Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
Brasil e Argentina
domingo, 30 de agosto de 2020
Ciência e bate-boca
A mais importante disputa pré-eleitoral nos Estados Unidos é pela narrativa-mestre: se vai ser a deficiência do governo de Donald Trump no enfrentamento da pandemia da Covid-19 ou a acusação republicana de que os democratas de Joe Biden são lenientes com a violência das manifestações #BlackLivesMatter. O andamento das coisas dirá quem levou vantagem.
Contra a linha propagandística de Trump pesa o fato de todas as pesquisas mostrarem simpatia majoritária pela rebelião dos pretos contra os recentes eventos de viés racista. Mas os números mais novos trazem algum estreitamento da vantagem democrata. Se é só o normal do pós-convenção republicana ou algo mais estrutural, novamente apenas o tempo dirá.
Sobre a Covid-19 e o efeito dela na eleição será preciso também esperar para ver como estarão as coisas em novembro. Depois de criticar e depreciar a vacina russa por ter queimado etapas o Ocidente cogita fazer a mesma coisa: queimar etapas para não ficar para trás. E se Trump aparecer com uma vacina antes da eleição a sensação de algum alívio melhorará o ambiente para ele.
Por aqui na América do Sul parece que a Covid-19, por enquanto, leva jeito de querer equalizar estratégias. Proporcionalmente, a curva do registro diário de mortes na Argentina parece querer cruzar a do Brasil. Sendo que a Argentina tem a mais longa e uma das mais rígidas quarentenas do planeta. O Brasil? Uma das mais descoordenadas nacionalmente.
Argentina e Brasil são dois países com distribuição populacional muito diferente. Ali o grosso da população concentra-se na Grande Buenos Aires, a província. Parece que agora a pandemia vai migrando para o interior. Sobre o Brasil, outra curiosidade. A curva de registro de óbitos no país está num platô bem elevado desde junho, mas parece ser um achado só estatístico.
O G1 tem uma página diariamente atualizada com as médias móveis de casos e falecimentos pelo Brasil e nos estados (leia). A curiosidade: a somatória dos estados vai num platô, mas os estados em si exibem flutuações mais agudas. No final, a resultante fica estável, e com uma esperança de queda diante dos números mais recentes.
Por falar em números, eles ajudam a relativizar certas disputas. Se é legítimo, por exemplo, estabelecer uma correlação entre o governo Jair Bolsonaro e as cifras nacionais, também será razoável fazer isso nos estados. Mas a São Paulo do governador João Doria, adversário figadal do presidente, tem, em números redondos, proporcionalmente, um resultado em mortes bastante semelhante ao resto do país.
O que isso permite concluir: talvez seja saudável dar um desconto nas conclusões epidemiológicas baseadas na ciência política. Ainda que pedir racionalidade na política seja amadorismo, ou quixotismo, tanto faz. O fato? Talvez essa tal Covid-19 tenha mistérios para além das certezas que desfilam todos os dias pelas alas da polarização.
Um mistério continua sendo a tal imunidade de rebanho. Por que as curvas de casos e mortes se estabilizam e caem se a presença de anticorpos detectados na população está muito longe dos 50, 60, 70% que se diziam indispensáveis para o R mergulhar abaixo de 1? Quem tiver a resposta definitiva, para esta e outras dúvidas, que se apresente.
Enquanto isso fiquemos com o bate-boca, que também é divertido.
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
O limite da mesmerização
Na medida em que a política se judicializa, a Justiça politiza-se. Ou partidariza-se. Se alguém interfere na realidade para modificá-la, acaba também modificado por ela. Mas é melhor olhar essas coisas com certa frieza, enxergá-las como um dado da realidade. E buscar as decorrências. Por exemplo: qual será desta vez o papel da "luta contra a corrupção" no processo eleitoral que vem aí?
Uma aposta é que a onda da "faxina" vista em 2018 vai continuar. Seria lógico, até pela lei da inércia. Mas tem um problema. O empoderamento absoluto de juízes e procuradores produziu seu efeito colateral. A rotinização. Todo mundo ou quase todo mundo da política acabou -- ou acabará -- tomando algum tiro, proposital ou de bala perdida. Olhe em volta. Difícil achar quem não tenha pelo menos uma cicatriz.
Ainda sobre as tensões, está claro que o show precisa continuar, mas vai ficando também claro que o público parece meio cansado da repetição do espetáculo. Talvez estejamos chegando a um certo limite da mesmerização, da hipnose coletiva. Com o jogo meio que assim zerado, talvez a pergunta da hora na cabeça do povão venha a ser "afinal, quem é o mais capaz de começar a resolver meus problemas?".
