Há uma contradição entre os números trazidos por alguns levantamentos estatísticos de opinião e os principais dados objetivos da economia. Nestes, as projeções do Produto Interno Bruto (PIB) melhoram, a taxa de desemprego arrefece, e a renda sobe; naqueles, uma parte do eleitorado de Jair Bolsonaro em 2022 que antes dava um crédito de confiança ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva tende a se deslocar do “regular” para o "ruim+péssimo".
Verdade que de vez em quando os números da macroeconomia não dão conta de dissecar a realidade do povão na luta diária pela sobrevivência. Talvez a retomada da alta nos preços dos combustíveis esteja sacando da conta de popularidade. O certo é que o paradoxo apontado no parágrafo anterior merece uma explicação, e isso exigirá algum detalhamento nas pesquisas. Até porque os efeitos políticos serão inevitáveis se a deterioração persistir e aprofundar-se.
E nem sempre a economia, macro ou micro, explica tudo, apesar do mito do “é a economia, estúpido”. A derrota de Bolsonaro ano passado deveria ajudar a valorizar os aspectos subjetivos na análise. E eles fazem desconfiar de que talvez haja uma assimetria entre como o poder se enxerga e como é visto por parcela crescente da população. Os eventos em torno da posse do novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) deveriam ser objeto relevante desse olhar.
Para o hoje poder e a membrana informativa que o envolve, foi uma celebração da democracia. É possível que fora da bolha a percepção tenha sido diferente, reforçando que hoje Brasília é uma festa sem regras ou controles e que as decisões andam concentradas numa esfera inacessível ao eleitor: o Judiciário. Talvez essa parcela não veja com tanta naturalidade o fato de cada presidente que assume no STF ter, na prática, um “programa de governo”.
Especialmente quando o objetivo é reformar a sociedade de cima para baixo, à força, numa modalidade contemporânea e supostamente sanitizada de “despotismo esclarecido”, caminho encontrado pelo Iluminismo séculos atrás para exercer influência em países europeus autocráticos. Mas no Brasil o eleitor vai à urna a cada dois anos, uma diferença não desprezível. Ainda mais quando a atividade socialmente legitimada de oposição tende a ser canalizada, por falta de outros espaços, para as eleições.
É nessas situações que a eleição costuma trazer mais surpresas.
O aspecto positivo, para o poder: enquanto a massa não negativar nas expectativas econômicas, enquanto o fusível não queimar, dá para ir tocando sem maiores sobressaltos, a não ser os endógenos, resultantes da pura disputa de entre facções do bloco histórico. Em 2013, apenas como exemplo, o fundamento da insatisfação não eram mesmo os vinte centavos, foi o fechamento da boca do jacaré, a inflação tendendo para cima e o PIB para baixo.
Sobre a economia, o patinho feio entre os dados positivos vem sendo a formação bruta de capital fixo. O governo tem um plano para alavancar o investimento público e das estatais, mas precisa encontrar o caminho para estimular o investimento privado, sem o que a conta não fecha. Essa é a variável ainda não desvendada da equação econômica. E a evidência de que o foco em Brasília é aumentar impostos não chega a ser um estímulo para o capital.
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
sábado, 30 de setembro de 2023
sábado, 23 de setembro de 2023
A gangorra e o vento
O andamento das colaborações referentes ao 8 de janeiro exige alguma cautela na interpretação, mas as versões trazidas até agora não autorizam muito otimismo sobre provar o envolvimento institucional necessário para caracterizar uma tentativa concreta de golpe de Estado. Houve em toda a transição pós-eleitoral, e isso já se sabia, um desejo de virada de mesa. E houve os acontecimentos daquele domingo. A dificuldade, até agora, está em conectar os dois fatos.
Seria um golpe de Estado sem o Exército ou contra o Exército. Complicado.
Mas, como em toda investigação revestida de forte componente político, aguardar é prudente. Um exemplo é a Lava Jato, que levou anos para construir o arcabouço condenatório almejado pelos seus condutores. Ali, métodos heterodoxos buscaram redesenhar um disseminado sistema de caixa dois eleitoral, com elementos de corrupção política, como se fosse o inverso. Ao final, as forçações de barra acabaram facilitando o desabamento do castelo de areia.
E os que ontem caçavam hoje são caçados.
Mas seria também precipitado debitar o fim inglório da Lava Jato e seus personagens às heterodoxias. A Lava Jato morreu, e os líderes dela estão em retirada ou em fuga, porque mudou a correlação de forças políticas e sociais. Os equívocos de Jair Bolsonaro na presidência foram centrais para a divisão do bloco histórico que o elegera em 2018. Na gangorra da política, quando um dos lados desce, o outro sobe. Quem matou a Lava Jato não foi o Telegram.
Agora, o cenário guarda alguma semelhança com o período 2014-18.
A Lava Jato pôde avançar sem maior resistência porque o sistema de freios e contrapesos estava bem relativizado. Aqui e ali, vozes isoladas pediam a observância do devido processo legal e questionavam a terra arrasada empresarial, mas era só um registro. No mais, um alinhamento quase perfeito (quem não impulsionava, recolhia-se a uma conveniente passividade, muitas vezes em nome do “republicanismo") de vetores facilitou a vida de Curitiba.
Na teoria, numa democracia como a nossa, o sistema de freios e contrapesos garante por si próprio que todos os núcleos de poder sofram alguma limitação para prevalecer sobre os demais. Na prática, a experiência brasileira comprova mais uma vez que depende. Se Executivo, Legislativo, Judiciário, imprensa e sociedade civil estão alinhados, ainda que algum ou mais de um deles esteja neutralizado, o mecanismo engasga. E, no limite, uma hora deixa de funcionar.
Como resolver? Difícil. A exemplo da guerra, na política os exércitos avançam até alcançar os objetivos ou enfrentar resistência que imponha mudança de cenário. Esta pode resultar de dificuldades econômicas, mas regimes políticos sobrevivem a isso quando há coesão nos grupos dominantes. Coesão que sempre é imposta por uma mistura de coerção e consenso. Até aqui, o governo Luiz Inácio Lula da Silva vai bem na aplicação da primeira e na construção do segundo.
Onde está a dúvida? O lavajatismo e seu produto político-eleitoral, o bolsonarismo, talvez tenham acreditado que poderiam eliminar o petismo só por meio da coerção. Se ambos tivessem compreendido que sua hegemonia seria mais estável e duradoura caso trabalhassem para absorver no sistema um petismo minoritário, porẽm legitimador, é possível que não estivessem enredados nas atuais dificuldades. Mas o “se” não joga e jamais saberemos.
Hoje, o vento venta no sentido da criminalização da direita, como um dia ventou para criminalizar a esquerda. Qual será a resultante?
Seria um golpe de Estado sem o Exército ou contra o Exército. Complicado.
Mas, como em toda investigação revestida de forte componente político, aguardar é prudente. Um exemplo é a Lava Jato, que levou anos para construir o arcabouço condenatório almejado pelos seus condutores. Ali, métodos heterodoxos buscaram redesenhar um disseminado sistema de caixa dois eleitoral, com elementos de corrupção política, como se fosse o inverso. Ao final, as forçações de barra acabaram facilitando o desabamento do castelo de areia.
E os que ontem caçavam hoje são caçados.
Mas seria também precipitado debitar o fim inglório da Lava Jato e seus personagens às heterodoxias. A Lava Jato morreu, e os líderes dela estão em retirada ou em fuga, porque mudou a correlação de forças políticas e sociais. Os equívocos de Jair Bolsonaro na presidência foram centrais para a divisão do bloco histórico que o elegera em 2018. Na gangorra da política, quando um dos lados desce, o outro sobe. Quem matou a Lava Jato não foi o Telegram.
Agora, o cenário guarda alguma semelhança com o período 2014-18.
A Lava Jato pôde avançar sem maior resistência porque o sistema de freios e contrapesos estava bem relativizado. Aqui e ali, vozes isoladas pediam a observância do devido processo legal e questionavam a terra arrasada empresarial, mas era só um registro. No mais, um alinhamento quase perfeito (quem não impulsionava, recolhia-se a uma conveniente passividade, muitas vezes em nome do “republicanismo") de vetores facilitou a vida de Curitiba.
Na teoria, numa democracia como a nossa, o sistema de freios e contrapesos garante por si próprio que todos os núcleos de poder sofram alguma limitação para prevalecer sobre os demais. Na prática, a experiência brasileira comprova mais uma vez que depende. Se Executivo, Legislativo, Judiciário, imprensa e sociedade civil estão alinhados, ainda que algum ou mais de um deles esteja neutralizado, o mecanismo engasga. E, no limite, uma hora deixa de funcionar.
Como resolver? Difícil. A exemplo da guerra, na política os exércitos avançam até alcançar os objetivos ou enfrentar resistência que imponha mudança de cenário. Esta pode resultar de dificuldades econômicas, mas regimes políticos sobrevivem a isso quando há coesão nos grupos dominantes. Coesão que sempre é imposta por uma mistura de coerção e consenso. Até aqui, o governo Luiz Inácio Lula da Silva vai bem na aplicação da primeira e na construção do segundo.
Onde está a dúvida? O lavajatismo e seu produto político-eleitoral, o bolsonarismo, talvez tenham acreditado que poderiam eliminar o petismo só por meio da coerção. Se ambos tivessem compreendido que sua hegemonia seria mais estável e duradoura caso trabalhassem para absorver no sistema um petismo minoritário, porẽm legitimador, é possível que não estivessem enredados nas atuais dificuldades. Mas o “se” não joga e jamais saberemos.
Hoje, o vento venta no sentido da criminalização da direita, como um dia ventou para criminalizar a esquerda. Qual será a resultante?
sábado, 16 de setembro de 2023
A vontade de comer. E a fome
A aproximação entre o governo, que na campanha eleitoral atacava o “orçamento secreto”, e o “centrão”, principal beneficiário daquela modalidade de execução orçamentária, é um movimento obrigatório para ambas as partes, se olhado pelo ângulo da lógica política.
Verdade que parte daquela verba agora é impositiva - e que só isso já garante a suas excelências do Parlamento um belo colchão para suprir as bases municipais. Mas há mais espaço a ocupar, até porque o “orçamento secreto” diminuiu, mas continua bem vivo, e não existe vácuo na política. E o governo também se mostra disposto a abrir espaços na máquina.
Seria, entretanto, um erro reduzir a isso a atratividade do governismo.
O escudo oficialista é particularmente útil quando a atividade de oposição embute risco crescente. Essa proteção sempre foi uma variável a considerar com cuidado em Brasília, mas a nova cultura política e policial confere-lhe papel especialmente relevante, judicial e social.
E o governo? Por que precisa tanto da aliança? A razão primeira é a de sempre: solidificar a base parlamentar para aprovar projetos e reduzir o potencial de desestabilização. Mas qual a razão do afã, num cenário em que Jair Bolsonaro e os dele estão institucionalmente acossados e isolados?
No primeiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva só fez a primeira reforma ministerial decorrido um ano de governo.
Mas agora a sustentação social da administração petista não é tão confortável quanto costumava ser naqueles primeiros e hoje distantes, e não apenas no tempo, oito anos. E a coesão política da frente ampla é relativamente frágil.
Só o antibolsonarismo e a sede governista mantêm aglutinada a coalizão que deu a vitória a Lula por estreita margem.
O que não chega a ser obrigatoriamente fatal no tempo, pois o governo sempre terá seus atrativos, e o bolsonarismo leva jeito, assim como o petismo, de corrente social e política resiliente, com potencial para resistir aos percalços do líder, ainda que com algum sofrimento.
O antibolsonarismo está servindo e ainda vai servir de escada para muita gente. Como um dia foram o antimalufismo, o antipetismo (ainda é), o antichaguismo, o anticarlismo etc.
Aliás, governo e “centrão” podem agradecer a Bolsonaro as atuais negociações entre ambos não serem alvo das clássicas acusações de “fisiologismo” e “toma lá, dá cá” nos mecanismos tradicionais de difusão informativa. Com o inevitável assédio jornalístico dessas horas.
Mas cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém, até por Lula enfrentar resistência sólida dentro da sua frente ampla a dois pilares programáticos da administração: 1) a política externa e 2) a política econômica.
Parte socialmente influente dos que elegeram e apoiam Lula contra Bolsonaro opõe-se decididamente à política exterior de defesa da multipolaridade e prioridade aos Brics. Pedem, em oposição, um alinhamento estreito ao Ocidente político.
É um viés particularmente acentuado na cobertura jornalística.
O governo americano ser do Partido Democrata e promover uma agenda ambiental e comportamental-identitária alinhada com as correntes hegemônicas do dito progressismo brasileiro cria um ambiente especialmente favorável a essas pressões.
O governo do PT tampouco tem apoio relevante nos setores não-petistas da frente ampla de 2022 a seu propósito de equacionar o desafio fiscal por meio do aumento da carga tributária, que à luz das novas regras precisará ser substancial.
Nesse desenho, o apoio do “centrão” é estratégico, pois, dentro de certos limites, trata-se de um agrupamento bem mais voltado para a ocupação de espaços do que interessado em debates programáticos. Mesmo em assuntos de política econômica.
No passado, a direita ou centro-direita parlamentar até era mais permeável a pressões empresariais. Mas o fim das contribuições eleitorais de CNPJs limita exponencialmente esse fator. Hoje, quem tem dinheiro legal de verdade para sustentar projetos eleitorais são o governo, com o orçamento e as estatais, e os (donos de) partidos políticos, com os fundos partidário e eleitoral.
Como diz o batido porém útil chavão, a aliança entre o governo do PT e o “centrão” pode parecer o casamento do jacaré com a cobra d’água, mas é apenas a junção da fome com a vontade de comer.
Verdade que parte daquela verba agora é impositiva - e que só isso já garante a suas excelências do Parlamento um belo colchão para suprir as bases municipais. Mas há mais espaço a ocupar, até porque o “orçamento secreto” diminuiu, mas continua bem vivo, e não existe vácuo na política. E o governo também se mostra disposto a abrir espaços na máquina.
Seria, entretanto, um erro reduzir a isso a atratividade do governismo.
O escudo oficialista é particularmente útil quando a atividade de oposição embute risco crescente. Essa proteção sempre foi uma variável a considerar com cuidado em Brasília, mas a nova cultura política e policial confere-lhe papel especialmente relevante, judicial e social.
E o governo? Por que precisa tanto da aliança? A razão primeira é a de sempre: solidificar a base parlamentar para aprovar projetos e reduzir o potencial de desestabilização. Mas qual a razão do afã, num cenário em que Jair Bolsonaro e os dele estão institucionalmente acossados e isolados?
No primeiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva só fez a primeira reforma ministerial decorrido um ano de governo.
Mas agora a sustentação social da administração petista não é tão confortável quanto costumava ser naqueles primeiros e hoje distantes, e não apenas no tempo, oito anos. E a coesão política da frente ampla é relativamente frágil.
Só o antibolsonarismo e a sede governista mantêm aglutinada a coalizão que deu a vitória a Lula por estreita margem.
O que não chega a ser obrigatoriamente fatal no tempo, pois o governo sempre terá seus atrativos, e o bolsonarismo leva jeito, assim como o petismo, de corrente social e política resiliente, com potencial para resistir aos percalços do líder, ainda que com algum sofrimento.
O antibolsonarismo está servindo e ainda vai servir de escada para muita gente. Como um dia foram o antimalufismo, o antipetismo (ainda é), o antichaguismo, o anticarlismo etc.
Aliás, governo e “centrão” podem agradecer a Bolsonaro as atuais negociações entre ambos não serem alvo das clássicas acusações de “fisiologismo” e “toma lá, dá cá” nos mecanismos tradicionais de difusão informativa. Com o inevitável assédio jornalístico dessas horas.
Mas cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém, até por Lula enfrentar resistência sólida dentro da sua frente ampla a dois pilares programáticos da administração: 1) a política externa e 2) a política econômica.
Parte socialmente influente dos que elegeram e apoiam Lula contra Bolsonaro opõe-se decididamente à política exterior de defesa da multipolaridade e prioridade aos Brics. Pedem, em oposição, um alinhamento estreito ao Ocidente político.
É um viés particularmente acentuado na cobertura jornalística.
O governo americano ser do Partido Democrata e promover uma agenda ambiental e comportamental-identitária alinhada com as correntes hegemônicas do dito progressismo brasileiro cria um ambiente especialmente favorável a essas pressões.
O governo do PT tampouco tem apoio relevante nos setores não-petistas da frente ampla de 2022 a seu propósito de equacionar o desafio fiscal por meio do aumento da carga tributária, que à luz das novas regras precisará ser substancial.
Nesse desenho, o apoio do “centrão” é estratégico, pois, dentro de certos limites, trata-se de um agrupamento bem mais voltado para a ocupação de espaços do que interessado em debates programáticos. Mesmo em assuntos de política econômica.
No passado, a direita ou centro-direita parlamentar até era mais permeável a pressões empresariais. Mas o fim das contribuições eleitorais de CNPJs limita exponencialmente esse fator. Hoje, quem tem dinheiro legal de verdade para sustentar projetos eleitorais são o governo, com o orçamento e as estatais, e os (donos de) partidos políticos, com os fundos partidário e eleitoral.
Como diz o batido porém útil chavão, a aliança entre o governo do PT e o “centrão” pode parecer o casamento do jacaré com a cobra d’água, mas é apenas a junção da fome com a vontade de comer.
sábado, 2 de setembro de 2023
Vento a favor
O bom resultado do PIB do segundo trimestre tem uma fonte primária: a combinação de inflação em queda com mercado de trabalho e programas sociais sustentados. Daí o consumo das famílias a puxar a atividade. Acrescente-se ainda um efeito inercial do final da pandemia. A variável incômoda? Para o mercado, é a projeção de um quadro fiscal deficitário no próximo ano, mas mesmo isso está em precificação pelos agentes econômicos.
O debate sobre zerar o déficit vai quente, mas os cenários financeiros mais realistas já absorveram algum grau de frouxidão fiscal. Até porque sempre haverá o Banco Central autônomo para, se necessário, apertar a corda ou soltar menos que o previsto.
Essa combinação entre um governo concentrado em gastar e um BC ortodoxo vai produzindo, portanto, resultado neste curto prazo. Um problema? Os investimentos não habitam patamar propriamente brilhante, o que é a outra face do consumo em alta. Mas no curto prazo essa variável tem efeito apenas relativo para uma administração em busca da estabilidade política.
O fôlego na economia reforça a mão de cartas do governo nas negociações para a ampliação da base parlamentar, numa moldura que já vinha favorável por razões políticas propriamente ditas, em particular a inteligente recusa do Congresso Nacional a ficar isolado contra o que se chama, com algum grau de humor, de presidencialismo de coalizão com o Judiciário.
Nunca se deve subestimar o instinto de sobrevivência dos políticos.
Essa “coesão no conflito” projeta um segundo semestre de votações com tudo para ser tranquilas ao oficialismo, ainda que nos micromomentos aconteçam turbulências e ruídos, um alarido que sempre acaba por se dissipar na hora H. Até por o governo contar com sólido respaldo nos mecanismos ditos formadores de opinião pública.
O que tem funcionado como amortecedor eficaz de potenciais crises.
Um exemplo são as Comissões Parlamentares de Inquérito. Que, de instrumentos para a fiscalização do poder, transformaram-se em ferramentas para acossar a oposição. Esta, aliás, vem aprendendo uma lição preciosa. Denuncismo sem apoio da imprensa e do Judiciário é tiro que pode, e costuma, sair pela culatra.
Especialmente quando a própria oposição está encalacrada numa agenda policial-criminal.
Outro movimento que se inicia é a dança antecipatória da disputa municipal, quando os partidos constituirão as bases materiais para as eleições gerais dali a dois anos. Aliás, a tensão entre o lulismo raiz e o neolulismo do chamado centrão orienta-se também pela disputa de posições na máquina estatal federal favoráveis à produção de poder municipal.
Uma incógnita sobre 2024 é se o PT conseguirá romper a barreira nas cidades, pois, apesar de ter estado 14 anos no poder federal, nunca conseguiu capilarizar essa força nos municípios. Também porque as amplas alianças que precisa costurar em Brasília para sobreviver acabam alimentando adversários do partido na base da sociedade.
O debate sobre zerar o déficit vai quente, mas os cenários financeiros mais realistas já absorveram algum grau de frouxidão fiscal. Até porque sempre haverá o Banco Central autônomo para, se necessário, apertar a corda ou soltar menos que o previsto.
Essa combinação entre um governo concentrado em gastar e um BC ortodoxo vai produzindo, portanto, resultado neste curto prazo. Um problema? Os investimentos não habitam patamar propriamente brilhante, o que é a outra face do consumo em alta. Mas no curto prazo essa variável tem efeito apenas relativo para uma administração em busca da estabilidade política.
O fôlego na economia reforça a mão de cartas do governo nas negociações para a ampliação da base parlamentar, numa moldura que já vinha favorável por razões políticas propriamente ditas, em particular a inteligente recusa do Congresso Nacional a ficar isolado contra o que se chama, com algum grau de humor, de presidencialismo de coalizão com o Judiciário.
Nunca se deve subestimar o instinto de sobrevivência dos políticos.
Essa “coesão no conflito” projeta um segundo semestre de votações com tudo para ser tranquilas ao oficialismo, ainda que nos micromomentos aconteçam turbulências e ruídos, um alarido que sempre acaba por se dissipar na hora H. Até por o governo contar com sólido respaldo nos mecanismos ditos formadores de opinião pública.
O que tem funcionado como amortecedor eficaz de potenciais crises.
