Uma fábula persiste desde a campanha presidencial: a possibilidade de eliminar a polarização política e social por meio de um consenso majoritário centrista. A tese naturalmente fracassou nas urnas, como previsto, mas o prejuízo dos seus elaboradores e propagandistas foi apenas relativo, eles continuam por aí prestigiados e ouvidos para delinear caminhos futuros. Faz parte.
O hit do momento é que a saída de Luiz Inácio Lula da Silva da prisão vai acirrar aquela polarização, quando o desejável seria o contrário. Há de cara um problema nesse desejo: ele supõe que 1) Lula poderia de algum modo aderir a um status quo que lhe negasse protagonismo político ou 2) sem Lula, seria possível, com o tempo, ou atrair Jair Bolsonaro para a órbita centrista ou removê-lo.
São apostas arriscadíssimas, mas às quais se aplica a velha metodologia de repetir indefinidamente certas coisas nos jornais (lato sensu), esperando o milagre acontecer. Vai que rola... Entrementes, os fatos, costumeiramente teimosos, abastecem a linha de montagem da vida real e do próprio jornalismo, uma das poucas atividades no Brasil em que a escassez de oferta não tem dado as caras.
Vamos resumir. Impor o consenso só interessa e é possível a quem tem hegemonia. A falta de consenso no Brasil não é resultado da ação de pessoas más que desejam ver brasileiros brigando com brasileiros nas ruas, nas redes sociais e nos encontros de família, mas do fato banal de nenhum dos três blocos político-sociais-culturais deter força suficiente para se impor aos outros dois.
Os três blocos são o liberal-progressista, liderado por Fernando Henrique Cardoso, o social-progressista, liderado por Lula, e o liberal-conservador, liderado por Bolsonaro. Note que nenhum dos três precisa estar completamente de acordo com o ideário dominante em sua turma, precisa apenas evitar ser desafiado na tribo. E ficar por aí esperando a roda da fortuna lhe sorrir.
Só acha que Lula “radicalizou” ao deixar a PF quem achava possível ele propor uma união nacional em torno da agenda Guedes para a economia. Ou acreditava ser da conveniência do ex-presidente aceitar a priori a hegemonia liberal para a formação de uma frente ampla anti-Bolsonaro. Se não aceitou algo parecido em períodos muito mais desfavoráveis para ele, por que agora?
O Chile é a prova viva de que mesmo experimentos liberais economicamente exitosos produzem déficits sociais, reais ou na esfera da percepção, que podem bem ser trabalhados por uma oposição com olho na estratégia. Lula está focado nesse mercado potencial. E se até os resultados econômicos faltarem para Bolsonaro, o plano fica mais viável ainda. Assim é a política.
Nem Bolsonaro nem Lula serão derrotados por lamúrias contra a radicalização e a polarização, nem o liberal-centrismo vai atrair um dos dois simplesmente por prometer a paz dos cemitérios. Subestimar a inteligência das pessoas é sempre um erro.
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
segunda-feira, 11 de novembro de 2019
sexta-feira, 8 de novembro de 2019
O retorno de quem nunca se foi
Entusiastas do regime militar voltam a ser atores políticos plenos
A especulação do deputado Eduardo Bolsonaro sobre algum tipo de mecanismo jurídico nos moldes do AI-5 para enfrentar aqui uma rebelião de rua “chilena” teve um mérito. Mostrou que um pedaço a ser mensurado e provavelmente expressivo da sociedade brasileira está disposto a apoiar medidas ditatoriais, ainda que legais, para a defesa do poder constituído.
Foi o que revelaram, pelo menos, as redes sociais.
Mas prevaleceram a indignação e o desconforto. Isso tem explicação. De 1985 a 2018, enxergar aspectos positivos em ditaduras de direita era uma ideia alijada do espectro ideológico considerado legítimo. Era o tempo da hegemonia absoluta dos grupos que encerraram o ciclo dos generais-presidentes e implantaram a Nova República.
Um tempo que agora acabou. Ainda que a consciência sobre essa realidade ande um pouco atrás da dita-cuja. Costuma acontecer.
Os últimos quase trinta anos não foram apenas um intervalo histórico de governos social-democratas, como gosta de repetir o ministro Paulo Guedes, mas um período de quase ocupação político-cultural no campo da direita. Anos em que o eleitor direitista de raiz era obrigado a votar no PSDB, a única opção para tentar derrotar o PT. E era também obrigado a engolir a raiva e a frustração quando alguém descrevia o regime dos generais como a pior coisa que tinha acontecido ao Brasil.
Essa etapa da nossa história teve seu ponto-final no dia em que Jair Bolsonaro conquistou nas urnas a Presidência da República. E o mal-estar latente desde então entre os derrotados, e entre alguns taticamente vitoriosos mas infelizes com o resultado do voto popular, reflete o desconforto com o visitante indesejado que na reta final deixou para trás não só o PT, mas também a turma que tinha derrubado Dilma Rousseff e já se via com a mão na taça.