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
A cor do gato
O governo do Distrito Federal de Ibaneis Rocha (MDB) entabula conversas com a embaixada russa para trazer a vacina Sputnik 5 e aplicar nos habitantes da capital do país (leia).
E o governo de São Paulo de João Doria (PSDB) recorre ao Ministério da Saúde de Jair Bolsonaro (ex e talvez futuro PSL) para ter recursos e assim conseguir mais rapidamente aplicar a vacina chinesa Coronavac na população residente em seu estado (leia).
Parece que pelo menos neste assunto da vacina o pragmatismo e a objetividade têm boa chance de prevalecer entre nós. Lembrando sempre o ditado do então líder chinês Deng Xiaoping, de que não importa a cor do gato, desde que ele cace ratos.
No caso específico, não importa o partido do governante ou a bandeira, ou ideologia, da vacina, desde que ela esteja disponível e imunize as pessoas contra o SARS-CoV-2.
A obrigação de nossos governos, federal e estaduais, é aproveitar o fato de termos boas relações com todos os países empenhados na corrida da vacina e trazer para cá o produto que esteja à disposição.
E um detalhe: deixando para lá as cotoveladas rumo a 2022.
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
A mão que afaga...
E o governo notou que ainda não descobriram como juntar numa única equação 1) o teto de gastos, 2) a manutenção de um auxílio emergencial, 3) os programas sociais, 4) uma projeção declinante para a dívida pública e 5) a preservação do ritmo ascendente da popularidade do presidente da República.
Que, dotado de faro político, sentiu o cheiro de queimado (leia).
Talvez Jair Bolsonaro não queira repetir o experimento Dilma Rousseff. A então presidente alinhou sua política econômica no início do segundo mandato ao que lhe pedia o chamado mercado. Fez um ajuste daqueles. Mas, infelizmente para ela, em vez de colher o apoio do mercado e dos políticos e atores da chamada sociedade civil que louvam o mercado 24 x 7, colheu o impeachment.
Mesmo se Bolsonaro não fosse politicamente esperto, o recente infortúnio da antecessora talvez já servisse para acender-lhe a luz amarela. Como dizem os versos clássicos, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Sem base orgânica no Congresso ou no establishment, Bolsonaro sabe que não pode ver a popularidade desabar.
A não ser que queira ter a cabeça servida na bandeja.
terça-feira, 25 de agosto de 2020
Insustentável
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Cansaço
Esta semana tem a convenção do Partido Republicano nos Estados Unidos, e pelo jeito Donald Trump vai falar todos os dias. Normalmente o candidato a presidente fala só no último dia. Veremos o efeito.
Um possível problema de Trump nestas eleições talvez seja o cansaço com a rebelião antissistema (ouça). Porque o "antissistemismo" já não é tão novidade e porque a Covid-19 quem sabe tenha feito as pessoas lembrar que de vez em quando governantes experientes podem fazer uma diferença no resultado final.
O efeito "anti-antissistema" foi bem abordado por Celso Barros na coluna dele hoje na Folha de S.Paulo (leia). E uma consolidação de pesquisas do jornal digital Poder360 mostra que a direita não bolsonarista aparece bem neste momento nos levantamentos das capitais (leia).
Ainda falta muita estrada para a eleição, mas as pesquisas são sempre uma fonte de informação a ser levada em conta. Se a tendência de um certo "conservadorismo administrativo" confirmar-se, será o caso depois de pensar como isso rebaterá em 2022.
domingo, 23 de agosto de 2020
A cadeira no terceiro andar do Planalto
1. O governo seria politicamente instável.
Essa premissa talvez se baseasse na personalidade do ex-capitão, ou no fato de ele nunca ter tido preocupação orgânica na política, ou na constatação de que as posições dele são consideradas extremistas pelo establishment, ou na ausência de uma base parlamentar própria, ou no desprezo dele pelo mainstream da chamada sociedade civil.
Ou em todas essas variáveis combinadas.
O fato, entretanto, é que um ano e meio depois o governo, no que interessa, tem com ele três quintos da Câmara dos Deputados, retém nas pesquisas a fatia de mercado eleitoral que o elegeu e resiste bem ao bombardeio que vem principalmente do setor que liderou o impeachment de 2016 mas depois perdeu a eleição. E ainda está tendo uma recessão e uma pandemia no meio do caminho. Sem pelo jeito sofrer politicamente com isso.
