na política interna. Talvez seja sinal de evolução em certo aspecto. Um país mais ligado no que vai pelo mundo. Novas situações, novos desafios. Hora de colocar o interesse nacional no centro do debate?

Tome-se por exemplo a atual disputa entre Estados Unidos e China. Hoje em webinar promovido pela FSB os embaixadores Sérgio Amaral e Marcos Caramuru e a jornalista e acadêmica Claudia Trevisan debateram as implicações da disputa para o mundo e para nós.

Na polêmica sobre alinhamentos, é fato que somos um país das Américas, e assim não é possível subestimar a importância das nossas relações com Washington. E é visível a complementaridade da nossa economia com a chinesa.

Uma característica dos nossos dias é certa desorientação intelectual e ideológica, alguma dificuldade para, efetivamente, colocar o interesse nacional no centro das preocupações. Talvez seja algo que possamos aprender tanto com os americanos quanto com os chineses.

domingo, 24 de maio de 2020

Quem pagará para ver?

Se todo arreganho no nosso sistema político pudesse ser caracterizado como “crise”, estaríamos em crise permanente, e portanto a palavra não serviria mais para nada. Não teria a propriedade de distinguir uma situação.

Então vamos definir assim: instala-se uma crise quando o sistema institucional trava. Ou quando não é mais possível tocar o barco, como se diz, dentro das festejadas lei e ordem.

Quando alguma autoridade, ou grupo, deixa por exemplo de cumprir decisão da Justiça. A não ser que outra voz judiciária mais alta se levante e imponha paz no recinto.

O duelo das últimas horas ainda não é a crise. Talvez seja troca de estampidos de pólvora seca, apelos quase desesperados de parte a parte para, ao contrário, evitar a crise, a verdadeira.

Na epidemia de Covid-19, há palpites de que chegamos ou estamos chegando no ápice. Vamos torcer. De novo, de novo e de novo.

Na política, tirando os manifestos, os abaixo-assinados, as photo-ops, é melhor esperar para conferir quem vai, afinal, pagar para ver.

Ou quem arrastará as fichas sem precisar mostrar cartas.

sábado, 23 de maio de 2020

Duas curvas

Há muitas reportagens sobre o andamento das vacinas, sobre a declividade das curvas de casos e mortes país a país, região a região, sobre o achatamento das mesmas curvas, sobre a taxa de infectados ou imunizados.

Mas, e a correlação, medida cientificamente, entre de um lado a duração e a intensidade do isolamento social e de outro o efeito sobre o andamento da epidemia de Covid-19 ainda está a merecer um olhar mais detalhado.

Abaixo, o gráfico comparativo de mortes diárias (média móvel de sete dias) em dois países, Brasil e Alemanha, plotados a partir dos três primeiros óbitos. A ferramenta está no site do Financial Times.

Fica claro que depois de um certo ponto a curva alemã vem sendo rapidamente declinante e a brasileira continua morro acima.

Se fôssemos um país um pouco mais normal talvez estivéssemos mais ocupados tentando fazer um benchmark. Tentando concluir, cientificamente, por que eles embicaram para baixo e nós continuamos morro acima.

Sem achismos.


Pode dar certo. De vez em quando dá errado

O título é acaciano, eu sei. Mas vamos lá.

A história registra que a tática eleitoral do PT em 2018 acabou dando errado no segundo turno. No primeiro deu certo. Mesmo fortemente fustigado havia anos, o partido levou seu candidato à final presidencial e elegeu boas bancadas legislativas, além de manter razoável cota de governadores, próprios e aliados. O que deu errado, para o PT, foi a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República.

No desenho tático petista, a ida de Bolsonaro à decisão permitiria, até forçaria, a formação de uma frente ampla antibolsonarista, e a onda montante acabaria dando a vitória a Fernando Haddad. A história também registra que essa frente nunca chegou a se formar, pois uma parte dos votos potencialmente frentistas absteve-se, e outra votou mesmo foi no capitão. É a fatia de mercado que até há pouco achava o governo regular mas apostava que acabaria melhor.

Por uma dessas curiosidades históricas, a linha estratégica do bolsonarismo rumo a 2022 é aquela mesma petista, só trocando o sinal. Supõe que basta manter fiel algo em torno de 30% do eleitorado, apostar num replay da polarização do segundo turno de 2018 e levar novamente a taça para casa surfando na onda do antipetismo, ou do antiesquerdismo, ou do anticomunismo. Tem lógica. Como tinha muita lógica a linha petista de 2018.

O que pode dar errado agora? A mesma coisa que deu errado em 2018. Na operação para manter a hegemonia no núcleo mais fiel da base, você acaba produzindo atritos em volume suficiente, acaba isolando-se numa intensidade cujo efeito colateral é dificultar lá na frente o reagrupamento. Cria-se uma situação em que o adversário nem precisa se esforçar muito. Ele acaba fazendo uma colheita de votos quase espontânea.

Talvez o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril não venha a produzir maiores consequências jurídicas. Vamos aguardar. Mas já produziu efeito político. Dificultou um pouco mais aos não bolsonaristas de raiz apresentar o atual presidente como alternativa aceitável. Não chega a ser irreversível, mas o quadro merece atenção. Também porque a ofensiva contra certos importantes personagens institucionais vai pedir destes algum tipo de resposta.

E eles têm tempo para isso. A vingança, sabe-se, é um prato que pode perfeitamente ser comido frio.

