Merecerá estudos, algum dia, a transição da promessa de uma democracia constitucional pluralista, base do otimismo histórico da redemocratização de 1984-85, para nosso atual ensaio de “democracia hobbesiana”, em que a única disputa real é sobre que lobo conseguirá, ao fim e ao cabo, eliminar a possibilidade de alternância no poder.
Tais reflexões deverão necessariamente dissecar a paradoxal absorção hoje em dia das narrativas excepcionalizantes do regime militar pelos que um dia se opuseram a ele e foram construindo, ao longo dos anos 1970 e 80, o movimento afinal vitorioso, cristalizado na Constituição de 1988. Um debate essencial se dará sobre se a deriva era inevitável ou se foi uma escolha.
Talvez ainda seja cedo para concluir a autópsia da ordem político-institucional produzida ali, apesar de ela jazer sem vida, mas vale começar a especular a respeito de onde começou a desandar. É natural que a esquerda finque o primeiro landmark na crise desencadeada pelas acusações de Roberto Jefferson em 2005. E que aponte especial destaque à Operação Lava-Jato e ao impeachment de Dilma Rousseff.
Assim como será natural, no futuro, os atuais movimentos da Justiça brasileira serem destaque na historiografia de direita.
Mas há dois acontecimentos, com suas circunstâncias, que exigirão um olhar mais detido, apesar de hoje estar algo ausentes das narrativas em choque. Um é o impeachment/renúncia do primeiro presidente eleito diretamente após o fim da ditadura, Fernando Collor de Mello. As mesmas forças que haviam saído às ruas em 1984 para exigir as diretas lideraram a derrubada dele.
Também por Collor representar, em algum grau, o ancien régime.
Se há argumentos para defender que Dilma foi vítima de um processo sem base substancial, qualquer um que se detenha nos motivos para a deposição de Collor notará a mesma, ou maior, vacuidade de elementos. A diferença é faltar ao ex-presidente quem esteja interessado em reabilitar a imagem histórica dele. No limite, falta-lhe um partido.
Ou talvez a origem do desandar precise ser buscada um pouco antes, no ambiente político que cercou o mandato de José Sarney. Quando a democracia liberal constitucional mostrou sua cara, junto veio um fabricado horror a seus aspectos menos elegantes. Especialmente a necessidade de o Executivo buscar maioria parlamentar por meio de negociação política que obrigatoriamente envolvesse concessões materiais.
É de então a ojeriza seletiva ao “toma lá dá cá” e o celebrizar de expressões como “fisiologismo”, hoje em conveniente desuso. Mas sempre ali na gaveta para qualquer necessidade.
Combinada aos fracassos na luta anti-inflacionária daqueles tempos, a repulsa à “política realmente existente” foi o tiro de largada, o “big bang” dos sucessivos surtos de neogolpismo dos antes não golpistas, ou antigolpistas. E um dos primeiros capítulos se deu quando os democratas radicais de 1984-85 tentaram amputar na Constituinte em dois anos o mandato de Sarney. No fim, conseguiram cortar um.
O que levou à eleição “solteira” de 1989, à vitória “bonapartista” de Collor e a todas as consequências que, como advertia o Conselheiro Acácio, vieram depois. Na base de tudo, aquela ojeriza à política e o veto a alternâncias reais. E aqui estamos.
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
sábado, 20 de abril de 2024
sábado, 6 de abril de 2024
O debate econômico costeia o alambrado
O debate sobre o papel da economia no atual desgaste do governo vem “costeando o alambrado”, como diria Leonel Brizola. A razão é política. O ministro da Fazenda tem o mérito de conquistar para si alguma blindagem em áreas empresariais potencialmente mais refratárias a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT. No que, por tabela, acaba ajudando o presidente e o partido. Pois, ao fim e ao cabo, apoiar o ministro é apoiar o governo.
Deve-se também a esse fator a aceitação algo passiva da lógica que comanda a equação econômica em curso. Já que Lula não quer nem ouvir falar em cortar gastos, ao contrário, e já que Fernando Haddad deve boa parte da sustentação política dele na sociedade ao compromisso com alguma disciplina fiscal, a pauta da inevitabilidade de medidas que anabolizem receitas governamentais vem descendo goela abaixo da opinião pública com menos aspereza do que seria se os personagens fossem outros.
Adaptando Ortega y Gasset, as opiniões, no mais das vezes, são elas próprias combinadas com suas circunstâncias.
Em outras circunstâncias, a crítica do mainstream estaria voltada para a “sanha arrecadatória” e a resistência a melhorar a produtividade da máquina pública. Mas, nas condições dadas da conjuntura, o laser está apontado para o Congresso quando este resiste à pressão por mais impostos, mesmo que resultantes só do fim de renúncias fiscais. Pouca atenção se dá às dúvidas em torno da premissa: a resultante de aumentar agora a receita como proporção do PIB é boa ou ruim para a economia?