2. O governo faria uma política econômica de ruptura.
Se Bolsonaro se desviasse desse caminho, o ministro da Economia pediria o chapéu e o governo acabaria. Tampouco aconteceu. Bolsonaro, Paulo Guedes e todo o entorno estão no momento empenhados em criar impostos para ajudar a financiar programas de renda mínima mais amplos que os do PT.
Outra ideia é desonerar a folha de pagamentos para empregos de baixa renda (e portanto de baixa qualidade). Haverá alguma privatização, mas não do “trio de ferro” — Petrobras, Banco do Brasil e Caixa. E aprofundar as concessões será o caminho para tentar alavancar a taxa de investimento.
Não há maiores novidades aí. O que talvez seja bom. Pois nem tudo que é bom é novo, e tampouco tudo que é novo é bom.
3. O viés dito autoritário do presidente estimularia formar uma ampla frente de oposição.
Por enquanto, a frente mais ampla em vigor é a que sempre se apresenta para apoiar as iniciativas econômicas do governo e portanto impedir qualquer desestabilização. Do outro lado, a oposição caminha para as eleições municipais mais fragmentada que nunca.
Verdade que o fim das coligações na eleição de vereador tem efeito centrífugo, mas isso não explica tudo.
Os movimentos para formar a frente ampla de oposição não resistiram a um ajuste mínimo na atitude presidencial. Foi Bolsonaro amenizar o discurso e ela se desmanchou antes de existir.
Um bom termômetro do alinhamento de forças será observável no segundo turno municipal. Veremos, por exemplo, qual será a porcentagem de situações de reta final em que o autonomeado centro apoiará candidatos da esquerda contra o bolsonarismo. E vice-versa.
4. Bolsonaro seria tutelado por Paulo Guedes, Sérgio Moro e pelos generais palacianos.
A premissa que mais espetacularmente virou fumaça.
Moro saiu do governo arrastando com ele maciçamente o que Roberto Campos chamava de “a opinião publicada". Ao final, a montanha pariu um rato.
Guedes no momento luta para arrumar dinheiro para programas sociais bolsonaristas que vitaminem as possibilidades reeleitorais do presidente. Talvez embalado pela promessa de que num segundo mandato, aí sim, as coisas serão como foi sonhado.
E os fardados palacianos da reserva influem, mas longe de deter qualquer poder de veto.
Hoje em dia no Planalto, como sempre, quem manda é quem está sentado naquela cadeira do terceiro andar.
sexta-feira, 21 de agosto de 2020
Transição longa
Num hipotético torneio de chavões trazidos pela pandemia da Covid-19, um que brilharia é "novo normal". Ninguém sabe exatamente como será, mas todo mundo fala nele. E talvez faça sentido mesmo, pois vai ficando claro a cada dia que é apenas ilusão esperar pelo momento em que o SARS-CoV-2 vai ser repentinamente neutralizado.
Manter o isolamento social até a chegada da vacinação em massa com uma vacina que ainda nem existe é sonho. Simplesmente não vai acontecer. Uma torcida é para a tal "imunidade de rebanho" estar mesmo bem abaixo do inicialmente previsto (leia). No mínimo, a desaceleração da curva de casos em certas situações mostra que medidas de distanciamento (e não só isolamento) têm um papel para reduzi-la.
Será preciso ver também como irá mudando o comportamento do vírus conforme a pandemia avança. Tratou-se disso aqui ontem (leia). Apenas uma coisa é certa: é melhor todo mundo se preparar para uma transição sem data de término. Máscaras, distância, higiene redobrada. Negacionismos à parte, todas essas coisas vieram para ficar.
E depois de dezembro?
A aprovação a Bolsonaro é sim maior entre os beneficiários do auxílio, mas isso não explica por que o presidente resiste em torno de um terço de bom e ótimo e uns 40% de aprovação. Talvez seja mais útil inverter a pergunta: por que exatamente o eleitor de Bolsonaro deveria ter desistido dele após um ano e meio de governo?
Sim, porque a fatia dos que o consideram ótimo ou bom corresponde grosso modo ao eleitorado que votou no presidente no primeiro turno, e o percentual de “aprova” cobre o apoio no segundo turno. Houve alguma troca, de alguns "ricos" por pobres, de alguns mais escolarizados por outros menos, mas nenhum terremoto político-eleitoral.
Verdade que um pedaço se agastou na demissão de Sérgio Moro. Mas as pesquisas, todas elas, são cristalinas: o sofrimento político de Bolsonaro com a cisão morista não esvaziou a base social de apoio ao presidente da República. A principal dificuldade de um eventual candidato Moro não estaria no segundo turno, mas no primeiro.
