A esta altura, parece termos chegado a um consenso: o Brasil entrou em excepcionalidade político-jurídica. Alguns apontam um estado de exceção já instalado, com objetivo eleitoral. Para outros, seguir as leis e a Constituição ao pé da letra facilita a impunidade dos corruptos e, portanto, deve-se ler a Carta não à luz do nela escrito, ou das intenções do constituinte, mas pelo lado do interesse social.
Essa segunda visão introduz o problema clássico: quem decide qual é o “interesse social"? A resposta certa é conhecida: define "interesse social” quem tem força para impor sua vontade ao conjunto do país. Desculpe o leitor a crueza, mas ela é pedagógica: debater “quem tem razão” na política costuma ser fútil e inútil. Tem razão na política, como diria o He-Man, quem tem a força.
Mas a discussão não acaba aqui. Ela mais é complexa, pois tentar convencer de que se tem razão ajuda a acumular força para, no final, ter razão. Daí os prolongados debates sobre legitimidade e outros substantivos vistosos e abstratos. Se consigo fazer acreditar que estou dentro das regras, mesmo estando fora, meu argumento adquire estatura moral. O que me dá um gás adicional para transgredir as normas fingindo respeitá-las.
Períodos excepcionais costumam acontecer na história brasileira, mas desta vez complicou um pouco: a atual excepcionalidade político-jurídica introduziu vetores novos, de informalidade e dispersão. Os militares foram mais inteligentes no tempo deles, talvez fruto do conhecido apego ao formalismo: quando queriam, ou precisavam, descumprir a Constituição, outorgavam uma nova ou produziam um ato institucional. Ou as duas coisas. E na última instância mandava um só.
Isso trazia uma bela vantagem: se alguém manda e o ato de exceção é formal, o líder mantém o poder de revogá-lo, e por isso controla o processo. Porque uma hora a excepcionalidade cansa e o poder precisa de saídas organizadas. Quando Raymundo Faoro pediu ao presidente Ernesto Geisel o restabelecimento do habeas corpus, essencial para proteger os presos políticos contra a tortura, o general teve como atender, bastou canetar numa folha de papel.
Claro que é uma simplificação. A coisa ali foi mais complicada que isso. Mas nada que se compare ao emaranhado de hoje. Uns querem tirar as castanhas do fogo com a mão de gato do Judiciário, pois se todas as opções estiverem disponíveis ao eleitor o resultado pode sair do controle. O outro lado quer resolver tudo no voto, deixando claro que a urna tem prevalência sobre a toga. O que a urna decidir está decidido. Posições inconciliáveis.
Isso explica também a impossibilidade, até o momento, de constituir um “centro” político no Brasil de 2018. Centro não é brincadeira de Carnaval em que o sujeito põe uma camiseta escrita "me beija: não sou de esquerda nem de direita”. Centrismo, necessariamente conjuntural, é oferecer alternativas para contemplar os dois lados do espectro. Por enquanto, não tem como fazer. Também porque não tem quem possa fazer. Olha a encrenca.
Uma solução seria todos combinarem que vão aceitar o resultado da eleição. Quem ganhar governa, e quem perder faz oposição no Congresso. Se você acredita que isso pode acontecer nas atuais circunstâncias, #ficaadica: procure antes pelo Monstro do Lago Ness, pelo Abominável Homem das Neves ou pelo E.T. de Varginha. Vc terá mais chance de sucesso.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
quinta-feira, 29 de março de 2018
segunda-feira, 26 de março de 2018
Naturalização da violência política é, até agora, o fato novo deste processo eleitoral. E o tempo não recua
Uma incógnita importante nesta eleição presidencial é a resistência que o deputado Jair Bolsonaro conseguirá opor ao movimento dos concorrentes no seu campo para lipoaspirar os votos dele, hoje cerca de um quinto do eleitorado. Há algum consenso de que a turma de Lula tem boas chances de colocar alguém na decisão, e daí sobraria apenas uma vaga.
As fragilidades de Bolsonaro vêm sendo bem descritas. Pouca estrutura partidária, pouco tempo de televisão, pouco dinheiro e muito radicalismo. As três primeiras continuam na mesma. Mas há uma mudança em curso na quarta, uma mudança cultural inédita: pela primeira vez desde a redemocratização, o radicalismo político de direita disputa a hegemonia.
Era algo que já acontecia com o radicalismo político da esquerda, e que agora se estende para o outro lado. Foi pedagógico acompanhar as reações à morte de Marielle Franco, reações na internet e fora dela. Apesar da extensa e intensa condenação da opinião pública, os bolsões da direita ficaram impermeáveis à comoção.
Como já analisado anteriormente, o brutal assassinato da vereadora do PSOL criou um ruído momentâneo entre o bolsonarismo e os movimentos autodefinidos como “de centro” (a partir daqui, por economia, vou dispensar as aspas). Mas a reação destes foi em boa medida protocolar, do tipo “precisamos dizer algo para podermos dizer que dissemos algo”.
Em outros tempos, seria um acontecimento disruptivo. Mas não está sendo. Um fato provoca disrupção quando quebra a coesão de pelo menos um campo político, e assim abre caminho para o realinhamento significativo de forças. Isso simplesmente não está acontecendo. Por uma razão central, entre outras: o Brasil vai pouco a pouco naturalizando a violência política.
Para a análise política no Brasil de 2018, não importa tanto olhar o aspecto civilizatório, ético ou moral. Interessa tentar entender o efeito eleitoral. O principal: Bolsonaro vai adquirindo uma taxa de “votabilidade” inexistente no início da corrida. Conforme o ambiente se radicaliza e a violência se naturaliza, o voto nele vai se tornando mais mainstream.
O candidato já havia tomado providências para acelerar essa “normalização”. A mais visível foi nomear seu porta-voz em economia um economista respeitado dos meios acadêmico-empresariais. Ganhou com isso um salvo-conduto parecido com o que Lula recebeu pela Carta aos Brasileiros em 2002. Paulo Guedes é para Bolsonaro o que Palocci foi para o petista.
Resta agora romper o isolamento político-ideológico. E ele vai sendo rompido conforme aumenta a rejeição do público, em todas as camadas, às formas democráticas de governo e também às garantias e direitos previstos na Constituição. Se as instituições são ilegítimas e os direitos servem de escudo aos bandidos, por que aceitar o monopólio da violência pelos governos?
É um cenário progressivamente complicado para o centro. Não impossível, mas complicado. Para capturar votos de Bolsonaro, precisará deslocar-se para a direita, mas com cuidado, pois lá na frente talvez precise fazer meia volta para decidir a eleição num eventual segundo turno contra a esquerda ou, numa hipótese menos provável, contra o próprio Bolsonaro.
Dois argumentos eleitorais fortes estão no cardápio contra as possibilidades de Bolsonaro: 1) ele não seria capaz de derrotar no segundo turno o PT ou alguém apoiado pelo PT e 2) ele não conseguiria governar, pela fragilidade da base política e o radicalismo das propostas, e visão de mundo. São dois bons argumentos, mas de outro tempo.
O primeiro argumento depende de surgir um candidato capaz de desempenhar melhor que ele nas pesquisas contra Lula ou alguém apoiado por Lula. É cedo para concluir, mas ainda não aconteceu. E dizer que Bolsonaro não tem apoio de políticos reforça hoje em dia um atributo. Mas o mais importante: a visão de mundo dele está em alta. Goste-se disso ou não.
Claro que tudo pode mudar a partir de uma bem azeitada campanha de opinião pública para “salvar o Brasil dos radicalismos”. Mas dar um cavalo-de-pau nesse transatlântico não será simples, nem trivial. Não será um passeio no parque. Também e especialmente porque o tempo é a única dimensão que não recua.
