sábado, 31 de julho de 2021

Em busca de perder mais tempo

E todos os sinais reforçam o cenário de fim de festa da "nova política". Com um agravante. O modismo de anos por aqui em torno dela resulta hoje não apenas no seu contrário, mas numa época de domínio incontrastável da "velha". Em grau nunca visto antes. O Congresso Nacional tomou o freio nos dentes na execução do Orçamento Geral da União, com os parlamentares avançando nele sem medo de serem felizes.

O superpoder orçamentário é apenas um aspecto. O filé mignon da conjuntura está mesmo é no debate das regras político-eleitorais. Nesse tema os assuntos vêm sendo abordados no varejo. Mas, e se olharmos no atacado? Suponhamos que sejam aprovadas as três grande pautas da hora. O semipresidencialismo, a nova embalagem para o parlamentarismo. O distritão, a eleição dos candidatos mais votados no estado, independentemente da legenda. E o superfundo estatal eleitoral.

O senso comum diz que o distritão vai abrir espaço para a eleição de celebridades. Será? A probabilidade maior é o novo sistema reduzir a margem de incerteza sobre quem terá mais chance de se eleger dentro de cada legenda. E isso vai ajudar principalmente os caciques e seus apoiadores internos. Basta fazerem uma competente distribuição territorial e financeira das, e para as, candidaturas e a solução estará bem encaminhada.

E o distritão reduz também o risco de os puxadores de voto - em geral mais bem abastecidos de recursos - trazerem a Brasília involuntariamente com eles nomes de fora do esquema. Donos de partidos até gostam de ver a legenda crescer, mas se o preço for o risco da perda do controle a conversa costuma mudar de figura. Há exceções, mas essa é a regra. Então o cálculo precisa ser muito competente. Distribuir bem as áreas e a verba.

E o segundo fator fica bastante mais controlável com o financiamento quase exlusivamente estatal. Pois não haverá como o dinheiro das pessoas físicas (o das empresas está proibido) concorrer com a megaverba vinda do OGU.

O que o semipresidencialmento tem a ver com isso? Tudo. Pois na versão brasileira do sistema o Congresso Nacional, em especial a Câmara dos Deputados, teria a palavra final, agora formalmente, sobre a nomeação do primeiro-ministro e a formação do gabinete. Ou seja, sobre o poder real. Ao presidente eleito com muitas dezenas de milhões de votos sobrariam as atividades protocolares e os rituais da esfera de chefe de Estado.

E assim estaria montado o tripé na eleição. Monopólio financeiro dos donos dos partidos, redução da margem de incerteza sobre quem vai ser eleito e quem não e, depois, a formação do governo sendo decidida numa modalidade tribal, com os chefes partidários acertando as coisas entre eles. E enquadrando as bancadas, até porque estarão exercendo agora o poder absoluto, e sem intermediários, sobre a ampla maior parte das verbas e cargos federais.

Parece engenhoso. Mas nenhum presidente eleito com dezenas de milhões de votos aceitará pacificamente ser fantoche de anônimos que controlam o poder apenas por serem proprietários de partidos. E aí teremos as novas crises, e o Planalto acenará com a dissolução do gabinete e do Congresso, e este ameaçará com o impeachment.

O que naturalmente resultará na rediscussão do sistema e em propostas de convocação de novos plebiscitos sobre o assunto. E em mais tempo perdido pelo Brasil. Seria mais objetivo discutir desde já maneiras de os presidentes eleitos carregarem com eles uma maioria parlamentar.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Me ajuda a te ajudar

Suponhamos, por exercício intelectual, um Brasil sem a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 no Senado. O cenário para o governo estaria razoável. Os números da vacinação avançam e são expressivos, e as curvas de casos e mortes vêm caindo faz algum tempo. E todas as projeções são de recuperação robusta do Produto Interno Bruto este ano, compensando com alguma margem a retração do ano passado.

Mas há a outra face da realidade. Iluminar o lado escuro da lua mostrará que os casos e mortes pelo novo coronavírus ainda vão em patamares altos. E o sofrimento social nascido do desemprego e da pobreza não dá sinal de arrefecer. Apesar disso, todas as pesquisas mostram que vetores positivos começam a superar os negativos na resultante de percepção popular.

Falando nela, a política, a avaliação do presidente da República anda algo estacionada. Verdade que o ótimo+bom das pesquisas deslizou para em torno de um quarto do eleitorado, mas o número retorna ao resiliente um terço se juntarmos o "regular positivo". Um terço que aliás tem sido o patamar da aprovação de Jair Bolsonaro e também a intenção de voto nele no segundo turno. Ou seja, o presidente parece ter chegado a um certo piso.

O “parece” aqui é recurso de prudência, porque a política gosta de trazer elementos que desestabilizam cenários. Entretanto, como já repetido tantas vezes, o imprevisível é muito difícil de prever. O fim do filme só saberemos em outubro de 2022, mas o retrato agora projeta disputa acirradíssima na urna eletrônica daqui a pouco mais de catorze meses. Entre um candidato à esquerda (hoje seria Lula) e um à direita (hoje seria Bolsonaro).

E as alternativas? Outro dado trazido pelas últimas pesquisas: se houvesse um único nome da terceira via, ou “centro”, ele (ou ela) partiria de algo em torno de 15 a 20%. Um número bastante razoável. E aí o desafio seria lipoaspirar o candidato à reeleição em uns pontinhos, passar ao segundo turno e tentar ganhar a disputa surfando a rejeição a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT. À luz de hoje é difícil, mas não impossível.

Os aspectos objetivos da realidade (contenção da pandemia e aceleração da economia) tendem a favorecer Bolsonaro na resistência contra a ofensiva do centrismo para tirar o incumbente do segundo turno. Mas há os aspectos subjetivos. Até que ponto as confusões e polêmicas que tanto ajudam o presidente a manter agrupado o núcleo duro da base dele vão gerar efeitos centrífugos prejudiciais, e assim facilitar o trabalho de quem disputa com ele o eleitorado à direita?