Justiça se faça a Lula, ele cansou de dizer que colocaria "os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda”. Aqui não tem estelionato nenhum, a orientação econômica do governo é uma social-democracia clássica: promover mais justiça social redistribuindo, via Estado, parte do valor socialmente produzido e concentrado. O desafio? Combinar esse distributivismo com a necessidade de um crescimento econômico robusto, que depende quase totalmente do investimento privado.
A social-democracia não está exatamente na moda no berço dela, a Europa. Nos Estados Unidos, enfrenta a dura oposição de um liberalismo econômico que casou com o conservadorismo dito cultural. E esses são países e regiões cujo nível da economia coloca até menos pressão na necessidade de desenvolvimento. Entre nós, o modelo social-democrata até agora passa longe de explicar como combinar o distributivismo com o estímulo a que os capitalistas invistam.
O governo Lula diz ter a solução: expandir o poder de compra da população expande o mercado e, portanto, é um chamado ao investimento privado. Um caminho diferente seria apostar principalmente na formação de poupança e no investimento produtivo privados, a trilha que a Ásia tomou para estar onde está. Menos social-democracia e mais capitalismo na veia.
Independentemente do caminho a seguir, o governo parece pouco capaz de entender certas características do Brasil que governa, produto até das anteriores administrações petistas. As razões histórico-econômicas merecem um detalhamento, mas o Brasil é, ou se acha, muito mais de classe média do que duas décadas atrás.
E, quando o governo e Lula falam em -e agem para- “colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda”, e como o Brasil não tem tantos ricos assim para sustentar um distributivismo mais agressivo, é natural que acenda uma luz amarela diante da classe média, ou de quem se enxerga na classe média.
Deve-se também a esse fator a aceitação algo passiva da lógica que comanda a equação econômica em curso. Já que Lula não quer nem ouvir falar em cortar gastos, ao contrário, e já que Fernando Haddad deve boa parte da sustentação política dele na sociedade ao compromisso com alguma disciplina fiscal, a pauta da inevitabilidade de medidas que anabolizem receitas governamentais vem descendo goela abaixo da opinião pública com menos aspereza do que seria se os personagens fossem outros.
Adaptando Ortega y Gasset, as opiniões, no mais das vezes, são elas próprias combinadas com suas circunstâncias.
Em outras circunstâncias, a crítica do mainstream estaria voltada para a “sanha arrecadatória” e a resistência a melhorar a produtividade da máquina pública. Mas, nas condições dadas da conjuntura, o laser está apontado para o Congresso quando este resiste à pressão por mais impostos, mesmo que resultantes só do fim de renúncias fiscais. Pouca atenção se dá às dúvidas em torno da premissa: a resultante de aumentar agora a receita como proporção do PIB é boa ou ruim para a economia?
Justiça se faça a Lula, ele cansou de dizer que colocaria "os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda”. Aqui não tem estelionato nenhum, a orientação econômica do governo é uma social-democracia clássica: promover mais justiça social redistribuindo, via Estado, parte do valor socialmente produzido e concentrado. O desafio? Combinar esse distributivismo com a necessidade de um crescimento econômico robusto, que depende quase totalmente do investimento privado.
A social-democracia não está exatamente na moda no berço dela, a Europa. Nos Estados Unidos, enfrenta a dura oposição de um liberalismo econômico que casou com o conservadorismo dito cultural. E esses são países e regiões cujo nível da economia coloca até menos pressão na necessidade de desenvolvimento. Entre nós, o modelo social-democrata até agora passa longe de explicar como combinar o distributivismo com o estímulo a que os capitalistas invistam.
O governo Lula diz ter a solução: expandir o poder de compra da população expande o mercado e, portanto, é um chamado ao investimento privado. Um caminho diferente seria apostar principalmente na formação de poupança e no investimento produtivo privados, a trilha que a Ásia tomou para estar onde está. Menos social-democracia e mais capitalismo na veia.
Independentemente do caminho a seguir, o governo parece pouco capaz de entender certas características do Brasil que governa, produto até das anteriores administrações petistas. As razões histórico-econômicas merecem um detalhamento, mas o Brasil é, ou se acha, muito mais de classe média do que duas décadas atrás.
E, quando o governo e Lula falam em -e agem para- “colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda”, e como o Brasil não tem tantos ricos assim para sustentar um distributivismo mais agressivo, é natural que acenda uma luz amarela diante da classe média, ou de quem se enxerga na classe média.
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