O bolsonarismo é hoje um exército de ocupação desde o centro até os confins da direita. Mas ainda faltam dois anos e tanto para a eleição, e tem água para correr sob a ponte. O desafio mais imediato do governo é encontrar um jeito de pousar o avião do auxílio emergencial de um jeito suave. O contrário provavelmente terá, aí sim, efeito negativo, e não apenas no universo de quem hoje recebe o dinheiro.
A explicação simples, e errada, diz que o governo comprou a simpatia do eleitor por 600 reais ao mês. Talvez a explicação certa seja mais sofisticada. O auxílio ajudou a evitar um colapso econômico e social com repercussões muito além da população que recebe o benefício. Pois a economia continuou rodando e a recuperação parece mais rápida que o esperado.
O desafio do governo é ir retirando o auxílio sincronizadamente com a retomada da atividade e, principalmente, do emprego. Este, aliás, já vinha capengando mesmo antes da Covid-19. Como o governo vai fazer, só ele sabe, se é que sabe. Mas é uma operação estratégica, a não ser que o Planalto queira repetir as experiências de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.
Ambos surfaram em planos econômicos que melhoraram o poder aquisitivo da massa, e foram esticados para influir em eleições. Fizeram a colheita eleitoral, mas precisaram dar um choque de realidade na sequência. A popularidade deles foi ao buraco e só resistiram na cadeira por terem amplíssima base política e simpatia irrestrita no establishment. Coisas que Jair Bolsonaro não tem.
E talvez o mais importante: eram tempos em que ou não tinha internet (Sarney) ou ela era tão incipiente que nem fazia cosquinha nos políticos e nos governos (FHC). Definitivamente, não é o caso agora.
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Publicado originalmente na revista Veja 2.701, de 26 de agosto de 2020
quinta-feira, 20 de agosto de 2020
Darwin
Paralelamente à propagação da Covid-19, propaga-se também a ansiedade sobre quando, e como, a pandemia será contida. Um front é a guerra das vacinas (leia), na qual interesses econômicos e operações de comunicação embricam-se numa confrontação tão feroz quanto qualquer refrega travada em campos de batalha propriamente ditos.
Mas precisar esperar pela vacina para atingir a imunidade coletiva não chega a ser notícia animadora, especialmente porque a coisa não é instantânea. Entre confirmar que uma vacina funciona mesmo, produzir em massa, distribuir e aplicar irá um tempo. E nada indica que o ponto final da linha esteja tão próximo assim.
De todo modo, a ciência vai estudando este avião em pleno voo. Aparentemente, uma certa mutação do SARS-CoV-2 é mais infecciosa, mas menos letal (leia). Vírus precisam de seres vivos para se reproduzirem. Então, a seleção natural acaba selecionando os microorganismos que, digamos, assim, matam menos as galinhas dos ovos de ouro.
Viva Charles Darwin. E segue o jogo.
quarta-feira, 19 de agosto de 2020
Uma boa notícia
O achado do Imperial College de que a taxa de transmissão (R) da Covid-19 no Brasil está ligeiramente abaixo de 1 (leia) é consistente com a estabilização dos novos casos diários (veja no gráfico do Financial Times).
Mas o quadro nacional varia muito de estado para estado. Há acelerações, declínios e estabilidades, tudo distribuído pelo território nacional. Não dá para relaxar.
O R abaixo de 1 é claro produto de uma combinação de fatores. Em parte por causa do isolamento e do afastamento social, em parte provavelmente por uma parte já ponderável da população ter sido imunizada pelo contato com o SARS-CoV-2.
Ainda sobre a pandemia, o Distrito Federal alterou a metodologia de divulgação dos óbitos. Vai informar também quantas mortes aconteceram efetivamente a cada dia (leia).
Para o distinto público, a única coisa que interessa é saber de tudo. Até porque os números reais sempre acabam aparecendo.
terça-feira, 18 de agosto de 2020
Desafio
O governo tem um desafio complexo: como fazer a transição do auxílio emergencial para uma modalidade de renda mínima preservando alguma coerência fiscal e evitando o solavanco político. Não será trivial, e daí o bate-cabeça nas hostes do Palácio do Planalto (leia).
O que seria ideal, claro que do ângulo governista? Se a interrupção ou a drástica redução do auxílio viessem sincronizadas com a retomada do emprego. Mas essa última variável não parece assim tão animadora, e inclusive a última pesquisa XP/Ipespe traz uma percepção de que a economia não vai bem, apesar de a percepção melhorar (leia).
A eleição presidencial ainda vai longe, dois anos e alguma coisa, mas a dinâmica política começa a entrar naquela fase em que o governante desejoso de permanecer precisa mostrar serviço. E é visível que o governismo está se esforçando para tanto.