Bolsonaro fez o movimento "by the book" ao trazer o senador Ciro Nogueira (PP-PI) para a Casa Civil. Um sinal do acerto é a escolha ter sido bombardeada pelos adversários hoje mais renhidos do presidente. Mas é preciso saber se, como diz o clichê, Bolsonaro vai ajudar Nogueira a ajudá-lo. Pois a operação político-parlamentar avança bem na solução do desafio imediato de não ser derrubado, mas é insuficiente para resolver outro: a reeleição.

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Publicado na revista Veja de 04 de agosto de 2021, edição nº 2.749

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Israel, Estados Unidos, Uruguai, Chile

Será útil quando os estudos poderem concluir definitivamente quanto mesmo de população vacinada é requerido para atingir a imunidade coletiva capaz de proteger da Covid-19 o conjunto de uma comunidade. E seria interessante também saber esse número para cada vacina. A hipótese preliminar amplamente divulgada era que giraria em torno de 60%. Mas fatos recentes trazem algumas dúvidas.

Em Israel, por exemplo, 64% dos vacináveis tomaram uma dose das duas requeridas e 59% estão plenamente vacinados. A vacina ali é praticamente toda da Pfizer. E o país, que lá atrás foi apontado como exemplo de vacinação, assiste a um aparente início de escalada de contágios e casos graves. Hospitais estão reabrindo alas para tratar pacientes de Covid-19 (leia).

Nos Estados Unidos, que só aplicam vacinas produzidas ali mesmo, 57% tomaram uma dose das duas requeridas e 49% estão plenamente vacinados. E a curva de casos também retomou a alta. Junto, vem o debate sobre medidas restritivas (leia) e obrigatoriedade de se vacinar (leia). 

Pelo visto, os governos terão de combater mais resolutamente o antivacinismo para proteger suas populações. Aqui pela vizinhança, Uruguai e Chile, com mais de 70% de vacinados com uma das duas doses requeridas e mais de 60% plenamente vacinados são, por enquanto, um sucesso na contenção dos casos (leia).

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Os dentes e os espaços

Quando você age sobre a realidade, necessariamente a transforma. Mas aí ela também acaba transformando você. Ação e reação. Parece inevitável que a participação cada vez maior, e institucional, das Forças Armadas na política partidária termine abrindo espaço para a explicitação de debates político-partidários no interior mesmo da corporação.

Aliás o vice-presidente Hamilton Mourão já advertiu sobre isso.

Digo “explicitação”, e não “introdução”, pois seria ingenuidade, a qualquer momento, interpretar como apoliticismo a falta de manifestações explícitas de partidarismos no estamento militar.

Dois dos presidentes do período 1964-85 cuidaram com esmero de prevenir esse jogo recíproco, em que as Forças politizam e ao mesmo tempo são politizadas, ou partidarizadas: Humberto de Alencar Castelo Branco e Ernesto Beckmann Geisel. O primeiro operou uma reforma militar também com esse objetivo, e o segundo decapitou a resistência à distensão.

Ações que contribuíram de maneira importante para fechar o ciclo da anarquia militar no Brasil do século 20, cujo marco inaugural havia sido a eclosão do tenentismo. Ter deixado isso para trás era apontado até outro dia como conquista da Nova República. Não parece estar sobrando muito das conquistas da Nova República.

Em parte, os militares têm sido puxados para a política nos anos recentes pelo vácuo nascido da desmoralização e do desgaste das demais instituições nacionais. Isso ganhou nova dimensão quando Jair Bolsonaro, sem um partido para chamar de seu, acabou recorrendo aos fardados, da ativa e da reserva, como estoque de quadros e de doutrinas para tocar o governo.

A realidade é implacável, e o poder não se resume às delícias dele, carrega também os riscos decorrentes das delícias. E aí o noticiário começa a trazer confusões ligando duas coisas: militares e verbas orçamentárias. E agora com números de alto impacto vindos dos recursos destinados pelo governo e pelo Congresso ao combate da Covid-19.

Na falta de eventos de ruptura, a vida segue, e nela sempre chega a hora de ter de dar alguma explicação. Na escalada da politização, as recentes manifestações do Ministério da Defesa e dos comandantes militares vêm reiterando: as Forças estão aí para defender a liberdade e a democracia. Ecoam palavras do próprio presidente da República. Falta, até o momento, dizer se ambas estão sob ameaça.

E falta também, nesse caso, a explicação mais importante: quem ameaça.

Enquanto tal detalhe não fica claro, ao menos segue o baile. No terreno por eles pouco conhecido da política, até agora os militares estão levando uma certa canseira dos políticos. Os lprimeiros andam ocupados em mostrar os dentes, estes últimos preferem concentrar-se em tomar espaços de poder daqueles.

E nem Jair Bolsonaro pode ajudar muito, já que depende dos políticos para se manter na cadeira, inclusive depois de 2022, se se reeleger. O que pelo jeito vai ser decidido mesmo na urna eletrônica, apesar das dúvidas e arranca-rabos. Se bem que neste ponto é sempre adequado contar com novas emoções. 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Vacinar, vacinar, vacinar

Em todos os países nós quais a vacinação ultrapassou certa taxa crítica, em torno de 60% com as duas doses (no caso das vacinas que pedem duas) ou com a dose definitiva (quando pedem apenas uma) a mortalidade por Covid-19 mergulhou, ou ao menos iniciou o mergulho. Aqui na América do Sul o melhor exemplo é o Uruguai.

Mas mesmo onde se chegou a esses índices de vacinação e as mortes apenas começaram a declinar fortemente, os casos apresentam queda. É a situação do Chile. E nos lugares da Europa que vivem um aumento de casos, por novas variantes ou pela contágio na população não vacinada, ou pelas duas coisas, o aumento dos infectados não tem sido acompanhado da elevação no mesmo grau, nem próximo, dos óbitos.

A conclusão? Divergências pode haver sobre vários aspectos do combate à doença causada pelo novo coronavírus, mas uma coisa já se sabe com certeza. A prova da vida real, a partir da vacinação em massa pelo planeta, mostra que as vacinas funcionam. Todas elas. Inclusive as que são alvo de preconceitos político-ideológicos.

