sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

O Brasil e a crise entre Rússia e Ucrânia

A cautela do governo Jair Bolsonaro e da principal corrente de oposição (PT) é reflexo da complexidade dos impactos da crise russo-ucraniana sobre o Brasil.

O Brasil é parte do hemisfério ocidental, tem um alinhamento quase estrutural com os Estados Unidos e a Europa devido a fatores geográficos, históricos e políticos. Mas é também um membro dos Brics com ambição global, o que impõe não apenas cuidados comerciais, mas também geopolíticos.Um exemplo na recente visita de Bolsonaro à Rússia foi o apoio à pretensão de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança.

Após um período marcado pela introdução de fortes elementos ideológicos na política exterior brasileira, a atitude até o momento do Itamaraty diante da crise no leste europeu retoma a linha desenvolvida desde pelo menos meados da década de 1970, ainda nos governos militares: equilibrar-se entre um pró-americanismo estrutural e os novos interesses de um grande país, o Brasil, desejoso de manter certa independência nos assuntos mundiais.

O “até o momento” se deve às crescentes pressões pelo alinhamento pró-ocidental.

O elemento novo dessa guinada: os componentes mais ideológicos do governo e da sua base de sustentação parecem seguir a atitude, também até o momento, de Jair Bolsonaro, voltada a não confrontar a Rússia. Há dois componentes circunstanciais aí:

1) o fato de o governo Joe Biden não ser visto aqui nos círculos do poder como um aliado firme e

2) as boas relações estabelecidas entre Bolsonaro e o presidente russo, Vladimir Putin.

Relações que se consolidam quanto mais Bolsonaro se convence de que Putin não é propriamente de esquerda, mas um nacionalista russo que se apoia no tradicionalismo e no conservadorismo para consolidar seu projeto e seu poder. E o detalhe curioso: até outro dia, se o referencial político era Donald Trump, o ideológico era a Ucrânia pós-Maidan. Basta lembrar das faixas pela “ucranização” nas manifestações da base pró-Bolsonaro.

Há também um componente, não desprezível, de política regional. Não conviria ao Brasil uma consolidação da cooperação militar entre Rússia e Venezuela, o que introduziria um componente de instabilização na fronteira norte. Por implicar um fortalecimento relativo das capacidades militares de Nicolas Maduro em relação a nós, e também por ter, como consequência, um aumento da pressão americana sobre nossa fronteira amazônica.

Ainda sobre as relações com os Estados Unidos e a Europa, não é preciso gastar muito raciocínio para concluir que americanos e europeus apoiariam sem nenhum sofrimento uma alternativa “não-trumpista” a Jair Bolsonaro na sucessão. O PT já identificou bem esse potencial, e hoje busca repaginar-se como um partido social-democrata nos moldes europeus. Os ajustes em sua linha de política exterior falam por si.

Ainda em relação ao PT, a crise russo-ucraniana é um complicador no cenário em que o partido persegue não apenas alianças políticas ao chamado centro, mas também apresentar- se programaticamente mais distante de um perfil que poder ser descrito pelos adversários como “radical”.

Em tese, a velha tática da equidistância, do equilíbrio e do apelo a princípios gerais poderia servir de boia contra a enxurrada de pressões para um alinhamento antirusso. Mas apenas em tese, pois o equilíbrio e a equidistância hoje correm o risco real de serem caracterizados como alinhamento pró-Moscou. O esforço dos aparatos de construção da opinião pública por estes dias chega a ser inédito. Uma observação: os mesmos que criticavam as tendências antichinesas da fase anterior de nossa política externa, e pediam pragmatismo, hoje exigem o sacrifício das relações do Brasil com a Rússia.

O que não deve espantar, pois é apenas política. Será necessário observar agora os desdobramentos das múltiplas pressões sobre a posição brasileira. Cinco pontos de atenção:

• O desfecho da crise russo-ucraniana será puramente militar ou em algum momento haverá um cessar-fogo, com as partes entrando em negociações? Há movimentos do governo ucraniano em favor de aceitar a neutralidade militar exigida pela Rússia, mas no momento o presidente Vladimir Zelensky não parece ter apoio interno suficiente para fazer esse movimento sem risco.

• As eventuais pressões internas desencadeadas pelas duríssimas sanções vao minar a posição de Vladimir Putin?

• Qual será o impacto imediato sobre a economia brasileira? Até que ponto as sanções à Rússia terão consequência sobre os negócios desta com o Brasil?

• Qual será o comportamento do maior parceiro comercial do Brasil, a China, diante das sanções à Rússia? Que impacto isso terá sobre os negócios com o Brasil?

• Como reagirá o mercado global de energia, do qual a Rússia é um jogador-chave?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Um duplo recall

O sistema político-eleitoral brasileiro vem organizado para impedir que o presidente escolhido na urna eleja com ele uma maioria parlamentar partidária. O problema está na base da nossa crônica instabilidade e de presidentes precisarem passar todo o mandato às voltas com a ameaça de impeachment.

E está na raiz de o chefe do Executivo precisar fazer concessões em série no orçamento e na ocupação de estruturas ministeriais e empresas estatais, o que torna o governo potencialmente mais vulnerável. E mais refém, portanto, do Congresso Nacional. E o círculo se fecha.

Teria como resolver, mas não há interesse. Para manter o presidente no cabresto curto.

Eis por que de vez em quando os flutuantes “partidos de centro” ganham o rótulo depreciativo de “centrão”, mas outra hora, quando convém, é oferecido ao útil "centrão" renomear-se como “partidos de centro”.

