sábado, 25 de setembro de 2021

Um Bolsonaro para Bolsonaro? E Moro

Toda previsão no Brasil deveria trazer junto um seguro-imprevisibilidade, mas é razoável supor que entramos num período algo estável, no qual a guerra de movimento vem sendo substituída por uma guerra de posição, e de baixa ou média intensidade. Por uma razão: nem o presidente da República reuniu até o momento força para suplantar os demais poderes nem os opositores acumularam por enquanto massa crítica para depô-lo.

Daí que as atenções comecem a se voltar cada vez mais para a próxima janela de oportunidade na disputa do poder: a eleição. Com uma competição particular entre os candidatos a ser o “Bolsonaro do Bolsonaro”. Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB na corrida de 2018. Um PSDB que nas seis disputas anteriores ou ganhara ou pelo menos fora ao segundo turno...

Os dois pré-candidatos tucanos afiaram as lanças esta semana, exibindo suas impecáveis credenciais antipetistas, pouquíssimo tempo após a vaga de opiniões e emocionados apelos pela “frente ampla”. Faz sentido. Para a legenda, a vaga em disputa no segundo turno não é a de Luiz Inácio Lula das Silva, mas a do adversário dele. E os governadores paulista e gaúcho estão num momento de “ciscar para dentro”.

Enquanto isso, o presidente busca um certo reposicionamento, mostrando que a carta redigida em conjunto com o ex Michel Temer não foi raio em céu azul. Tem lógica, pois Jair Bolsonaro não enfrenta concorrência séria no campo da direita. Se mantiver os traços estruturais do discurso, pode tranquilamente fazer movimentos táticos ao “centro”, inclusive por não ter maiores antagonismos com o centrismo. Corre pouco risco de perder substância.

Quanto vai durar a (quase) calmaria? Um palpite é que dure enquanto os dois blocos que hoje travam a disputa mais acalorada, o bolsonarismo e o centrismo, acreditarem reunir potencial de voto para prevalecer em outubro de 2022. Por isso mesmo, seria imprudente apostar todas as fichas num processo eleitoral no padrão dos anteriores, absolutamente estável. Pois alguma hora um desses dois blocos notará que a vaca está indo para o brejo.

A não ser que Lula derreta no caminho. O que por enquanto não está no horizonte.

E os imprevistos? Como dito amiúde, é imprudente desprezá-los. Especialmente diante de um Judiciário fortemente inclinado ao ativismo. Mas eventuais decisões que removam algum contendor manu militari não garantem vida fácil a quem sobrar na corrida. Pois pode perfeitamente acontecer como em 2018: o removido apoiar alguém e manter ocupado o espaço político que se pretendeu deixar vago.

E há outra variável, que ensaia alguns passos, costeando o alambrado: Sergio Moro. As ofertas para ele estão feitas. Com o pulverizado cenário da “terceira via”, a possibilidade de ocupar esse espaço não deixa de ser atraente para o ex-juiz e ex-ministro.

Sobre isso, escrevi em janeiro do ano passado (E se Moro virar o "candidato do centro"?).

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Uma frente difícil

Por que os opositores não se reúnem numa frente ampla contra Jair Bolsonaro? A explicação está ao alcance. Qual dos candidatos a participar da frente vê no capitão uma ameaça significativamente maior que a representada pelos possíveis aliados táticos contra o presidente da República?

Pois seria simples de resolver. 

Bastaria todos firmarem o compromisso de apoiar quem for ao segundo turno contra Bolsonaro. Se o presidente estiver no segundo turno. Poupariam tempo e energia. E cada um faria seus próprios comícios, passeatas e que tais. Sem o risco de ser apupado pelos amigos de hoje, que amanhã voltarão a ser os inimigos de ontem.

Qual é o obstáculo? Em largas parcelas do espectro político-social-empresarial apoiar Bolsonaro ou manter certa neutralidade, no primeiro ou no segundo turnos, continua sendo uma opção à mesa. E alianças políticas só se consolidam quando se cristaliza a consciência, ou a circunstância, de uma ameaça externa qualitativamente maior.

Um exemplo aliancista sempre lembrado é a Frente Ampla costurada por Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, que tentaram atrair João Goulart. No fim, o regime militar implodiu a articulação e ela acabou sendo o canto de cisne político dos três.

Eram inimigos e só começaram a conversar sobre juntar-se quando a ameaça existencial política já tinha desabado ou estava apontada para todos eles. Lacerda fora um líder de 1964. E JK votara no marechal Castelo Branco na eleição indireta para substituir o deposto Jango.