As fragilidades de Bolsonaro vêm sendo bem descritas. Pouca estrutura partidária, pouco tempo de televisão, pouco dinheiro e muito radicalismo. As três primeiras continuam na mesma. Mas há uma mudança em curso na quarta, uma mudança cultural inédita: pela primeira vez desde a redemocratização, o radicalismo político de direita disputa a hegemonia.
Era algo que já acontecia com o radicalismo político da esquerda, e que agora se estende para o outro lado. Foi pedagógico acompanhar as reações à morte de Marielle Franco, reações na internet e fora dela. Apesar da extensa e intensa condenação da opinião pública, os bolsões da direita ficaram impermeáveis à comoção.
Como já analisado anteriormente, o brutal assassinato da vereadora do PSOL criou um ruído momentâneo entre o bolsonarismo e os movimentos autodefinidos como “de centro” (a partir daqui, por economia, vou dispensar as aspas). Mas a reação destes foi em boa medida protocolar, do tipo “precisamos dizer algo para podermos dizer que dissemos algo”.
Em outros tempos, seria um acontecimento disruptivo. Mas não está sendo. Um fato provoca disrupção quando quebra a coesão de pelo menos um campo político, e assim abre caminho para o realinhamento significativo de forças. Isso simplesmente não está acontecendo. Por uma razão central, entre outras: o Brasil vai pouco a pouco naturalizando a violência política.
Para a análise política no Brasil de 2018, não importa tanto olhar o aspecto civilizatório, ético ou moral. Interessa tentar entender o efeito eleitoral. O principal: Bolsonaro vai adquirindo uma taxa de “votabilidade” inexistente no início da corrida. Conforme o ambiente se radicaliza e a violência se naturaliza, o voto nele vai se tornando mais mainstream.
O candidato já havia tomado providências para acelerar essa “normalização”. A mais visível foi nomear seu porta-voz em economia um economista respeitado dos meios acadêmico-empresariais. Ganhou com isso um salvo-conduto parecido com o que Lula recebeu pela Carta aos Brasileiros em 2002. Paulo Guedes é para Bolsonaro o que Palocci foi para o petista.
Resta agora romper o isolamento político-ideológico. E ele vai sendo rompido conforme aumenta a rejeição do público, em todas as camadas, às formas democráticas de governo e também às garantias e direitos previstos na Constituição. Se as instituições são ilegítimas e os direitos servem de escudo aos bandidos, por que aceitar o monopólio da violência pelos governos?
É um cenário progressivamente complicado para o centro. Não impossível, mas complicado. Para capturar votos de Bolsonaro, precisará deslocar-se para a direita, mas com cuidado, pois lá na frente talvez precise fazer meia volta para decidir a eleição num eventual segundo turno contra a esquerda ou, numa hipótese menos provável, contra o próprio Bolsonaro.
Dois argumentos eleitorais fortes estão no cardápio contra as possibilidades de Bolsonaro: 1) ele não seria capaz de derrotar no segundo turno o PT ou alguém apoiado pelo PT e 2) ele não conseguiria governar, pela fragilidade da base política e o radicalismo das propostas, e visão de mundo. São dois bons argumentos, mas de outro tempo.
O primeiro argumento depende de surgir um candidato capaz de desempenhar melhor que ele nas pesquisas contra Lula ou alguém apoiado por Lula. É cedo para concluir, mas ainda não aconteceu. E dizer que Bolsonaro não tem apoio de políticos reforça hoje em dia um atributo. Mas o mais importante: a visão de mundo dele está em alta. Goste-se disso ou não.
Claro que tudo pode mudar a partir de uma bem azeitada campanha de opinião pública para “salvar o Brasil dos radicalismos”. Mas dar um cavalo-de-pau nesse transatlântico não será simples, nem trivial. Não será um passeio no parque. Também e especialmente porque o tempo é a única dimensão que não recua.
quarta-feira, 21 de março de 2018
É o fim de uma era para a esquerda
Quem viveu os (ou ouviu falar dos, ou leu sobre os) meados dos anos 1970 sabe das polêmicas que consumiam a esquerda brasileira naquele tempo. As iniciativas guerrilheiras vinham de ser todas derrotadas no terreno militar, e pouco a pouco os partidos, grupos e movimentos eram colocados diante da realidade dura: o único caminho que restara para alcançar objetivos políticos, ao menos os táticos, eram as eleições.
O PCB (Partido Comunista Brasileiro), que se reinventaria como PPS depois do colapso da União Soviética, já vinha na batida desde pelo menos 1967, quando em seu 6º Congresso definiu a linha de resistência política pacífica contra o regime militar. O PCdoB migrou depois da derrota no Araguaia. E os grupos mais influenciados pela Revolução Cubana concluíram a passagem quando o PT foi fundado, no início dos anos 1980.
Se a realidade havia resolvido a polêmica sobre via armada ou política, restavam pontos cruciais no debate. Os dois mais importantes: 1) a possibilidade de uma transição sem rupturas revolucionárias da democracia assim chamada “burguesa" para o socialismo e 2) a possibilidade de alianças táticas ou estratégicas com o empresariado nacional. Se é que havia mesmo um empresariado “nacional”. Esta era outra polêmica.
A história está muito distante de andar em linha reta, e aqui não foi diferente. Por razões que podem ser mais bem explicadas num texto específico, aconteceu no Brasil um fenômeno curioso: o PT, que vinha da tradição sindical-eclesiástica-insurrecional, foi absorvendo com o tempo a linha política dos partidos tradicionais da esquerda, enquanto estes se enfraqueciam (ou deixavam de ser fortalecer).
De um modo deformado, dirão os críticos, mas a seu modo, o petismo levou tão longe quanto pôde a política de frentes e a aposta num desenvolvimento capitalista de viés soberano, vocacionado até para um subimperialismo regional, vestido com as cores bonitas da integração, sul e latino-americana. Isso combinado com a disputa e ocupação progressiva dos instrumentos estatais. Mas o Estado "republicano" em que o PT tanto investiu virou a arma decisiva de seus algozes.
De um jeito todo particular, o PT explorou ao máximo a lógica que Antonio Gramsci produziu nos textos da prisão. Não dá para saber até que ponto o italiano achava mesmo que seu pensamento poderia transformar efetivamente o sistema, mas o PT foi o partido mais “gramsciano" que a esquerda brasileira fabricou neste quase um século desde a fundação do PCB, em 1922. É conhecido, por exemplo, o espanto do então metalúrgico Lula quando lhe perguntavam, por volta da fundação do PT, se o partido seria “tático" ou “estratégico”.
O colapso do atual projeto petista, desenvolvido principalmente nas últimas duas décadas, de amplas alianças e apostar num capitalismo soberano e inclusivo, produziu um vácuo na esquerda. Até porque o recuo não é só no Brasil, é regional. Argentina e Equador são outros exemplos. A sobrevivência do bolivarianismo venezuelano é uma incógnita. Tem agora em maio um desafio eleitoral complicado, mesmo com boa parte da oposição juridicamente fora de combate.
Os historiadores discutem se a explosão das duas bombas atômicas americanas sobre o Japão foi o último ato da Segunda Guerra Mundial ou o primeiro da Terceira. Por esse ângulo, como enxergar a candidatura, tão forte quanto inviável, de Lula à presidência? É uma última fresta de esperança de manter vivo o atual PT gramsciano? Ou o primeiro movimento de "superação das ilusões”? A derrota se deu por falta de gramscismo ou por excesso?