Um exemplo são as Comissões Parlamentares de Inquérito. Que, de instrumentos para a fiscalização do poder, transformaram-se em ferramentas para acossar a oposição. Esta, aliás, vem aprendendo uma lição preciosa. Denuncismo sem apoio da imprensa e do Judiciário é tiro que pode, e costuma, sair pela culatra.
Especialmente quando a própria oposição está encalacrada numa agenda policial-criminal.
Outro movimento que se inicia é a dança antecipatória da disputa municipal, quando os partidos constituirão as bases materiais para as eleições gerais dali a dois anos. Aliás, a tensão entre o lulismo raiz e o neolulismo do chamado centrão orienta-se também pela disputa de posições na máquina estatal federal favoráveis à produção de poder municipal.
Uma incógnita sobre 2024 é se o PT conseguirá romper a barreira nas cidades, pois, apesar de ter estado 14 anos no poder federal, nunca conseguiu capilarizar essa força nos municípios. Também porque as amplas alianças que precisa costurar em Brasília para sobreviver acabam alimentando adversários do partido na base da sociedade.
sábado, 26 de agosto de 2023
A política externa anda no arame. E uma dúvida sobre a guerra do Vietnã
A reunião dos Brics em Joanesburgo expôs as tensões a que a política exterior brasileira se submete nesta época de desglobalização e repolarização, no palco que combina cooperação e luta entre as nações. O saldo final foi bastante positivo para o Brasil, pela expansão do bloco e pelo reequilíbrio, por aqui, entre as crescentes pressões externas e internas neoatlantistas e o desejável alinhamento com as nações que trabalham pela multipolaridade.
A desglobalização tem razões objetivas. A primeira e mais importante delas: num mundo onde a cooperação entre países, blocos e regiões prevaleça sobre a competição, permitindo assim um desenvolvimento razoavelmente pacifico das economias, os países de maior população tendem a deslocar os demais no protagonismo. O melhor exemplo tem sido a China, mas vale também prestar atenção ao novo papel da Índia.
Quem observa o eixo organizador da política planetária deste último século e meio não se surpreende, portanto, com a tendência predominante hoje nas políticas dos Estados Unidos e de sócios minoritários: isolar China e Rússia, neutralizar Índia e Brasil, enquanto tentam recuperar ou manter a influência na África, influência que declinou com a descolonização do pós-guerra, mas encontrou uma nova janela de oportunidade com o colapso da União Soviética.
O colapso do momento é outro, da “coexistência pacífica, competição pacífica”, vislumbradas no pós-Guerra Fria, embaladas pelo sonho do “fim da História” e agora rudemente despertadas pelo som dos canhões na Ucrânia e pelo crescente ranger de dentes no estreito de Taiwan. Isso enquanto se espera o desencadear de mais um conflito, agora no Sahel das populações miseráveis que vivem sobre enormes depósitos de minerais estratégicos.
Um cenário assim traz desafios crescentes para o Brasil persistir em sua política exterior tradicional das últimas décadas: estabilizar boas relações com os Estados Unidos e Europa, enquanto desloca agressivamente a política comercial para mercados emergentes, alguns deles hoje não apenas importadores, mas crescentemente exportadores dos capitais aqui necessários para sustentar nossa taxa de investimento. Do que dependem os empregos.
Pois estes segundos parceiros não querem mais só fazer negócios, querem ter voz.
E acreditar que os capitais americanos e europeus virão correndo para cá em retribuição a um certo nosso bom-mocismo ESG é tese ainda a comprovar, ainda mais quando um argumento central do “derisking” e “decoupling” atlantistas em relação à China é levar empregos de volta para a Europa e os Estados Unidos, e não trocar a dependência industrial da Ásia por outra qualquer.
O governo Luiz Inácio lula da Silva enfrenta ainda outra dificuldade, a crescente penetração ideológica atlantista na direita (em que sempre foi predominante), no dito centro e na própria esquerda, especialmente quando nos Estados Unidos e Europa predominam governos que contemplam a agenda sócio-comportamental-ambiental hoje influente nas correntes progressistas.
Como exercício retórico, é legítimo questionar quem da esquerda brasileira apoiaria que lado se a Guerra do Vietnã fosse hoje. Algum palpite?
A desglobalização tem razões objetivas. A primeira e mais importante delas: num mundo onde a cooperação entre países, blocos e regiões prevaleça sobre a competição, permitindo assim um desenvolvimento razoavelmente pacifico das economias, os países de maior população tendem a deslocar os demais no protagonismo. O melhor exemplo tem sido a China, mas vale também prestar atenção ao novo papel da Índia.
Quem observa o eixo organizador da política planetária deste último século e meio não se surpreende, portanto, com a tendência predominante hoje nas políticas dos Estados Unidos e de sócios minoritários: isolar China e Rússia, neutralizar Índia e Brasil, enquanto tentam recuperar ou manter a influência na África, influência que declinou com a descolonização do pós-guerra, mas encontrou uma nova janela de oportunidade com o colapso da União Soviética.
O colapso do momento é outro, da “coexistência pacífica, competição pacífica”, vislumbradas no pós-Guerra Fria, embaladas pelo sonho do “fim da História” e agora rudemente despertadas pelo som dos canhões na Ucrânia e pelo crescente ranger de dentes no estreito de Taiwan. Isso enquanto se espera o desencadear de mais um conflito, agora no Sahel das populações miseráveis que vivem sobre enormes depósitos de minerais estratégicos.
Um cenário assim traz desafios crescentes para o Brasil persistir em sua política exterior tradicional das últimas décadas: estabilizar boas relações com os Estados Unidos e Europa, enquanto desloca agressivamente a política comercial para mercados emergentes, alguns deles hoje não apenas importadores, mas crescentemente exportadores dos capitais aqui necessários para sustentar nossa taxa de investimento. Do que dependem os empregos.
Pois estes segundos parceiros não querem mais só fazer negócios, querem ter voz.
E acreditar que os capitais americanos e europeus virão correndo para cá em retribuição a um certo nosso bom-mocismo ESG é tese ainda a comprovar, ainda mais quando um argumento central do “derisking” e “decoupling” atlantistas em relação à China é levar empregos de volta para a Europa e os Estados Unidos, e não trocar a dependência industrial da Ásia por outra qualquer.
O governo Luiz Inácio lula da Silva enfrenta ainda outra dificuldade, a crescente penetração ideológica atlantista na direita (em que sempre foi predominante), no dito centro e na própria esquerda, especialmente quando nos Estados Unidos e Europa predominam governos que contemplam a agenda sócio-comportamental-ambiental hoje influente nas correntes progressistas.
Como exercício retórico, é legítimo questionar quem da esquerda brasileira apoiaria que lado se a Guerra do Vietnã fosse hoje. Algum palpite?
sábado, 19 de agosto de 2023
O presidencialismo que resiste à coalizão
O sistema eleitoral brasileiro produz amiúde um cenário contraditório, resultado de certo paradoxo: enquanto a eleição presidencial costuma produzir entre duas ou quatro candidaturas que atingem massa crítica, a disputa para o Congresso Nacional sempre resulta num quadro pulverizado.
A cláusula de desempenho promete resolver o problema no médio e no longo prazos, mas será preciso ver se, quando o remédio finalmente funcionar, o paciente ainda estará vivo.
Haveria como corrigir. A cura radical poderia vir de um voto em lista fechada nos estados, acabando, ao mesmo tempo, com a desproporção entre as representações estaduais na Câmara dos Deputados. Ou então implantando o voto distrital misto, com uma certa reserva (talvez 20%) para as listas fechadas.
Se se quisesse aplicar um remédio imediato que não demandasse grandes quóruns legislativos, seria simples: calcular em cada estado as bancadas de deputados federais não mais a partir dos votos dados aos parlamentares e às legendas para a Câmara, mas dos votos dados aos postulantes à Presidência.
Por analogia, as cadeiras nas assembleias seriam calculadas a partir dos votos para governador. E a composição das câmaras municipais respeitaria o desempenho dos candidatos a prefeito.
Essa simples alteração obrigaria os partidos a fundir-se ou formar federações em torno de candidatos viáveis e garantiria que a vontade popular, expressa na eleição majoritária com muito mais nitidez que na proporcional, se traduzisse em possibilidade real de governar.
Mas há um consórcio bem azeitado que resiste a qualquer mudança substantiva.
É tipo o casamento do jacaré com a cobra d’água: junta as legendas cuja única razão de existir é a intermediação de recursos orçamentários e as correntes bem-pensantes que desfrutam prestígio na elite e na superestrutura intelectual-ideológica, mas raramente são correspondidas pelo eleitor.
E o curioso é que as segundas formalmente desprezam as primeiras pelo “fisiologismo”, termo que só é temporariamente aposentado quando o segundo grupo precisa apoiar algum governo que represente o “mal menor”. E passa a repaginar como “articulação política” o que sempre tratou derrogatoriamente.
É natural e humano que essas janelas de oportunidade aticem o apetite das legendas antes chamadas de fisiológicas, pela momentânea eliminação, ou ao menos redução, do custo reputacional implicado no que normalmente seria xingado como “toma lá, dá cá”. É onde estamos.
Ainda mais quando se nota o azeitamento da relação entre o Planalto e o Judiciário, o que faz suas excelências do Congresso olharem com cuidado redobrado para a possibilidade de aninhar-se sob as asas do Executivo.
Mas aqui quem me lê poderia fazer uma pergunta: afinal, por que o Executivo precisa fazer tantas concessões?
No mínimo, para garantir que não se formarão massas críticas em torno de possíveis impeachments. E para evitar, ou ao menos controlar, comissões parlamentares de inquérito. Agora mesmo, uma competente articulação política (vou usar a expressão benigna) emasculou ou virou do avesso CPIs originalmente anti-Planalto.
E tem também o “apoio às reformas”. Seria o caso de estudar como e por que governos, um atrás do outro, decidem ter uma agenda legislativa que demanda expressivas maiorias, apenas para, ao fim e ao cabo, e a um custo altíssimo, colher mudanças legais de efeito apenas relativo.
Verdade que isso faz parte da estranha propensão brasileira a, simultaneamente, orar no altar da Constituição de 88 e diariamente revogá-la pela enxurrada de emendas congressuais e decisões do Supremo Tribunal Federal. O que talvez merecesse um estudo de especialistas na relação entre política e psicanálise.
É nesse ponto que se acha o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Para ter governabilidade (outra expressão bonita que se impõe ao governante que não quer virar um Luís XVI), precisa abrir espaço a políticos que nada têm a ver com o que se decidiu na eleição, ou até se opuseram ao que acabou prevalecendo na urna.
É natural que resista, ainda que vá ter de ceder. Aliás, governar o Brasil tem sido um pouco isso. Uns chamam de “presidencialismo de coalizão”. Que carrega, dialeticamente, em si seu contrário. O que governantes brasileiros mais fazem, no que gastam talvez a maior parte do seu precioso tempo, é resistir ao Frankenstein.