Entrementes, à esquerda basta esperar e assistir ao progressivo descolamento entre a direita e o chamado centro. Esta semana o PT e partidos aliados entraram com um pedido de impeachment. Talvez deva ser visto como o cumprimento de um ritual. Aquilo que na política se chama “ocupar o espaço para evitar que outro ocupe”. A esquerda fez o que dela se esperava. Se não der em nada, sempre poderão dizer que fizeram algo.

Mas é visível, até palpável, o pouco entusiasmo na esquerda pela ideia de impeachment. Se Bolsonaro é a instabilidade, o que viria na sequência seria a estabilidade do mesmo projeto.

À esquerda basta agora assistir ao esgarçar da frente adversária, avivando de vez em quando a fogueira que consome as boas relações entre a direita e o dito centro. A reunião ministerial ofereceu matéria-prima abundante para a continuidade do esgarçamento. Que poderá ser potencializado no momento certo por o Brasil caminhar forte na disputa do pódio de mortes pelo SARS-Cov-2.

E tem ainda a economia. Last but not least.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

O fato, a versão e a base

Há o vídeo com a gravação do encontro ministerial de 22 de abril. E sua divulgação desencadeou a guerra de interpretações sobre o que foi dito pelo presidente a propósito da acusação feita pelo ex-ministro da Justiça.

Cada um puxará a brasa para sua respectiva sardinha. Uns vão enxergar na gravação a prova definitiva de que o presidente queria manipular a Polícia Federal para proteger familiares. Outros dirão que não há nada disso. Quem vai decidir?

O Procurador-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal. Mas caso a PGR decida mesmo denunciar o presidente, tudo precisará passar antes pelo Legislativo. Em resumo: quem está diante de uma bela janela de oportunidade são os deputados federais.

Na hora em que a poeira assentar, a faca e o queijo estarão nas mãos de suas excelências da Câmara. E aí virá a hora da verdade: veremos quem terá garrafas para entregar.

Claro que isso pode ser evitado se o PGR mandar o pacote antes ao arquivo. Aí saberemos se a decisão de Bolsonaro de nomear um fora da lista tríplice valeu a pena.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Olhar o longo prazo

As diretrizes sobre o isolamento social baseiam-se em que é preciso retardar o contágio para evitar que um grande número simultâneo de doentes faça colapsar os sistemas hospitalares. Mas isso tem obviamente efeito colateral. Se o contato com o vírus é freado, freiam-se também as percentagens de imunização na coletividade. Elas também crescem mais devagar.

Quando finalmente há a volta, e uma hora ela se impõe, ainda não existe uma quantidade suficiente de portadores de anticorpos capaz de evitar a retomada de um contágio acelerado. E a coletividade passa a depender de medidas outras, mais relacionadas ao afastamento social que ao isolamento. Porque continua sendo necessário retardar o contágio. Pelos mesmos motivos.

É o que se está fazendo, ou deveria, em todo canto: organizar a nova vida sabendo que o vírus continuará por aí e um bom contingente continuará vulnerável ao ataque dele. Por isso, se o debate sobre o curto prazo está bem aquecido, talvez devêssemos dar uma esquentada também nas reflexões sobre o médio e o longo prazos.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sem a outra vacina

Jair Bolsonaro reúne-se com os governadores amanhã. Pelo menos está previsto. O imponderável é uma possibilidade sempre presente no ambiente realista fantástico da política brasileira. Mas vamos partir da premissa de que a reunião vai mesmo acontecer e consistir em algo mais que o previsível bate-boca de adversários com disputa marcada para 2022.

Seria desejável que o Planalto e os estados desenhassem, ao menos em linhas gerais, critérios e mecanismos para a saída organizada do isolamento social. Está na cara que as diversas modalidades de distanciamento vão chegando ao limite. Não deixaram de ser necessárias. Apenas não há mais a suficiente adesão voluntária nem podem ser impostas manu militari.

O presidente e os governadores prestariam um serviço ao país e aos respectivos estados se aceitassem a realidade. Sem colaboração entre os níveis da federação a tendência é aprofundar-se o problema para todos. E, se os números do presidente sofrem mais, os governadores não estão vacinados contra a fúria popular.

Esta é outra vacina ainda não disponível na praça.


terça-feira, 19 de maio de 2020

Primeiro e segundo

O presidente Donald Trump disse que os Estados Unidos estudam suspender os voos do Brasil para os Estados Unidos por causa da escalada aqui da Covid-19. 

A rigor, haveria mais razões ainda para Jair Bolsonaro suspender os voos de lá para cá. Basta comparar as estatísticas macabras. A diferença, parece, é eles estarem já ensaiando a descendente, enquanto nós aqui escalamos com vigor a montanha.

Bem, como os números de lá já mostram há algum tempo, e como os daqui começam a mostrar, ambos os países estão na luta por ouro e prata na tétrica contabilidade planetária das mortes por SARS-CoV-2.

Em valores absolutos, claro. Uma parte disso é por serem muito populosos. Mas não explica tudo. Índia, Rússia e China estão aí para não me deixar mentir.

A subestimação do problema e a descoordenação política interna são boas pistas.

Agora deve começar por aqui mais pesadamente o blame game, que lá já vai à toda, até porque tem eleição presidencial este ano. Mas se você apostar que a ferocidade vai ser semelhante não corre risco de perder dinheiro.


segunda-feira, 18 de maio de 2020

Soft & hard

O presidente da China, Xi Jinping, disse na Assembleia Mundial da Saúde, órgão governativo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que uma eventual vacina chinesa contra o SARS-CoV-2 será um “bem público global”. 

Ou seja, a vacina será, diz Xi, colocada à disposição dos países, mesmo de quem não possa pagar. Veja no link para a Bloomberg.