Se a esquerda sobrevive até em países socialmente bem mais justos, era uma ilusão algo boba acreditar que no Brasil, um paradigma mundial de desigualdade e todo tipo de injustiça, a Lava Jato destruiria Lula, o PT ou a esquerda. Estas forças estão isoladas, mas sobrevivem. E em algum momento voltarão. Pode ser até nestas eleições. Será interessante observar para que lado da história vai acontecer a superação do período que agora se fecha.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
O PCB (Partido Comunista Brasileiro), que se reinventaria como PPS depois do colapso da União Soviética, já vinha na batida desde pelo menos 1967, quando em seu 6º Congresso definiu a linha de resistência política pacífica contra o regime militar. O PCdoB migrou depois da derrota no Araguaia. E os grupos mais influenciados pela Revolução Cubana concluíram a passagem quando o PT foi fundado, no início dos anos 1980.
Se a realidade havia resolvido a polêmica sobre via armada ou política, restavam pontos cruciais no debate. Os dois mais importantes: 1) a possibilidade de uma transição sem rupturas revolucionárias da democracia assim chamada “burguesa" para o socialismo e 2) a possibilidade de alianças táticas ou estratégicas com o empresariado nacional. Se é que havia mesmo um empresariado “nacional”. Esta era outra polêmica.
A história está muito distante de andar em linha reta, e aqui não foi diferente. Por razões que podem ser mais bem explicadas num texto específico, aconteceu no Brasil um fenômeno curioso: o PT, que vinha da tradição sindical-eclesiástica-insurrecional, foi absorvendo com o tempo a linha política dos partidos tradicionais da esquerda, enquanto estes se enfraqueciam (ou deixavam de ser fortalecer).
De um modo deformado, dirão os críticos, mas a seu modo, o petismo levou tão longe quanto pôde a política de frentes e a aposta num desenvolvimento capitalista de viés soberano, vocacionado até para um subimperialismo regional, vestido com as cores bonitas da integração, sul e latino-americana. Isso combinado com a disputa e ocupação progressiva dos instrumentos estatais. Mas o Estado "republicano" em que o PT tanto investiu virou a arma decisiva de seus algozes.
De um jeito todo particular, o PT explorou ao máximo a lógica que Antonio Gramsci produziu nos textos da prisão. Não dá para saber até que ponto o italiano achava mesmo que seu pensamento poderia transformar efetivamente o sistema, mas o PT foi o partido mais “gramsciano" que a esquerda brasileira fabricou neste quase um século desde a fundação do PCB, em 1922. É conhecido, por exemplo, o espanto do então metalúrgico Lula quando lhe perguntavam, por volta da fundação do PT, se o partido seria “tático" ou “estratégico”.
O colapso do atual projeto petista, desenvolvido principalmente nas últimas duas décadas, de amplas alianças e apostar num capitalismo soberano e inclusivo, produziu um vácuo na esquerda. Até porque o recuo não é só no Brasil, é regional. Argentina e Equador são outros exemplos. A sobrevivência do bolivarianismo venezuelano é uma incógnita. Tem agora em maio um desafio eleitoral complicado, mesmo com boa parte da oposição juridicamente fora de combate.
Os historiadores discutem se a explosão das duas bombas atômicas americanas sobre o Japão foi o último ato da Segunda Guerra Mundial ou o primeiro da Terceira. Por esse ângulo, como enxergar a candidatura, tão forte quanto inviável, de Lula à presidência? É uma última fresta de esperança de manter vivo o atual PT gramsciano? Ou o primeiro movimento de "superação das ilusões”? A derrota se deu por falta de gramscismo ou por excesso?
Se a esquerda sobrevive até em países socialmente bem mais justos, era uma ilusão algo boba acreditar que no Brasil, um paradigma mundial de desigualdade e todo tipo de injustiça, a Lava Jato destruiria Lula, o PT ou a esquerda. Estas forças estão isoladas, mas sobrevivem. E em algum momento voltarão. Pode ser até nestas eleições. Será interessante observar para que lado da história vai acontecer a superação do período que agora se fecha.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
segunda-feira, 19 de março de 2018
Caso Marielle: Em eleições, o primeiro elemento decisivo é a capacidade de reunir a própria tropa.
A precondição de competitividade nas eleições, como em qualquer tipo de batalha, é o exército. Se não tiver outro jeito, recrutem-se mercenários. Mas isso não é o preferível. A tropa luta melhor quando pode exibir uma causa, quando está munida da -olha aí a palavra da moda- narrativa. Ainda que o objetivo último seja o butim, causas trazem o indispensável glamour.
Uma coisa é dizer que se apoia tal candidato porque ele vai arrumar um emprego, ou uma casa, ou uma cirurgia, ou um empréstimo camarada no BNDES. Outra coisa é dizer que o Brasil precisa ser salvo do PT, ou de Bolsonaro, ou dos populistas, ou dos fascistas, ou dos bolivarianos, ou dos racistas, ou dos gastadores, ou dos neoliberais. Essa lista é infinita.
Narrativa eleitoral precisa ter 1) fácil compreensão e 2) aderência à realidade, ser verossímil. O argumento que o militante vai desenvolver na mesa do bar a favor do candidato tem de ser simples de manejar e encaixar no conjunto de fatos. Vale aqui a velha máxima do debate: tudo o que precisa ser muito explicado não é bom.
Quando um acontecimento encaixa na narrativa, ele tem a capacidade de potencializar a rearrumação das forças. Algumas vezes decisivamente. A morte de João Pessoa ajudou a deflagrar a insurreição de 1930. Quando se conheceram melhor os detalhes do assassinato, a revolução política que levou Getúlio Vargas ao poder já era um fato.
O fuzilamento de Marielle Franco trouxe à narrativa da esquerda um ingrediente poderoso de verossimilhança, e isso terá efeito. A ideia de que Dilma Rousseff foi removida do poder fraudulentamente, por forças cujo objetivo é aprofundar as desigualdades e injustiças que marcam a sociedade brasileira, ganhou um ponto de agregação visível e facilmente compreensível.
Enquanto Marielle estava viva, a batalha das narrativas vinha algo equilibrada. Segundo a direita, o impeachment de Dilma foi constitucional e tirou do Planalto um governo que afundou a economia e quebrou a Petrobras. E as reformas agora estão ajudando a recuperar os empregos, e precisam continuar com o novo presidente a partir de 1o. de janeiro de 2019.
Já para a esquerda, foi um golpe antinacional e antipopular, que instalou ilegalmente um governo programado para entregar nossas riquezas ao imperialismo e reverter a ascensão social dos pobres. E a intervenção federal na segurança do Rio é uma face desse componente demofóbico, bem exibido na ideia de que mais repressão é a melhor receita contra o crime.
Enquanto o jogo de narrativas estava parelho, vinha também equilibrada a coesão ideológica de ambos os campos. A morte de Marielle mudou essa conta. A direita não bolsonarista agora procura mais distância do líder nas pesquisas sem Lula. E a brutalidade do assassinato da vereadora deu cores vivas à explicação de mundo que vem dos porta-vozes da esquerda.
Hoje está mais fácil a esquerda ser ouvida com atenção na mesa do boteco. Isso não é pouco. Se, ou quando, Lula for preso, um partidário terá mais plateia para explicar que ele não está condenado por causa da corrupção, pois todos os acusados de partidos da direita estão soltos, mas por ter governado para os pobres. "Viu o que aconteceu com a Marielle?”
É mais provável que as eleições presidenciais sejam decididas no segundo turno. Dois fatores serão fundamentais, e estão interligados: 1) a capacidade de levar seu eleitor para votar e 2) a capacidade de construir uma narrativa eficaz para demonizar o outro lado. A centralidade do tema da corrupção facilitava a vida da direita. Agora a coisa se complicou.