Uma maneira de resolver seria calcular as bancadas dos estados na Câmara dos Deputados não pelos votos dados aos candidatos a deputado federal, mas aos candidatos a presidente. E calcular as bancadas nas assembleias legislativas pela votação dos candidatos a governador. E nas câmaras municipais pela votação dos candidatos a prefeito.

Mas a simples menção à possibilidade de presidentes terem maioria parlamentar partidária desencadeia por aqui advertências apocalípticas sobre o risco de “populismo”, “cesarismo”, “bonapartismo”. O Brasil deve ser o único país em que a dificuldade estrutural de o chefe do Executivo formar maioria parlamentar é embalada como qualidade.

Mas, se esse problema é de difícil solução, há outro caminho. Talvez seja saudável então aumentar o preço a ser pago pelos legisladores em caso de impeachment. O modelo em vigor, aliás, prevê apenas estímulos ao Congresso Nacional quando se trata de remover o presidente.

Estímulos especialmente aos presidentes das duas Casas, que andam uma casa (sem trocadilho) para adiante na linha de sucessão.

É mamão com açúcar.

Não é normal que a nossa "taxa de mortalidade política” dos presidentes escolhidos na urna ande tão alta. Por que, apenas por hipótese, não estabelecer que remover um presidente deve ser decidido em última instância num referendo? Dando ao eleitor que colocou a autoridade no palácio a última palavra.

Melhor ainda: por que não oferecer a esse mesmo eleitor a possibilidade de decidir também sobre a dissolução do Congresso Nacional e a convocação de novas eleições para o Legislativo federal? Duas perguntas na urna eletrônica em vez de uma. Um duplo recall. Querem remover um presidente? Então que se ofereça ao eleitor a possibilidade de um reset, ou um Ctrl+Alt+Del.

E o método deveria ser replicado nas assembleias estaduais e câmaras municipais.

Há com certeza outras ideias. Uma que ensaia voltar é o parlamentarismo, mas ele sofre de duas moléstias: 1) já foi rejeitado em dois plebiscitos; 2) não é razoável achar que um presidente eleito com 60 milhões de votos vá aceitar ser peça decorativa num governo comandado por algum deputado ou senador só porque ele tem apoio nos pares.

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Publicado na revista Veja de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2.776

sábado, 5 de fevereiro de 2022

A disputa pelo passado

Volta e meia retorna o debate sobre a derrubada do governo Dilma Rousseff, com a natural disputa de narrativas. Consolidar uma narrativa ou um discurso, plasmá-los no senso comum, confere uma vantagem moral importante na guerra psicológica que inevitavelmente acompanha as disputas sociais e políticas. Então que siga o jogo.

Mas a queda de Dilma, a exemplo do que ocorrera antes com o presidente Fernando Collor, talvez seja um campo de observação útil em termos prospectivos. Em outubro deveremos eleger um presidente, ou reeleger o atual. E sempre vale a pena especular um pouco sobre os fatores que estabilizam ou desestabilizam um primeiro mandatário.

Afinal, antes de Jair Bolsonaro a “taxa de mortalidade política” dos eleitos desde a volta das diretas era de estonteantes 50%. Não parece muito normal.

Por que presidentes brasileiros caem ou precisam passar o mandato às voltas com campanhas pelo impeachment? Dizer “por falta de apoio político” mais parece uma tautologia. Pois a pergunta poderia ser refeita, mantendo sentido idêntico, para “por que os presidentes brasileiros perdem tão facilmente apoio político?”.

Consolidou-se um certo senso comum de que o governo Dilma Rousseff era politicamente estreito, e portanto o antídoto para a desestabilização é a frente ampla. Essa conclusão parece hegemônica hoje no PT. Não discuto a conclusão, mas a premissa está errada.

O governo Dilma tinha ampla participação formal de aliados. E que viraram adversários sem nem ter de sair do governo. Quem teve de sair foi a presidente. E debitar essa virada ao “temperamento” de Dilma também parece algo subjetivo.

A política organiza-se em torno de interesses materiais e da correlação de forças. Claro que com lutas, fricções e flutuações. Mas a base objetiva costuma ter peso decisivo. Políticos são animais selvagens lutando pela sobrevivência na selva.

Não são animaizinhos fofos atrás de um afago.

Dilma Rousseff caiu porque em certo momento não aceitou abrir mão de poder quando a correlação de forças se tornou extremamente desfavorável a ela, devido às escolhas econômicas e ao brutal contraste entre o discurso na campanha de 2014 e a vida real na sequência.

Não aceitou apoiar Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara dos Deputados, perdeu a eleição para ele e depois não aceitou trocar o papel “decorativo” com o vice Michel Temer. E bloqueou um acordo de sobrevivência mútua com Cunha. E não detinha comando sobre os aparelhos estatais de coerção, que eventualmente poderiam fazer os adversários recuar.

Tampouco reunia massa crítica nos instrumentos de condução da opinião pública.

Repetindo. O governo Dilma não era “estreito”. Ela enfraqueceu-se e foi derrubada praticamente de dentro da composição governamental. As escolhas somaram-se às condições objetivas, com o resultado conhecido.

Se em outubro os adversários do PT vencerem e consolidarem um período de hegemonia de direita o governo Dilma continuará a ser visto como o momento em que a esquerda errou e abriu caminho aos opositores. Se Lula ganhar abre-se a estrada para Dilma ser repaginada como a mulher positivamente inflexível que não aceitou negociar os princípios.

Em 2022 o passado também está em disputa.