Bem, se a oferta concretizar-se, quem pretende ganhar um bom dinheiro com a vacina contra a Covid-19 precisa correr para chegar (bem) na frente dos chineses.

E aproveitar a janela de oportunidade.

Tudo isso se um dia houver mesmo uma vacina. A Aids, por exemplo, nunca chegou a ter.

A saúde é o novo e mais agudo palco da disputa geopolítica global. Xi também prometeu compensar, com sobras, o dinheiro que Donald Trump decidiu tirar da OMS.

Nas redes sociais, seria hora de dizer “e que comece o mimimi”.

Outro dia Trump informou que os EUA vão produzir um superfoguete muito mais veloz que qualquer um dos chineses e russos. Como estes reagirão?

São duas corridas. Pelo soft power e pelo hard power.

domingo, 17 de maio de 2020

Testes, comando e controle

Um efeito colateral do achatamento da curva de contágio da Covid-19 tem sido o prolongar da paradeira social e portanto econômica. E a ausência de uma vacina piora o quadro. 

Alguma hora as pessoas vão voltar a circular e interagir, e tudo indica que isso vai acontecer no mundo todo bem antes de atingidos os tais pelo menos 60% de pessoas imunizadas, índice mínimo para o vírus entrar na descendente.

Precisará haver portanto, em cada país, uma estrutura bem azeitada de testagem, comando e controle social para, detectado um caso novo, tomar as medidas de isolamento e monitoramento indispensáveis.

Será uma briga de gato e rato, e tão mais fácil -para o gato- quanto maior a capacidade efetiva de testagem e ação a partir dela. Isso exigirá um Estado com capacidade, abrangência e autoridade.

Como o Brasil está se preparando para enfrentar o desafio prolongado? A rigor, não está. Seremos um dos países mais vulneráveis a nova ondas e repiques do vírus. A alternativa seria o “fique em casa para sempre”. Claro que é inviável.

Situação complicada.


sábado, 16 de maio de 2020

Saindo? Não, entrando

Articulação política é o nome pomposo dado ao ministério, ou à secretaria, que faz a divisão de poder entre os aliados do presidente da República, no que aqui se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão.

Se os nomes das cadeiras federais deixassem de lado eufemismos, deveria chamar-se Ministério, ou Secretaria, da Repartição de Cargos e Verbas Orçamentárias. Sua missão em todos os casos é evitar que o presidente veja formar contra ele uma maioria parlamentar.

A opinião pública não chega a ter posição, digamos, de princípio sobre o assunto. A complacência da opinião pública (não confundir com sociedade ou eleitorado) diante da articulação política depende dos objetivos do governo.

Se estão alinhados a essa opinião pública, o viés pejorativo ou morre ou vegeta ou é repaginado. Como aconteceu nos meses anteriores à reforma da previdência, quando a opinião pública era só lamentos por o presidente não ter uma maioria. E, por isso, colocar em risco a reforma.

A reforma da previdência social nunca esteve realmente em risco, mas isso é outro assunto. O fato: aqueles meses foram ricos em demandas por mais articulação política. Para que a ausência de uma base parlamentar não ameaçasse a agenda do ministro da Economia.

Agora, quando Jair Bolsonaro precisa formar alguma base parlamentar para sobreviver no cargo, e a “nova política” é bananeira que já deu cacho, quem deseja remover o presidente da cadeira desenterra antigas terminologias, sempre úteis em ocasiões assim.

Voltam as acusações de fisiologismo, de toma lá, dá cá. Antigos prontuários policiais que não deram em nada são desenterrados com ar de escândalo.

E pode-se ter certeza: se houver uma substituição presidencial, a mesma opinião pública que hoje se escandaliza amanhã apoiará a divisão de poder. Talvez em nome das reformas, ou de uma interessada união nacional.

Tudo isso é previsível, e chega a ser entediante, mas no Groundhog Day (filme traduzido para o Brasil como Feitiço do Tempo; deveria ser Dia da Marmota) da política nacional não há como escapar das repetições. Não inventaram ainda criatividade que dê conta.

Bolsonaro precisa de maioria parlamentar para enfrentar eventuais pedidos de impeachment, se o presidente da Câmara finalmente ceder às pressões. Ou para barrar a abertura de processos criminais contra ele no Supremo Tribunal Federal.

Só há um caminho para isso. Distribuir poder.

Fernando Collor fez assim com o chamado ministério ético. Deu errado. Itamar Franco abdicou da caneta em favor de Fernando Henrique Cardoso. Deu certo. FHC cedeu ao PMDB quando flagraram a compra de votos para a reeleição. Deu certo.

Lula fez assim quando acossado pelas acusações inauguradas por Roberto Jefferson. Deu certo. Dilma tentou a manobra para escapar do impeachment. Deu errado.

Se vai dar certo ou errado com o atual ocupante da cadeira presidencial, só acompanhando em tempo real. Mas, cuidado: base parlamentar é um troço perigoso. Mais ou menos como o tempo (meteorológico) em certas regiões extremas do planeta. Muda de repente.

Vai depender dos fatos, sempre eles. Para monitorá-los, de vez em quando é útil colocar a política no mudo. Em vez de concentrar-se no que os políticos dizem, prestar atenção no que fazem. Por enquanto, não estão querendo um outro governo.

Preferem entrar neste mesmo.

Já que é guerra...

Como mostra o texto de abertura deste boletim, na Europa o movimento é de volta a alguma normalidade. Apesar das advertências dos especialistas. Preveem-se novas ondas de impacto do SARS-CoV-2, e junto novas pressões por fechamentos.