Por isso, vacinar em massa e o mais rápido possível, com a vacina que estiver disponível, é a única atitude aceitável quando se avaliam as ações de qualquer governo.

sábado, 17 de julho de 2021

Personagens e situações obscuras

Quando o Supremo Tribunal Federal arbitrou que governadores e prefeitos teriam autonomia para decidir sobre medidas de distanciamento e isolamento social, retirou uma parte do poder do presidente da República. Mas abriu-lhe, indiretamente, um caminho alternativo potencialmente promissor: ofereceu ao governo federal a oportunidade de concentrar-se no tema das vacinas.

Pelo que se vê até o momento da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19, o Planalto não apenas aproveitou mal a possibilidade, mas, na melhor das hipóteses, deixou florescer um ecossistema entrópico em assunto tão importante. Daí a emergência no noticiário de um amontoado de personagens obscuros apanhados em situações idem.

Já se podia antever, e foi antevisto, pelo menos desde outubro do ano passado: se o governo escorregasse no assunto das vacinas cometeria um erro político de consequências potencialmente graves (“Salada indigesta”). Para quem quis enxergar, o sinal amarelo acendeu quando o presidente reagiu biliosamente ao anúncio de que o Ministério da Saúde compraria a CoronaVac.

Aliás o Brasil vive uma situação surreal: o governo federal acabou decidindo gastar bilhões com ela, que hoje está no braço de metade dos imunizados, mas quem fatura politicamente são os governadores, enquanto o entorno presidencial continua falando mal da vacina chinesa do Butantan. Mesmo que todos os estudos comprovem a eficácia dela.

E não é só com a vacina da Sinovac. Um problema menos alardeado é a inexplicável demora para a aprovação do uso maciço por aqui da russa Sputnik V. Outra bem eficaz. Neste caso, nota-se uma curiosa aliança entre a direita saudosa da guerra fria e a esquerda corporativista que, na dúvida, toma as dores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Estivesse a CPI realmente tão preocupada em salvar vidas quanto em emparedar o governo, e a Anvisa já estaria faz tempo dançando em chapa quente por causa da Sputnik V.

A vacinação brasileira contra a Covid-19 vai razoavelmente, mas poderia estar indo melhor. Velocidade é fundamental, também por causa da corrida contra as novas cepas. E o Brasil tem estrutura para vacinar diariamente pelo menos o dobro do que está conseguindo imunizar hoje, inclusive pela verificada e crescente adesão popular.

Não é engenharia de obra pronta, porque vem sendo dito desde sempre: a única política razoável sobre vacinas é trazer todas, na maior quantidade possível, e no menor prazo possível. Claro que demandas assim superaquecidas ensejam risco de maus modos administrativos, e também por isso é necessário centralizar e adotar transparência máxima.

O governo federal carrega o mérito de ter buscado nacionalizar a produção da AstraZeneca na Fiocruz, mas errou em dois aspectos estratégicos: confiou na política de uma só vacina e não cuidou adequadamente de ter vacinas aqui em grande quantidade no curtíssimo prazo. Este segundo ponto foi fatal quando a segunda onda veio como um tsunami a partir de Manaus.

É a típica situação em que o acúmulo de erros acaba impedindo a capitalização política. Todas as pesquisas mostram que o eleitorado 1) está mais otimista quanto ao controle da epidemia e 2) credita em boa medida a vacinação ao Ministério da Saúde. Enquanto isso, o presidente da República vive seu momento mais crítico, na popularidade e na política.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Nova velha esperteza

Se a política brasileira é um permanente "Dia da Marmota" (o filme por aqui chamou "Feitiço do Tempo", mas prefiro a tradução literal), é inevitável voltar periodicamente a certos assuntos. No cinema, só para lembrar, o personagem acorda toda manhã no mesmo dia, com o tempo parado.

A expressão do momento desse "tempo congelado" é a ressureição do debate sobre o parlamentarismo. Agora rebatizado de "semipresidencialismo", talvez para ficar mais digerível a um público que rejeitou o parlamentarismo nas duas vezes quando consultado.

No episódio mais recente, no contexto da revisão constitucional de 1993 (aliás o mesmo ano do filme com Bill Murray), nem o apoio maciço do establishment político e da imprensa foi suficiente para evitar a derrota da tese.

Ela naufragou quando o eleitor concluiu que tudo se resumia a transformar a eleição direta do presidente num ritual vazio, transferindo o poder real a alguém escolhido pelo Legislativo.

Um aspecto curioso: a pressão pelo parlamentarismo veio inclusive da maioria das personalidades que exibiam no currículo, com orgulho, a luta pelas "diretas já", de 1984. Uma notável exceção foi Leonel Brizola.

A maioria dos demais protagonistas da campanha das diretas embarcava poucos anos depois no transatlântico parlamentarista. Que teve o destino do Titanic quando bateu no iceberg da desconfiança popular nos políticos.

A falha estrutural do presidencialismo brasileiro é bem conhecida. Os terremotos em série acontecem porque o sistema impede o presidente da República de carregar com ele, da urna para Brasília, uma maioria parlamentar, ou algo próximo.

E não há, também por isso mas não só, como os governos imporem disciplina partidária aos apoiadores. Aí vêm as crises, e daí a esperteza política e as grandes ambições carentes de voto enxergam a janela de oportunidade.

Até porque nestas bandas nem sempre quem derruba os presidentes tem os votos para preencher a vaga. Ou quase nunca.

Onde opera bem, o parlamentarismo adotou certas premissas. A primeira é algum respeito ao “uma pessoa, um voto”. Não há como falar em parlamentarismo se o voto do morador de certo estado vale mais que o de outro quando se elegem os parlamentares. Como acontece na eleição brasileira para os deputados federais.

A segunda premissa é um sistema partidário-eleitoral organizado, disciplinado e frugal. E no qual a existência explícita de líderes partidários praticamente transforma a eleição numa escolha direta do chefe do governo.