Mas também é a hora em que a paciência popular ameaça encurtar se houver contratempos.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020
E na Europa...
O gráfico abaixo é cristalino. Países europeus que tiveram bons e rápidos resultados após a adoção do isolamento social para combater a pandemia da Covid-19 enfrentam uma segunda onda de casos.
A torcida é para que a letalidade da doença tenha caído desde a primeira onda. Também porque a ciência já não está mais tratando com um inimigo completamente desconhecido.
Até que se consiga uma imunização de rebanho, natural ou induzida pela vacina, é razoável supor que novas acelerações de casos sejam desencadeadas pelas medidas de flexibilização do isolamento.
Afinal, o vírus é paciente, ele não vai simplesmente desistir de esperar porque as pessoas estão trancadas em casa ou tomando os cuidados de higiene recomendados.
A alternativa seria um rigoroso lockdown até a chegada da vacina, mas parece que quase um semestre após o início do isolamento social não há disposição do público nem adaptabilidade da economia para tanto.
domingo, 16 de agosto de 2020
Números capturados pela polarização
Os números mais recentes do Datafolha trouxeram alguma surpresa, pois vieram logo após a blitz sofrida pelo presidente da República quando as mortes pela Covid-19 bateram na trágica casa dos 100 mil. Mas a própria pesquisa explicou a razão: quase metade da população não responsabiliza nem remotamente Jair Bolsonaro pela contabilidade fatal da pandemia por aqui. E os que o consideram o principal culpado não passam de 11%.
Para compreender melhor o Datafolha, será útil recorrer a um número de outra entidade de pesquisas, o PoderData, do jornal digital Poder360. O último levantamento quinzenal dele mostrou empate entre aprovação e reprovação do presidente. Na margem de erro, uma divisão ao meio entre quem aprova e quem reprova. Aliás é a pergunta certa a fazer para saber a aprovação, pois sempre uma parte do “regular” aprova a administração quando é perguntada sobre isso.
O que está acontecendo? Uma hipótese: quando certo assunto é capturado pela polarização político-partidária, o público tende a distribuir-se, grosso modo, conforme a distribuição das convicções partidárias e eleitorais. Os efeitos da agitação e da propaganda, a favor ou contra, tendem a ficar confinados dentro da respectiva “bolha”.
A política não é principalmente uma disputa de argumentos. É esgrima de interesses e fidelidades em que os argumentos e a propaganda são armas para manter íntegro o próprio exército e tentar dividir o do adversário. Até agora, decorrido um ano e meio de governo, as forças bolsonaristas e antibolsonaristas preservam o tamanho exibido nas eleições. O “bom e ótimo” reproduz o market share do candidato Bolsonaro no primeiro turno, e o “aprova” oscila em torno do desempenho do presidente eleito no segundo turno.
O que seria capaz de alterar substancialmente o quadro? A radical degradação do quadro econômico? Foi evitada pelo auxílio emergencial de 600 reais. Um colapso dos serviços de saúde na pandemia e que pudesse ser debitado na conta do governo federal? Simplesmente não aconteceu. Tudo indica que estados e municípios estão fazendo seu trabalho e, notavelmente, não há queixas significativas de governadores e prefeitos quanto à atuação do Ministério da Saúde.
No mais, o eleitorado possivelmente encara com naturalidade os críticos culparem o presidente pelas mortes e dizerem que a atuação dele é um desastre na pandemia. Estranho seria os críticos não o culparem. O “Caso Queiroz”? É anterior ao mandato. Traz algum prejuízo, mas não atinge o cerne do discurso presidencial sobre a corrupção. Pois não há, por enquanto, acusações relevantes de corrupção ao governo propriamente dito.
sexta-feira, 14 de agosto de 2020
Antivacinismo
Segue a polêmica sobre quanto da população precisa estar imunizada para que se atinja a chamada "imunidade de rebanho", aquela porcentagem de gente já com anticorpos que faz a curva de casos e mortes de determinada epidemia estabilizar e uma hora entrar em declínio.
A estimativa inicial na Covid-19 para esse número estaria em torno de 60%, mas há sinais de ser menos. E é bom que seja assim, porque do jeito que vai a polarização sobre tomar ou não vacinas é bastante possível que parte significativa da população decida não se vacinar.
Foi a conclusão, por exemplo, de uma pesquisa nos Estados Unidos (NPR-PBS NewsHour-Marist). Mais de um terço dos entrevistados disseram que não vão tomar a vacina contra o SARS-CoV-2. Um indicador da forte penetração do "antivacinismo" na população daquele país.