Outro episódio de referência é a Segunda Guerra Mundial. União Soviética, Estados Unidos e Reino Unido uniram-se para derrotar a Alemanha. O incauto pode ser induzido a acreditar na fábula das três potências que certa hora decidiram salvar a humanidade, deixaram para depois as diferenças e deram-se as mãos na urgente tarefa comum.

O Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha quando esta invadiu a Polônia, mas britânicos e franceses esconderam-se numa guerra de mentirinha ("phoney war"), ou pelo menos de baixa intensidade, até os alemães atacarem a França.

A União Soviética só passou a combater a Alemanha quando foi invadida por ela, em junho de 1941. Antes, firmara em 1939 um pacto de não-agressão com Berlim, para neutralizar a pressão que britânicos e franceses faziam sobre os alemães para estes atacarem os soviéticos. E os Estados Unidos só entraram na guerra quando atacados pelos japoneses em Pearl Harbor, em dezembro de 1941.

Súditos da rainha, liderados de Stalin e comandados por Roosevelt só se deixaram arrastar para a guerra quando se viram diante de uma ameaça existencial direta. A eles mesmos (URSS), a seu império (Reino Unido) ou à sua área de influência no Pacífico (EUA).

Que futuro o PT oferece ao “centro” para este fechar as portas definitivamente a Bolsonaro? E que garantias a esquerda raiz tem de vida mais fácil num governo da “terceira via”?

Dizer "vamos tirar o Bolsonaro e só depois eu corto teu pescoço" não chega a ser uma sedução irresistível.

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Publicado na revista Veja de 29 de setembro de 2021, edição nº 2.757

sábado, 18 de setembro de 2021

No horizonte, a eleição e as nuvens

As placas tectônicas vinham movendo-se uma contra a outra, mas o choque não aconteceu. Pois nenhum dos lados avaliou ter força para prevalecer na base da... força. Nem os desejosos do impeachment reuniram massa crítica, na rua e na política, para o desfecho, nem Jair Bolsonaro teve como simplesmente tratorar o Supremo Tribunal Federal. O equilíbrio continua estruturalmente instável, dado o cenário eleitoral hoje desfavorável à continuidade do governo, mas vivemos um momento de calmaria.

Quanto vai durar? Há uma possibilidade razoável de que dure até o início da campanha eleitoral, daqui a pouco menos de um ano. Pois os três blocos principais veem uma janela para prevalecer na urna. Luiz Inácio Lula da Silva e o PT acreditam estar com a mão na taça. Bolsonaro confia na fidelidade dos dele e no apelo ao antipetismo. E o “centro” olha para a confluência do piso e do teto eleitorais do presidente. E daí começa a ensaiar o discurso de que se querem evitar a volta do PT e de Lula primeiro é preciso tirar Bolsonaro da frente.

Na oposição de esquerda não há muito de original a fazer, além de criticar o governo, conversar nos bastidores e tentar subir o tônus da mobilização. O desafio dos organizadores do protesto de 2 de outubro é rivalizar com os expressivos atos pró-Bolsonaro de 7 de setembro. Precisarão mobilizar mais que a militância, precisarão colocar povo na rua. Os atos de 12 de setembro foram surpreendidos no contrafluxo, depois da distensão momentânea em Brasília. Como estará o clima político daqui a 15 dias?

No dito centro há dois enigmas a decifrar. Como acelerar a convergência em torno de menos nomes, para juntar alguma massa crítica e criar expectativa de poder? Pois o principal problema da “terceira via” hoje é a falta da expectativa de poder. Um caminho para esse objetivo é tentar esvaziar radicalmente Bolsonaro, daí que a oposição mais feroz a ele no momento venha desse campo político. Mas o presidente resiste. A cada pesquisa que anuncia o derretimento dele, nota-se que Bolsonaro mantém o market share eleitoral.

E o governo? Precisa governar. Enfrentar o desafio de aumentar o Bolsa Família, combater a inflação, resolver o rolo dos precatórios, ver o que faz com a crise hídrica, tourear a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid, aprovar seu candidato ao STF e administrar o cessar-fogo com o tribunal. Devo ter esquecido de alguma coisa, mas só que aí está já compõe um portfólio respeitável. E, mais que tudo, precisa transmitir a sensação de estar governando. Sabe-se que a política tem horror ao vácuo.

Bolsonaro está tendo o mérito de resistir até chegar tão perto da eleição que os adversários começam a pensar mais nela e menos em derrubá-lo. Qual é a dúvida? São duas. Como reagirá o presidente quando, e se, a situação eleitoral dele prenunciar a possibilidade real de derrota? E como reagirá a oposição “de centro” se o campo dela continuar disperso mais tempo do que seria saudável?

