quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Jogando para a plateia?

O bolsonarismo curtirá se o STF não se meter
nos assuntos caros à agenda bolsonarista


No debate político em terras brasileiras, a objetividade perdeu-se como cachorro que cai do caminhão da mudança. Esta semana o Supremo Tribunal Federal avançou para ajudar o presidente eleito a retomar o poder moderador. E recebeu uma batelada de críticas vindas... dos eleitores do presidente eleito!

O STF está a ponto de decidir que as atribuições exclusivas do presidente, segundo a Constituição, continuam sendo exclusivas do ocupante do Planalto. Vai reafirmar que o presidente pode indultar condenados pela Justiça como bem entender. Vale para o tema específico, mas dá pistas também de um critério geral.

A eleição mostrou que o Brasil está cansado da desordem. Um dos focos da bagunça é cada instituição de Estado atribuir-se os poderes que bem entende, reescrevendo ou reinterpretando a Carta conforme convém. Um “processo constituinte” deformado e caótico, que paralisa. Freios e contrapesos tão bons que não se consegue governar.

A racionalidade política virou mesmo um bem escasso no Brasil. O bolsonarismo das redes está furioso porque o STF vai abrir mão de se meter no caso do indulto. Se raciocinassem, notariam que isso é bom para o novo regime. Pelo simples motivo de que este tem, vejam só!, a presidência da República e a maioria do Congresso.

Quem ganha se Judiciário e Ministério Público aceitarem que o Congresso faz as leis e o Executivo governa? O governo e a maioria do Congresso. Quem tem interesse em estender a mecânica em vigor, na qual o MP e a Justiça se estabeleceram como concentradores de todos os poderes da República Federativa do Brasil?

É o óbvio ululante rodrigueano. Coisa que anda fora de moda. Mas vamos tentar pensar. O que será melhor para o bolsonarismo? Que temas como aborto, legalização das drogas, meio ambiente, demarcação de terras indígenas e porte de armas sejam decididos pelo Legislativo, em parceria com o governo, ou pela dupla Justiça-MP?

Hoje, os ministros-ativistas do STF são aplaudidos nas ruas porque ignoram os dispositivos legais e constitucionais que, segundo o pensamento médio, “atrapalham a luta contra a corrupção". Mas onde passa um boi passa a boiada. Já se sabe, desde os “Versos íntimos”, que o beijo, amigo, é a véspera do escarro. #FicaaDica.

E Jair Bolsonaro? Ele disse que se o STF confirmasse o indulto de Michel Temer, seria o último. Depois ajustou, dizendo que seria o último tão generoso. Ganhará dinheiro quem apostar que, uma vez no leme, o presidente ajustará ainda mais. Como já mudou em outras teses, quando fica claro que a ideia original mais atrapalha que ajuda.

Mas talvez haja um motivo para Bolsonaro chatear-se. Talvez ele esteja lendo a decisão do STF como a reafirmação de que o tribunal tem a ultima palavra, mesmo quando for para decidir que não quer ter. Meio circular, mas paciência. Presidente pode muito, mas não pode tudo. Ou talvez Bolsonaro esteja apenas jogando para a plateia.

Vida que segue. O Brasil parece convencido de que encarcerar em massa e enfrentamento militar do crime vão resolver problemas como a corrupção e a falta de segurança. Neste momento político, isso ajudou e está ajudando uns. Mais adiante, quando os custos e os resultados ficarem mais nítidos, o vento talvez mude. No México mudou.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

“Escola sem partido” traz risco para o governo e é oportunidade para a oposição

Certas ideias infiltram-se no debate público cheias de lógica, apenas para fracassar mais adiante, por total inviabilidade. E esse percurso não é neutro, costuma lançar na coluna de perdedor quem nelas investiu capital político. Foi assim com o “controle social da mídia" proposto pelo PT. Pinta ser assim com o “escola sem partido” anabolizado pelo bolsonarismo.

O PT passou década e meia no governo falando no “controle social da mídia”, e colheu só desgaste. Não conseguiu implantar qualquer tipo de controle, mas deu gás às teses de que o objetivo último do partido é acabar com a liberdade de imprensa, como praticada em países como o nosso. Não foi só por isso, claro, mas também por isso deu no que deu.