E o problema fica potencialmente ainda mais grave em países como o Brasil, onde o alinhamento com tal ou qual vacina passou a ser parte indissociável da guerra política. Isso fará com que haja ainda maior resistência na hora em que vierem as vacinas A, B ou C. Um quadro preocupante.
quinta-feira, 13 de agosto de 2020
Mortes em NYC
Gente boa do ramo da epidemiologia defende uma tese: o excesso de mortes, na comparação com períodos semelhantes antes da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, é um parâmetro válido para medir o impacto real da Covid-19 no número de óbitos.
Porque o dado pega não só os que faleceram por causa do novo coronavírus, mas também quem perdeu a vida por culpa de um sistema de saúde sobrecarregado. Pega também gente cuja morte teria sido evitada se procurasse um serviço de saúde. E não procurou de medo de pegar a Covid-19.
Sobre isso, a publicação oficial da Associação Médica Americana (JAMA) publicou uma interessante comparação entre o excesso de mortes em Nova York durante a Gripe Espanhola em 1918 e o mesmo parâmetro agora na pandemia da Covid-19. Vale a pena dar uma olhada (leia).
Como era esperado, o debate sobre a Covid-19 nos diversos países, aqui inclusive, vem sendo capturado pela polarização política, em escala nacional e global. Mas se você quiser entender mesmo o que se passa, um bom caminho é tentar olhar os números da pandemia.
quarta-feira, 12 de agosto de 2020
No mudo
O governo tem uma equação desafiadora na economia. A seguir, como garante, a cartilha, ele precisa combinar: 1) austeridade para frear o crescimento da dívida, 2) dinheiro para os programas sociais e 3) dinheiro para os investimentos. Juntar essas três variáveis numa equação que faça sentido não é trivial.
A tese governamental é que a disciplina fiscal atrairá capitais privados que vão relançar a economia. Esqueçam do declaratório: se os capitais privados aparecerem para criar negócios e empregos, a chamada ala liberal do governo vai levar a taça; se não, abrir-se-á espaço para o neodesenvolvimentismo.
E dificilmente o presidente da República vai deixar de querer ter dinheiro para as marcas sociais do bolsonarismo. Não consta que Bolsonaro, acossado pela opinião pública, queira oferecer-se em sacrifício para aplainar o terreno a um desafeto em 2022.
Ou seja, nesta corrida que divide os intestinos do poder, vai levar a melhor quem aparecer com dinheiro para investimentos. Não será dificil portanto monitorar a coisa. E será conveniente de vez em quando colocar o teatro da política econômica no "mudo".
Prestar mais atenção no que é feito e menos no que é dito.
terça-feira, 11 de agosto de 2020
Sputnik 5
E chegou a primeira vacina contra o SARS-CoV-2, a russa Sputnik 5. Com ela veio o ceticismo, real ou forçado, por ela ter pulado etapas. Mas as dúvidas têm prazo de validade. A vacina começa a ser aplicada em massa a partir de janeiro, e aí se saberá quanto ela vale. Não só em termos monetários, em capacidade de imunização.
A onda de ceticismo explica-se também por a corrida da vacina ter se tornado uma bateria da disputa entre o Ocidente (conceito geopolítico), liderado pelos Estados Unidos, e a aliança de fato entre China e Rússia. Mas neste caso específico da vacina o cavalo ocidental favorito é britânico, de Oxford.
Sua excelência, o cidadão comum, não está obviamente nem aí para a política, ou para a politicagem: quer uma vacina que funcione. A seguir todas as etapas religiosamente, só teríamos vacina daqui a anos. E esperar alguns anos não é o cenário mais confortável. Bem longe disso.
Então é razoável supor que todas as vacinas acabarão tomando algum atalho. De que adiantará, inclusive comercialmente, alguém aparecer com "a melhor vacina" daqui a quatro ou cinco anos? Nada, ou muito pouco, se as anteriores tiverem conseguido imunizar, digamos, pelo menos uns 50% dos vacinados.
Até porque, convenhamos, a "imunidade de rebanho" da Covid-19 leva jeito de andar bem abaixo disso. Como vimos ontem (leia).
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
Rebanho
domingo, 9 de agosto de 2020
A dúvida municipal
Começando pelo final, há quem aposte numa onda de candidatos médicos ou das demais carreiras da saúde. A economia preocupa, mas a principal angústia das pessoas neste momento concentra-se em escapar da perseguição do SARS-CoV-2 e sobreviver à onda da Covid-19. Analistas já intuem: assim como em 2018 tivemos a onda de candidatos ligados à segurança, talvez 2020 seja a hora dos identificados com a saúde.