Mas e o “semipresidencialismo”? Onde funciona (França, Rússia), há a prevalência do presidente sobre o primeiro-ministro, exatamente por o chefe de Estado ser também o chefe político do partido majoritário, ou hegemônico. Ou seja, a racionalização partidária é a premissa, se o objetivo é a estabilidade.

Sem isso, vamos de crise em crise, e sempre embalados pelo sonho de encontrar finalmente a solução simples para um problema complicado. Solução que provavelmente estará errada. Essa máxima tampouco é nova.

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Publicado na revista Veja de 21 de julho de 2021, edição nº 2.747

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Recesso?

E a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19 entrou num teórico recesso, acompanhando a parada parlamentar decorrente da votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Mas é possível, ou provável, que continue abastecendo o noticiário com achados a partir de documentos das já aprovadas quebras de sigilo. Que até agora parece não ter rendido muita coisa, mas sem as oitivas (interrogatórios) para ocupar o tempo abre-se a oportunidade de avançar nesse outro caminho.

A sessão de hoje recolheu mais detalhes sobre a suposta negociação, afinal abortada, para a aquisição por meio de atravessadores de centenas de milhões de doses da vacina AstraZeneca. E da Janssen. É uma teia com a participação fulgurante de diversos militares da reserva, que naquele momento estavam em escalões inferiores (do segundo para baixo) da Saúde. Afinal, acabou acontecendo o previsível, e que foi previsto: quem sai na chuva (militares da reserva em cargos civis) corre o risco de de molhar.

Há várias lacunas nesta história das vacinas e dos atravessadores, mas uma é mais intrigante. Se autoridades tomaram conhecimento de centenas de milhões de doses de vacinas disponíveis para comercialização, num cenário global de escassez de imunizantes, por que não ocorreu a ninguém ligar, ou mandar uma mensagem, ou um ofício, aos fabricantes? Para perguntar se, afinal, as vacinas existiam mesmo. Porque se existissem seria então o caso de comprar direto da fábrica.

Sem contar que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é parceira da AstraZeneca, vacina hoje presente, em ordem de grandeza, nos braços de metade dos vacinados no Brasil. Imagina-se que não haveria dificuldade de a Fiocruz negociar diretamente com a AstraZeneca. Ou seja, a presença da plêiade de personagens que hoje desfilam pela CPI era absolutamente dispensável no palco político-sanitário montado em torno do tema Covid-19 e vacinas.

Para o governo, a boa notícia é que a CPI, apesar do esforço, quando a pauta é corrupção, ainda sequer resvalou no primeiro escalão ministerial ou na presidência da República. Prorrogada, ela tem agora mais três meses para tentar aproximar-se do verdadeiro objetivo.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Prêmio e risco

Quando o foco da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19 foi atraído para o irresistível tema da corrupção, ela visualizou um prêmio e potencializou um risco. O prêmio: eventualmente tatuar no governo e no presidente da República a pecha de autores de malversações. O risco: abandonar o filão principal das investigações, que visava (visa) conectar um eventual atraso na vacinação ao expressivo número de mortos pela ação do SARS-CoV-2 no Brasil.

Neste segundo caminho, a CPI topou logo de cara com o andamento aparentemente burocrático verificado nas negociações com a Pfizer e na visível falta de empenho, e mesmo na resistência, diante da CoronaVac. Por algum motivo, a comissão vem deixando de lado o inexplicável tratamento que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem dado à Sputnik V. De todo modo, não faltavam pontos de apoio para a construção de um relatório incisivo, ainda que não definitivo.

Pois CPIs encaminham suas conclusões ao Ministério Público, que pode decidir investigar mais.

Já o terreno da investigação de corrupção é mais complicado. O risco visível é a comissão ter dado a largada como um exército em Blitzkrieg mas acabar atolando no terreno duvidoso da falta de provas sobre o que se deseja provar. Ainda que a legislação brasileira ofereça fartos instrumentos para qualquer um ser acusado de corrupção mesmo sem ter havido ato concreto. Aqui, a intenção parece bastar. E intenção, se é difícil de provar, é relativamente simples de apontar.

CPIs em ambiente altamente tóxico, como o de agora, têm seu roteiro traçado na largada. E seus trabalhos seguem como uma caça à raposa. Neste momento, a raposa (o governo) ainda mostra razoável fôlego. No assunto Covaxin, por exemplo, falta até agora aparecer alguma evidência que sustente acusações mais sérias. Daí a fixação, por enquanto, na possível prevaricação presidencial.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Dupla pressão

E a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19 chegou a uma encruzilhada. Seu principal instrumento até agora são os interrogatórios de testemunhas. Por enquanto, o estudo da documentação sobre as ações governamentais na pandemia não trouxe revelações nem próximas de definitivas. Pode ser que algo fatal (para o governo) saia daí. Mas até agora não saiu. 

Resta pressionar as testemunhas e emparedar os investigados. Mas aí o esforço esbarra nos direitos e garantias previstos na Constituição, e o Supremo Tribunal Federal está sob dupla pressão, de vetores opostos. Existem as cláusulas pétreas. E cresce a ventania vinda do Congresso para reduzir as defesas dos depoentes na CPI, até para evitar que ela perca velocidade e acabe atolada no pântano.

No fim da tarde, início da noite, o presidente do STF acabou adotando uma posição salomônica. Decidiu que cabe aos depoentes avaliar se respondem ou não às perguntas, lastreados no direito de não produzir prova contra eles próprios. Mas que cabe à CPI decidir se o depoente está abusando desse direito. 

Ou seja: "virem-se".

O quadro começa a desenhar uma disputa entre poderes, e até agora não estão claros os limites dessa refrega. Há a tentativa dos presidentes do STF e da República de baixar a temperatura, mas a CPI parece fora desse ensaio de pacto de cavalheiros. Até porque a luta ali escorregou para um terreno pessoal, e é sempre complicado para políticos aceitar uma trégua que acabe parecendo capitulação.