O “escola sem partido” ensaia ser para o bolsonarismo um ponto focal de organização política e intelectual dos adversários, que agora terão a vantagem de desfraldar a bandeira da liberdade. Uma vantagem e tanto. Outra notícia boa para a oposição: ao contrário do PT e seu “controle social da mídia”, talvez haja votos para passar a coisa no Congresso Nacional.

Pois o desgaste que o novo governo vai colher com o debate parlamentar do “escola sem partido” nem se compara à corrosão que sofrerá com as tentativas de implantar na vida real, se virar lei. Em primeiro lugar, por oferecer ao STF a oportunidade de manifestar mais uma vez seu poder, e agora como guardião das liberdades e garantias fundamentais da Constituição.

Mas não só. Melhor ainda será, para a oposição, se o STF deixar passar. Aí a guerra se espalhará pelas escolas e universidades, e assim ganhará amplo espaço na imprensa. E vai ser uma guerra perpétua, pois, como no “controle social da mídia” do petismo, inexiste em projetos como o “escola sem partido” qualquer possibilidade de adotar parâmetros objetivos.

Como medir a “doutrinação” aceitável na difusão das ideias? Boa sorte a quem tentar descobrir. Um monarquista empedernido se revoltará contra a tese de as revoluções francesa e americana terem sido saltos adiante no processo civilizatório. Um socialista clássico se rebelará contra a tentativa de enquadrar o socialismo na categoria de “totalitarismo". E então?

E quando o debate passa a ser sobre religião? Uma escola vinculada a determinada crença tem todo o direito de dizer aos alunos que o critério de certo e errado, de verdade e mentira, foi estabelecido pelos textos sagrados dela. E também de informar que dúvidas sobre a atualidade das regras devem ser dirimidas com representantes da respectiva hierarquia religiosa.

Mas se, por exemplo, escolas católicas devem poder ensinar aos alunos que Jesus Cristo foi o Messias, as judaicas também devem poder contestar que não. E as de fé islâmica devem ter toda a liberdade de defender que Jesus foi apenas um profeta, e não filho de Deus, ou Deus. E se os pais não concordarem? Ou explicam em casa que não é bem assim ou trocam de escola.

“E nas escolas públicas?” Bem, aí só há duas possibilidades: 1) ou cada professor tem liberdade para ensinar ou 2) estabelece-se uma ideologia oficial. São os dois sistemas conhecidos. Toda tentativa de achar um terceiro fracassou. O “escola sem partido” só seria viável no segundo. E seria um desafio brabo num planeta digitalizado e interconectado em tempo real.

Radicalizar na agenda dita “comportamental” vai ser tentação, na impossibilidade de apresentar resultados econômicos instantâneos. Será uma maneira de manter coesa e energizada a base social do bolsonarismo, pois talvez as circunstâncias da economia obriguem a recuos nas agendas da política externa e ambiental. Mas também vai ser oxigênio para a oposição.

Assim será com o “escola sem partido”. Se o governo for esperto, dá um jeito de dizer que está fazendo e ao mesmo tempo desidrata a coisa até a irrelevância. Deixa pra lá. Mas talvez falte ao ideologicamente coeso governo bolsonarista, todo imbuído do sentido de missão, o passarinho na gaiola na mina de carvão. O que quando morre dá o sinal de perigo.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A oposição está dividida. Mas o que isso importa para o governo Bolsonaro?

A oposição ao governo que vem aí em 2019 está por enquanto dividida. O PT saiu da eleição inteiro mas emagrecido e isolado, o que parece se refletir nos primeiros movimentos pela formação de blocos na Câmara e no Senado. Já o resto da oposição leva jeito de ter como único ponto de convergência a recusa ao PT continuar liderando o chamado “campo progressista".

Claro que se deve dar o desconto às chamadas flores do recesso. Assuntos que pipocam na imprensa quando as instituições da capital estão em férias. O jornalismo não pode simplesmente dizer “caro leitor (ou espectador), não há nada de importante acontecendo, voltaremos quando houver notícia". Padaria e jornalismo precisam oferecer sempre produtos frescos.