A cláusula de desempenho promete resolver o problema no médio e no longo prazos, mas será preciso ver se, quando o remédio finalmente funcionar, o paciente ainda estará vivo.
Haveria como corrigir. A cura radical poderia vir de um voto em lista fechada nos estados, acabando, ao mesmo tempo, com a desproporção entre as representações estaduais na Câmara dos Deputados. Ou então implantando o voto distrital misto, com uma certa reserva (talvez 20%) para as listas fechadas.
Se se quisesse aplicar um remédio imediato que não demandasse grandes quóruns legislativos, seria simples: calcular em cada estado as bancadas de deputados federais não mais a partir dos votos dados aos parlamentares e às legendas para a Câmara, mas dos votos dados aos postulantes à Presidência.
Por analogia, as cadeiras nas assembleias seriam calculadas a partir dos votos para governador. E a composição das câmaras municipais respeitaria o desempenho dos candidatos a prefeito.
Essa simples alteração obrigaria os partidos a fundir-se ou formar federações em torno de candidatos viáveis e garantiria que a vontade popular, expressa na eleição majoritária com muito mais nitidez que na proporcional, se traduzisse em possibilidade real de governar.
Mas há um consórcio bem azeitado que resiste a qualquer mudança substantiva.
É tipo o casamento do jacaré com a cobra d’água: junta as legendas cuja única razão de existir é a intermediação de recursos orçamentários e as correntes bem-pensantes que desfrutam prestígio na elite e na superestrutura intelectual-ideológica, mas raramente são correspondidas pelo eleitor.
E o curioso é que as segundas formalmente desprezam as primeiras pelo “fisiologismo”, termo que só é temporariamente aposentado quando o segundo grupo precisa apoiar algum governo que represente o “mal menor”. E passa a repaginar como “articulação política” o que sempre tratou derrogatoriamente.
É natural e humano que essas janelas de oportunidade aticem o apetite das legendas antes chamadas de fisiológicas, pela momentânea eliminação, ou ao menos redução, do custo reputacional implicado no que normalmente seria xingado como “toma lá, dá cá”. É onde estamos.
Ainda mais quando se nota o azeitamento da relação entre o Planalto e o Judiciário, o que faz suas excelências do Congresso olharem com cuidado redobrado para a possibilidade de aninhar-se sob as asas do Executivo.
Mas aqui quem me lê poderia fazer uma pergunta: afinal, por que o Executivo precisa fazer tantas concessões?
No mínimo, para garantir que não se formarão massas críticas em torno de possíveis impeachments. E para evitar, ou ao menos controlar, comissões parlamentares de inquérito. Agora mesmo, uma competente articulação política (vou usar a expressão benigna) emasculou ou virou do avesso CPIs originalmente anti-Planalto.
E tem também o “apoio às reformas”. Seria o caso de estudar como e por que governos, um atrás do outro, decidem ter uma agenda legislativa que demanda expressivas maiorias, apenas para, ao fim e ao cabo, e a um custo altíssimo, colher mudanças legais de efeito apenas relativo.
Verdade que isso faz parte da estranha propensão brasileira a, simultaneamente, orar no altar da Constituição de 88 e diariamente revogá-la pela enxurrada de emendas congressuais e decisões do Supremo Tribunal Federal. O que talvez merecesse um estudo de especialistas na relação entre política e psicanálise.
É nesse ponto que se acha o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Para ter governabilidade (outra expressão bonita que se impõe ao governante que não quer virar um Luís XVI), precisa abrir espaço a políticos que nada têm a ver com o que se decidiu na eleição, ou até se opuseram ao que acabou prevalecendo na urna.
É natural que resista, ainda que vá ter de ceder. Aliás, governar o Brasil tem sido um pouco isso. Uns chamam de “presidencialismo de coalizão”. Que carrega, dialeticamente, em si seu contrário. O que governantes brasileiros mais fazem, no que gastam talvez a maior parte do seu precioso tempo, é resistir ao Frankenstein.
sexta-feira, 11 de agosto de 2023
Lula, Fausto e a esfinge do petróleo
A tática de Luiz Inácio Lula da Silva no intrincado xadrez do clima parece clara. Segue a receita tradicional: bater bumbo para a narrativa do momento, buscar articulações que ampliem a superfície política de contato, reduzindo assim a pressão exercida sobre o Brasil pelas forças externas, e, entrementes, ir tocando a vida de acordo com as necessidades práticas, preenchendo o tempo com ataques continuados aos adversários políticos do momento.
Posto que a realidade material nunca consegue ficar circunscrita aos discursos, alguma hora os fatos terão, porém, de se impor. Logo o governo brasileiro terá de decidir a autorização ou não para explorar o petróleo na foz do Amazonas. E autorizar trará necessariamente custo reputacional para um presidente empenhado em se apresentar como liderança planetária nos assuntos do momento, entre os quais brilha o clima.
E tem pelo menos outro nó aí. A reindustrialização, agora repaginada como neoindustrialização (também para reduzir a área de atrito com os antidesenvolvimentistas), ocupa lugar central nos planos governamentais, sem ela vai ser difícil reduzir estruturalmente as altas taxas de desemprego. O PIB projetado é bom, mas a beleza dos números deve-se na maior parte ao agronegócio, cuja vocação não é empregar. Serviços e indústria comem poeira.
Qual é a real, então? Não haverá reindustrialização sem energia barata. Aliás, encarecimento da energia causa desindustrialização. Que o diga a Alemanha. E, posto que o preço nunca está imune à lei da oferta e da demanda, fica claro que é ficção reindustrializar sem energia abundante. O papel e o Power Point aceitam tudo, mas alguma hora governos têm de entregar o que projetaram para o futuro.
Pois se há algo certo sobre o futuro é que ele sempre chega.
O Brasil tem um dos perfis energéticos mais limpos, graças principalmente às hidrelétricas. Mas o potencial hídrico ainda inexplorado concentra-se na Amazônia, a construção das barragens ali enfrenta oposição cerrada. Ah, há também o etanol, mas a cana sofre a concorrência dos alimentos pela área plantada. Um desafio adicional para o país que aceitou o dogma de, também para ajudar a salvar o planeta, congelar a fronteira agrícola.
As energias eólica e solar vêm em franca expansão, mas não deixam de ter impacto sócio-ambiental. Seus custos estão caindo rapidamente, mas a oferta nem de longe será capaz de atender a demanda imediata. O mesmo vale para a energia nuclear. Ou o Brasil acelera a exploração de petróleo e gás, ou a reindustrialização acelerada continuará confinada aos discursos e às apresentações.
É provável que, com o tempo, as soluções pragmáticas acabem se impondo, e o presidente sempre terá à mão o argumento de, afinal, estarmos um período de transição energética, daí precisarmos usar todas as fontes disponíveis. Mas Lula neste tema não joga em casa, não tem com ele a torcida incondicional dos mecanismos construtores de opinião pública nem a simpatia da arbitragem.
Mais um detalhe. Em 2014, a acusação de que adversários parariam a exploração do pré-sal e privilegiariam as energias limpas foi decisiva na reeleição de Dilma Rousseff. Agora, Mefistófeles aparentemente veio acertar a fatura. A ver se Lula, como Fausto, consegue escapar de ter de pagar toda a conta.
Posto que a realidade material nunca consegue ficar circunscrita aos discursos, alguma hora os fatos terão, porém, de se impor. Logo o governo brasileiro terá de decidir a autorização ou não para explorar o petróleo na foz do Amazonas. E autorizar trará necessariamente custo reputacional para um presidente empenhado em se apresentar como liderança planetária nos assuntos do momento, entre os quais brilha o clima.
E tem pelo menos outro nó aí. A reindustrialização, agora repaginada como neoindustrialização (também para reduzir a área de atrito com os antidesenvolvimentistas), ocupa lugar central nos planos governamentais, sem ela vai ser difícil reduzir estruturalmente as altas taxas de desemprego. O PIB projetado é bom, mas a beleza dos números deve-se na maior parte ao agronegócio, cuja vocação não é empregar. Serviços e indústria comem poeira.
Qual é a real, então? Não haverá reindustrialização sem energia barata. Aliás, encarecimento da energia causa desindustrialização. Que o diga a Alemanha. E, posto que o preço nunca está imune à lei da oferta e da demanda, fica claro que é ficção reindustrializar sem energia abundante. O papel e o Power Point aceitam tudo, mas alguma hora governos têm de entregar o que projetaram para o futuro.
Pois se há algo certo sobre o futuro é que ele sempre chega.
O Brasil tem um dos perfis energéticos mais limpos, graças principalmente às hidrelétricas. Mas o potencial hídrico ainda inexplorado concentra-se na Amazônia, a construção das barragens ali enfrenta oposição cerrada. Ah, há também o etanol, mas a cana sofre a concorrência dos alimentos pela área plantada. Um desafio adicional para o país que aceitou o dogma de, também para ajudar a salvar o planeta, congelar a fronteira agrícola.
As energias eólica e solar vêm em franca expansão, mas não deixam de ter impacto sócio-ambiental. Seus custos estão caindo rapidamente, mas a oferta nem de longe será capaz de atender a demanda imediata. O mesmo vale para a energia nuclear. Ou o Brasil acelera a exploração de petróleo e gás, ou a reindustrialização acelerada continuará confinada aos discursos e às apresentações.
É provável que, com o tempo, as soluções pragmáticas acabem se impondo, e o presidente sempre terá à mão o argumento de, afinal, estarmos um período de transição energética, daí precisarmos usar todas as fontes disponíveis. Mas Lula neste tema não joga em casa, não tem com ele a torcida incondicional dos mecanismos construtores de opinião pública nem a simpatia da arbitragem.
Mais um detalhe. Em 2014, a acusação de que adversários parariam a exploração do pré-sal e privilegiariam as energias limpas foi decisiva na reeleição de Dilma Rousseff. Agora, Mefistófeles aparentemente veio acertar a fatura. A ver se Lula, como Fausto, consegue escapar de ter de pagar toda a conta.
sexta-feira, 4 de agosto de 2023
O Senado anda inquieto?
Todo governo enfrenta oposição, pois sempre haverá alguém excluído do poder. Mesmo quando a oposição é garroteada na superestrutura, o vetor oposicionista encontra caminhos alternativos para infiltrar-se no edifício institucional. Mais: quando os espaços oposicionistas estão bloqueados, ou quase, na esfera formal, a tendência é o oposicionismo surgir de dentro do bloco do poder, ainda que aparente ser um oposicionismo oficialista, melhorista.
A equação de governabilidade de Luiz Inácio Lula da Silva anda bem desenhada e já transita do papel para a vida material. O presidente reconcentra poder num duplo movimento: 1) o presidencialismo de coalizão com o Judiciário; e 2) um acordo operacional com a Câmara dos Deputados por meio da execução orçamentária. Nesse segundo pilar, os arrufos recentes devem ser entendidos apenas como o que são: parte da dança do acasalamento.