Inclusive pelas circunstâncias do jornalismo. Abrir espaço para causas de minorias ou maiorias socialmente massacradas tem sido válvula de escape para neutralizar acusações de reacionarismo. Isso acabou reforçando um jornalismo de causas e narrativas, marcado pelo efeito-manada. Mas quando a onda vira, quem até ontem ria passa a não achar tanta graça assim.
Então o jogo está jogado? Não. Melhor é ter cautela. Uma característica do efeito-manada, como naqueles filmes de faroeste com búfalos, é que a correria pode inesperadamente mudar a direção. E fazer vítimas entre quem desencadeou a coisa. O equilíbrio político no Brasil é instável. E as eleições ainda estão longe. Mas que a esquerda ganhou um fôlego, isso é inegável.
Uma coisa é dizer que se apoia tal candidato porque ele vai arrumar um emprego, ou uma casa, ou uma cirurgia, ou um empréstimo camarada no BNDES. Outra coisa é dizer que o Brasil precisa ser salvo do PT, ou de Bolsonaro, ou dos populistas, ou dos fascistas, ou dos bolivarianos, ou dos racistas, ou dos gastadores, ou dos neoliberais. Essa lista é infinita.
Narrativa eleitoral precisa ter 1) fácil compreensão e 2) aderência à realidade, ser verossímil. O argumento que o militante vai desenvolver na mesa do bar a favor do candidato tem de ser simples de manejar e encaixar no conjunto de fatos. Vale aqui a velha máxima do debate: tudo o que precisa ser muito explicado não é bom.
Quando um acontecimento encaixa na narrativa, ele tem a capacidade de potencializar a rearrumação das forças. Algumas vezes decisivamente. A morte de João Pessoa ajudou a deflagrar a insurreição de 1930. Quando se conheceram melhor os detalhes do assassinato, a revolução política que levou Getúlio Vargas ao poder já era um fato.
O fuzilamento de Marielle Franco trouxe à narrativa da esquerda um ingrediente poderoso de verossimilhança, e isso terá efeito. A ideia de que Dilma Rousseff foi removida do poder fraudulentamente, por forças cujo objetivo é aprofundar as desigualdades e injustiças que marcam a sociedade brasileira, ganhou um ponto de agregação visível e facilmente compreensível.
Enquanto Marielle estava viva, a batalha das narrativas vinha algo equilibrada. Segundo a direita, o impeachment de Dilma foi constitucional e tirou do Planalto um governo que afundou a economia e quebrou a Petrobras. E as reformas agora estão ajudando a recuperar os empregos, e precisam continuar com o novo presidente a partir de 1o. de janeiro de 2019.
Já para a esquerda, foi um golpe antinacional e antipopular, que instalou ilegalmente um governo programado para entregar nossas riquezas ao imperialismo e reverter a ascensão social dos pobres. E a intervenção federal na segurança do Rio é uma face desse componente demofóbico, bem exibido na ideia de que mais repressão é a melhor receita contra o crime.
Enquanto o jogo de narrativas estava parelho, vinha também equilibrada a coesão ideológica de ambos os campos. A morte de Marielle mudou essa conta. A direita não bolsonarista agora procura mais distância do líder nas pesquisas sem Lula. E a brutalidade do assassinato da vereadora deu cores vivas à explicação de mundo que vem dos porta-vozes da esquerda.
Hoje está mais fácil a esquerda ser ouvida com atenção na mesa do boteco. Isso não é pouco. Se, ou quando, Lula for preso, um partidário terá mais plateia para explicar que ele não está condenado por causa da corrupção, pois todos os acusados de partidos da direita estão soltos, mas por ter governado para os pobres. "Viu o que aconteceu com a Marielle?”
É mais provável que as eleições presidenciais sejam decididas no segundo turno. Dois fatores serão fundamentais, e estão interligados: 1) a capacidade de levar seu eleitor para votar e 2) a capacidade de construir uma narrativa eficaz para demonizar o outro lado. A centralidade do tema da corrupção facilitava a vida da direita. Agora a coisa se complicou.
Inclusive pelas circunstâncias do jornalismo. Abrir espaço para causas de minorias ou maiorias socialmente massacradas tem sido válvula de escape para neutralizar acusações de reacionarismo. Isso acabou reforçando um jornalismo de causas e narrativas, marcado pelo efeito-manada. Mas quando a onda vira, quem até ontem ria passa a não achar tanta graça assim.
Então o jogo está jogado? Não. Melhor é ter cautela. Uma característica do efeito-manada, como naqueles filmes de faroeste com búfalos, é que a correria pode inesperadamente mudar a direção. E fazer vítimas entre quem desencadeou a coisa. O equilíbrio político no Brasil é instável. E as eleições ainda estão longe. Mas que a esquerda ganhou um fôlego, isso é inegável.
terça-feira, 13 de março de 2018
“Fake news” é fake news
Acontecerá no debate sobre as “fake news” o mesmo da polêmica dos transgênicos. Aos poucos, o assunto deixará as manchetes e escorregará para a irrelevância. Com o tempo, ficará evidente que, assim como no caso dos organismos geneticamente modificados (OGM), as “fake news” são menos uma ameaça real à saúde da democracia e mais uma desculpa para impulsionar certas agendas políticas e comerciais.
“O risco dos transgênicos” resiste nos bolsões de obscurantismo acadêmico e de corporativismo burocrático, mas deixou de ser notícia. Por um motivo singelo: após décadas de dramáticos alertas sobre os gravíssimos riscos corridos pelos consumidores de comida geneticamente modificada, não se conhece nenhum caso real de dano à saúde. No Brasil, a soja transgênica é o exemplo mais impactante. Se ela não fosse saudável, seríamos um povo à beira de extinção.
Era esperado que o debate dos OGM acabasse assim. A engenharia genética apenas faz mais sistemática e rapidamente as mutações que a natureza já produz sozinha desde o surgimento da vida na Terra. E, na digestão, as moléculas naturais e artificiais são igualmente quebradas. E já que os componentes são os mesmos, acaba não havendo diferença entre comer a comida produzida por D’us ou pelo homem.
A mentira existe desde que o ser humano passou a se comunicar. Com a internet, ela se propaga mais rapidamente. Mas não há nenhum fato, número ou evidência de que mentir na era da internet tenha ampliado os efeitos do ato de mentir. Há opiniões, palpites, certezas subjetivas politicamente interessadas. Há uma histeria artificial sobre o tema. Assim como no caso dos transgênicos, prova não há nenhuma.
Vamos recapitular. Donald Trump derrotou Hillary Clinton no colégio eleitoral, contrariando 99,99% das previsões. Sabido o resultado, ainda houve algumas tentativas jornalísticas de entender o acontecido. Rapidamente porém esse ensaio foi substituído pela narrativa que a Casa Branca democrata pôs a circular: de que a vitória trumpista fora resultado de uma conspiração com os russos. Entre outras coisas, com os amigos de Putin espalhando notícias falsas pela rede.
Só podia ser verdade. Afinal, não era possível os jornalistas e analistas sabichões terem se enganado tão estupidamente. Daí a refugiarem-se todos na zona de conforto foi um passo. E essa passou a ser a verdade oficial. Ou a mentira oficial. Que no ranking de fake news produzidas pela Casa Branca neste século só é páreo, até agora, para as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Em tempo de guerra, mentira como terra, diz o velho ditado.