Mas a divisão do espectro oposicionista não é só flor de recesso. As dificuldades políticas e jurídicas do PT estimulam apetites, e é do jogo. E 2022 está logo ali. Para ambos os lados. O presidente eleito diz que não pode afundar, pois o Brasil afundaria junto. O que ele quer dizer aos aliados: “se vocês não me apoiarem nós podemos perder a próxima eleição".

Depois de três décadas e tanto no sereno, a última coisa que passa pela cabeça da direita é devolver o governo à esquerda -e é natural que apresente essa possibilidade como uma antevisão do apocalipse. Já na esquerda, as pedras no caminho, tanto do novo governo quanto do PT, estimulam naturalmente a frase que todo político pronuncia com igual facilidade: “por que não eu"?

O que será melhor para Bolsonaro? Uma oposição unida ou dividida? O senso comum manda cravar a alternativa “b”. É aritmético. Mas cuidado: o senso comum e a aritmética são úteis para resolver quase todo tipo de problema, só não são suficientes quando se trata de solucionar os enroscos mais importantes. #FicaaDica.

Nos anos 1970, a esquerda brasileira estava dividida sobre como combater os governos militares: pela via armada ou pela chamada via política, ou pacífica. Bem, depois de liquidar as guerrilhas urbanas e rurais o regime foi com tudo para eliminar a esquerda que recebia o apelido de “reformista”. Na época, aliás, ainda era pejorativo ser chamado assim.

Os grupos guerrilheiros ameaçavam o establishment político-militar nascido em 1964, claro. Mas a participação ativa dos comunistas no MDB, então único partido de oposição, também incomodava. Daí por que o poder não estacionou quando liquidou as guerrilhas. Apenas partiu para uma nova etapa de combate, na qual eliminou, literalmente, boa parte da direção do PCB.

Não comparo as situações, apenas a lógica que comanda os personagens. Até porque a guerra é a continuação da política por outros meios, sabe-se bem. Há mais exemplos. Tancredo Neves criou um partido mais moderado que o MDB na entrada dos anos 80. Mas teve de voltar ao PMDB quando o governo militar mudou as regras eleitorais exatamente para dificultar a vida dos... moderados!

Governos não gostam de oposições. Porque o objetivo fundamental de todo governo é continuar, e a meta central de toda oposição é tomar o lugar de quem está no governo. E governos incomodam-se quando dependem de uma oposição moderada para formar maiorias. Nenhum governo gosta de depender da oposição. Pois a mão que afaga é a mesma que apedreja.

Ainda mais quando o governo tem fortes propósitos ideológicos, como parece ser o caso. As metas são ambiciosas. Além de retomar o crescimento econômico e o emprego, pretende-se promover uma ruptura cultural. E não apenas conter os chamados movimentos sociais, mas esmagá-los. Que utilidade terá nesse caso para o governo uma oposição de esquerda moderada? Pouca.

Bolsonaro enfrentará oposição social cerrada, que naturalmente resultará em oposição política cerrada. Precisará portanto de uma maioria congressual fiel, e num ambiente em que negociar à moda antiga com os partidos perdeu o pouco de legitimidade que tinha na opinião pública. Por isso prefere reunir forças com base em interesses econômicos e culturais.

Se vai funcionar é outra história. Mas parece que ele vai pagar para ver, num primeiro momento. E isso significa continuar polarizando. O que deixa por enquanto pouco espaço para a conciliação. Que talvez venha quando, e se, o governo perder musculatura. Por enquanto, será mesmo Fla x Flu.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

sábado, 17 de novembro de 2018

A disputa não é por ideologias, é sobre o que fazer no cenário global de ascensão da China

Em agosto, quando a eleição começava a esquentar, veio ao Brasil o secretário (lá ministro chama assim) de Defesa dos Estados Unidos, Jim Mattis. Por que a visita? Parte do esforço de Washington para conter a expansão da influência chinesa. Isso não é suposição, ou dedução: ele mesmo fez questão de afirmar.

No governo de Donald Trump, a contenção da China ombreia com a contenção do Islã político na lista de prioridades em política externa. E há dois séculos os EUA olham as terras do Alasca a Ushuaia pelas lentes da Doutrina Monroe, “América para os americanos”. A conclusão é imediata.