Mas o Congresso Nacional é majoritariamente de direita, especialmente a Câmara, e o governo Lula precisa satisfazer a sua base progressista com alguma mercadoria da agenda social-liberal, entendido esse “liberal” na acepção norte-americana da palavra. O caminho natural é dividir a operação política em dois: 1) uma maioria congressual para evitar sobressaltos e aprovar a pauta econômica; e 2) passar a boiada da agenda progressista por meio do STF.
No primeiro item, a dupla Lula-Fernando Haddad encontra uma avenida aberta, pois o consenso entre os assim chamados formadores de opinião aproxima-se do visto no Plano Real e nas duas administrações de Fernando Henrique Cardoso, quando, aliás, a esquerda reclamava da interdição de qualquer debate. Um sintoma agora foi a resistência virulenta contra a nomeação do presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Algum desavisado que notasse a temperatura da refrega poderia imaginar que se estava decidindo quem seria o ministro da Fazenda ou o presidente do Banco Central.
A perturbação desta semana apareceu no segundo vetor. A ideia é o governo surfar no legiferante Supremo Tribunal Federal e esperar que seja aprovado ali o que seria surpresa se encontrasse guarida no Legislativo conservador. Mas nesta semana algo pareceu não ter sido combinado com os russos, pois o presidente do Senado chiou contra o início da deliberação do STF sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo.
Alguma hora algum graúdo no Congresso chiaria mesmo, também porque ali os eventuais candidatos a presidir a instituição dependem do voto dos pares. Não há uma linha de sucessão natural, como no Supremo. No passado, havia o acordo tácito de a maior bancada indicar o presidente da Casa, mas na Câmara isso acabou definitivamente quando Severino Cavalcanti se elegeu em 2005. No Senado, quando Davi Alcolumbre faturou a parada em 2019.
Com Jair Bolsonaro na mira de Alexandre de Moraes e a chapa esquentando sob os pés do grupo político do ex-presidente e de alguns preeminentes na sua base social, a oposição está um tanto neutralizada, ao menos momentaneamente. Vamos observar para ver como navega o agora transatlântico lotado da base institucional do governo. Há espaço, portanto, para o governo protagonizar os próximos capítulos.
A equação de governabilidade de Luiz Inácio Lula da Silva anda bem desenhada e já transita do papel para a vida material. O presidente reconcentra poder num duplo movimento: 1) o presidencialismo de coalizão com o Judiciário; e 2) um acordo operacional com a Câmara dos Deputados por meio da execução orçamentária. Nesse segundo pilar, os arrufos recentes devem ser entendidos apenas como o que são: parte da dança do acasalamento.
Mas o Congresso Nacional é majoritariamente de direita, especialmente a Câmara, e o governo Lula precisa satisfazer a sua base progressista com alguma mercadoria da agenda social-liberal, entendido esse “liberal” na acepção norte-americana da palavra. O caminho natural é dividir a operação política em dois: 1) uma maioria congressual para evitar sobressaltos e aprovar a pauta econômica; e 2) passar a boiada da agenda progressista por meio do STF.
No primeiro item, a dupla Lula-Fernando Haddad encontra uma avenida aberta, pois o consenso entre os assim chamados formadores de opinião aproxima-se do visto no Plano Real e nas duas administrações de Fernando Henrique Cardoso, quando, aliás, a esquerda reclamava da interdição de qualquer debate. Um sintoma agora foi a resistência virulenta contra a nomeação do presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Algum desavisado que notasse a temperatura da refrega poderia imaginar que se estava decidindo quem seria o ministro da Fazenda ou o presidente do Banco Central.
A perturbação desta semana apareceu no segundo vetor. A ideia é o governo surfar no legiferante Supremo Tribunal Federal e esperar que seja aprovado ali o que seria surpresa se encontrasse guarida no Legislativo conservador. Mas nesta semana algo pareceu não ter sido combinado com os russos, pois o presidente do Senado chiou contra o início da deliberação do STF sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo.
Alguma hora algum graúdo no Congresso chiaria mesmo, também porque ali os eventuais candidatos a presidir a instituição dependem do voto dos pares. Não há uma linha de sucessão natural, como no Supremo. No passado, havia o acordo tácito de a maior bancada indicar o presidente da Casa, mas na Câmara isso acabou definitivamente quando Severino Cavalcanti se elegeu em 2005. No Senado, quando Davi Alcolumbre faturou a parada em 2019.
Com Jair Bolsonaro na mira de Alexandre de Moraes e a chapa esquentando sob os pés do grupo político do ex-presidente e de alguns preeminentes na sua base social, a oposição está um tanto neutralizada, ao menos momentaneamente. Vamos observar para ver como navega o agora transatlântico lotado da base institucional do governo. Há espaço, portanto, para o governo protagonizar os próximos capítulos.
sábado, 29 de julho de 2023
O feitiço do tempo
No país cuja política se desenha como seguidos e incontáveis “dias da marmota” (o filme cult tem três décadas e aqui recebeu o título de “Feitiço do Tempo”), entramos agora naquele segundo período dos governos, quando eles se ocupam de “formar a base”.
Cooptar, com verbas e cargos, parlamentares em número suficiente não apenas para aprovar leis ou emendas constitucionais. Mas também, e talvez principalmente, para blindar o governo de, ou nas, comissões parlamentares de inquérito e para bloquear processos de impeachment.
Todo governo por aqui começa navegando em mar razoavelmente de almirante, contemplando em primeiro lugar os mais fiéis e dedicados e, dali a alguns meses, acorda cercado pelos hunos. E a negociação começa.
Quando os participantes desse jogo recorrente têm sorte,e quando os mecanismos que se enxergam formadores da opinião pública estão contemplados, política e programaticamente, o debate gira em torno do que se chama de “governabilidade”.
Quando não, os jogadores são obrigados a encarar um campo encharcado, às vezes impraticável, sob a chuva de acusações de "fisiologismo", “toma lá dá cá”, e submetidos aos caçadores ferozes de casos de corrupção que, no mais das vezes, lá na frente dão em nada.
O espectro de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo vem ajudando Luiz Inácio Lula da Silva a navegar nessas águas, pois toda negociação política destes dias acaba legitimando-se pela necessidade declarada de isolar o ex-presidente e os dele.
O que tampouco chega a ser novidade, basta recordar que alguns anos atrás a besta-fera eram Lula e o petismo, e eram moídos pela mesma engrenagem. A diferença é que Lula aproveita melhor as circunstâncias e facilita a operação de costura da rede de proteção de seu poder.
Até por ter mais experiência no métier. Lula domina as técnicas de negociação política e, como dito aqui no artigo anterior, aproveita a necessidade de ampliar a base, e supostamente distribuir poder, para concentrar poder.
Um dos mecanismos clássicos de concentração de poder é ter aliados em variedade e quantidade suficiente para não depender de nenhum deles isoladamente.
Dada a estreitíssima diferença de votos no segundo turno, é humano que cada apoiador de Lula ano passado se olhe no espelho e se veja como o elemento decisivo da vitória do petista. E é natural que o presidente tente aplicar o maior deságio possível nessas faturas.
Se o objetivo do político é manter e ampliar poder, e a regra não tem exceção, não será prudente para o mais que provável candidato à reeleição chegar a 2026 totalmente dependente de um ou outro personagem que, do mesmo jeito que cruzou o rio, pode facilmente fazer o caminho de volta.
Daí que Lula busque ampliar a base por aposição, agregando bolsonaristas eleitorais, mas também evite a excessiva e inconveniente, para ele, anabolização dos núcleos internos potencialmente concorrentes. É o que se está vendo nestes dias de feitiço do tempo.
Cooptar, com verbas e cargos, parlamentares em número suficiente não apenas para aprovar leis ou emendas constitucionais. Mas também, e talvez principalmente, para blindar o governo de, ou nas, comissões parlamentares de inquérito e para bloquear processos de impeachment.
Todo governo por aqui começa navegando em mar razoavelmente de almirante, contemplando em primeiro lugar os mais fiéis e dedicados e, dali a alguns meses, acorda cercado pelos hunos. E a negociação começa.
Quando os participantes desse jogo recorrente têm sorte,e quando os mecanismos que se enxergam formadores da opinião pública estão contemplados, política e programaticamente, o debate gira em torno do que se chama de “governabilidade”.
Quando não, os jogadores são obrigados a encarar um campo encharcado, às vezes impraticável, sob a chuva de acusações de "fisiologismo", “toma lá dá cá”, e submetidos aos caçadores ferozes de casos de corrupção que, no mais das vezes, lá na frente dão em nada.
O espectro de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo vem ajudando Luiz Inácio Lula da Silva a navegar nessas águas, pois toda negociação política destes dias acaba legitimando-se pela necessidade declarada de isolar o ex-presidente e os dele.
O que tampouco chega a ser novidade, basta recordar que alguns anos atrás a besta-fera eram Lula e o petismo, e eram moídos pela mesma engrenagem. A diferença é que Lula aproveita melhor as circunstâncias e facilita a operação de costura da rede de proteção de seu poder.
Até por ter mais experiência no métier. Lula domina as técnicas de negociação política e, como dito aqui no artigo anterior, aproveita a necessidade de ampliar a base, e supostamente distribuir poder, para concentrar poder.
Um dos mecanismos clássicos de concentração de poder é ter aliados em variedade e quantidade suficiente para não depender de nenhum deles isoladamente.
Dada a estreitíssima diferença de votos no segundo turno, é humano que cada apoiador de Lula ano passado se olhe no espelho e se veja como o elemento decisivo da vitória do petista. E é natural que o presidente tente aplicar o maior deságio possível nessas faturas.
Se o objetivo do político é manter e ampliar poder, e a regra não tem exceção, não será prudente para o mais que provável candidato à reeleição chegar a 2026 totalmente dependente de um ou outro personagem que, do mesmo jeito que cruzou o rio, pode facilmente fazer o caminho de volta.
Daí que Lula busque ampliar a base por aposição, agregando bolsonaristas eleitorais, mas também evite a excessiva e inconveniente, para ele, anabolização dos núcleos internos potencialmente concorrentes. É o que se está vendo nestes dias de feitiço do tempo.
sábado, 22 de julho de 2023
A volta do moderador
Passados quase sete meses de presidência, Luiz Inácio Lula da Silva vai reconcentrando poder no Executivo com um método paradoxal apenas na aparência: essa reconcentração se dá sob a aparência de desconcentração.
O presidente aceita a dança e até oferece espaços para colher fidelidades. E, assim, vai reconstruindo o poder moderador, abolido formalmente com a República, mas informalmente presente ao longo deste quase século e meio de republicanismo.
Poder cujo esvaziamento tem estado na base das crises que chacoalharam o país ao longo da década passada, com a prevalência de elementos centrífugos sobre os centrípetos.
Do que resultou uma multiplicação de centros de mando com boa autonomia em Brasília.