E ano que vem tem eleição, e ali todos são ou candidatos ou apoiadores de candidatos.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Mistérios

Um mistério dos alguns que faltam desvendar pela Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19: como e por que o Ministério da Saúde estendeu a conversa com supostos intermediários na compra de vacinas, dado que os laboratórios arrastados para a confusão afirmam e reafirmam não usar intermediários nas negociações com governos para vender o imunizante contra a Covid-19.

Ou seja: como o ministério deixa esticar conversas com autonomeados intermediários sem pedir comprovação de que de fato representam os laboratórios cujas vacinas propõem intermediar? Um ofício, um documento. Ou, no mínimo, mandar mensagem para o laboratório perguntando: "Vem cá, fulano de tal realmente representa a empresa dos senhores e tem como negociar vacinas?".

Num planeta em que vacinas são disputadas a tapa pelos países não produtores, como é que se envereda numa conversa com alguém que diz ter centenas de milhões de doses de vacinas para entregar, sem que tenha ocorrido a alguém a seguinte ideia: "Se a AstraZeneca ou a Janssen têm esse tanto de vacinas disponíveis, não seria o caso de negociar diretamente com eles?".

É possível que haja respostas a essas e outras perguntas, mas não resta dúvida a esta altura que alguém se enredou numa conversa complicada com alguém, ou alguéns. E isso está tendo impacto direto não apenas na política, mas talvez na própria vacinação. Pois uma CPI que começou empenhada em questionar por que não temos mais vacinas repentinamente inverteu a rota.

No momento, as curvas de casos e mortes estão em queda. Mas nada impede haver um novo repique, eventualmente trazido por alguma nova variante. Deveríamos portanto estar todos orientados a buscar a maior quantidade de vacinas possível. Mas parece que não há mais ninguém no país interessado em seguir esse caminho.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Bolsonaro ou o candidato do Bolsonaro

Corria 2009 e havia certo otimismo tucano sobre a disputa presidencial do ano seguinte. Seria a primeira eleição sem Luiz Inácio Lula da Silva desde a redemocratização. O então presidente vinha na reta final dos dois mandatos dele e se mostrava um titã nas pesquisas. Sem Lula, imaginavam alguns, seria mais fácil derrotar o PT e evitar que o partido obtivesse um terceiro quadriênio.

Não foi o que se viu.

Aconteceu algo parecido em 2018. Lula foi condenado em segunda instância, preso e impedido de disputar a eleição, e mesmo de participar da campanha. Aí alguns consideraram haver uma pista livre à esquerda na autoestrada rumo ao Planalto. Já os mais realistas perceberam que o PT mantinha cerca de 20% da preferência do eleitorado e, se estivesse unido em torno de um nome e se este fosse o “candidato do Lula”, muito provavelmente estaria no segundo turno.

E Fernando Haddad teve mais ou menos aquele um quinto do eleitorado em votos na primeira rodada, e foi à decisão contra Jair Bolsonaro.

E Bolsonaro agora? Todas as pesquisas mostram que no pior momento dele o presidente retém um quarto da população avaliando-o como bom ou ótimo, e em torno de um terço aprovando seu governo. Há um deslocamento do regular para o “ruim ou péssimo”, mas a fatia do mercado eleitoral que levou o capitão ao segundo turno em 2018 está, até o momento, razoavelmente preservada, em tamanho.

Ainda que a situação dele na projeção de um eventual segundo turno seja hoje frágil.

A origem da resiliência de Bolsonaro é parecida com os motivos que vêm ajudando Lula e o PT a defenderem seu market share.

O debate político costuma recorrer a caricaturas. É normal. Errado está o analista que reduz os fenômenos a caricaturas. Bolsonaro, assim como Lula, vem conseguindo expressar uma forte corrente de pensamento e demandas sociais. É principalmente por este motivo que ambos lideram a corrida de 2022. E políticos só alcançam algo assim quando eles e seus partidos, ou grupos, respondem a necessidades postas na vida das pessoas.

Ideologia nunca é suficiente nesses casos.

No momento, a oposição a Bolsonaro está empenhada em desgastá-lo e minar a força eleitoral dele. Notam-se porém diferentes entusiasmos pelo impeachment, apesar de muitos dizerem querer. Quem mais quer é a dita centro-direita. Ela avalia que se Bolsonaro for demolido agora abre-se o caminho para a, por enquanto retardatária, terceira via virar segunda, ou até primeira.

É uma hipótese. Outra possibilidade é replicar 2018. Se de fato conseguirem remover o presidente da disputa em 2022, hoje um cenário pouco provável, nada garante que ele, autotransformado em “vítima do sistema político-midiático”, não possa levar um “candidato do Bolsonaro” à decisão. Poderia até ser alguém com o mesmo sobrenome. Ou outro qualquer. Se for um zerado em acusações, melhor ainda.

Entre 1993 e início de 94 o PT achou que estava com a mão na taça após a derrubada de Fernando Collor. A mesma coisa se deu com a aliança entre PMDB (hoje MDB) e PSDB em 2016-17, depois que encabeçaram a remoção de Dilma Rousseff do Palácio do Planalto. Mas nem sempre quem faz o bolo come o bolo. E na política, especialmente em eleições, quem executa a demolição do edifício velho pode não ser chamado para construir o novo.

Não é raro acontecer.

Defesa

O presidente da República colocou hoje mais claramente os termos da disputa dele com a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19. Disse que estão tentando atingi-lo por causa de negociações que o terceiro escalão entabulou sobre vacinas, negociações que segundo ele nunca chegaram a andar de verdade. Para ter dito isso, é razoável imaginar que antes tenha passado um pente fino situacional com sua equipe no Planalto sobre as ações do primeiro e segundo escalões.

Ao mesmo tempo, o governismo procura demolir na CPI a tese de que Jair Bolsonaro prevaricou. A correlação de forças na comissão está dada, pelo menos até o momento, e a oposição tem um voto a mais. Isso lhe dá as condições para aprovar o relatório que quiser. Mas é sempre melhor não depender tanto assim da aritmética política. Se os fatos ajudarem, o relatório ficará mais forte e andará pelas próprias pernas. Se não, será facilmente caracterizado como obra manca resultante de politicagem.