Na teoria, os “americanos” de Monroe não são só os do norte, mas todos os habitantes entre o Estreito de Behring e o Canal de Beagle. Na prática, dada a brutal desproporção entre os Estados Unidos e os vizinhos, a doutrina reserva o território à influência norte-americana, excluindo da denominação o Canadá e o México.

É esperado portanto que em períodos de disputa aberta da hegemonia Washington aperte o torniquete por aqui. Foi assim nas pressões sobre Getúlio Vargas na Segunda Guerra e na deposição de João Goulart, acontecimento que aliás só é explicável no contexto da Guerra Fria deles contra a União Soviética.

No front externo, Bolsonaro precisaria absorver ao menos em parte a sabedoria de Getúlio. O único erro que o líder da Revolução de 30 não podia correr na Segunda Guerra era terminar encaixotado do lado errado da história. E não cometeu. Pendulou, mas alinhou-se aos vitoriosos a tempo, e com ganhos materiais para o Brasil.

Nações com capacidade limitada de projeção de poder, hard ou soft, precisam de governantes com frieza, cinismo e inteligência para pendular sem arriscar o pescoço, o deles e o do país, e timing para alinhar no lado e momento certos. Assim é também quando se olha a disputa agora de hegemonia entre Estados Unidos e China.

A China é o contendor mais formidável que os EUA já tiveram, se não globalmente ao menos por aqui. Apenas para pegar os últimos cem anos, nem alemães nem soviéticos tinham em escala parecida as duas mercadorias que os chineses têm em abundância e oferecem aos países da América do Sul: capitais e mercados.

O principal nó da política dos EUA para as Américas é desejar reduzir a influência chinesa aqui quando, ao mesmo tempo, Trump impulsiona ali o buy american and hire american. Resta o quê? Os laços civilizatórios que unem os americanos do norte, do centro e do sul. E principalmente a força militar.

É visível que os Estados Unidos estão empenhados em fortalecer e impulsionar governos amigos na região. Mas há o detalhe: numa era em que os países sul-americanos mantêm eleições periódicas, o esforço americano para conter o soft power do dinheiro e do mercado chineses só se pagará se trouxer resultados aqui.

Pode-se gostar ou não do que escreve o novo chanceler, Ernesto Araújo, a respeito do papel de Trump na defesa do que chama de Ocidente. Lá na frente, entretanto, a política externa do governo Bolsonaro será julgada pelos resultados materiais que o Brasil vai colher da aproximação com a Casa Branca.

O presidente eleito tem o direito de desconfiar da penetração maciça de capitais chineses no Brasil. Mas precisará apresentar alternativas. Precisará mostrar que sua política externa abriu mercados a atraiu capitais para impulsionar o avanço das empresas brasileiras e melhorar a vida dos trabalhadores brasileiros.

Ao fim e ao cabo, o que o novo chanceler escreveu em seus artigos e seu blog ficará apenas para análise dos historiadores e dos acadêmicos. Porque, como dizem os americanos, at the end of the day os resultados materiais serão o parâmetro para saber se a política externa da dupla Bolsonaro-Araújo deu certo ou errado.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Alinhamento aos EUA: o prêmio e o risco

Sempre é bom recordar que “os EUA
não têm amigos nem inimigos, têm interesses”


O futuro chanceler é alguém 100% alinhado politicamente com o presidente eleito, e não há surpresa nisso. É natural que o Itamaraty implemente uma política externa coerente com a linha geral de governo. E quem dá a linha é o chefe do governo. Ou sua coalizão, quando o primeiro precisa ceder poder para a segunda.

Um aspecto humorístico sobre a futura gestão são os seguidos e compungidos apelos agora para que se faça um estelionato eleitoral de proporções. Bolsonaro elegeu-se prometendo condução econômica ultraliberal, dureza contra o crime, guerra total contra a oposição e política externa pró-ocidental. E até agora não há novidades.

Aí vêm os “apelos à razão", na linha Perry White. Talvez por má-consciência. Pedem que Bolsonaro se desloque “ao centro". Talvez ele entenda esse conselho como vindo do “amigo da onça”, já que o centrismo foi varrido do mapa na eleição. Não. O foco do bolsonarismo nesta véspera de tomar formalmente o poder é “energizar a base".