Jair Messias Bolsonaro conseguiu ter sucesso na sedução do Congresso Nacional, numa relação custo-benefício até melhor que a de Lula. Pois bastaram-lhe as emendas parlamentares, enquanto o petista precisa retroceder para a concessão generosa de cargos que evidentemente preferiria manter para os seus.
Mas o indivíduo não faz a história apenas com base em desejos, a realização deles está limitada às circunstâncias.
Bolsonaro hipertrofiou as emendas parlamentares e, no final, o lero-lero em torno de “acabar com o orçamento secreto” não apenas manteve o caráter “secreto” de parte gorda do orçamento, mas também reduziu o poder dos presidentes das Casas, ao aumentar consideravelmente o volume de emendas de execução obrigatória.
Ampliando assim a margem de potencial independência do parlamentar em relação ao presidente da respectiva Casa e ao próprio governo. Ou seja, o preço político de formar uma base aumentou.
Para dificultar um pouco mais, as inclinações ideológicas do governo e do Legislativo opõem-se em algum grau. É menos natural um deputado ou senador de direita apoiar Lula do que era apoiar Bolsonaro. E isso tem um custo.
Daí o presidente ter de retroagir ao modelo pleno da “velha política”. Nessa operação, Lula leva duas vantagens sobre Bolsonaro.
A primeira: o atual ocupante do Planalto, ao contrário do anterior, não está em guerra aberta contra as condições objetivas e a correlação de forças. Vai comendo pelas beiradas ou, como dizia Leonel de Moura Brizola, costeando o alambrado.
A segunda: o discurso udenista que inferniza a vida dos presidentes desde José Sarney anda fora de moda. Os atores e condutores tradicionais desse estilo teatral andam algo recolhidos, por 1) simples simpatia ou adesão ao novo establishment ou 2) não querer ser acusados de enfraquecer a democracia e ajudar o golpismo.
Assim, um período que começou como presidencialismo de coalizão com o Judiciário e em tensão com o Legislativo vai retomando a inércia da Nova República. E em condições até mais favoráveis ao poder, dada a crescente tolerância intelectual e social à restrição de certos direitos e prerrogativas previstos formalmente na Carta que a redemocratização de 1984-85 produziu.
A estabilidade desse azeitamento do arcabouço institucional costumeiro da política brasileira depende de o Executivo entregar resultados perceptíveis ao povão. Lula tem se empenhado em retomar programas de resultado setorial, o que sempre ajuda, mas é preciso prestar atenção aos grandes números.
A inflação vem caindo, mas a atividade começa a mostrar algum sofrimento. As previsões para o PIB melhoram, mas com base quase unicamente no crescimento explosivo do agro. Indústria e serviços, que geram mais emprego, continuam com projeções medíocres.
O presidente aceita a dança e até oferece espaços para colher fidelidades. E, assim, vai reconstruindo o poder moderador, abolido formalmente com a República, mas informalmente presente ao longo deste quase século e meio de republicanismo.
Poder cujo esvaziamento tem estado na base das crises que chacoalharam o país ao longo da década passada, com a prevalência de elementos centrífugos sobre os centrípetos.
Do que resultou uma multiplicação de centros de mando com boa autonomia em Brasília.
Jair Messias Bolsonaro conseguiu ter sucesso na sedução do Congresso Nacional, numa relação custo-benefício até melhor que a de Lula. Pois bastaram-lhe as emendas parlamentares, enquanto o petista precisa retroceder para a concessão generosa de cargos que evidentemente preferiria manter para os seus.
Mas o indivíduo não faz a história apenas com base em desejos, a realização deles está limitada às circunstâncias.
Bolsonaro hipertrofiou as emendas parlamentares e, no final, o lero-lero em torno de “acabar com o orçamento secreto” não apenas manteve o caráter “secreto” de parte gorda do orçamento, mas também reduziu o poder dos presidentes das Casas, ao aumentar consideravelmente o volume de emendas de execução obrigatória.
Ampliando assim a margem de potencial independência do parlamentar em relação ao presidente da respectiva Casa e ao próprio governo. Ou seja, o preço político de formar uma base aumentou.
Para dificultar um pouco mais, as inclinações ideológicas do governo e do Legislativo opõem-se em algum grau. É menos natural um deputado ou senador de direita apoiar Lula do que era apoiar Bolsonaro. E isso tem um custo.
Daí o presidente ter de retroagir ao modelo pleno da “velha política”. Nessa operação, Lula leva duas vantagens sobre Bolsonaro.
A primeira: o atual ocupante do Planalto, ao contrário do anterior, não está em guerra aberta contra as condições objetivas e a correlação de forças. Vai comendo pelas beiradas ou, como dizia Leonel de Moura Brizola, costeando o alambrado.
A segunda: o discurso udenista que inferniza a vida dos presidentes desde José Sarney anda fora de moda. Os atores e condutores tradicionais desse estilo teatral andam algo recolhidos, por 1) simples simpatia ou adesão ao novo establishment ou 2) não querer ser acusados de enfraquecer a democracia e ajudar o golpismo.
Assim, um período que começou como presidencialismo de coalizão com o Judiciário e em tensão com o Legislativo vai retomando a inércia da Nova República. E em condições até mais favoráveis ao poder, dada a crescente tolerância intelectual e social à restrição de certos direitos e prerrogativas previstos formalmente na Carta que a redemocratização de 1984-85 produziu.
A estabilidade desse azeitamento do arcabouço institucional costumeiro da política brasileira depende de o Executivo entregar resultados perceptíveis ao povão. Lula tem se empenhado em retomar programas de resultado setorial, o que sempre ajuda, mas é preciso prestar atenção aos grandes números.
A inflação vem caindo, mas a atividade começa a mostrar algum sofrimento. As previsões para o PIB melhoram, mas com base quase unicamente no crescimento explosivo do agro. Indústria e serviços, que geram mais emprego, continuam com projeções medíocres.
sábado, 15 de julho de 2023
Nem sempre é a economia
A prevalência da economia sobre as demais variáveis numa eleição cristalizou-se na literatura a partir do “É a economia, estúpido”. Atribui-se a James Carville, na campanha em que seu assessorado e desafiante, William Jefferson Clinton, derrotou o incumbente, George Herbert Walker Bush (pai), na disputa presidencial americana em 1992. É dogma desde então.
E faz mesmo algum sentido, dado que as grandes maiorias movem-se na política por fatores conectados à vida material. Daí as pesquisas eleitorais e de avaliação de governo buscarem sempre saber se o entrevistado está melhorando de vida, tem esperança de melhorar de vida, acha que o país e a economia estão no caminho certo etc.
Mas, se a economia responde pelas tendências mais estruturantes do eleitorado, seria um erro subestimar os fatores subjetivos. São conhecidas as situações em que o incumbente mal avaliado na gestão derrota um desafiante. Caso clássico é a vitória de Mário Covas sobre Paulo Maluf em 1998 na disputa do governo de São Paulo.
Uma campanha anticorrupção extremamente agressiva permitiu ao tucano virar no segundo turno uma corrida que tinha tudo para perder.
Há situações em que o líder se impõe mesmo quando as coisas não vão bem, e por uma razão simples: ele acaba sendo visto como o mais apetrechado para conduzir o barco a um futuro melhor ou então como quem melhor pode liderar o grupo na busca da sobrevivência. Em guerras, é bastante comum.
E no Brasil? A última eleição presidencial foi paradigmática quanto aos aspectos subjetivos. A economia vinha se recuperando ao longo do ano. O desemprego já caía desde meados do ano anterior, e a inflação começou a recuar no final da primeira metade de 2022. Efeitos também da normalização econômica do final da pandemia.
A economia manteve Bolsonaro competitivo na corrida, mas ele acabou perdendo. Por pouco, mas perdeu. E há um quase consenso de que os tais aspectos subjetivos foram decisivos para a derrota dele. Dois em particular: 1) a atitude negativa diante das medidas contra a Covid-19, especialmente o antivacinismo; e 2) o combate ao voto eletrônico.
Bolsonaro ficou dois pontos percentuais atrás de Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente por ter recuado de maneira significativa no Sudeste em relação a quatro anos antes. No Nordeste, no essencial, o PT teve em 2022 o desempenho que tivera em 2018. Uma hipótese bem razoável é os fatores subjetivos terem ajudado essa lipoaspiração “sudestina” de Bolsonaro.
O desempenho da economia concentra as atenções agora quando se trata de prospectar a política para 2026. Mas, num país dividido quase ao meio, talvez seja prudente levar também em conta a luta ideológica, simbólica e de valores. Entendê-la é essencial para medir em algum grau a sensação e a convicção de pertencimento, saber de que tribo alguém sente que faz parte.
Pode não ser o combustível da maioria dos eleitores, mas eventualmente é o motor daquela minoria que, indo para um lado ou outro, decide a eleição.
E faz mesmo algum sentido, dado que as grandes maiorias movem-se na política por fatores conectados à vida material. Daí as pesquisas eleitorais e de avaliação de governo buscarem sempre saber se o entrevistado está melhorando de vida, tem esperança de melhorar de vida, acha que o país e a economia estão no caminho certo etc.
Mas, se a economia responde pelas tendências mais estruturantes do eleitorado, seria um erro subestimar os fatores subjetivos. São conhecidas as situações em que o incumbente mal avaliado na gestão derrota um desafiante. Caso clássico é a vitória de Mário Covas sobre Paulo Maluf em 1998 na disputa do governo de São Paulo.
Uma campanha anticorrupção extremamente agressiva permitiu ao tucano virar no segundo turno uma corrida que tinha tudo para perder.
Há situações em que o líder se impõe mesmo quando as coisas não vão bem, e por uma razão simples: ele acaba sendo visto como o mais apetrechado para conduzir o barco a um futuro melhor ou então como quem melhor pode liderar o grupo na busca da sobrevivência. Em guerras, é bastante comum.
E no Brasil? A última eleição presidencial foi paradigmática quanto aos aspectos subjetivos. A economia vinha se recuperando ao longo do ano. O desemprego já caía desde meados do ano anterior, e a inflação começou a recuar no final da primeira metade de 2022. Efeitos também da normalização econômica do final da pandemia.
A economia manteve Bolsonaro competitivo na corrida, mas ele acabou perdendo. Por pouco, mas perdeu. E há um quase consenso de que os tais aspectos subjetivos foram decisivos para a derrota dele. Dois em particular: 1) a atitude negativa diante das medidas contra a Covid-19, especialmente o antivacinismo; e 2) o combate ao voto eletrônico.
Bolsonaro ficou dois pontos percentuais atrás de Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente por ter recuado de maneira significativa no Sudeste em relação a quatro anos antes. No Nordeste, no essencial, o PT teve em 2022 o desempenho que tivera em 2018. Uma hipótese bem razoável é os fatores subjetivos terem ajudado essa lipoaspiração “sudestina” de Bolsonaro.