Mas como as pessoas vão reagir nesse caso? Uma hipótese é o susto causado pelo repique provocar retração social ainda mais intensa. Há outra hipótese, mais realista. É bem possível as pessoas passarem a olhar a Covid-19 como um dado da paisagem e tentarem tocar a vida.

A pandemia traz aqui e ali paralelos com a guerra. Mas o que acontece na guerra? Enquanto os militares (e paramilitares) lutam, a população civil procura sobreviver nas condições possíveis. Em meio aos escombros, sai-se diariamente de casa em busca de comida.

Na guerra contra a Covid-19 as tropas são as da saúde. E o número de baixas é divulgado todo dia. Depois do primeiro impacto psicológico, a massa talvez esteja procurando maneiras de chegar viva quando afinal for assinada a paz (a vacina).

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Sacrifício perdido?

A lógica por trás do isolamento social e dos lockdowns é simples. Ao evitar o contato entre as pessoas você faz cada infectado por SARS-CoV-2 infectar menos de um indivíduo. O tal R<1. Mas tem de ficar um certo tanto abaixo de 1 mesmo, para que quando as atividades reabrirem e o R subir ele continue abaixo de 1.

Nosso problema é que depois de dois meses de isolamentos, afastamentos e ensaios de lockdowns, tudo meia-boca, a sociedade já está cansada dos sacrifícios mas a precariedade da execução das medidas impediu baixarmos esse R o tanto que deveria ter sido baixado para permitir reentrada mais segura numa atmosfera da (quase) normalidade.

Ou seja, estamos arriscados a viver o pior dos mundos. Uma economia ferida por causa das medidas restritivas, mas que no entanto não foram nem de longe suficientes para a vida poder voltar a alguma normalidade sem corrermos o risco de uma segunda onda catastrófica de espalhamento da Covid-19.

Não quero ser pessimista, mas é uma possibilidade.

A empatia ou a caneta?

Resiliência é a propriedade de um corpo voltar à forma original após submetido a uma deformação elástica. Jair Bolsonaro tem isso em bom grau. E se as últimas pesquisas mostram uma parte do "regular" migrando para "ruim/péssimo", o "ótimo/bom" resiste. E continua pelos 30% do total do eleitorado. Mais ou menos o que o presidente teve no primeiro turno em 2018.

Bolsonaro mostrou resiliência no segundo semestre do ano passado. Pouco a pouco seus índices voltaram ao "um terço, um terço, um terço", depois de o presidente sofrer um desgaste pontual por causa da repercussão dos incêndios na Amazônia. Mas o noticiário sobre o tema murchou e os desgarrados acabaram retornando. Como será agora?

Diferente de então, as crises sanitária e econômica do momento não levam jeito de querer murchar num prazo curto. Ou médio. O SARS-Cov-2 está aí para ficar, pelo menos até a vacina e/ou a maioria da população imunizar-se em reação ao vírus. Isto se acharem mesmo uma vacina e/ou o vírus provocar imunização duradoura. Ninguém tem ainda certeza de nada.

Na economia tampouco se vislumbra solução rápida. A volta a níveis próximos da pré-pandemia depende muito da retomada da confiança. Que será também função de como as autoridades lidam com a Covid-19. Se esta não dá sinais de um desfecho rápido, é ingenuidade imaginar empresas voltando a investir e o consumidor correndo para comprar só porque o governo mandou.

Então o país e o próprio governo precisam preparar-se para uma longa travessia. E se as autoridades não estão assim tão empenhadas em dar a real para o povão sobre o futuro, esmeram-se em táticas que tentam transferir a fatura aos adversários. Os governadores tentando colocar a conta das mortes em Bolsonaro e este jogando para eles a conta da depressão econômica.

Por enquanto a popularidade dos governadores está anabolizada e a do presidente sofre. Mas como vai ser quando a Covid-19 virar parte da paisagem e as preocupações com a economia ganharem o palco? Bolsonaro joga com o conceito imortalizado por Cláudio Coutinho, o de “ponto futuro”. Acredita que uma hora as pessoas vão lhe dar razão por não querer a paradeira.

As idas e vindas dos países na saída das quarentenas mostram o problema econômico com mais fôlego que o sanitário. Também porque o tal achatamento da curva de contágio protege o sistema hospitalar do colapso mas prolonga a paralisia econômica e portanto aumenta a destruição de forças produtivas. Um monte de gente vai ficar na chuva.

Quem a turma vai culpar? Dependerá da contabilidade de mortos, desempregados, falidos. De como estará o espírito de quem perdeu entes queridos, perdeu o emprego ou viu a construção empresarial de uma vida ir embora. E dependerá principalmente da percepção popular sobre quanto cada líder político se preocupou em oferecer alguma solução para as perdas.

Nessa corrida, Jair Bolsonaro está em desvantagem pela evidente falta de empatia. Mas tem a vantagem da caneta, de poder fazer dívida e distribuir benefícios com mais liberdade que os governadores.

O que vai prevalecer ao final?

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Publicado originalmente na revista Veja 2.687, de 20 de maio de 2020

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Um dia de Brasil

A disputa hoje foi entre o presidente da República e o governador de São Paulo. Este se coloca como responsável pelo sistema de saúde do estado mas procura jogar a conta das mortes por Covid-19 no colo do adversário. Já o chefe do governo federal, que responde pela economia, faz tudo para espremer o oponente e empurrá-lo contra as cordas pela paradeira.