E se seguir o exemplo de Donald Trump, a referência explícita do novo chanceler, Bolsonaro continuará fazendo isso depois de 1o. de janeiro. Manterá mobilizado e coeso o núcleo duro do seu eleitorado. O contrário do que fez Dilma Rousseff após a reeleição. Sabe-se como o governo Dilma terminou. Então talvez faça sentido.

Tudo é bonito nos dois meses entre a vitória eleitoral e a realidade árida de governo. Ainda mais se a sorte ajuda. No debate sobre a política externa, agora, ela está ajudando. Os “apelos à razão” do fantasmagórico centrismo apenas reforçam os argumentos da política exterior do novo regime saído da urna.

O ponto central dos que criticam o que chamam de voluntarismo da anunciada nova política externa é o Brasil não ter densidade comercial, diplomática ou militar para simplesmente fazer o que dá na telha. Um exemplo é o suposto risco de perda de mercados para nossos produtos agropecuários, em particular a carne.

Ora, se a premissa é verdadeira, se o Brasil sozinho não tem força para movimentar-se de acordo com os próprios desejos, então, vejam só, faz sentido alinhar-se a alguém com peso específico suficiente para, digamos, dar-nos proteção. E os Estados Unidos da América são o único player do hemisfério com essa mercadoria para entregar.

Uma alternativa, ainda que precária, seria apoiar-se nas instituições plurinacionais regionais. O problema: elas estão em frangalhos. Pode-se discutir por que se chegou a isso, mas os fatos são os fatos. A Unasul (União das Nações da América do Sul) e o CDS (Conselho de Defesa Sul-Americano), por exemplo, não contam mais.

Outra opção seria pedir que a influência russa e chinesa, parceiros de Brics, contrabalançasse a hegemonia norte-americana. Será? O Brasil não é prêmio tão apetitoso para os russos abrirem agora uma nova pendência com os EUA. E a projeção de poder chinesa por aqui é na base do “soft power” do dinheiro. Não pretendem entrar em dividida.

Engenharia de obra feita é fácil, mas talvez se o governo do PT tivesse seguido uma linha mais getulista (equilibrar-se no arame para atravessar o despenhadeiro), como faz por exemplo o governo de esquerda do Uruguai, talvez o desfecho tivesse sido outro. Nunca saberemos. E agora a melodia mudou. E muito.

O risco maior do alinhamento bolsonarista com Washington é o parceiro deixar de entregar a mercadoria, se convier. Leopoldo Galtieri aprendeu a lição nas Malvinas, e pagou um preço alto. Ao invadir as ilhas, ele provavelmente esquecera que os americanos “não têm amigos nem inimigos, têm interesses" (DULLES, John Foster).

#FicaaDica.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A administração da política vai ser complicada, também porque “as instituições estão funcionando”

O novo presidente encontrará algumas condições boas. A economia ensaia uma recuperação, devagar mas recuperação. O desemprego também declina, ainda que muito lentamente (suspeita-se que 10% de taxa de desemprego tenha virado estrutural). O apoio empresarial e militar é maciço. A imprensa fará algum barulho, e só. A oposição vem isolada e dividida.

Há constrangimentos? O principal é a situação fiscal, especialmente de estados e municípios. Mas quanto mais gente um problema ameaça, maior o estímulo para encontrar saídas. Há também as expectativas difíceis de realizar, como na segurança pública. Uma vantagem: as pesquisas disponíveis mostram que a população não espera soluções instantâneas.

O nó mais difícil vem, é claro, da política. Bolsonaro tem amplo apoio potencial no Congresso, pelo menos 60% da Câmara e Senado. O risco? Está na palavrinha “potencial”. Apoio programático genérico e difuso não resolve. A sustentação política de qualquer governo precisa ser organizada, colocada para rodar e administrada na sintonia fina. E 24x7 por todo o mandato.

Nisso, as condições que ele encontra são notavelmente piores que as dos antecessores. Depois de três décadas de demonização da política parlamentar, e de quatro anos de blitzkrieg, “a sociedade” concluiu que governante bom não divide poder com ninguém. E que oferecer posições governamentais por apoio no Congresso é crime passível de pena de morte política.

Apesar de as pesquisas mostrarem certa preferência majoritária pela democracia, as últimas eleições revelaram uma interpretação peculiar do que deva ser essa “democracia”, na tradução prática: eleger diretamente alguém com poderes quase ditatoriais. Infelizmente, para quem pede isso, e desculpem o chavão, “as instituições estão funcionando".