O desempenho da economia concentra as atenções agora quando se trata de prospectar a política para 2026. Mas, num país dividido quase ao meio, talvez seja prudente levar também em conta a luta ideológica, simbólica e de valores. Entendê-la é essencial para medir em algum grau a sensação e a convicção de pertencimento, saber de que tribo alguém sente que faz parte.
Pode não ser o combustível da maioria dos eleitores, mas eventualmente é o motor daquela minoria que, indo para um lado ou outro, decide a eleição.
sexta-feira, 7 de julho de 2023
Inércia cultural e pacificação
As votações da pauta econômica expuseram com nitidez o ambiente de acomodação das forças políticas, com a notável exceção do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores mais incondicionais. Faz algum sentido, pois são o único grupo e o único líder desprovidos de poder formal. Os demais precisam cuidar de seus espaços conectados a obrigações administrativas. A eleição passou, vida que segue, exigindo cuidado especial dos políticos cuja reprodução de poder em 2026 dependerá de mostrar serviço na vida dos governados.
Mas, se a acomodação geral era tendência já detectada, há outro sintoma no ecossistema: o congelamento radical da “nova política”. Na indiferença geral que hoje cerca as pautas antes capazes de desencadear ondas de choque “éticas”, é igualmente notável a naturalização dos mecanismos clássicos de arregimentação de votos no Congresso Nacional. A maciça execução orçamentária e a antevisão de uma reforma ministerial receberam dos mecanismos ditos formadores de opinião pública uma atenção quase técnica.
É outro tempo, em que a inércia cultural vai reabsorvendo e digerindo o que resta de elementos de ruptura herdados do passado recente. Dificilmente haveria um ambiente mais confortável para os parlamentares, que pouco tempo atrás, sempre é bom recordar, preferiam quando em público retirar da roupa o broche funcional, com receio do tratamento que poderiam receber do eleitor. Até por alguns terem de fato sofrido ataques em aviões, restaurantes etc.
Como já previa a literatura, tudo que um dia foi sólido desmanchou no ar.
O que poderia desestabilizar a tendência inercial de o sistema derivar para um equilíbrio estável? A aproximação das eleições gerais em 2026, naturalmente, é o primeiro fator. Mas elas ainda estão muito longe, faltam três anos para as convenções, e antes disso, já no próximo ano, haverá eleições municipais. Período em que os parlamentares ficam ainda mais sensíveis aos poderes atrativos do governo, em função das demandas das bases por recursos capazes de trazer votos e apoios indispensáveis a quem deseja ser competitivo.
Pois são essas bases que darão a palavra final em 2026 sobre quem vai voltar e quem não vai voltar para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal. E, se a taxa de descarte de parlamentares ficar em torno da média histórica - e até no auge do prestígio da “nova política” ela mudou pouco -, um em dois deputados federais não voltarão em 2027. Se brigar de verdade com o governo federal nunca é a primeira escolha de suas excelências, menos ainda na véspera de disputa municipal.
Não se engane o eleitor: em Brasília, bem dizia Ulysses Guimarães, até a raiva é combinada.
O segundo fator é a economia. O teatro parlamentar será capaz de monopolizar a atenção complacente por um tempo, mas os três números a acompanhar estrategicamente são os de sempre: inflação, crescimento e emprego. A primeira está mergulhando, e fica para a política o bate-boca sobre o mérito. No segundo, as previsões vão sendo ajustadas algo para cima. Mas, para blindar-se de eventos desagradáveis nas pesquisas e no Legislativo, o governo precisará mostrar serviço no terceiro índice.
Mas, se a acomodação geral era tendência já detectada, há outro sintoma no ecossistema: o congelamento radical da “nova política”. Na indiferença geral que hoje cerca as pautas antes capazes de desencadear ondas de choque “éticas”, é igualmente notável a naturalização dos mecanismos clássicos de arregimentação de votos no Congresso Nacional. A maciça execução orçamentária e a antevisão de uma reforma ministerial receberam dos mecanismos ditos formadores de opinião pública uma atenção quase técnica.
É outro tempo, em que a inércia cultural vai reabsorvendo e digerindo o que resta de elementos de ruptura herdados do passado recente. Dificilmente haveria um ambiente mais confortável para os parlamentares, que pouco tempo atrás, sempre é bom recordar, preferiam quando em público retirar da roupa o broche funcional, com receio do tratamento que poderiam receber do eleitor. Até por alguns terem de fato sofrido ataques em aviões, restaurantes etc.
Como já previa a literatura, tudo que um dia foi sólido desmanchou no ar.
O que poderia desestabilizar a tendência inercial de o sistema derivar para um equilíbrio estável? A aproximação das eleições gerais em 2026, naturalmente, é o primeiro fator. Mas elas ainda estão muito longe, faltam três anos para as convenções, e antes disso, já no próximo ano, haverá eleições municipais. Período em que os parlamentares ficam ainda mais sensíveis aos poderes atrativos do governo, em função das demandas das bases por recursos capazes de trazer votos e apoios indispensáveis a quem deseja ser competitivo.
Pois são essas bases que darão a palavra final em 2026 sobre quem vai voltar e quem não vai voltar para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal. E, se a taxa de descarte de parlamentares ficar em torno da média histórica - e até no auge do prestígio da “nova política” ela mudou pouco -, um em dois deputados federais não voltarão em 2027. Se brigar de verdade com o governo federal nunca é a primeira escolha de suas excelências, menos ainda na véspera de disputa municipal.
Não se engane o eleitor: em Brasília, bem dizia Ulysses Guimarães, até a raiva é combinada.
O segundo fator é a economia. O teatro parlamentar será capaz de monopolizar a atenção complacente por um tempo, mas os três números a acompanhar estrategicamente são os de sempre: inflação, crescimento e emprego. A primeira está mergulhando, e fica para a política o bate-boca sobre o mérito. No segundo, as previsões vão sendo ajustadas algo para cima. Mas, para blindar-se de eventos desagradáveis nas pesquisas e no Legislativo, o governo precisará mostrar serviço no terceiro índice.
sábado, 1 de julho de 2023
Estados Unidos, Israel, Brasil
A Suprema Corte norte-americana vem escalando decisões contrárias à orientação do governo Joe Biden. Os temas vão das cotas raciais ao perdão de dívidas estudantis. Em Israel, segue firme a sublevação oposicionista contra a tentativa do governo Benjamin Netanyahu de, segundo alguns, reduzir a judicialização da política ou, segundo outros, limitar a independência do Judiciário.
No Brasil, o mais recente movimento de protagonismo judicial foi nesta semana retirarem os direitos eleitorais de um ex-presidente da República.
O leitor atento notará que o traço comum é a flutuação das opiniões conforme as conveniências políticas.
Nos EUA, a Suprema Corte ostenta uma sólida maioria conservadora, consolidada pelo então presidente Donald Trump. O feito está entre os principais legados dele. Naturalmente, enfrenta a resistência, ou até a fúria, do progressismo, revolta que emergiu mais claramente meses atrás a partir de uma decisão sobre o aborto legal.
Ali a esquerda reclama de um fato: a vontade popular expressa nas urnas ser revertida por um colegiado que não expressa mais a correlação de forças na sociedade. Um atentado à democracia, dizem. Biden nega, mas entre os democratas (do Partido Democrata) corre solta a tese de ampliar o número de juízes da Suprema Corte e aproveitar a atual maioria do partido no Senado para esculpir uma corte mais ao paladar progressista.
O leitor atento notará que a eventual manobra espelharia, com precisão, as acusações dos estadunidenses contra quem rotulam de “autocratas” mundo afora, líderes políticos que procuram moldar as instituições, em particular o Judiciário, conforme as próprias conveniências.
Em Israel, a coalizão de centro-esquerda que se opõe a Netanyahu vem tendo grande dificuldade de chegar ao poder pelas urnas. Um governo liberal-progressista nascido da penúltima eleição foi bem breve. A principal aposta da oposição têm sido os múltiplos processos contra o primeiro-ministro por corrupção. Daí a ênfase na luta em torno da, segundo essa oposição, independência do Judiciário.
Aqui o leitor brasileiro, mesmo o não tão atento assim, certamente sentirá alguma semelhança com cenários locais de anos atrás. Dificuldades eleitorais levam a oposição a depositar em acusações de corrupção, manifestações de rua e movimentos judiciais a esperança de remover um líder político duro de derrubar na urna.
Na década passada, depois de perder quatro eleições consecutivas, a oposição brasileira cansou-se e aproveitou as circunstâncias, sempre elas, para depor a presidente da República. Em paralelo, processos judiciais heterodoxos removeram da corrida presidencial um ex-presidente muito popular, que, além do mais, foi mantido preso durante a campanha eleitoral por um único voto de diferença no Supremo Tribunal Federal (6 a 5).
Mas nem tudo ali saiu conforme o plano, pois quem preparou o bolo no impeachment de Dilma Rousseff não comeu o bolo na eleição. Deu zebra.
Quatro anos depois, os múltiplos erros políticos de Jair Bolsonaro e a competente campanha de reabilitação política de Luiz Inácio Lula da Silva somaram-se para reverter a situação. O petista, reabilitado, conseguiu o feito inédito de derrotar na urna um presidente na cadeira.
E a musculosa Justiça entra em campo novamente, com sinal trocado. Os paṕéis invertem-se. Os antes garantistas viram punitivistas, e os antes entusiastas do ativismo judicial levantam-se em defesa do que chamam de “devido processo legal”.
Há certamente exceções nessa dança, e entre elas destacam-se os que antes defendiam a perseguição implacável a Lula, sem medo de quebrar os ovos para fazer a omelete, e agora defendem o mesmo em relação a Bolsonaro. Uma coerência rara, que é preciso registrar.
No Brasil, o mais recente movimento de protagonismo judicial foi nesta semana retirarem os direitos eleitorais de um ex-presidente da República.
O leitor atento notará que o traço comum é a flutuação das opiniões conforme as conveniências políticas.
Nos EUA, a Suprema Corte ostenta uma sólida maioria conservadora, consolidada pelo então presidente Donald Trump. O feito está entre os principais legados dele. Naturalmente, enfrenta a resistência, ou até a fúria, do progressismo, revolta que emergiu mais claramente meses atrás a partir de uma decisão sobre o aborto legal.
Ali a esquerda reclama de um fato: a vontade popular expressa nas urnas ser revertida por um colegiado que não expressa mais a correlação de forças na sociedade. Um atentado à democracia, dizem. Biden nega, mas entre os democratas (do Partido Democrata) corre solta a tese de ampliar o número de juízes da Suprema Corte e aproveitar a atual maioria do partido no Senado para esculpir uma corte mais ao paladar progressista.
O leitor atento notará que a eventual manobra espelharia, com precisão, as acusações dos estadunidenses contra quem rotulam de “autocratas” mundo afora, líderes políticos que procuram moldar as instituições, em particular o Judiciário, conforme as próprias conveniências.