Mas os nomes anticrime de 2018 surfaram a insatisfação popular diante dos índices de violência e da ameaça potencial à vida e ao patrimônio. O intrigante neste momento da Covid-19 é não existir uma maré montante de insatisfação ou revolta popular contra as autoridades. Ao contrário, o eleitor médio parece considerar que os governos estão de algum modo agindo.
Contribui para isso o sistema hospitalar não ter entrado em colapso. Mérito do Sistema Único de Saúde (SUS) e das medidas de isolamento e afastamento social, que segundo a epidemiologia produziram achatamento das curvas de casos e mortes. As curvas estão num patamar alto, mas relativamente estáveis. Pressiona para um lado a tragédia dos números fatais. Para o outro, os números não estarem em escalada aguda.
Outra curiosidade é se virá uma “nova onda” política e qual seria. O PMDB sucedeu a Arena, o PSDB sucedeu o PMDB e o PT sucedeu o PSDB. Daí veio Bolsonaro, mas já está rompido com o partido da eleição, o PSL. Assim, se a onda bolsonarista tiver continuidade municipal, virá pulverizada em múltiplos partidos. Neste fim de semana o presidente disse que vai ficar fora do primeiro turno. Ou seja, vai entrar firme no jogo quando vier a polarização.
Aí a trágica contabilidade de mortes da Covid-19 será um trunfo do antibolsonarismo. A narrativa já vem sendo bem trabalhada, uma semeadura que talvez permita boa colheita em novembro. Do outro lado, o governo tem um trunfo na economia. Os números aqui tampouco são bons, mas o dinheiro distribuído como auxílio emergencial vai ter seu papel. Principalmente no até agora grande reduto da oposição, o Nordeste.
São os fatores da nacionalização. Mas não será prudente subestimar o localismo. O melhor palpite por enquanto é apostar fichas na racionália de que prefeitos e candidatos serão julgados pelo que fizeram ou deixaram de fazer, em particular neste último período pandêmico. Enquanto políticos e analistas gastam o miolo em torno do “fator nacional”, o eleitor talvez queira saber o que pode melhorar a vida dele no local onde mora.
sexta-feira, 7 de agosto de 2020
A dura vida do marisco
A volta ou não às aulas é a bola da vez no braço de ferro entre os adeptos da retomada e os militantes do #ficaemcasa. Brasília é um exemplo (leia). Já São Paulo jogou a coisa para outubro (leia). A verdade: ninguém parece saber direito o que fazer, como decidir com base em critérios racionais.
Prevalece o medo. O cidadão tem medo de ficar doente, e de ver o filho adoecer. E o político tem medo de ser responsabilizado por uma eventual escalada, bem na antessala das eleições municipais adiadas para novembro.
E assim segue a vida num país, o Brasil, onde a descoordenação entre as autoridades e a interferência aleatória do Judiciário são a marca registrada nesta pandemia. A falta de coordenação e o terreno fértil para arbitrariedades têm consequências óbvias, especialmente nas atividades econômicas.
Uma delas são as escolas particulares, que ficam como o marisco, sofrendo por causa dos choques entre o mar e o rochedo.
Como isso se resolverá? Talvez, a exemplo das coisas que já abriram, certo dia, esgotadas, as autoridades nos diversos níveis deixem a vida seguir seu passo. Ou decidam finalmente manter todos os alunos em casa à espera da hora em que será aplicada em massa uma vacina que ainda não existe.
A pax bolsonariana: até quando?
Quem levará a melhor? A aliança encabeçada pela Lava-Jato vem de vitórias históricas, a começar do impeachment de Dilma Rousseff e da condenação, e inelegibilidade, de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas enfrenta uma atribulação no plano tático: as pressões e manobras do Executivo para retomar o poder moderador, o que em linguagem mais delicada ganha o nome de “governabilidade”. E esta passa pela contenção dos polos que floresceram na Brasília do declínio de Dilma Rousseff e Michel Temer.
Num desses polos, o Congresso Nacional, as coisas para o oficialismo bolsonarista parecem ir razoavelmente bem. Ainda há chacoalhadas e rusgas, mas o sentido geral é de pacificação. O impeachment hiberna, e a reforma tributária é o novo brinquedo posto a entreter o Legislativo. E os parlamentares estão às voltas com outros dois assuntos apetitosos: as eleições municipais e a renovação das mesas da Câmara e do Senado.