É outro mundo. Ninguém no bolsonarismo duro condenou as declarações do hoje líder do PSL na Câmara. O presidente da República disse que reeditar o AI-5 era coisa de sonhadores, que melhor seria endurecer a legislação antiterror, aliás aprovada no governo Dilma. Outro roteiro para o mesmo fim. O general e ministro Augusto Heleno, em um momento de talvez excessiva sinceridade, apenas observou que seria necessário ver como fazer. Depois tentou corrigir-se.
Uma ideia tem dado muito errado no Brasil: o “nunca mais”. A única certeza sobre essa palavra de ordem é que algum dia ela será desmentida. Pois o “nunca mais” supõe a possibilidade de excluir para sempre alguém do jogo, da alternância de poder. E isso vale para todos os lados. Assim como Bolsonaro enterrou o “nunca mais” gritado contra a direita, um dia alguém fará o mesmo do outro lado, e virá o troco. É só esperar para ver quem, e quando.
Os que desejam sinceramente a estabilização de algum tipo de democracia constitucional no Brasil deveriam estudar os casos de Portugal e Espanha. Ali construíram-se regimes políticos que permitem a convivência e a alternância entre saudosos do salazarismo e antissalazaristas ou entre admiradores do franquismo e antifranquistas.
Não se cobra de nenhum lado a renúncia a sua identidade, mas sim a aceitação estrita das regras democrático-constitucionais.
Talvez seja um caminho.
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Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660
A especulação do deputado Eduardo Bolsonaro sobre algum tipo de mecanismo jurídico nos moldes do AI-5 para enfrentar aqui uma rebelião de rua “chilena” teve um mérito. Mostrou que um pedaço a ser mensurado e provavelmente expressivo da sociedade brasileira está disposto a apoiar medidas ditatoriais, ainda que legais, para a defesa do poder constituído.
Foi o que revelaram, pelo menos, as redes sociais.
Mas prevaleceram a indignação e o desconforto. Isso tem explicação. De 1985 a 2018, enxergar aspectos positivos em ditaduras de direita era uma ideia alijada do espectro ideológico considerado legítimo. Era o tempo da hegemonia absoluta dos grupos que encerraram o ciclo dos generais-presidentes e implantaram a Nova República.
Um tempo que agora acabou. Ainda que a consciência sobre essa realidade ande um pouco atrás da dita-cuja. Costuma acontecer.
Os últimos quase trinta anos não foram apenas um intervalo histórico de governos social-democratas, como gosta de repetir o ministro Paulo Guedes, mas um período de quase ocupação político-cultural no campo da direita. Anos em que o eleitor direitista de raiz era obrigado a votar no PSDB, a única opção para tentar derrotar o PT. E era também obrigado a engolir a raiva e a frustração quando alguém descrevia o regime dos generais como a pior coisa que tinha acontecido ao Brasil.
Essa etapa da nossa história teve seu ponto-final no dia em que Jair Bolsonaro conquistou nas urnas a Presidência da República. E o mal-estar latente desde então entre os derrotados, e entre alguns taticamente vitoriosos mas infelizes com o resultado do voto popular, reflete o desconforto com o visitante indesejado que na reta final deixou para trás não só o PT, mas também a turma que tinha derrubado Dilma Rousseff e já se via com a mão na taça.
É outro mundo. Ninguém no bolsonarismo duro condenou as declarações do hoje líder do PSL na Câmara. O presidente da República disse que reeditar o AI-5 era coisa de sonhadores, que melhor seria endurecer a legislação antiterror, aliás aprovada no governo Dilma. Outro roteiro para o mesmo fim. O general e ministro Augusto Heleno, em um momento de talvez excessiva sinceridade, apenas observou que seria necessário ver como fazer. Depois tentou corrigir-se.
Uma ideia tem dado muito errado no Brasil: o “nunca mais”. A única certeza sobre essa palavra de ordem é que algum dia ela será desmentida. Pois o “nunca mais” supõe a possibilidade de excluir para sempre alguém do jogo, da alternância de poder. E isso vale para todos os lados. Assim como Bolsonaro enterrou o “nunca mais” gritado contra a direita, um dia alguém fará o mesmo do outro lado, e virá o troco. É só esperar para ver quem, e quando.
Os que desejam sinceramente a estabilização de algum tipo de democracia constitucional no Brasil deveriam estudar os casos de Portugal e Espanha. Ali construíram-se regimes políticos que permitem a convivência e a alternância entre saudosos do salazarismo e antissalazaristas ou entre admiradores do franquismo e antifranquistas.
Não se cobra de nenhum lado a renúncia a sua identidade, mas sim a aceitação estrita das regras democrático-constitucionais.
Talvez seja um caminho.
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Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660
domingo, 3 de novembro de 2019
A lógica da dissuasão. E o Big Stick ao contrário
Já descrevi na análise anterior (“Por que de repente a coisa desanda…”) como a sensação de injustiça tem potencial para desencadear rebeliões que parecem brotar do nada. Há ainda outro fator. É preciso que as instituições políticas tenham perdido a necessária capacidade de absorver as ondas de choque quando a insatisfação da massa alcança um ponto crítico.