O céu deu uma acalmada, mas as nuvens estão ali no horizonte.

sábado, 11 de setembro de 2021

O encapsulamento, o armistício e a duração do cessar-fogo

As melhores pesquisas, as que costumam errar menos, mostram o mesmo fenômeno. 

Um certo encapsulamento de Jair Bolsonaro, uma convergência de seu piso e teto eleitorais, girando em torno de 25% a 30%. O presidente mantém a fatia de mercado que o alavancou ao segundo turno em 2018, mas mostra dificuldade de fechar a fatura, se a eleição fosse hoje.

Outro dado relevante é que cerca de 20% do eleitorado, nos cruzamentos, dizem preferir um candidato que não seja nem Bolsonaro e nem Luiz Inácio Lula da Silva. Quando são apresentadas as alternativas, naturalmente esse número cai, pois todo nome carrega com ele alguma rejeição. E nenhum da "terceira via" passa muito dos 10%.

Mas é razoável supor que se houvesse um único nome relevante "terceirista" (como em 2010 e 2014) ele teria boa probabilidade de abrir a corrida, daqui a pouco menos de um ano, com uns 15%. O que o colocaria, mantidos grosso modo os números de hoje, no espelho retrovisor do capitão.

E aí criar-se-ia uma condição já vista em eleições. Se Bolsonaro se mostrasse consistentemente debilitado no mano a mano com Lula, um pedaço do mercado eleitoral do presidente poderia achar mais importante derrotar o petista do que reeleger o capitão.

E Bolsonaro poderia ser objeto de um ataque especulativo que transferisse alguns pontinhos vitais dele para o nome "de centro", que seria alavancado ao segundo turno com a missão de derrotar o PT.

Há alguma especulação, claro, nisso tudo, mas o cenário e as possibilidades numéricas explicam em boa medida os movimentos dos protagonistas. Especialmente no embate mais selvagem do momento: para definir quem carregará a espada do antilulismo em 2022.

Nada disso chega a ser novidade, mas é nesse contexto que precisam ser olhados os movimentos da agitada semana que fecha.

A muito expressiva, mas não decisiva, mobilização do Sete de Setembro não deu a Bolsonaro o impulso para o xeque. Mas criou um equilíbrio de forças propício ao que se seguiu: um cessar-fogo, um armistício.

(Sobre o Dia da Independência, vale ler o depoimento de um sociólogo do Cebrap (esquerda) que foi ver de perto do que se tratava.)

Para projetar a duração do armistício, a correlação de forças tem mais importância do que as convicções. Sobre estas, aliás, é saudável partir da premissa de que cada jogador, se puder, prefere ganhar o jogo por W.O. Expurgar os adversários da disputa.

A estabilidade do atual cessar-fogo depende, em última instância, da confiança que dois dos três jogadores principais, o bolsonarismo e o centrismo, depositam na própria força eleitoral. O primeiro tem a liderança, ainda que baqueada, da máquina estatal. O segundo tem a hegemonia absoluta nos mecanismos de formação e controle da opinião pública (que não se confunde com a opinião popular).

Sobre Jair Bolsonaro, ele estará mais aderente ao armistício quanto mais estiver confiante de que tem boas chances de virar o jogo e buscar a reeleição. E isso nunca deve ser subestimado, pois desde que a reeleição foi permitida todos os presidentes se reelegeram.

P.S: A respeito das frentes, e o tema vale um texto à parte, é sempre prudente buscar fortalecer-se no processo frentista, porque pode acontecer mais cedo ou mais tarde que o amigo de hoje vire o inimigo de amanhã. E é bom estar preparado.

(Sobre o "day-after" da aliança que derrotou o nazismo na Segunda Guerra Mundial, sempre apontada como paradigma, vai aqui um texto interessante.)

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Difícil guerra em duas frentes

Obs: Coluna fechada ontem ao meio-dia...

Qual é hoje a situação do presidente da República no teatro de operações? Jair Bolsonaro e os dele são um grande exército, razoavelmente coeso e muito disposto a combater, mas cercado.

À esquerda estão acampadas as tropas do PT, que trabalham a favor do tempo. Têm o candidato que, no momento, aparece melhor na corrida eleitoral. Para o petismo, o ideal é nada mudar nos próximos meses. Mas esse tempo na política será mais que uma eternidade.

E a outra tropa que completa o cerco a Bolsonaro sabe que não pode deixar a inércia prevalecer, o relógio correr solto. Para não ser linha auxiliar do petismo. O assim chamado centro precisa criar um fato novo. Pois ambiciona o poder.