Na era das “narrativas”, não custa nada raciocinar de vez em quando. Os gastos com propaganda nas eleições americanas andam sempre na casa dos muitos bilhões de dólares. Se fosse possível convencer o eleitor americano flutuante, e decidir a eleição de presidente dos EUA, gastando apenas alguns milhares de dólares no Facebook, as ações da empresa de Mark Zuckerberg valeriam provavelmente bem mais que a soma de todos os outros papéis da Nasdaq.
O próprio Trump deu um gás na bobajada quando carimbou “fake news” na testa da CNN, e, depois, do resto dos veículos que lhe fazem oposição. E a expressão colou. Aí entrou em cena mais uma esperteza. A imprensa profissional viu a janela de oportunidade para vender a tese de que, num planeta gravemente ameaçado pela difusão de notícias falsas, só o jornalismo profissional merece a atenção de quem busca informação confiável.
Ninguém nunca perdeu dinheiro superestimando a ingenuidade alheia, a estratégia comercial é legítima, e acredita nessa fantasia quem quiser, mas talvez a imprensa esteja atirando no próprio pé. Pois o combate à “grave ameaça das fake news” tem tudo para tornar-se uma ofensiva de censura e restrição da liberdade de expressão. Quando se chama a polícia para reprimir a mentira, ou a suposta mentira, o resultado nunca é bom.
Um dia esse assunto simplesmente desaparecerá, mas o problema são as vítimas que deixará pelo caminho. Na boa, é mais negócio defender o direito de todos mentirem quanto quiserem. Se for esse o preço a pagar pela liberdade, é um preço barato. Até porque, convenhamos, sempre que alguém está muito preocupado em proibir a mentira alheia, é bom verificar se o dito cujo não quer mesmo é a prerrogativa de mentir sozinho.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
“O risco dos transgênicos” resiste nos bolsões de obscurantismo acadêmico e de corporativismo burocrático, mas deixou de ser notícia. Por um motivo singelo: após décadas de dramáticos alertas sobre os gravíssimos riscos corridos pelos consumidores de comida geneticamente modificada, não se conhece nenhum caso real de dano à saúde. No Brasil, a soja transgênica é o exemplo mais impactante. Se ela não fosse saudável, seríamos um povo à beira de extinção.
Era esperado que o debate dos OGM acabasse assim. A engenharia genética apenas faz mais sistemática e rapidamente as mutações que a natureza já produz sozinha desde o surgimento da vida na Terra. E, na digestão, as moléculas naturais e artificiais são igualmente quebradas. E já que os componentes são os mesmos, acaba não havendo diferença entre comer a comida produzida por D’us ou pelo homem.
A mentira existe desde que o ser humano passou a se comunicar. Com a internet, ela se propaga mais rapidamente. Mas não há nenhum fato, número ou evidência de que mentir na era da internet tenha ampliado os efeitos do ato de mentir. Há opiniões, palpites, certezas subjetivas politicamente interessadas. Há uma histeria artificial sobre o tema. Assim como no caso dos transgênicos, prova não há nenhuma.
Vamos recapitular. Donald Trump derrotou Hillary Clinton no colégio eleitoral, contrariando 99,99% das previsões. Sabido o resultado, ainda houve algumas tentativas jornalísticas de entender o acontecido. Rapidamente porém esse ensaio foi substituído pela narrativa que a Casa Branca democrata pôs a circular: de que a vitória trumpista fora resultado de uma conspiração com os russos. Entre outras coisas, com os amigos de Putin espalhando notícias falsas pela rede.
Só podia ser verdade. Afinal, não era possível os jornalistas e analistas sabichões terem se enganado tão estupidamente. Daí a refugiarem-se todos na zona de conforto foi um passo. E essa passou a ser a verdade oficial. Ou a mentira oficial. Que no ranking de fake news produzidas pela Casa Branca neste século só é páreo, até agora, para as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Em tempo de guerra, mentira como terra, diz o velho ditado.
Na era das “narrativas”, não custa nada raciocinar de vez em quando. Os gastos com propaganda nas eleições americanas andam sempre na casa dos muitos bilhões de dólares. Se fosse possível convencer o eleitor americano flutuante, e decidir a eleição de presidente dos EUA, gastando apenas alguns milhares de dólares no Facebook, as ações da empresa de Mark Zuckerberg valeriam provavelmente bem mais que a soma de todos os outros papéis da Nasdaq.
O próprio Trump deu um gás na bobajada quando carimbou “fake news” na testa da CNN, e, depois, do resto dos veículos que lhe fazem oposição. E a expressão colou. Aí entrou em cena mais uma esperteza. A imprensa profissional viu a janela de oportunidade para vender a tese de que, num planeta gravemente ameaçado pela difusão de notícias falsas, só o jornalismo profissional merece a atenção de quem busca informação confiável.
Ninguém nunca perdeu dinheiro superestimando a ingenuidade alheia, a estratégia comercial é legítima, e acredita nessa fantasia quem quiser, mas talvez a imprensa esteja atirando no próprio pé. Pois o combate à “grave ameaça das fake news” tem tudo para tornar-se uma ofensiva de censura e restrição da liberdade de expressão. Quando se chama a polícia para reprimir a mentira, ou a suposta mentira, o resultado nunca é bom.
Um dia esse assunto simplesmente desaparecerá, mas o problema são as vítimas que deixará pelo caminho. Na boa, é mais negócio defender o direito de todos mentirem quanto quiserem. Se for esse o preço a pagar pela liberdade, é um preço barato. Até porque, convenhamos, sempre que alguém está muito preocupado em proibir a mentira alheia, é bom verificar se o dito cujo não quer mesmo é a prerrogativa de mentir sozinho.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
segunda-feira, 12 de março de 2018
Maior problema do sonho centrista é ele não interessar hoje nem à esquerda nem à direita, os atores de fato
Políticos-candidatos em busca de musculatura buscam distanciar-se de hipotéticos extremismos, e assim preencher espaços eleitorais teoricamente “de centro". A presença forte de Bolsonaro e a estigmatização do PT oferecem a oportunidade de ocupar um locus narrativo de equilíbrio, pacificação, diálogo, de busca de consensos para desatar nós, agudos e crônicos.
Na teoria, é uma comunicação lógica. O eleitor médio não quer saber de confusão. Quer emprego, salário, segurança, boa escola para os filhos e um sistema eficiente de saúde pública. Coisas teoricamente mais acessíveis se o país não estiver mergulhado numa guerra fratricida e sem quartel entre facções cuja única esperança de sobrevivência é a eliminação do inimigo.
O problema, sempre eles, são os fatos. Vamos recapitular. O PT estava bem adaptado aos mecanismos brasileiros clássicos de produção e reprodução do poder. Quando o partido se enfraqueceu criticamente e os adversários decidiram que era conveniente aproveitar a janela de oportunidade extra-agenda, precisaram, para removê-lo, implodir todo o edifício institucional.
O “centro” eleitoral para 2018 nada mais é que a esperança de reverter esse omelete para ovo cru. Não deixa de ser uma ideia, pois pelo jeito o omelete deu uma desandada. O cansaço com a confusão é perceptível. Mas existem obstáculos. O principal deles: ninguém descobriu ainda como fazer o ovo cozido ou frito voltar ao estado em que saiu da galinha.
A política brasileira faz lembrar passados recentes. A esquerda parece estar na segunda metade dos anos 60 do século passado. A ofensiva adversária é mortal, mas ela prefere ver no desastre anunciado uma oportunidade de disputa de hegemonia. A direita está nos anos 70. Sonha com um país politicamente pacificado, mas com o caminho do poder fechado aos adversários.