Outros dois detalhes. Parece que haverá mesmo o recesso e a CPI terá de parar. Nada que impeça seus protagonistas de frequentar o noticiário, desde que produzam notícias diárias, ou mais de uma por dia, o que não chega a ser um desafio tão inalcançável. Elas poderão ser produzidas a partir da farta documentação de que a comissão já dispõe. E algumas semanas passam rapidinho. E a prorrogação da CPI por mais três meses além do prazo original já é pule de dez.

Mas algum dia a CPI vai acabar, e as conclusões enviadas às autoridades. Que precisarão decidir o que fazer. E sofrerão pressões de todos os lados para avançar a coisa no terreno judicial. Pois só uma conclusão de CPI não chega a ser arma eleitoral decisiva. E aí, como sempre, quem tiver mais força prevalecerá. O trabalho da oposição é criar uma pressão psicossocial insuportável. O do governo é manter suas linhas organizadas para resistir. 

Vai saber jogar na defesa?

Até porque daqui a três meses vai faltar só um ano para a eleição.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

O custo do erro político

Comissões parlamentares de inquérito têm como objetivo central construir narrativas. Mais raro é chegar a provas definitivas de crimes. Entretanto, a consolidação de uma narrativa também ajuda a acelerar processos no âmbito da Justiça, pois aumenta a pressão social para evitar a suposta impunidade. Além de, naturalmente, contribuir para alterar a correlação de forças, e de vez em quando até para remover governos.

Por esses ângulos, a CPI no Senado da Covid-19 é um sucesso. Produz diariamente fatos noticiosos, e abundantemente noticiados. Se lá na frente alguma das múltiplas acusações será comprovada, é outra história. Mas nesse intervalo já terá tido a oportunidade de produzir efeito político. Um bom exemplo foi a Lava-Jato. O juiz que a comandou acaba de ser declarado suspeito nos casos de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas no meio-tempo Dilma Rousseff foi removida, Lula preso e o PT derrotado na eleição de 2018.

Aliás é sempre pedagógico observar a inversão de papéis quando o vento político muda o sentido. Os que lá atrás consideravam, na prática, delação como prova definitiva de crime hoje exigem não ser condenados sem provas no tribunal da opinião pública. E os ontem campeões da defesa dos direitos e garantias individuais carimbam "culpado" na testa de qualquer adversário acusado de qualquer coisa, ainda que sem a apresentação da prova cabal.

O cenário é paradoxal: o aspecto subjetivo vai degradando, mas os dados objetivos melhoram. Os últimos números da vacinação, dos casos de Covid-19, das mortes pela doença, das internações, todos são unânimes em apontar a melhora do quadro epidemiológico. Claro que há a incógnita da variante Delta, mas cada dia com sua agonia. E a economia também vai confirmando as previsões de recuperação, mesmo que com importantes déficits sociais, dos quais a alta taxa de desemprego é talvez o vetor mais cruel. 

Governos podem errar em várias coisas. Mas o custo de errar na política costuma ser muito alto. Em geral o mais alto de todos. Eis uma lição sempre repetida.




quarta-feira, 7 de julho de 2021

Cenário favorável?

O banco suíço UBS divulgou um balanço e perspectivas bastante favoráveis ao andamento do controle da epidemia de Covid-19 no Brasil, por causa principalmente do que considera forte ritmo da vacinação. Segundo o banco, há evidências de que mesmo a primeira dose da vacina reduz com intensidade as hospitalizações, internações em UTIs e mortes.

Segundo o relatório, os dados disponíveis permitem inferir que qualquer dose de vacina reduz em 78% a probabilidade de hospitalização, enquanto há uma redução de 92% nos casos graves após a segunda dose. Os números apontam também que 92% dos brasileiros acima de 60 anos já tomaram pelo menos uma dose, e 59% tomaram as duas

O banco calcula que se a vacinação corresponder a pelo menos 80% do programa projetado é possível 85% dos indivíduos de mais de 30 anos terem recebido ao menos uma dose até o final de agosto. O que, ainda segundo o banco, permitiria projetar a volta da normalidade econômica em setembro. Mês em que a cobertura com a segunda dose ultrapassaria os 80%.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Quanto mais vacinas melhor

O resultado da vacinação em massa nos diversos países, e com as diversas vacinas, vai mostrando que nenhuma delas chega nem perto de ser infalível. O exemplo atual mais gritante é Israel, paradigma de imunização, e com a Pfizer. Os últimos dados mostram ali um crescimento importante do número de casos, inclusive entre plenamente vacinados. Mas não deve restar dúvida: vacinar é fundamental. Vacinas, está provado, protegem contra o agravamento da Covid-19, e portanto contra as mortes.

Proteger não significa necessariamente garantir 100% de proteção. E aí abre-se a brecha para as polêmicas. O Brasil faz campanhas de vacinação desde sempre, e nunca, como agora, ficamos por aqui discutindo se tal vacina tinha tantos porcento de eficácia. Íamos vacinar e ponto final. Será uma conquista se essa cultura for algum dia retomada. Não devemos perder a esperança de reconquistar a racionalidade que um dia tivemos para assuntos da saúde pública.

Sobre a vacinação contra a Covid-19, está evidente (já estava) que a velocidade é fundamental. Ela depende de 1) ter vacina, 2) ter uma estrutura veloz de vacinação e 3) as pessoas quererem vacinar-se. O terceiro ponto está progredindo de modo importante, dizem todas as pesquisas. Conforme a doença avança e há vacinas disponíveis, o ceticismo dá lugar ao pragmatismo em boa parte dos que lá atrás diziam não estar dispostos a vacinar-se.

O segundo ponto tem estado prontinho, e funcionando. O fator limitante continua sendo o primeiro, o número de vacinas. O Brasil até que vai bem, ainda mais considerado o fato de não ser produtor primário de imunizantes. Mas poderia estar melhor. Se tivesse aprovado rapidamente todas as vacinas que poderia aprovar. O caso mais conhecido é a Sputnik V. Mas não só. Na guerra comercial e geopolítica em torno das vacinas, a primeira vítima são as vítimas da Covid-19.

A Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado teve foco lá atrás em pressionar a favor de acelerar a vacinação. Agora está mais concentrada em apurar eventual corrupção. Sempre algo importante. Mas será uma pena se abandonar aquele ímpeto inicial a favor da vacinação, e portanto da vida.


segunda-feira, 5 de julho de 2021

Que vacina? Qualquer uma

Israel é um líder mundial em imunização, e a vacina ali é a da Pfizer. E Israel encara uma escalada dos casos de Covid-19. Em parte nos que não se vacinaram. Mas também nos vacinados. Numa reunião com a bancada do seu partido, o ex-ministro Benjamin Netanyahu disse que cinco amigos dele, vacinados, pegaram a doença. E completou: "Usem máscaras" (leia).

Parece acontecer com a vacina da Pfizer o mesmo que vai com as coirmãs: alta taxa de proteção contra formas graves da Covid-19, mas não tão alta contra as formas mais leves. Aliás, é uma situação que a humanidade já conhece, por exemplo, no caso da gripe. Quem se vacina não o faz só para não pegar a virose: o objetivo principal é não ficar vulnerável às complicações.

Infelizmente, a turbulência política interna tornou o Brasil presa fácil na guerra comercial entre os fabricantes de vacinas. Estamos vulneráveis não apenas ao vírus, mas à desinformação. Um resultado disso é o fenômeno apelidado de "sommeliers de vacina", gente que perambula pelos postos de vacinação rejeitando umas e escolhendo outras (leia).

A observação do que acontece em Israel apenas refirma: bom mesmo é se vacinar, com a vacina que estiver disponível. E se, lá na frente, a vacina que você recusou acabar se provando mais eficaz?

sexta-feira, 2 de julho de 2021

As CPIs e as flechas

Sempre que vislumbra a possibilidade de sofrer uma comissão parlamentar de inquérito incômoda, qualquer governo observa sua escolha difícil. Ou parte para arregimentar número suficiente de apoios e assim simplesmente inviabilizar a instalação da CPI, ou vai precisar administrar um desgaste prolongado, período em que as flechas virão não se sabe quando e nem de onde, mas virão. E talvez alguma delas, ou mais de uma, esteja envenenada.

Mesmo ter a maioria dos votos na CPI quando da sua instalação não é garantia de nada. Maiorias e minorias em CPIs costumam oscilar ao sabor da opinião pública e de sua excelência, o fato novo. Melhor não ter CPI nenhuma. Só que isso também traz custo.

Operar a não instalação de uma CPI produz desgaste e embute risco político-policial, pois a moeda de troca costuma ser orçamentária. Ou de cargos. O risco no primeiro caso é fácil de compreender. No segundo, temos agora um exemplo: o debate sobre quem indicou o funcionário do Ministério da Saúde acusado de pedir comissão sobre uma possível compra de vacinas contra a Covid-19. Mesmo que não se prove o crime ao final, o servidor e quem o indicou terão de atravessar um corredor polonês.

E o Q.I. ("quem indicou") costuma ser um terreno movediço, pois nem sempre, ou quase nunca, o nomeador formal é o interessado político na nomeação. Mas acaba pagando o preço político. Quando não arca também com o custo jurídico. Se tem sorte, a coisa fica restrita ao primeiro plano. Mas ultimamente é raridade. O ponto final nas disputas políticas recentes tem sido o tribunal. Se isso é bom ou ruim, cada um que tenha sua própria opinião.

Dos presidentes eleitos desde 1989, quem operou de modo mais inclemente contra a instalação de CPIs foi Fernando Henrique Cardoso. Recebu críticas ali na hora, acusado de fisiologismo. Em compensação, completou o mandato e hoje é entrevistado dia sim dia não como o último pai da pátria.

A disputa é para saber quem vai cortar o nó górdio

Nos sistemas presidenciais em que o governo eleito não traz com ele das urnas uma maioria partidária, o transcorrer do mandato costuma ser um inferno de guerras políticas, provocadas pela instabilidade parlamentar. Generalizada ou localizada em uma das duas casas legislativas, em sistemas bicamerais como o nosso.

Aí os governos passam a maior parte do tempo empenhados em tentar sobreviver.

Mas é preciso reconhecer que o Brasil, a Nova República e a "Constituição cidadã" capricharam na construção de um modelo que leva isso a extremos.

Teria como resolver? Ideias não faltam. E se, por acaso, o tamanho das bancadas na Câmara fosse calculado pelo voto dado aos candidatos a presidente nos estados, e não aos candidatos a deputado federal? Jair Bolsonaro e Fernando Haddad somados fizeram três quartos do voto válido, mas os partidos de ambos elegeram em torno de um quinto dos deputados.

A Nova República criou um mecanismo vocacionado para a instabilidade. “Criou” não é a palavra mais adequada. Os constituintes de 1987-88 apenas pioraram o mau sistema outorgado pelo presidente Ernesto Geisel no “Pacote de Abril” de 1977, ainda sob a égide do AI-5.

Pioraram porque juntaram à representação deformada dos eleitorados estaduais o estímulo à livre proliferação de partidos cartoriais, sustentados com recursos públicos e liberados de praticar democracia interna. O resultado hoje são dezenas de legendas nanicas, pequenas e médias. E com todos os estímulos e fórmulas para preservar o caciquismo.

Vem aí, é verdade, o endurecimento da cláusula de desempenho, mas é duvidoso que diminuir o número de legendas dê conta do problema. A encrenca está mais relacionada à capacidade de o Executivo impor alguma disciplina aos parlamentares. Sem o que nenhum modelo vai a lugar nenhum, em canto nenhum.

E o Congresso Nacional, especialmente a Câmara, trabalha para piorar o sistema, com a eventual aprovação do “distritão”. O que tornará os partidos definitivamente irrelevantes.

Como presidentes da República sobrevivem nesse ambiente? Compondo precariamente maiorias parlamentares após a eleição. Em troca de verbas e cargos. O que transforma qualquer administração num banquete para a polícia e os promotores. Quando tentam outro caminho, os governantes tornam-se alvo da má vontade e mesmo da vingança de legisladores.