Ainda que nos últimos tempos tenha tido mais sucesso em derrubar governos e menos em ganhar eleições.

Daí que esquerda e “centro” percorram estes dias com um olho no peixe e outro no gato. O peixe é Bolsonaro. O gato, para cada um deles, é o outro, o parceiro de momento da “ampla frente democrática” e inimigo já contratado para o futuro.

O adversário eleitoral mais perigoso hoje para Bolsonaro, ou alguém do grupo dele, é Luiz Inácio Lula da Silva, ou alguém apoiado pelo ex-presidente. Mas o adversário político mais letal da hora é o amálgama dos que precisam, a qualquer custo, remover o presidente da corrida para retomar o projeto de 2015/16.

Das diversas escolhas duvidosas de Jair Bolsonaro, e entre elas figuram com destaque as más avaliações e decisões sobre a pandemia, talvez a menos falada e potencialmente mais daninha tenha sido não fugir de travar a guerra em duas frentes.

Por convicção ou para satisfazer o núcleo mais fiel da sua base, o presidente buscou apertar cada vez mais o torniquete no pescoço da esquerda. E talvez não tenha alocado forças suficientes para enfrentar o inimigo político mais feroz no momento.

E circunstancialmente mais perigoso, pelas conexões no establishment e influência superestrutural. Por exemplo no Judiciário.

A esquerda não pode simplesmente abrir mão de buscar enfraquecer Bolsonaro, pois sabe que uma eventual reeleição do presidente abrirá para ela quatro anos ainda mais difíceis na luta pela sobrevivência contra o inimigo ideológico.

E a direita tradicional, hoje agrupada no chamado centro, precisa, como dito acima, livrar-se do presidente para melhor visualizar seu objetivo de poder.

Bolsonaro reúne por enquanto forças para resistir, por ter sólida base de massas, mas também pela falta de consenso entre os oponentes sobre como organizar o poder na ausência dele. Não há uma saída “natural”.

Se um extraterrestre chegasse na Terra e pedisse para ser levado ao líder do “centro”, ninguém saberia a quem levá-lo.

Itamar Franco foi conveniente aos adversários de Fernando Collor porque não podia concorrer à reeleição. Michel Temer acabou consolidando-se como boa opção para PSDB e PMDB (hoje MDB) por apresentar-se antes de tudo como uma ponte para o futuro. Ou pinguela, na fala dos mais sinceros.

E agora?

Não se sabe, mas nunca é seguro depender tanto assim da falta de entendimento entre os inimigos.

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Publicado na revista Veja de 15 de setembro de 2021, edição nº 2.755

terça-feira, 7 de setembro de 2021

O resultado da mobilização. E o futuro (por enquanto 😃 )

O Sete de Setembro foi marcado pela expressiva, ainda que não decisiva, mobilização do bolsonarismo, ao colocar seus contingentes civis na rua. Em Brasília, em São Paulo e espalhados pelo Brasil. Acabou sendo um movimento taticamente defensivo, mas que prepara uma ofensiva estratégica.

Defensivo por Jair Bolsonaro convocar as reservas dele para resistir a eventuais tentativas de estrangular seu governo, por meio do Supremo Tribunal Federal (STF), ou depô-lo, por meio do Congresso.

E ofensivo por agrupar as forças que, imagina, são o passaporte de seu grupo político ao segundo turno em 2022.

Outro movimento do presidente é dar um passo adiante no esticar da corda com o STF, como fez ao editar a medida provisória sobre a remoção de conteúdo pelas grandes redes sociais.

Se prevalecer, terá conquistado terreno para si e seus apoiadores. Se novamente for barrado pelo STF, colocará mais um tijolinho na construção da narrativa segundo a qual ele defende a liberdade e a democracia, ao contrário dos adversários. Pelos discursos, recuar não está nas cogitações.

Todas as pesquisas mostram um mesmo fenômeno. Uma certa convergência do teto e do piso das intenções de voto no presidente. Ele está no momento bem para ir ao segundo turno, mas chegando ali agrega pouquíssimo, pois enfrenta uma rejeição proibitiva.

Mais ou menos como era a aversão ao PT em 2018. O petismo até que agregou bons pontos no segundo turno ali. Mas a rejeição acabou derrotando-o.

Lula, com o encerramento de seu 18º processo, está numa posição mais confortável. Vai folgadamente ao segundo turno e ali recolhe, hoje, o apoio suficiente, nascido da rejeição ao adversário principal.

Para o petista, a linha é garantir a realização das eleições e torcer para que a rejeição a Bolsonaro se mantenha alta. Mesmo que caia um pouco, pois governos sempre têm recursos para crescer em campanhas.