Nisso, a única coisa que o governo precisa evitar é perder. O ideal para o Planalto serão presidentes alinhados 100% com Bolsonaro, mas Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre continuarem nas cadeiras seria, para o governo, o “problema já conhecido”. Diz a sabedoria: nunca se apresse a eliminar um problema já conhecido, pois o risco é aparecer um novo, e potencialmente mais complicado. Como por exemplo o comando do Congresso nas mãos de personagens inteiramente originais e com apetite por protagonismo.
No Ministério Público e no Legislativo, o cenário para Jair Bolsonaro parece o menos pior desde a posse, inclusive por as disputas da hora serem internas em ambos. E isso enquanto o Executivo vive uma inédita pax bolsonariana, após alguns “expurgos brancos” e a ocupação de espaços estratégicos pelos quadros provenientes das Forças Armadas, da reserva e da ativa. E que estão ali por outra regra da vida política: quando há vácuo, este suga alguém para consertar a anomalia. É o que se passa com os fardados.
O momento de calmaria para o presidente da República decorre também de um fator relativamente inesperado, e de outro previsível. Era pouco esperado que a popularidade do presidente resistisse à dramática contabilidade das mortes da Covid-19. Por alguma razão está resistindo. O previsível era a dispersão das esquerdas, que sintomaticamente voltaram a ser nomeadas no plural. Aqui, um paradoxo: quanto mais na oposição se fala em frente, mais avança a fragmentação dela própria. Por exemplo na disputa das prefeituras.
O que pode interromper a paz? Afinal, estamos no sempre potencialmente complicado agosto.
quinta-feira, 6 de agosto de 2020
Duas variáveis cruzadas
quarta-feira, 5 de agosto de 2020
Campanhas remotas
terça-feira, 4 de agosto de 2020
E se não for a economia?
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Duas guerras
domingo, 2 de agosto de 2020
Trump, Biden e Bolsonaro
O Brasil é ponto focal dos Estados Unidos na América do Sul. Um momento explícito foi quando o então presidente Richard Nixon disse que para onde pendesse o Brasil penderia a América Latina. É razoável portanto partir da premissa: a preocupação americana pelo que se passa aqui sobreviveria bastante bem à troca de guarda ali.
Amizades e inimizades pessoais jogam seu papel, mas seria um erro superestimar. A chave decisiva para a análise é outra: de que maneira as relações entre ambas as nações ajudam ou atrapalham o projeto de poder do segmento líder em cada um dos dois países. E projetos de poder invariavelmente vêm conectados a projetos nacionais.
Nos tempos da primeira Guerra Fria a relação de troca sempre foi cristalina: os Estados Unidos ajudavam por aqui a manter uma arquitetura social e política enquanto o Brasil somava forças com o Ocidente no trabalho de contenção da influência da União Soviética. As exceções, quando essa lógica deixava de prevalecer em termos absolutos, apenas confirmavam a regra.
Uma exceção foi no governo Ernesto Geisel. O rápido reconhecimento da Angola soberana e o acordo nuclear Brasil-Alemanha, no âmbito da ideia de “Brasil potência”, são fatos da história. Assim como o rompimento do acordo militar com os EUA em represália, segundo Geisel, às pressões do então presidente Jimmy Carter em torno do tema dos direitos humanos.
O momento hoje parece bem distinto daquele interregno geiselista. Não se nota nas elites brasileiras, lato sensu, maior desconforto com o alinhamento aos Estados Unidos. A divisão é outra: uns preferem acoplar-se a Trump e suas políticas, outros gostariam de engatar-se a Biden e à agenda do Partido Democrata, gostariam que a hegemonia norte-americana se desse apoiando outros atores e contemplando uma pauta mais antenada.
Não se nota por aqui hoje em dia maior ambição de protagonismo independente. Que implicaria jogar um jogo mais inteligente diante da “nova Guerra Fria”, entre os Estados Unidos e uma China em ascensão. Só o que se vê, no máximo, são lamentos diante da possibilidade de o alinhamento com o trumpismo atrapalhar os negócios do agronegócio.
E neste ponto é preciso admitir que se o Brasil precisa da China a China também se beneficia das boas relações com Brasil. Não à toa o atual momento comercial entre os dois países é o mais expressivo desde sempre. Nunca a China teve tanta participação nas exportações brasileiras. Manter as coisas pelo menos como estão interessa muito a Brasília mas também a Beijing.
Mas até quando?
O alarido diante dos factoides não deve enganar: há muito tempo não se via no Brasil tanta disponibilidade para uma acomodação ao jogo que é jogado pela Casa Branca. Pouca razão haveria para um possível presidente Biden arrumar encrenca com o Brasil por causa de Bolsonaro. Ainda mais se o horizonte para 2022 continuar como está.