Entrementes, o presidente da Câmara realiza visita de cortesia ao Planalto, encontra Jair Bolsonaro e dá declarações conciliatórias. Depois de um jornal trazer o artigo do general vice-presidente onde este deixa claro que para ele a bagunça política já deu. Falta combinar com dois russos: o Procurador Geral da República e o decano do STF, que está bravo. Dizem.

Já o governador de Goiás enfrenta resistência dos prefeitos a um possível lockdown, enquanto o de Brasília diz que não vai receber mais pacientes do entorno goiano, e depois muda de ideia. E o rodízio estendido de automóveis imposto pelo prefeito de São Paulo provoca, tudo indica, aglomerações no transporte coletivo. Alguém esqueceu de pensar nisso.

É o Brasil na pandemia.


quarta-feira, 13 de maio de 2020

Haverá “pós-Covid”?

A racionalidade manda projetar cenários e ir ajustando a atitude conforme os fatos, sempre eles, vão construindo a realidade da qual não se pode fugir. Mas o ser humano não vive só de razão, tem também a fé. E uma das formas mais arraigadas desta nos tempos modernos é a fé na ciência.

Dizer que governa com base na ciência virou peça de narrativa política, e quando se misturam política e ciência o aspecto quase religioso é levado ao limite. No caso do SARS-CoV-2 há os que têm fé em quem manda todo mundo ficar em casa, como em Israel, ou em quem diz que não é bem assim, como na Suécia.

Antes de ser acusado de relativismo e mandado para a fogueira, esclareço que acredito no efeito benéfico do achatamento da curva. Dito isso, vale registrar o que lembrou hoje o diretor de emergências da OMS, Michael Ryan: "Pode ser que [o SARS-CoV-2] nunca desapareça, que se torne endêmico, como outros vírus. O HIV não desapareceu”.

Colocar todas as fichas na possibilidade de haver um mundo “puro" pós-Covid talvez seja arriscado.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Ocidente e Oriente

A média móvel e os números absolutos de mortes registradas por Covid-19 escalaram novamente hoje no Brasil. Um ponto de atenção está no Rio de Janeiro, como mostra o gráfico abaixo. Os números são compilados pela FSB Pesquisa com dados do Ministério da Saúde.

Mas o problema é mesmo nacional, pois a expansão das contaminações e falecimentos pela ação do SARS-CoV-2 segue um padrão de múltiplos focos.

Para explicar o que acontece, há estudos para todos os gostos. Uma única certeza: nenhuma medida até agora foi capaz de circunscrever geograficamente o problema e assim facilitar as condições para sua eliminação, ou mitigação radical.

Uns argumentarão que as medidas são inúteis. Outros, que precisam ser radicalizadas.

O fato? Nenhum grande país do Ocidente está conseguindo lidar satisfatoriamente com a expansão da doença. O Oriente está melhor. Os números não mentem.

Aguardam-se os estudos científicos, e não apenas no campo da Saúde stricto sensu. Talvez venha a ser matéria-prima mais útil para as ciências políticas e sociais.


segunda-feira, 11 de maio de 2020

Autoridade e competência

Países notam algum repique da contaminação pelo SARS-CoV-2 quando começam a reabrir as atividades. Inclusive países-exemplo na luta contra a pandemia, como Alemanha e Coreia do Sul. Não chega a ser surpresa. Em meio às polêmicas científicas mundo afora, há um consenso: solução mesmo só com a imunidade, provocada pelo vírus ou pela vacina.

Como a vacina ainda demora, resta a ação viral. E como o isolamento social protege exatamente contra a contaminação, tem um efeito colateral. O contágio coletivo é mais lento, e por isso a imunização coletiva também. E vem o problema: Qual o grau ótimo de achatamento da curva de contágio de modo a não colapsar o sistema de saúde e tampouco matar a economia?

Uma curva achatada demais protege bem o sistema hospitalar, o que é bom. Mas pode ter efeitos trágicos sobre a atividade e o emprego, e portanto sobre a saúde. O que é indesejável. Para controlar o andamento desses dois fatores o ideal aqui seria um Estado central com autoridade e competência. Sofreríamos, mas menos do que vamos sofrer com o nosso desarranjo atual.

O velho Weber e o casuísmo que ameaça vir por aí

Governantes estão sempre prontos a justificar o próprio senso de oportunidade a partir da dita ética consequencial weberiana. Vendem a obsessão com o interesse deles mesmos embalada em preocupação com as consequências de seus atos para os governados.

Não se faz aqui juízo de valor, apenas uma constatação. Aliás, líderes que não se preocupam com a consequência de seus atos para os liderados costumam conduzir ao desastre. Se o próprio Max Weber tivesse vivido um tanto a mais veria a prova viva da precisão do conceito.

Voltando ao Brasil de 2020, políticos ensaiam tentar adiar para 2022 as eleições municipais do próximo outubro, marcadas para renovar as prefeituras e câmaras municipais. O pretexto é a falta de condições para realizá-las atendendo a normas que protejam a saúde do eleitor.

Será?

Convenções podem perfeitamente ser feitas, com vantagem, pelo Zoom, ou outros apps. E as votações dos convencionais, executadas online. E nossas convenções sempre se resumem a atos mecânicos para referendar decisões já tomadas pelos caciques da sigla.

E até em situação normal o grosso da campanha já seria por meios eletrônicos.

E basta impor o distanciamento para a votação presencial acontecer com bastante segurança.

E ir votar traz menos riscos que, por exemplo, ir ao mercado.