Centro político é algo imaterial. Esquerda e direita chegam a soluções intermediárias, necessariamente temporárias, quando há um interesse objetivo comum e a opção de simplesmente eliminar o oposto se mostra inexequível. O exemplo mais recente entre nós foi a transição negociada de 1984/85, que produziu três décadas de relativa paz antes de agora colapsar.
Há na direita hoje qualquer interesse de buscar um pacto de pacificação com o PT? Não, pois implicaria aceitar que o PT possa disputar o poder em condições de igualdade. Sem isso, a pacificação tampouco interessa ao partido de Lula, que tem hegemonia absoluta na esquerda real e uma narrativa capaz de manter reunido seu mercado eleitoral.
Daí que todas as tentativas de anabolizar um “centro” tenham falhado, ou estejam patinando. Falta espaço material para essa construção. A hora ainda é dos ulysses, não chegou o momento dos tancredos. Se é que vai chegar. A direita está apavorada com a resiliência de Lula e a esquerda está inclinada a achar que acreditou demais na democracia burguesa.
Acenos centristas são vistos à direita como ilusões de kerenskys, e à esquerda como patetices de gorbatchevs. Esses ensaios ou são apenas farsescos, lobos-maus vestidos de vovozinha para abocanhar a chapeuzinho vermelho, ou são movimentos sinceros mas desprovidos de significado real. Mesmo se vitoriosos, seriam abduzidos por um dos polos da disputa de fato.
Abdução já visível nas estruturas tradicionais que ao longo destas três décadas representaram, em maior ou menor grau, essa visão de um “centro democrático”. Alckmin talvez seja um dos últimos moicanos. Será o candidato, mas montado numa estrutura que nada mais tem a ver com a antiga ambição social-democrata do PSDB. Basta olhar quem vem atrás dele na fila.
Já no PT, que depende mais de Lula do que os outros dependem de seus líderes, mesmo Lula não tem mais a mesma liberdade de voo. O partido acabará fazendo o que o ex-presidente mandar, mas a inquietação é perceptível. Há sempre um custo para o líder quando as escolhas dele conduzem a armadilhas. Ainda mais quando ele não sabe bem como sair delas.
*
Há outro complicador. Na política, acordos são obrigatoriamente políticos. Reconhece-se a legitimidade alheia e reparte-se poder. Mas toda a pressão da opinião pública stricto sensu é para deslegitimar as duas coisas. Bonito agora é governar com viés absolutista esclarecido. Sendo que o “esclarecido” significa seguir bovinamente essa mesma opinião pública.
Na teoria, é uma comunicação lógica. O eleitor médio não quer saber de confusão. Quer emprego, salário, segurança, boa escola para os filhos e um sistema eficiente de saúde pública. Coisas teoricamente mais acessíveis se o país não estiver mergulhado numa guerra fratricida e sem quartel entre facções cuja única esperança de sobrevivência é a eliminação do inimigo.
O problema, sempre eles, são os fatos. Vamos recapitular. O PT estava bem adaptado aos mecanismos brasileiros clássicos de produção e reprodução do poder. Quando o partido se enfraqueceu criticamente e os adversários decidiram que era conveniente aproveitar a janela de oportunidade extra-agenda, precisaram, para removê-lo, implodir todo o edifício institucional.
O “centro” eleitoral para 2018 nada mais é que a esperança de reverter esse omelete para ovo cru. Não deixa de ser uma ideia, pois pelo jeito o omelete deu uma desandada. O cansaço com a confusão é perceptível. Mas existem obstáculos. O principal deles: ninguém descobriu ainda como fazer o ovo cozido ou frito voltar ao estado em que saiu da galinha.
A política brasileira faz lembrar passados recentes. A esquerda parece estar na segunda metade dos anos 60 do século passado. A ofensiva adversária é mortal, mas ela prefere ver no desastre anunciado uma oportunidade de disputa de hegemonia. A direita está nos anos 70. Sonha com um país politicamente pacificado, mas com o caminho do poder fechado aos adversários.
Centro político é algo imaterial. Esquerda e direita chegam a soluções intermediárias, necessariamente temporárias, quando há um interesse objetivo comum e a opção de simplesmente eliminar o oposto se mostra inexequível. O exemplo mais recente entre nós foi a transição negociada de 1984/85, que produziu três décadas de relativa paz antes de agora colapsar.
Há na direita hoje qualquer interesse de buscar um pacto de pacificação com o PT? Não, pois implicaria aceitar que o PT possa disputar o poder em condições de igualdade. Sem isso, a pacificação tampouco interessa ao partido de Lula, que tem hegemonia absoluta na esquerda real e uma narrativa capaz de manter reunido seu mercado eleitoral.
Daí que todas as tentativas de anabolizar um “centro” tenham falhado, ou estejam patinando. Falta espaço material para essa construção. A hora ainda é dos ulysses, não chegou o momento dos tancredos. Se é que vai chegar. A direita está apavorada com a resiliência de Lula e a esquerda está inclinada a achar que acreditou demais na democracia burguesa.
Acenos centristas são vistos à direita como ilusões de kerenskys, e à esquerda como patetices de gorbatchevs. Esses ensaios ou são apenas farsescos, lobos-maus vestidos de vovozinha para abocanhar a chapeuzinho vermelho, ou são movimentos sinceros mas desprovidos de significado real. Mesmo se vitoriosos, seriam abduzidos por um dos polos da disputa de fato.
Abdução já visível nas estruturas tradicionais que ao longo destas três décadas representaram, em maior ou menor grau, essa visão de um “centro democrático”. Alckmin talvez seja um dos últimos moicanos. Será o candidato, mas montado numa estrutura que nada mais tem a ver com a antiga ambição social-democrata do PSDB. Basta olhar quem vem atrás dele na fila.
Já no PT, que depende mais de Lula do que os outros dependem de seus líderes, mesmo Lula não tem mais a mesma liberdade de voo. O partido acabará fazendo o que o ex-presidente mandar, mas a inquietação é perceptível. Há sempre um custo para o líder quando as escolhas dele conduzem a armadilhas. Ainda mais quando ele não sabe bem como sair delas.
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Há outro complicador. Na política, acordos são obrigatoriamente políticos. Reconhece-se a legitimidade alheia e reparte-se poder. Mas toda a pressão da opinião pública stricto sensu é para deslegitimar as duas coisas. Bonito agora é governar com viés absolutista esclarecido. Sendo que o “esclarecido” significa seguir bovinamente essa mesma opinião pública.
quarta-feira, 7 de março de 2018
Uma eleição sem spoilers
A coisa está mais para Walking Dead do que para House of Cards
A conjuntura mostra uma aparente assincronia entre os movimentos da política e do eleitorado. Os atores produzem fatos e factoides em ritmo 24x7x365, para ocupar o noticiário e manter o alvoroço de uma opinião pública que beira a dependência química.
Por enquanto, o eleitor parece não estar nem aí. Não há movimentação substancial nas pesquisas de intenção de voto, como mostrou a CNT. Não tem gente na rua. E a Lava-Jato vai deixando de ser tema da mesa do bar.
Pelo jeito, o cidadão/eleitor decidiu dar um tempo. É esperado que volte a prestar atenção nesse "Show de Truman" quando estiver chegando a hora de votar. Até lá, os candidatos e os profissionais da eleição têm um hiato para construir narrativas. E matéria-prima não vai faltar.
A federação de pequenos (ou não tão pequenos) déspotas em que o Brasil se transformou é uma usina de alta produtividade. Tem notícia toda hora, e para todos os gostos e lados.