E as instituições funcionaram a pleno vapor esta semana em Brasília. Judiciário e Senado acertaram-se para este último aprovar um belo reajuste (ou reposição) salarial para os ministros do Supremo Tribunal Federal e o procurador-geral da República. Ah, sim, os ministros prometeram que, recebido o aumento, vão reanalisar agora os critérios do auxílio-moradia. Aguardemos.

Há muito tempo (está nos arquivos) previu-se que 1) as eleições tinham boa chance de dar num Bonaparte e, 2) chegando em Brasília, ele se defrontaria com a cobra de muitas cabeças de uma burocracia estatal empoderada após quatro anos de ofensiva de procuradores, juízes, auditores, policiais etc contra o alardeado principal problema do país: a corrupção dos políticos.

Em tempos normais, o reajuste do STF seria bloqueado no Congresso, se fosse a vontade do presidente. Mas qual é o estímulo hoje a que o Legislativo seja solidário com o Executivo? E qual é o estímulo a que o Congresso recuse uma reivindicação da Justiça? Zero e zero. Desculpe citar de novo o velho Eça, mas as consequências teimam em vir depois.

Vamos ver como Bolsonaro desata o nó. O primeiro movimento-chave será dar um jeito de não perder na disputa das presidências da Câmara e Senado. Não precisa necessariamente ganhar, apenas não pode se dar ao luxo de perder. Sem o comando das casas, desintermediar a relação com os parlamentares vira bumerangue, pois os líderes estarão na tocaia.

O segundo movimento? Aproveitar a largada para avançar na agenda. Mas, com o tempo, ou o governo se abre ou vai perder velocidade. Agenda legislativa ambiciosa é bonita na campanha eleitoral, nos elogios em editoriais, nos discursos e artigos. Na vida real, o custo é o governante depender mais dos representantes do povo, e dos estados, no parlamento.

Nas condições atuais, ou Bolsonaro acerta-se com o Congresso alguma hora ou há o risco razoável de acabar atolando. Ou então lipoaspira a agenda. Mas isso teria forte impacto negativo no eleitorado bolsonarista, nas elites e no povão. Nos EUA, Trump só continua a navegar porque mantém reunida sua base em torno da agenda nacionalista e conservadora.

Óbvio que há sempre a opção de acreditar na mobilização popular para impor as coisas a um Congresso cercado. Veremos até quando o governo resistirá à tentação, até quando terá paciência com as instituições que “estão funcionando".

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O “governo técnico” e o “presidencialismo de coerção”: as novas fantasias do imaginário político brasileiro

Todo governo é político, ainda que negue
Confiar no medo que a polícia põe nos políticos é arriscado


Algumas coisas foram mesmo novidade nesta eleição. A vitória de um candidato com pouco tempo formal no horário eleitoral, a larga supremacia da direita sobre a esquerda no segundo turno, o livre trânsito para as ideias liberais, o fim da vergonha de defender a ditadura militar. Não faltaram novidades.

Entretanto, outras anunciadas originalidades ainda precisam ser mais bem verificadas. Bolsonaro não foi o candidato de um partido pequeno, o PSL. O partido informal que o elegeu foi superparrudo, agregando ampla coalizão empresarial, religiosa e militar. E congressual. Esta foi a eleição das cristianizações.

Outra tese cuja repetição exaustiva infelizmente não chega a ser uma demonstração: as redes sociais teriam suplantado a mídia clássica. As redes foram sim vetor fortíssimo de mobilização, mas não há ainda qualquer prova de que os eleitores tenham formado convicção principalmente pelo material que receberam no whatsapp.

Por falar em repetição, outra tese bem martelada é que Bolsonaro está montando um gabinete sem olhos nos partidos. Não é fato. Estão e estarão bem representados no governo o PBR (Partido da Bancada Ruralista), o PLJ (Partido da Lava-Jato), o PMR (Partido dos Militares da Reserva) e o PEMAL (Partido da Economia Mais Liberal). Pelo menos.