A Coreia do Sul acaba de ter eleições. Por que não fazer um benchmark, ver como resolveram o problema ali? Aliás, a pouca disposição para o benchmarking é sintomática da combinação de preguiça e arbitrariedade que parece conduzir nossos governantes nesta crise.

A Constituição brasileira determina rigidamente a duração dos mandatos e até a data das eleições. Teriam portanto de emendá-la. Isso não seria um problema maior para nossos deputados e senadores, em sua quase totalidade eleitos a partir das atuais bases municipais.

Ou seja, os deputados que precisarão renovar seus mandatos em 2022 iriam à luta naquele ano já contando com o apoio de vereadores e prefeitos que os ajudaram em 2018 e estariam devendo a eles os dois anos a mais de mandato recebidos grátis.

Melhor que isso, só dois disso.

Caso o Congresso aprove o casuísmo, a coisa ficaria dependendo do Supremo Tribunal Federal. O STF poderia eventualmente derrubar a decisão por inconstitucional, definindo que a duração dos mandatos é cláusula pétrea da Constituição.

Mesmo entre lideranças no Congresso há a semente da dúvida sobre abrir o precedente. Porque criaria as condições para, algum dia, no futuro, algum presidente da República especular com a extensão do próprio mandato a partir de uma votação no Legislativo.

Sem contar que se abriria também a possibilidade teórica de amputar mandatos.

Ou seja, prorrogar os atuais mandatos municipais seria mais uma pá de terra na colcha de retalhos da Constituição de 1988, a supostamente “cidadã”, tão celebrada quanto emendada e ignorada a pretexto de estar sendo modernizada.

E sempre estará à mão o uso malandro do velho Weber para justificar a coisa toda. Esquecendo que ele também falou em uma “ética da convicção”.

domingo, 10 de maio de 2020

A soberana

As curvas de mortes confirmadas a cada dia pela Covid-19 sobem. Em São Paulo (depois de um respiro), no Rio de Janeiro e no resto do Brasil. Destaco SP e RJ porque parecem os dois principais epicentros da epidemia.

Tudo leva jeito de uma fase ascendente mais íngreme. E isso depois de quase dois meses de isolamento e afastamento sociais. A pressão agora é pelo fechamento total. O problema? Já faz dois meses que está tudo mais ou menos parado.

O que vai acirrar o conflito político federativo. E ele tem uma causa fácil de decifrar. O sistema de saúde é assunto de governadores e prefeitos. Eles sabem que serão cobrados na urna e na rua pela contabilidade de mortes.

Já o presidente da República sabe que será cobrado na rua e na urna pelos números do desemprego e da tragédia econômica.

Aí você entende por que estados e municípios entabulam uma narrativa para jogar os mortos nas costas da União. E por que esta faz de tudo para explicar que os problemas da economia serão culpa de governadores e prefeitos.

É a política. Sempre soberana.


sábado, 9 de maio de 2020

Um "êxodo rural"?

Ontem abordei aqui certa característica comum entre Brasil e Estados Unidos no momento atual da disseminação da Covid-19: a interiorização e a “periferização”. O avanço rápido da doença rumo às cidades menores e aos bairros mais pobres.

Hoje a BBCBrasil e o G1 trouxeram dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que confirmam a tendência. O vírus segue sua rota natural de capilarização.

Apenas países em que o Estado tem autoridade real para impedir deslocamentos populacionais e impor lockdowns radicais conseguem bloquear a marcha batida do vírus. Estados Unidos e Brasil são o contraexemplo.

Principalmente o Brasil, em estado de pré-anomia do Estado. Resta saber como vamos lidar com um efeito imediato: o deslocamento maciço de pessoas para os grandes centros em busca de atendimento médico de alta complexidade indisponível nas pequenas localidades.

Um “êxodo rural de novo tipo” (desconte a figura de retórica) em pleno Brasil do século 21.


sexta-feira, 8 de maio de 2020

Cá como lá

O Financial Times tem uma ótima ferramenta para comparar a curva logarítmica de novos casos/mortes da Covid-19 entre países. Quando configuramos para o Brasil é imediato: estamos no contrafluxo do mundo. Enquanto ele está no platô ou caindo, nós estamos escalando. O gráfico abaixo (média móvel de sete dias) é autoexplicativo.

Os defensores das medidas de isolamento social, das quarentenas e dos lockdowns dirão que é porque estamos abrindo, e desordenadamente, cedo demais. Os detratores dirão que é porque fechamos cedo demais e o de agora viria de qualquer jeito. Ou antes ou quando abríssemos. Como os fatos são teimosos, eles estão aí independentemente das explicações.

Parecemos de algum modo mimetizar os Estados Unidos, país continental como nós. Lá como cá parece acontecer alguma interiorização e “periferização” da Covid-19. E cá como lá não tem trégua a guerra entre governadores partidários de fechar e um governo central que pressiona para colocar a placa de “open for business”.

A única certeza: em ambos os países o preço pela descoordenação política será alto, e pago em vidas.



quinta-feira, 7 de maio de 2020

Na boca do caixa

Havia muito tempo não se falava tanto em “ciência”, mas em alta mesmo está a religião. Não uma dessas comuns por aí, as formais, mas a fé na bolha. Agarra-te a uma crença e ela te servirá de boia para atravessar as ferozes corredeiras das redes sociais, da família, dos amigos.

Onde escasseia a racionalidade não há outra solução. O que seria racional? Alguém dizer: “Tudo vai ter de ficar fechado por cerca de tanto tempo para achatarmos a curva um certo tanto e voltarmos a alguma normalidade no dia tal, com uma margem de erro de tanto”.