Um elemento-chave da vitória do PT nas quatro últimas eleições foi a dificuldade de os adversários construírem narrativas com começo, meio e fim. Em 2014, ensaiou-se algo diferente, mas o ensaio acabou soterrado com rara competência. Também, mas não só, pela brutal disparidade de forças a favor do petismo. Foi o canto do cisne.
Este ano haverá disputa real entre dois discursos, com outros menos cotados lutando para conseguir uma beirada de atenção.
Teremos finalmente candidatos de direita. Defenderão o capitalismo na economia, o conservadorismo moral e muita dureza contra o crime. Parece que já encantam pelo menos uns 25% do eleitorado. É provável que seja mais.
Se o PSDB mantiver algo de seu tradicional discurso social-liberal, talvez essa aritmética possa ser lida na urna com alguma clareza. É a esperança dos analistas e politólogos mais preocupados em entender que em influir.
Na esquerda, o discurso básico também está pronto. Será o de sempre. A humanização do capitalismo, a proteção do país contra outras ambições imperiais, o protagonismo das lutas identitárias, e políticas públicas para alternativas ao mercado do crime.
Isso tem o apoio de cerca de um terço do eleitorado, autodefinido progressista, em oposição ao dito regressista. O PT quer manter a parte do leão desses votos, mesmo sem Lula. Mas outros se apresentam.
Claro que tudo deverá estar embalado para consumo de massa, com a ajuda das cores vibrantes proporcionadas pela Lava Jato, pela recessão, pelo impeachment, pela crise venezuelana, pela intervenção no Rio etc.
Espera-se também a entrada em cena dos vários matizes do autodeclarado centrismo, à esquerda e à direita. Que buscarão fazer cada um a sua colagem, escolhendo em cada gôndola o que mais convém. E terão o trunfo do apelo contra o radicalismo.
Há algumas variáveis críticas a monitorar daqui até outubro. Em que proporção o eleitor cansado da política escolherá um candidato, ou decidirá protestar não votando em ninguém? Em que medida um impedido Lula transferirá votos? O PSDB e o governo/MDB vão se juntar? Se sim, quando? Lipoaspirar Bolsonaro vai ser fácil ou difícil? Como estará a economia na hora da definição do voto? Quem mais, além de Lula, será impedido de concorrer?
Lamento pelos ansiosos.
Se nunca é cedo demais para chutar, ainda é muito cedo para ter as respostas. Você tem paciência para ver séries? Curte apreciar cada episódio, ou assiste direto o último? Encare dessa maneira e o ano será mais leve e divertido. Até porque os episódios desta eleição não estão ainda todos disponíveis na rede. Vai ser semana a semana. Mais para The Walking Dead do que para House of Cards. Inclusive na história e nos personagens.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
A conjuntura mostra uma aparente assincronia entre os movimentos da política e do eleitorado. Os atores produzem fatos e factoides em ritmo 24x7x365, para ocupar o noticiário e manter o alvoroço de uma opinião pública que beira a dependência química.
Por enquanto, o eleitor parece não estar nem aí. Não há movimentação substancial nas pesquisas de intenção de voto, como mostrou a CNT. Não tem gente na rua. E a Lava-Jato vai deixando de ser tema da mesa do bar.
Pelo jeito, o cidadão/eleitor decidiu dar um tempo. É esperado que volte a prestar atenção nesse "Show de Truman" quando estiver chegando a hora de votar. Até lá, os candidatos e os profissionais da eleição têm um hiato para construir narrativas. E matéria-prima não vai faltar.
A federação de pequenos (ou não tão pequenos) déspotas em que o Brasil se transformou é uma usina de alta produtividade. Tem notícia toda hora, e para todos os gostos e lados.
Um elemento-chave da vitória do PT nas quatro últimas eleições foi a dificuldade de os adversários construírem narrativas com começo, meio e fim. Em 2014, ensaiou-se algo diferente, mas o ensaio acabou soterrado com rara competência. Também, mas não só, pela brutal disparidade de forças a favor do petismo. Foi o canto do cisne.
Este ano haverá disputa real entre dois discursos, com outros menos cotados lutando para conseguir uma beirada de atenção.
Teremos finalmente candidatos de direita. Defenderão o capitalismo na economia, o conservadorismo moral e muita dureza contra o crime. Parece que já encantam pelo menos uns 25% do eleitorado. É provável que seja mais.
Se o PSDB mantiver algo de seu tradicional discurso social-liberal, talvez essa aritmética possa ser lida na urna com alguma clareza. É a esperança dos analistas e politólogos mais preocupados em entender que em influir.
Na esquerda, o discurso básico também está pronto. Será o de sempre. A humanização do capitalismo, a proteção do país contra outras ambições imperiais, o protagonismo das lutas identitárias, e políticas públicas para alternativas ao mercado do crime.
Isso tem o apoio de cerca de um terço do eleitorado, autodefinido progressista, em oposição ao dito regressista. O PT quer manter a parte do leão desses votos, mesmo sem Lula. Mas outros se apresentam.
Claro que tudo deverá estar embalado para consumo de massa, com a ajuda das cores vibrantes proporcionadas pela Lava Jato, pela recessão, pelo impeachment, pela crise venezuelana, pela intervenção no Rio etc.
Espera-se também a entrada em cena dos vários matizes do autodeclarado centrismo, à esquerda e à direita. Que buscarão fazer cada um a sua colagem, escolhendo em cada gôndola o que mais convém. E terão o trunfo do apelo contra o radicalismo.
Há algumas variáveis críticas a monitorar daqui até outubro. Em que proporção o eleitor cansado da política escolherá um candidato, ou decidirá protestar não votando em ninguém? Em que medida um impedido Lula transferirá votos? O PSDB e o governo/MDB vão se juntar? Se sim, quando? Lipoaspirar Bolsonaro vai ser fácil ou difícil? Como estará a economia na hora da definição do voto? Quem mais, além de Lula, será impedido de concorrer?
Lamento pelos ansiosos.
Se nunca é cedo demais para chutar, ainda é muito cedo para ter as respostas. Você tem paciência para ver séries? Curte apreciar cada episódio, ou assiste direto o último? Encare dessa maneira e o ano será mais leve e divertido. Até porque os episódios desta eleição não estão ainda todos disponíveis na rede. Vai ser semana a semana. Mais para The Walking Dead do que para House of Cards. Inclusive na história e nos personagens.
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Publicado originalmente no www.poder360.com.br
segunda-feira, 5 de março de 2018
A intervenção na segurança do Rio já é um sucesso de comunicação. Vamos aguardar os reflexos na política.
É pueril criticar governos que governam criando fatos comunicacionais. Governar é decidir e saber comunicar a decisão. Há poucas coisas mais ingênuas, ou espertalhonas, que dizer “o governante deve ser um gestor”. Trata-se de uma tautologia, pois gerir é liderar e comunicar. E voltamos à ideia-matriz deste parágrafo introdutório.
Depois disso, que no jornalismo é chamado nariz-de-cera, vamos ao que interessa: a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro já é um sucesso de comunicação político-governamental. Não sei se a avaliação de Michel Temer deixou o fundo do poço, mas o ambiente sofreu uma mudança sensível. Pelo menos o ambiente jornalístico em torno do governo.
Recapitulando. Quando interveio no Rio, Temer estava na véspera de perder a votação da reforma da previdência. A certeza dessa derrota nasce de um fato: por que o governo não esperou alguns dias para decretar a intervenção? A tal “situação crítica” não era nem mais nem menos crítica que o habitual. Não havia nenhum “caos” inédito na rua. Talvez no noticiário. A tal comunicação.