Converse com um oposicionista e ele dirá que o sistema é bom, porque limita a capacidade de Jair Bolsonaro governar. Hoje, os adversários dele não quereriam nem saber de aprovar mecanismos que facilitassem a governabilidade. Mas alguma hora a atual oposição (ou o “centro”) será governo, e aí o louvor aos “freios e contrapesos” virará reclamação.

Modelos têm de ser avaliados pelos resultados. As últimas três décadas vêm sendo de baixo crescimento, resiliência das desigualdades, piora acelerada da segurança e, mais por agora, deterioração aguda dos mecanismos de construção de maiorias ou consensos na sociedade e na política.

Sem falar no progressivo conflito de poderes, do qual o fenômeno mais recente é a hipertrofia do Supremo Tribunal Federal, transformado em órgão que termina absorvendo as atribuições das outras duas arestas da Praça dos Três Poderes. Por quê? Em meio à disfunção, alguém acaba sobrando com a chave.

Não que os ministros do STF estejam especialmente incomodados com isso.

É evidente que o cenário descrito até aqui não poderá perdurar para sempre. No fundo, a verdadeira disputa política no Brasil de hoje é para saber quem vai cortar o nó górdio. E como.

Dois salvacionismos

Era previsível, e foi previsto: quando viesse a hora da dificuldade, a ameaça mais perigosa para Jair Bolsonaro não viria da esquerda, mas do autodenominado centro. Para este, aliás, parece estar em vigência um sistema como o das cotas universitárias, a autodeclaração. Nas cotas isso é até razoável. A alternativa seria criar algum mecanismo de “checagem racial”. O absurdo da hipótese dispensa maiores explicações.

Porém na política a coisa se complica. Pois nos dias que correm basta se dizer de centro e contra os extremismos para ser dispensado de qualquer explicação adicional sobre 1) o que fez no passado ou 2) o que pretende fazer no futuro. Além, claro, de “salvar o Brasil dos perigosos extremistas responsáveis pela insuportável polarização que impede a união e a paz nacionais”.

A esquerda está nas ruas, na internet e no parlamento contra Bolsonaro porque ela é contra os principais aspectos do programa governamental e porque o presidente disse, e reafirma, que deseja extirpá-la da vida política nacional. Já o centro gostaria mesmo é de manter os eixos fundamentais do que vem sendo feito, mas sob nova direção: a dele mesmo.

Poderia, talvez, fazer concessões comportamentais e ambientais. Ainda que seja ilusão imaginar um governo dito centrista - aliás qualquer governo – dispensando, por exemplo, o apoio do agronegócio ou dos evangélicos. Mas, noves fora, a ideia do centro é repetir 1992-94. Produzir com a ajuda da esquerda uma correlação de forças definitiva contra o presidente para, na sequência, recompor a base política e social do conservadorismo sob novo comando, para isolar e derrotar a esquerda.

Onde residem as dificuldades desse projeto? Um empecilho muito falado é a proliferação de nomes de centro, todos hoje mais ou menos equivalentes em cacife eleitoral e bem atrás dos líderes. Há, porém, outro, mais desafiador: a necessidade de um “centro contra os extremismos” parece ser assunto quentíssimo no topo da sociedade, mas olimpicamente ignorado pelo povão.

Daí também que a terceira via esteja no momento dedicada a demolir a primeira (ou segunda, conforme o gosto do freguês), Jair Bolsonaro, para então tentar ocupar o lugar dele na montagem de uma cruzada antipetista rumo a outubro de 2022. E a tarefa anda bem facilitada por causa de como o presidente conduz os temas críticos da pandemia: o isolamento e o afastamento social, as máscaras, as vacinas, etc.

Enquanto Bolsonaro é alvejado diariamente pela Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19, e busca a sobrevivência política sob cerco duplo dos ex-aliados dele e da esquerda, esta observa um enigma. Está condenada a engrossar a ofensiva antibolsonarista, até luta para encabeçá-la, mas quebra a cabeça sobre como neutralizar o risco de repetir 1994. 

Quer achar um jeito de não acabar isolada por uma coalizão que, esvaziado o bolsonarismo, faça reemergir na sequência o hoje latente antipetismo para engatar uma segunda jornada salvacionista.

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Publicado na revista Veja de 07 de julho de 2021, edição nº 2.745  

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Fogo e fumaça

Qual é o objetivo da oposição quando integra uma Comissão Parlamentar de Inquérito desencadeada por acusações contra o governo? Tocar fogo no ambiente. E produzir muita luz, para iluminar o que o governo gostaria de esconder. Já para o governo, na impossibilidade de acabar com o espetáculo, a tática pode ser simplesmente fazer a CPI produzir mais calor que luz, e mais fumaça que fogo.

Se a oposição tem maioria, como é o caso da CPI no Senado da Covid-19, essa tarefa fica facilitada, pela possibilidade de conduzir a lista dos depoentes, os próprios depoimentos e as quebras de sigilo. Mas é preciso, antes de tudo, saber onde se quer chegar. Claro que podem aparecer surpresas pelo caminho, uma bala de prata, a prova definitiva. Entretanto é sempre arriscado apostar no aleatório.

O risco é levar a CPI a enredar-se, a produzir mais fumaça que fogo e mais calor que luz. Claro que, no final, o relatório da comissão trará o que a maioria desejar trazer, acusará quem a maioria quiser acusar, e reunirá o máximo de coisas ruins contra o governo, o presidente Jair Bolsonaro e o entorno dele. Mas uma coisa é pegar os peixes pequenos, ou ex-peixes, outra coisa é alvejar o líder do cardume.

Para o governo, o caminho parece estar claro. Administrar o andamento da CPI, cuidando para que esta não crie uma brecha no dique de contenção parlamentar à abertura de um processo de impedimento. Para Bolsonaro estar vivo e competitivo quando finalmente a epidemia for controlada. E vivo e competitivo para saborear em 2022 os frutos da retomada da economia.

Nessa linha, hoje não foi um mau dia para o governo na CPI.