Como isso não existe, estamos divididos entre os que têm fé no achatamento da curva e os que têm fé em quem nega a eficácia do achatamento da curva. Entrementes, as pessoas tendem naturalmente a cuidar da própria existência, duplamente ameaçada.

Resta aos governantes administrar a crise, como me disse alguém, “na boca do caixa”. Ir controlando a ocupação das UTIs, que é a rigor a única variável passível de mensuração algo precisa neste caos.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Entropia ou distopia?

A próxima fronteira da entropia brasileira na luta contra o SARS-Cov-2 é a judicialização. Ministério Público e Judiciário sobrepondo-se aos governantes para definir a paralisação ou não (a tendência costumeira é “sim”) das atividades.

O Brasil entrou desorganizado na guerra, está subindo a curva desorganizado, e pelo jeito a pulverização de poder vai estender-se ao longo do platô, quando este vier. E a certamente estará por aqui quando finalmente a curva embicar para baixo, algo ainda fora do radar.

Isso vai cobrar um baita preço.

Não é razoável acreditar que promotores e juízes saibam melhor que os governos quando fechar e quando abrir. Inclusive porque quem executa tudo é, como o nome já diz, o Executivo. Mas admito que essa minha observação tem tudo para cair no vazio.

Cada dia traz novos riscos. Com a judicialização, um risco novo é fechar onde deveria abrir ou abrir onde deveria fechar. Decisões monocráticas de uma autoridade absoluta têm bem mais chance de estar erradas.

E fica a dúvida: é entropia ou distopia?

terça-feira, 5 de maio de 2020

A hora da base

No dia em que as mortes registradas por Covid-19 bateram mais um recorde, o ex-ministro Sergio Moro viu divulgado seu depoimento. Tomou o cuidado de não acusar o presidente de nada na esfera criminal, mas ofereceu elementos para a PF e o MP continuarem o trabalho.

O retrospecto indica que a gravidade das acusações contra qualquer político depende da conjugação entre a acusação em si e a maneira como a comunicação embrulha o peixe para ser oferecido ao distinto público consumidor. E a sensibilidade dos pares.

Aqui, a desvantagem do presidente é ele estar em litígio com boa parte do universo comunicacional. E sua vantagem sobre antecessores derrubados (Collor, Dilma) e assediados (Temer) é contar com um dispositivo próprio, apesar de este andar na mira do STF.

No bottom line, tudo dependerá de como a novíssima e montada às pressas base governista vai absorver o choque do rolo compressor de opinião pública contra o presidente. Dada a ainda precariedade dos laços com as amizades em construção.

A favor, o fato de hoje em dia os políticos darem bem menos bola para a opinião pública.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Olha aí São Paulo

Dia 29 de abril, uma quarta-feira, perguntei aqui: “E São Paulo?”. Porque os registros diários de mortes por Covid-19 no maior estado do país escalavam o Everest.

Pois bem, exatamente desde aquele dia a média móvel dos óbitos diariamente registrados na terra dos paulistas vem caindo. Dia 29 parece ter sido um pico. Está no gráfico abaixo.

Digo “um” pico, e não “o”, porque a curva de casos e falecimentos por aqui no Brasil parece uma caixinha de surpresas. Cautela é mais que necessária. As previsões oscilam da catástrofe total ao otimismo mais radiante. A chance de errar é sempre maior que de acertar.

No jogo da política, se São Paulo entrar mesmo numa descendente sustentada os louros irão para o governador e o prefeito, na guerra particular que travam com o presidente da República.

Mas este poderá dizer que a coisa era bem menos grave do que se previa, que fez bem de alertar para o alarmismo.

Haverá argumentos para ambas as torcidas. E, convenhamos, a missão dos fabricantes de narrativas é bem mais tranquila que a dos heróicos profissionais da saúde.

Força, fraqueza. E o atributo central

Quando Luiz Inácio Lula da Silva estava fustigado pelas ondas da tempestade que passou à história como mensalão, a popularidade dele apenas oscilou. Jamais chegou a ser abandonado pela espinha dorsal do seu eleitorado. O escândalo deu-se em 2005. No começo do ano seguinte, o da reeleição, Lula já ultrapassava os adversários nas pesquisas. Liderança que não mais lhe escapou.

A oposição chegou a namorar o impeachment mas nunca foi em frente. Cautela. Pois todos os levantamentos mostravam ileso o prestígio do presidente junto à tropa dele.

Quando se especula sobre afastamentos presidenciais normalmente mede-se 1) o apoio parlamentar, 2) a economia 3) o "povo na rua" e 4) as pesquisas.

Colocar povo na rua não chega a ser tão complicado. Há exceções, como numa pandemia. Mas mesmo agora na Covid-19 vemos gente disposta a sair de casa para protestar. E talvez “a rua” no pós mantenha um forte componente digital, quem sabe? E se o Brasil é habitado por bem mais de 200 milhões de pessoas colocar até 1 milhão na rua, ou na “rua”, não chega ser decisivo.

Presidentes normalmente entram "à vera" na linha de tiro para serem afastados só quando sua sustentação no povo evapora. O item 4. Foi assim com Fernando Collor e Dilma Rousseff. Estavam já muito vulneráveis quando os adversários colocaram para rodar os exércitos do impeachment. Mas dizer que governantes caem quando perdem apoio é quase uma tautologia.

O que leva líderes a ver evaporar a sustentação? A piora das condições materiais? Também, mas não necessariamente. A popularidade de Vladimir Putin vem resistindo bem às dificuldades econômicas trazidas pelas sanções em represália à reanexação da Crimeia. O ditado “É a economia, estúpido” popularizou-se com Bill Clinton, mas toda unanimidade é burra. Ainda que a afirmação do Nelson Rodrigues tenha uma contradição interna.