Derrotado na previdência, ou se ela deixasse de ser votada por falta de votos, o governo entraria numa dinâmica ruim. Os analistas econômicos anunciariam o fim dos tempos, a oposição celebraria uma vitória, o noticiário seria tomado pela eleição e os atuais donos do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios ver-se-iam às voltas com o clássico cafezinho frio.
A jogada de mestre (sem aspas, foi de mestre mesmo) mudou o cenário. Governantes que pareciam destinados ao ostracismo jornalístico passaram a ser novamente assediados em busca de lides e manchetes. Veio a profusão de entrevistas e a produção em massa de coisas noticiáveis. Generais sentiram-se autorizados a exigir coletivas só com perguntas escritas.
Os custos humanos vão sendo empurrados para fora do notíciário.
E o mercado não parece estar nem aí pela previdência não ter ido a voto.
Há críticas, é claro. Constituiu-se uma oposição ideológica à intervenção, pela esquerda e pela direita. Essa resistência dará frutos no médio e longo prazos, quando vier o cansaço com a coisa e se verificar que ela não deu resultados espetaculares. O cálculo das Forças Armadas é estar fora dali quando tal momento chegar. O do governo, é a eleição já ter passado.
No curto prazo a coisa está funcionando. O céu pode ainda não ser de brigadeiro, mas ficou algo azul. O objetivo imediato de comunicação foi atingido, com a volta do “tem que dar certo” do Plano Cruzado. A intervenção no Rio ajudará o governo a sobreviver até dezembro e a aumentar sua influência no processo eleitoral. Do ângulo do poder, é uma conquista.
Mesmo as eventuais complicações neste início poderão ser explicadas pelo remédio não ter sido dado em maior dose. Pela falta, por exemplo, dos mandados coletivos de busca e apreensão. Ou por os soldados não poderem atirar em qualquer um que esteja indevidamente armado. O tratamento preconizado a combatentes inimigos numa guerra.
Outra coisa pueril em política é subestimar governos. Mesmo em estado terminal, eles têm poder de fogo, e às vezes é letal. Sarney estava politicamente desenganado em 1989, aí inventou a candidatura de Silvio Santos, articulada pelos aliados Edison Lobão, Marcondes Gadelha e Hugo Napoleão. Se a Justiça não tivesse bloqueado, tinha bagunçado bem a eleição.
O objetivo político-comunicacional imediato da intervenção no Rio foi atingido. Ao mostrar iniciativa num tema muito sensível ao eleitor, e mais sensível ainda ao eleitor mais pobre, Temer recolocou-se no jogo. O ridículo da Tuiuti já é história. Se vai ser candidato, se vai lançar outro nome pelo MDB ou se vai emplacar o vice numa chapa mais forte, são detalhes. Os fatos dirão.
As pesquisas imediatas podem até ser algo decepcionantes, mas isso não deve iludir. Privatização e austeridade fiscal não são populares, mas a caça aos bandidos é. Temer deu um gás à narrativa da direita para este processo eleitoral, e subestimar será um erro. É visível, aliás, que a esquerda ainda não encontrou uma resposta adequada ao novo cenário.
Da entrevista de Lula à Folha de S.Paulo deduz-se que o PT terá ou apoiará um candidato, e que estará aberto ao diálogo com os que eram seus aliados e hoje são aliados de Temer. Há porém um problema: pela primeira vez desde 1998, o PT está isolado. E quase sem máquina. Em 1989 tinha a prefeitura de São Paulo, e em 2002 também. Sem falar de 2006, 2010 e 2014.
Depois disso, que no jornalismo é chamado nariz-de-cera, vamos ao que interessa: a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro já é um sucesso de comunicação político-governamental. Não sei se a avaliação de Michel Temer deixou o fundo do poço, mas o ambiente sofreu uma mudança sensível. Pelo menos o ambiente jornalístico em torno do governo.
Recapitulando. Quando interveio no Rio, Temer estava na véspera de perder a votação da reforma da previdência. A certeza dessa derrota nasce de um fato: por que o governo não esperou alguns dias para decretar a intervenção? A tal “situação crítica” não era nem mais nem menos crítica que o habitual. Não havia nenhum “caos” inédito na rua. Talvez no noticiário. A tal comunicação.
Derrotado na previdência, ou se ela deixasse de ser votada por falta de votos, o governo entraria numa dinâmica ruim. Os analistas econômicos anunciariam o fim dos tempos, a oposição celebraria uma vitória, o noticiário seria tomado pela eleição e os atuais donos do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios ver-se-iam às voltas com o clássico cafezinho frio.
A jogada de mestre (sem aspas, foi de mestre mesmo) mudou o cenário. Governantes que pareciam destinados ao ostracismo jornalístico passaram a ser novamente assediados em busca de lides e manchetes. Veio a profusão de entrevistas e a produção em massa de coisas noticiáveis. Generais sentiram-se autorizados a exigir coletivas só com perguntas escritas.
Os custos humanos vão sendo empurrados para fora do notíciário.
E o mercado não parece estar nem aí pela previdência não ter ido a voto.
Há críticas, é claro. Constituiu-se uma oposição ideológica à intervenção, pela esquerda e pela direita. Essa resistência dará frutos no médio e longo prazos, quando vier o cansaço com a coisa e se verificar que ela não deu resultados espetaculares. O cálculo das Forças Armadas é estar fora dali quando tal momento chegar. O do governo, é a eleição já ter passado.
No curto prazo a coisa está funcionando. O céu pode ainda não ser de brigadeiro, mas ficou algo azul. O objetivo imediato de comunicação foi atingido, com a volta do “tem que dar certo” do Plano Cruzado. A intervenção no Rio ajudará o governo a sobreviver até dezembro e a aumentar sua influência no processo eleitoral. Do ângulo do poder, é uma conquista.
Mesmo as eventuais complicações neste início poderão ser explicadas pelo remédio não ter sido dado em maior dose. Pela falta, por exemplo, dos mandados coletivos de busca e apreensão. Ou por os soldados não poderem atirar em qualquer um que esteja indevidamente armado. O tratamento preconizado a combatentes inimigos numa guerra.
Outra coisa pueril em política é subestimar governos. Mesmo em estado terminal, eles têm poder de fogo, e às vezes é letal. Sarney estava politicamente desenganado em 1989, aí inventou a candidatura de Silvio Santos, articulada pelos aliados Edison Lobão, Marcondes Gadelha e Hugo Napoleão. Se a Justiça não tivesse bloqueado, tinha bagunçado bem a eleição.
O objetivo político-comunicacional imediato da intervenção no Rio foi atingido. Ao mostrar iniciativa num tema muito sensível ao eleitor, e mais sensível ainda ao eleitor mais pobre, Temer recolocou-se no jogo. O ridículo da Tuiuti já é história. Se vai ser candidato, se vai lançar outro nome pelo MDB ou se vai emplacar o vice numa chapa mais forte, são detalhes. Os fatos dirão.
As pesquisas imediatas podem até ser algo decepcionantes, mas isso não deve iludir. Privatização e austeridade fiscal não são populares, mas a caça aos bandidos é. Temer deu um gás à narrativa da direita para este processo eleitoral, e subestimar será um erro. É visível, aliás, que a esquerda ainda não encontrou uma resposta adequada ao novo cenário.
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Da entrevista de Lula à Folha de S.Paulo deduz-se que o PT terá ou apoiará um candidato, e que estará aberto ao diálogo com os que eram seus aliados e hoje são aliados de Temer. Há porém um problema: pela primeira vez desde 1998, o PT está isolado. E quase sem máquina. Em 1989 tinha a prefeitura de São Paulo, e em 2002 também. Sem falar de 2006, 2010 e 2014.
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