Legendas não registradas no TSE, mas e daí? Quem ajuda a eleger ajuda a governar. A realidade não é refém dos cartórios. Por isso, o ministério Bolsonaro talvez seja o mais político de tempos recentes, na acepção da palavra. Claro que falta coordenar isso com o Congresso. Mas, como diria o Marcelo Adnet imitando o Geraldo Alckmin, dá pra fazer.

Pode resultar errado? Claro. Não há originalidade em apostar que as coisas darão errado entre nós. Mas é preciso esperar. Inclusive porque o Congresso brigar com o governo novo em folha nunca é inteligente. E, como se aprende em Brasília, aqui não tem bobo. Se tem algum bobo, deve ter ficado em alguma suplência, e olha lá.

Outra hipótese cuja inteligência ainda está por demonstrar é que os políticos vão aderir ao governo por medo de serem perseguidos pelo novo ministro da Justiça, Sergio Moro. Antes de tudo: quase metade dos eleitos ao Congresso não estavam ali nos últimos quatro anos. E a maioria dos reeleitos vêm atravessando ilesos a fogueira repressiva.

É ingenuidade achar que o ministro da Justiça vai mandar no Ministério Público, ou mesmo nas investigações da Polícia Federal. E mais ingenuidade ainda achar que Moro vai arriscar seu capital político operando o cargo pela lógica da impunidade seletiva. A lógica do “vota comigo que eu te protejo". Não faz sentido, para ele ou para o Planalto.

E como votar os assuntos de interesse do governo? Vamos aguardar. O governo será popular na largada e terá o orçamento. E mesmo isso pode ficar algo congelado no começo. No primeiro ano, 2003, Lula deixou para executar emendas parlamentares bem no final, quando o Congresso já tinha aprovado coisas importantes para o presidente.

Tudo pode dar errado, principalmente com o passar do tempo, mas é bom não colocar a carroça na frente dos bois.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Desafios respectivos do novo governo e da nova oposição: atacar o déficit e buscar uma identidade

O primeiro desafio do futuro governo Bolsonaro é dar sinais de que vai enfrentar rapidamente o déficit primário, no qual o governo Temer vem sendo recordista. Seria uma luz não apenas para as finanças, mas também para o mundo político. Mostraria que Paulo Guedes não é um fusível do presidente para os primeiros tempos, que a aliança entre ambos tem consistência.

Quando se escreve “enfrentar”, não se leia “resolver”. O que as forças bolsonaristas na sociedade, especialmente nas camadas mais bem postas, esperam não é um milagre de Natal nas finanças públicas, mas a indicação clara de o trem ter saído da estação. O andamento da reforma da previdência social será o sinal de que a composição finalmente passou a rodar.

Qualquer governo mexeria na previdência, e este vai mexer. Ela tem dois problemas fundamentais: 1) o aumento da expectativa de vida e 2) o paraíso previdenciário particular dos servidores públicos, com destaque para as chamadas “carreiras de Estado”. Dois vespeiros. O primeiro é bolir com o povão. O segundo é cutucar um núcleo duro do bolsonarismo.

O ideal para Bolsonaro seria resolver isso antes de receber a faixa. Uma reforma da previdência que ao menos clareasse o caminho para os próximos anos. O problema menor: associar-se ao impopular Temer na empreitada. O risco maior: e se tentar e perder? Um pavor de governos novos é nascerem velhos. O presidente certamente não vai, no popular, querer pagar o mico.

Então a tática repousará na aritmética. Para o governo eleito, trata-se apenas de contar votos. E governos novinhos em folha têm gás para juntar gente no Congresso Nacional. A moeda-padrão das negociações políticas ainda não se desvalorizou. A promessa e o compromisso ainda estão com a credibilidade intacta. Ainda não foram corroídos pela inflação da vida real.

Além do mais, o governo tem um amplo estoque potencial de votos congressuais maduros, apenas esperando pela colheita. O PSL exibe só meia centena de deputados, mas o bolsonarismo lato sensu pode facilmente reivindicar três quintos da Câmara. E conta também com a boa vontade de um pedaço da oposição ansioso para exibir uma atitude, digamos assim, construtiva.

O projeto político de reconstrução do holograma centrista está nítido: “apoio crítico” ao governo na agenda liberalizante e oposição cerrada nas políticas anti-identitárias, nas iniciativas ambientais e nas medidas ultrarrepressivas para combater a criminalidade. É o programa de um bloco que tentará se apresentar moderado, distinto da oposição de esquerda.