O governante consegue resistir bem à tempestade econômica na medida em que os atributos centrais dele estão preservados. Putin mantém-se porque ninguém duvida de que trabalha pela grandeza da Rússia humilhada ao final da Guerra Fria. Lula reelegeu-se, elegeu a sucessora e colocou seu candidato no segundo turno em 2018 porque nunca convenceram o povão de que ele deixou de “olhar pelos pobres e pelos excluídos”.

Ao contrário, Collor enfraqueceu-se decisivamente quando conseguiram carimbá-lo de corrupto. Bem ele que se apresentara em 1989 como quem melhor iria combater a corrupção. A anemia política de Dilma teve a ver com a guinada real e simbólica de política econômica entre a duríssima campanha pela reeleição e o instalar do segundo governo. Guinada que dividiu e desmobilizou a base eleitoral dela, deixando-a indefesa.

E em vez de a oposição aplaudir a presidente por “fazer a coisa certa” aproveitaram a fraqueza dela para derrubá-la. É a política, estúpido.

Qual o atributo central de Jair Bolsonaro aos olhos do tal terço, um pouco mais, um pouco menos, nas pesquisas? Ele ser “anti-sistema”. Lato sensu. Eis por que precisa manter o conflito aquecido com “o sistema”. Mas a realidade é uma contradição ambulante, e essa guerra eterna drena recursos e energias do presidente, e traz isolamento. Quando ele mais precisa de aliados. Se não se faz omelete sem quebrar ovos, tampouco existe almoço grátis.

Ah, sim: o dito centrão não está nem perto de ser "o sistema". Fica a dica.

E vamos ver até que ponto o conflito com Sergio Moro mexe na percepção dos atributos presidenciais.

domingo, 3 de maio de 2020

A prensa no juiz

Há um hábito de banalizar entre nós a expressão “crise”. A tal ponto que quando estamos diante da iminência de uma precisaríamos talvez buscar outra palavra. Ou então admitir que o de antes não era propriamente uma crise.

Hoje o presidente da República, digamos, insinuou que não mais se sentirá obrigado a cumprir decisões do Supremo Tribunal Federal que segundo ele contrariem a Constituição. O problema é que a Carta dá a atribuição de controle de constitucionalidade ao Judiciário, não ao presidente.

Até para errar.

Já seria complicado se não estivéssemos ainda na curva ascendente de uma epidemia, que em escala global é pandemia. E se ela não estivesse empurrando o país este ano para uma recessão sem paralelo. É o que dizem as previsões. Resta torcer para que estejam errando, para pior.

A dúvida é quem vai atravessar primeiro o Rubicão. Quem vai dar o tiro (para cima) de largada na aí sim crise. E quem vai desempatar o jogo. Bolsonaro está ensaiando dar uma prensa no juiz. Vai conseguir?

sábado, 2 de maio de 2020

O ideal, o real e o que interessa

No mundo ideal funcionaria assim. Alguém calcularia a capacidade (estoque e fluxo) do sistema hospitalar, região por região. Junto calcular-se-ia o tempo necessário de isolamento social, e portanto o grau de achatamento da curva, para a epidemia caber no primeiro cálculo.

Também junto far-se-iam as contas de quanto tudo custaria, e o mix seria cotejado com a capacidade fiscal do Estado, lato sensu.

Para concluir a resultante ótima entre as diversas variáveis.

No mundo real funciona assim. Nos países de sistema político mais centralizado impõe-se o lockdown até a curva despencar. Nos demais a coisa vai meio na galega mesmo, e a resultante é bem mais fruto da luta política e do experimentalismo que de quaisquer critérios científicos.

E a curva desce mais devagar.

E cada político tem seus próprios argumentos “científicos” para justificar decisões puramente políticas e baseadas em grupos focais.

E a vida segue. A boa notícia é que cidades da Lombardia já registram 60% de imunizados pelo contato com o SARS-CoV-2. A partir daí, parece, o vírus tem muitíssimo mais dificuldade para encontrar novos infectáveis.

Que é o que interessa.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Parecidos e diferentes

Durante alguns dias, dias atrás, o registro diário de mortes por Covid-19 no Brasil ensaiou ter estabilizado em duas centenas. Depois subiu dois degraus e agora parece desacelerar, quando gira em torno de quatro centenas.

É o que diz o gráfico (abaixo) da média móvel de sete dias, melhor para amenizar flutuações. Esperamos que o infundado otimismo de então se converta num otimismo fundado agora.

Claro que tem a subnotificação. Mas é um dado da realidade. Então vamos trabalhar com os números disponíveis.

A dúvida é falar em “Brasil” quando se analisam os números da ação do SARS-CoV-2. País continental, somos mais parecidos neste caso com os Estados Unidos.

Cá como lá temos epicentros (São Paulo, Nova York), mas a epidemia parece disseminada pelo território, com abrangência e letalidade desiguais.

A diferença, não tão pequena, é que lá são dez vezes mais mortos. Será só a diferença de testagem? Difícil.

Esperamos continuar bem longe deles nessa estatística.



O abacaxi para descascar

Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai.

Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar mas só de vez em quando têm os votos para tal.

Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como estava quase todo mundo meio encrencado com a Lava Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelos menos um punhado de bois atravessarem.

Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.

O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.

Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.

Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores da reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.

Um abacaxi não trivial de descascar.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.685, de 6 de maio de 2020