Ou seja, é preciso que as pessoas tenham se desiludido, ou ao menos atingido um patamar de ceticismo, sobre a possibilidade de resolver “pacificamente” as pendências com o governo. É a situação propícia a que correntes políticas busquem mudar rapidamente, por meio da “rua”, a correlação de forças, e portanto a configuração do poder.
É natural, também por isso, que em qualquer país e qualquer tempo a oposição trabalhe para dificultar que aquelas ondas de choque sejam absorvidas, ao menos enquanto ela própria não alcançar o objetivo de poder. Ou entrando no governo ou promovendo uma troca de guarda. Daí a inutilidade, para a oposição, de platitudes como o adjetivo “construtiva”.
E o governo? Precisa trabalhar dia e noite para impedir o atingimento do ponto nodal em que as pessoas passam a duvidar do “funcionamento” das ditas instituições. E precisa lembrar sempre à sociedade que tem instrumentos repressivos capazes de evitar a perda de poder, e tem também a disposição de usá-los, se for preciso para evitar a perda do controle.
Paulo Guedes é o principal instrumento de Jair Bolsonaro para manter acesa a esperança de que as coisas vão melhorar. Há porém dois complicadores. Nem os mais otimistas acham que a vida vai ficar muito melhor tão rápido, e os realistas sabem que é grande a possibilidade de uma turma expressiva acabar ficando para trás mesmo quando as coisas melhorarem.
Daí que o governo declare repetidamente a disposição de reprimir. É uma tática de dissuasão. E a referência ao AI-5 só chocou quem esqueceu que o bolsonarismo é uma força política externa ao bloco derrotou o ciclo militar em 1984/85. Ele não tem qualquer compromisso com a narrativa da Nova República. Aliás é a expressão atual dos derrotados naqueles dois anos.
Entretanto, a dissuasão pela exibição de força só tem efeito se há a disposição e a capacidade reais de usar a força. E tudo na vida tem dois lados. No Chile, por exemplo, Sebastián Piñera acabou perdendo a capacidade de dissuasão quando quis exibir uma força que não tinha como utilizar plenamente no plano operacional: as Forças Armadas.
E quando você ameaça usar uma força que na prática não está disponível você acaba mandando sinais de fraqueza, e reduzindo portanto a capacidade de dissuasão.
Fica a dica.
Governos precisam mostrar permanentemente que estão fortes, e uma parte disso é evitar o isolamento, nas ruas e nos salões. A situação ótima é quando o governo convence a sociedade, especialmente as elites, de que ele é essencial para resolver os problemas. A situação razoável é quando ele dá a impressão de não estar atrapalhando.
Ou seja, é preciso que as pessoas tenham se desiludido, ou ao menos atingido um patamar de ceticismo, sobre a possibilidade de resolver “pacificamente” as pendências com o governo. É a situação propícia a que correntes políticas busquem mudar rapidamente, por meio da “rua”, a correlação de forças, e portanto a configuração do poder.
É natural, também por isso, que em qualquer país e qualquer tempo a oposição trabalhe para dificultar que aquelas ondas de choque sejam absorvidas, ao menos enquanto ela própria não alcançar o objetivo de poder. Ou entrando no governo ou promovendo uma troca de guarda. Daí a inutilidade, para a oposição, de platitudes como o adjetivo “construtiva”.
E o governo? Precisa trabalhar dia e noite para impedir o atingimento do ponto nodal em que as pessoas passam a duvidar do “funcionamento” das ditas instituições. E precisa lembrar sempre à sociedade que tem instrumentos repressivos capazes de evitar a perda de poder, e tem também a disposição de usá-los, se for preciso para evitar a perda do controle.
Paulo Guedes é o principal instrumento de Jair Bolsonaro para manter acesa a esperança de que as coisas vão melhorar. Há porém dois complicadores. Nem os mais otimistas acham que a vida vai ficar muito melhor tão rápido, e os realistas sabem que é grande a possibilidade de uma turma expressiva acabar ficando para trás mesmo quando as coisas melhorarem.
Daí que o governo declare repetidamente a disposição de reprimir. É uma tática de dissuasão. E a referência ao AI-5 só chocou quem esqueceu que o bolsonarismo é uma força política externa ao bloco derrotou o ciclo militar em 1984/85. Ele não tem qualquer compromisso com a narrativa da Nova República. Aliás é a expressão atual dos derrotados naqueles dois anos.
Entretanto, a dissuasão pela exibição de força só tem efeito se há a disposição e a capacidade reais de usar a força. E tudo na vida tem dois lados. No Chile, por exemplo, Sebastián Piñera acabou perdendo a capacidade de dissuasão quando quis exibir uma força que não tinha como utilizar plenamente no plano operacional: as Forças Armadas.
E quando você ameaça usar uma força que na prática não está disponível você acaba mandando sinais de fraqueza, e reduzindo portanto a capacidade de dissuasão.
Fica a dica.
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Governos precisam mostrar permanentemente que estão fortes, e uma parte disso é evitar o isolamento, nas ruas e nos salões. A situação ótima é quando o governo convence a sociedade, especialmente as elites, de que ele é essencial para resolver os problemas. A situação razoável é quando ele dá a impressão de não estar atrapalhando.
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