E o caminho para a eleição? O presidente já informou como pretende agir: utilizando todos os instrumentos de que dispõe para emparedar os adversários e evitar que o emparedem. Pode-se apostar portanto numa elevação progressiva da temperatura.

Mas o jogo tem um aspecto sendo jogado em sintonia fina. A cena vai aquecer, mas até quando cada lado cuidará de não parecer que está saindo, como repete Bolsonaro, das “quatro linhas da Constituição”?

Claro que acontecimentos podem fazer desandar a receita, o que fica mais provável quanto mais alta a temperatura. No momento, não dá para prever se, ou quando, vamos alcançar a energia de ativação, em que a reação química é desencadeada. Entretanto o cenário aponta para situações em que os diversos atores vão queimando as pontes atrás de si ao avançar.

Bem, supondo que a corda continue esticada, mas não rompa, o governo e o presidente terão saído do Sete de Setembro com uma momentânea vitória tática, e com o problema estratégico mantido do mesmo tamanho: como romper o cerco que seu expressivo exército sofre. Sem isso, caminha para uma derrota honrosa em 2022. E derrota é algo que não parece frequentar os planos de Jair Bolsonaro.

E o impeachment? Um subproduto do esticar de corda neste feriado foi reacender a esperança da “terceira via” de depor Jair Bolsonaro pelo método já rotineiro no Brasil. Seria um atalho para removê-lo da eleição. Ainda que não resolva completamente o assunto, pois o atual presidente pode, em todo caso, apoiar alguém que se torne competitivo.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Melhor deixar pra lá

Ficará para a história que a revogação da Lei de Segurança Nacional foi sancionada por Jair Bolsonaro, o presidente admirador dos governos comandados por generais (1964-1985), e cujos seguidores até outro dia saíam às ruas pedindo a volta do Ato Institucional número 5.

Desde a redemocratização, passaram pelo Planalto Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer. Mas quem revogou a LSN foi Bolsonaro. Assim é a vida. Nenhum dos antecessores teve a vontade, a coragem ou as condições políticas para fazer. Bolsonaro fez.

É provável ter influído na decisão do presidente os correligionários e admiradores dele andarem acossados pela Justiça com base no texto agora revogado. Vale aqui Ortega y Gasset: cada um é ele mesmo e suas circunstâncias. Mas o que fica é o que se faz. 

Quanto as circunstâncias influíram? Os historiadores debaterão até o fim dos tempos.

Cada um ser ele mesmo e suas circunstâncias ajuda a explicar também por que boa parte das vítimas da censura no período militar carreguem agora a bandeira do “combate às fake news”. Ou seja, criminalizar a mentira. Outro acerto de Bolsonaro: vetar na legislação que substitui a LSN dispositivos que poderiam abrir (mais) espaço para a censura.

Segundo o “dicionário nacional do oportunismo político” (atenção: isso foi uma ironia), “fake news” é a mentira que nosso adversário político conta, enquanto “liberdade de expressão” é o nosso direito inalienável de mentir, neste caso para a sociedade evitar o risco de ser tragada por ditaduras brutais.

Entre o propósito alardeado de viver num país fundado em concepções liberais e a intenção de proteger a sociedade da desinformação mora um problema insolúvel: criar uma regra justa sobre quem vai deter o poder de estabelecer o que é verdade e o que é mentira.

Um exemplo singelo: se a Teoria da Evolução for definida como a verdade oficial, a que tipo de punição estarão sujeitos religiosos e religiões que defendem o universo ter sido criado por Deus em seis dias (consta que Ele descansou no sétimo)?

Contra esse exemplo, poder-se-á argumentar que a legislação afinal vetada pretendia punir não exatamente quem mentisse na eleição, mas quem divulgasse em massa informação sabidamente falsa.

Aí piora. Segundo a Constituição brasileira, que ainda está formalmente em vigor, só é considerado culpado quem tem sentença condenatória transitada em julgado. Detalhe facilmente verificável em cada caso, bastando consultar os anais da Justiça. Inclusive pela Internet.

Ora, mas se é assim, chamar o candidato Fulano de “corrupto” sem ele ter condenação por corrupção transitada em julgado é fake news com registro em cartório e firma reconhecida. O mesmo se dará quando alguém, inadvertidamente, acusar o candidato Beltrano de “genocida” sem ele ter sido condenado definitivamente por genocídio.

Exemplos abundam. Deveríamos ter punido quem garantiu que a revogação da CPMF baratearia os produtos e serviços? Ou punir quem assegura que a cada “reforma trabalhista” milhões de empregos serão criados por causa da redução do custo de contratar?

Melhor deixar pra lá.