Esta também anda dividida, dada a disposição de uma parte de buscar caminhos que a libertem da subordinação ao PT. Por enquanto, a iniciativa parece ter alguma musculatura parlamentar. Um problema dela é o PT ter conseguido segurar seus votos na campanha eleitoral. Outro problema é como fazer “oposição construtiva de esquerda” a um governo Bolsonaro.

São elucubrações. Os fatos da vida costumam ser um santo remédio. Quando janeiro chegar, as forças políticas e sociais precisarão escolher entre duas opções: apoiar o governo ou opor-se a ele. O “centro” precisará de remédio para urticária pois se descobrirá colado ao bolsonarismo. E a esquerda não petista acordará do porre deitada na cama ao lado do PT.

E não é bom depender da estupidez alheia. É ilusão acreditar que o bolsonarismo vai assistir quieto à articulação de uma direita aguada e palatável a quem, tendo ajudado a vencer o PT, precisa agora de algo mais moderno para sair à rua. E é, desculpem, burrice achar que PT e PSOL vão se deixar isolar sem explorar politicamente o colaboracionismo dos rivais.

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Depois de um passo à frente, dois passos atrás. Nesta primavera (ou outono, conforme a preferência) de “rearenização”, é curioso notar o ressurgimento também da velha diferença entre oposição “autêntica” e “moderada". Os adeptos desta última lembram sempre que quem brigou mesmo foram os primeiros mas quem levou no final, com Tancredo, foram os segundos. Será?

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Acabou o mimimi

Perspectiva de “choque de capitalismo"
Plano inicial de voo sem políticos e sem luvas de pelica


Que a eleição deste ano selou o colapso da Nova República já se disse. Mas esse colapso ensaia ser mais amplo. Parece ter fim também o pilar central das políticas econômico-sociais pós-redemocratização: a ideia de promover inclusão social principalmente pelo redistributivismo via Estado.

As políticas sociais não vão acabar, mas sairão de moda. O pensamento econômico-social estruturante do novo regime é nítido: só mais capitalismo, e com menos amarras, será capaz de promover crescimento e prosperidade, inclusive para os mais pobres. Se vai funcionar, ou até quando, é outra história.

Na teoria, serão uma linha e uma agenda do agrado do mundo empresarial. Mas atenção: O “choque de capitalismo”, para funcionar, terá de atacar cartórios e benesses que sustentam o status quo na economia brasileira há décadas, ou há séculos. Aqui, como Fernando Collor na largada, talvez Jair Bolsonaro deixe a direita indignada.

Mas Collor não disse só isso, disse também que deixaria a esquerda perplexa. Acho que agora não vai acontecer, pois até as franjas mais moderadas da esquerda começam a perceber a disposição de combate e o plano estratégico do adversário. Vem aí um período de sofrimento operacional para a nova oposição.

Até porque o novo regime não perece muito preocupado com certas formalidades que estiveram em moda nas três últimas décadas, quando jogar o jogo democrático-parlamentar-institucional era visto como valor pela opinião pública e pela sociedade. Agora, o jogo mudou: a única regra é “não se faz omelete sem quebrar os ovos”.

O plano de voo inicial parece seguir dois “sem”. Sem políticos e sem luvas de pelica, que no jargão das hoje célebres redes sociais é o “sem mimimi". Vai dar certo? Dependerá essencialmente da economia, onde as perspectivas não são tão cinzentas, já que vivemos um início de recuperação, até certo ponto inevitável depois da recessão de 2015/16.

E a esquerda? Vai enfrentar um período operacionalmente difícil mas politicamente promissor. Também porque no novo regime, apesar dos muitos militares influentes, parece que ninguém leu Sun Tzu. Quando você não deixa uma saída para o inimigo ele vai multiplicar as próprias forças e a disposição de combate, para sobreviver.

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Para já ir adotando a novilíngua dos novos tempos, as reclamações contra a nomeação de Sergio Moro para a Justiça serão recebidas como mimimi. Mais uma evidência de que certas formalidades e salamaleques da hoje velha Nova República deixaram de ter serventia e repousam no arquivo à espera apenas de algum historiador curioso.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br