Em Israel, a coalizão de centro-esquerda que se opõe a Netanyahu vem tendo grande dificuldade de chegar ao poder pelas urnas. Um governo liberal-progressista nascido da penúltima eleição foi bem breve. A principal aposta da oposição têm sido os múltiplos processos contra o primeiro-ministro por corrupção. Daí a ênfase na luta em torno da, segundo essa oposição, independência do Judiciário.
Aqui o leitor brasileiro, mesmo o não tão atento assim, certamente sentirá alguma semelhança com cenários locais de anos atrás. Dificuldades eleitorais levam a oposição a depositar em acusações de corrupção, manifestações de rua e movimentos judiciais a esperança de remover um líder político duro de derrubar na urna.
Na década passada, depois de perder quatro eleições consecutivas, a oposição brasileira cansou-se e aproveitou as circunstâncias, sempre elas, para depor a presidente da República. Em paralelo, processos judiciais heterodoxos removeram da corrida presidencial um ex-presidente muito popular, que, além do mais, foi mantido preso durante a campanha eleitoral por um único voto de diferença no Supremo Tribunal Federal (6 a 5).
Mas nem tudo ali saiu conforme o plano, pois quem preparou o bolo no impeachment de Dilma Rousseff não comeu o bolo na eleição. Deu zebra.
Quatro anos depois, os múltiplos erros políticos de Jair Bolsonaro e a competente campanha de reabilitação política de Luiz Inácio Lula da Silva somaram-se para reverter a situação. O petista, reabilitado, conseguiu o feito inédito de derrotar na urna um presidente na cadeira.
E a musculosa Justiça entra em campo novamente, com sinal trocado. Os paṕéis invertem-se. Os antes garantistas viram punitivistas, e os antes entusiastas do ativismo judicial levantam-se em defesa do que chamam de “devido processo legal”.
Há certamente exceções nessa dança, e entre elas destacam-se os que antes defendiam a perseguição implacável a Lula, sem medo de quebrar os ovos para fazer a omelete, e agora defendem o mesmo em relação a Bolsonaro. Uma coerência rara, que é preciso registrar.
sábado, 24 de junho de 2023
Freios e contrapesos da democracia lipoaspirada
Em meio à acomodação política, um achado, nem tão novo assim, é a mudança gravitacional das forças envolvidas na formação de uma base política para o governo. Acontece com qualquer governo em alguma das esferas da federação.
A mudança decorre da abolição, pelo Judiciário, do financiamento empresarial das campanhas eleitorais. E de uma constatação: as contribuições das pessoas físicas são um infinitésimo do que eram as das empresas.
O objetivo de todo agente político é ampliar seu poder, ou ao menos manter. É natural, portanto, que a atividade dele incline-se para beneficiar quem é mais capaz de ajudá-lo a avançar, ou ao menos continuar onde está se for legalmente possível.
Campanhas custam dinheiro. A utopia de campanhas eleitorais imunes ao dinheiro é tão viável quanto seria, apenas como exemplo, a de um jornalismo que, para se manter totalmente isento, abrisse mão da receita publicitária vinda de governos e empresas que cabe a esse jornalismo fiscalizar.
Quem tem hoje dinheiro para financiar legalmente uma campanha eleitoral cara, como são as majoritárias e, na maioria dos casos, as proporcionais, aqui por causa do sistema de lista aberta que tem o estado como distrito? Os governos e os partidos.
Neste segundo grupo, sem a exigência de qualquer mecanismo democrático de decisão.
Os governos controlam o fluxo financeiro para os parlamentares por meio das emendas aos orçamentos, recursos que, repassados às bases eleitorais, alimentam as máquinas políticas. E os donos dos partidos têm o poder de decidir quem vai ter ou não dinheiro na eleição.
Argumentar-se-á que dinheiro não é tudo, que o político precisa se guiar também pelo que pensa o eleitor. Mas mesmo isso é relativo, pois o eleitor pode perfeitamente alinhar-se pela política macro na eleição majoritária e caminhar mais pragmaticamente na proporcional.
É o que tem acontecido. As eleições proporcionais, tirando alguns pontos fora da curva de supercampeões de voto “de opinião”, fenômeno que tem se concentrado na direita, acabam cada vez mais determinadas por bases orgânicas articuladas em torno de recursos orçamentários.
E o ciclo virtuoso, para os beneficiados, se realimenta.
Daí uma certa estabilidade na composição político-ideológica da Câmara dos Deputados. A consequência é a relativa autonomização da representação parlamentar. Um governo, qualquer um, tem de ser muito turrão ou incompetente para ter problemas sérios com seu parlamento.
Mas precisa saber jogar, pois algo ainda não inventado é o político satisfeito com o que recebe do governo e grato ao governante. É uma permanente guerra de posição, que em administrações muito impopulares corre o sério risco de virar guerra de movimento.
A esse jogo costuma-se chamar “articulação política”. Eis por que a inocência de acreditar que ela e as relações entre governo e base parlamentar dependem de “mais diálogo”, “carinho” ou “atenção”. É uma guerra permanente por recursos e posições que gerem recursos.
A autonomização da representação popular pode ser lida como mecanismo de “checks and balances” ou como enfraquecimento da democracia. De todo modo, o Brasil é um exemplo quase extremo desse descasamento entre a vontade popular expressa na eleição majoritária e a realidade parlamentar dos governos eleitos.
Haveria mecanismos para corrigir isso. Um deles, de aplicação simples: calcular a representação no parlamento a partir dos votos dados aos candidatos ao cargo executivo.
Mas as resistências seriam grandes.
Vindas principalmente de quem se nutre das “denúncias de fisiologismo” para manter a faca no pescoço dos políticos, mas se sustenta nesse dito fisiologismo para relativizar que a vontade popular se expresse nas políticas de governo.
A mudança decorre da abolição, pelo Judiciário, do financiamento empresarial das campanhas eleitorais. E de uma constatação: as contribuições das pessoas físicas são um infinitésimo do que eram as das empresas.
O objetivo de todo agente político é ampliar seu poder, ou ao menos manter. É natural, portanto, que a atividade dele incline-se para beneficiar quem é mais capaz de ajudá-lo a avançar, ou ao menos continuar onde está se for legalmente possível.
Campanhas custam dinheiro. A utopia de campanhas eleitorais imunes ao dinheiro é tão viável quanto seria, apenas como exemplo, a de um jornalismo que, para se manter totalmente isento, abrisse mão da receita publicitária vinda de governos e empresas que cabe a esse jornalismo fiscalizar.
Quem tem hoje dinheiro para financiar legalmente uma campanha eleitoral cara, como são as majoritárias e, na maioria dos casos, as proporcionais, aqui por causa do sistema de lista aberta que tem o estado como distrito? Os governos e os partidos.
Neste segundo grupo, sem a exigência de qualquer mecanismo democrático de decisão.
Os governos controlam o fluxo financeiro para os parlamentares por meio das emendas aos orçamentos, recursos que, repassados às bases eleitorais, alimentam as máquinas políticas. E os donos dos partidos têm o poder de decidir quem vai ter ou não dinheiro na eleição.
Argumentar-se-á que dinheiro não é tudo, que o político precisa se guiar também pelo que pensa o eleitor. Mas mesmo isso é relativo, pois o eleitor pode perfeitamente alinhar-se pela política macro na eleição majoritária e caminhar mais pragmaticamente na proporcional.
É o que tem acontecido. As eleições proporcionais, tirando alguns pontos fora da curva de supercampeões de voto “de opinião”, fenômeno que tem se concentrado na direita, acabam cada vez mais determinadas por bases orgânicas articuladas em torno de recursos orçamentários.
E o ciclo virtuoso, para os beneficiados, se realimenta.
Daí uma certa estabilidade na composição político-ideológica da Câmara dos Deputados. A consequência é a relativa autonomização da representação parlamentar. Um governo, qualquer um, tem de ser muito turrão ou incompetente para ter problemas sérios com seu parlamento.
Mas precisa saber jogar, pois algo ainda não inventado é o político satisfeito com o que recebe do governo e grato ao governante. É uma permanente guerra de posição, que em administrações muito impopulares corre o sério risco de virar guerra de movimento.
A esse jogo costuma-se chamar “articulação política”. Eis por que a inocência de acreditar que ela e as relações entre governo e base parlamentar dependem de “mais diálogo”, “carinho” ou “atenção”. É uma guerra permanente por recursos e posições que gerem recursos.
A autonomização da representação popular pode ser lida como mecanismo de “checks and balances” ou como enfraquecimento da democracia. De todo modo, o Brasil é um exemplo quase extremo desse descasamento entre a vontade popular expressa na eleição majoritária e a realidade parlamentar dos governos eleitos.
Haveria mecanismos para corrigir isso. Um deles, de aplicação simples: calcular a representação no parlamento a partir dos votos dados aos candidatos ao cargo executivo.
Mas as resistências seriam grandes.
Vindas principalmente de quem se nutre das “denúncias de fisiologismo” para manter a faca no pescoço dos políticos, mas se sustenta nesse dito fisiologismo para relativizar que a vontade popular se expresse nas políticas de governo.
sábado, 17 de junho de 2023
Acomodação geral
O 8 de janeiro foi um solavanco que mascarou temporariamente o impulso dominante do pós-eleição: a tendência a acomodar e compor. Como relatado aqui depois do fechamento das urnas na segunda rodada em outubro, todas as forças políticas relevantes, e mesmo algumas menos expressivas, saíram das urnas com poder significativo, e não interessava a esse consórcio informal desarrumar agora as peças no tabuleiro.
Aí veio o 8 de janeiro, cujos efeitos ainda se fazem sentir, mas com papel cada vez mais acessório no que interessa. Servem para animar e colorir o noticiário e, em certa medida, como demonstração de força estatal da coalizão Planalto-STF para conter a crítica, mas a grande política já ganha velocidade trafegando em trilhos próprios. E aí a correlação de forças da vida real mostra a que veio.
A política brasileira é resiliente. Uns dizem que a eficácia dos nossos freios e contrapesos arrasta os vetores para o centro - e defende assim a estabilidade. Outros notam que esses contrapesos e freios funcionam tão bem, e acabaram tão hipertrofiados, que terminam por travar o mecanismo - e assim impedem qualquer mudança substancial. Cada um que escolha a versão preferida.
A expressão mais visível da tensão entre um Executivo pendente à esquerda e um Congresso de maioria à direita são os arranca-rabos por espaços na Esplanada e verbas orçamentárias, para além da gorda fatia já oferecida compulsoriamente aos parlamentares em decorrência do acordo que pôs fim às emendas de relator.
Mas, enquanto o show prossegue, com as CPIs e as ações policiais no horário nobre, a realidade impõe-se, e as ambições maximalistas de lado a lado são freadas pela ética da responsabilidade, resultando num minimalismo algo consensual.
Maquiagens à parte, as reformas trabalhista e da previdência ficarão onde e como estão, bem como a autonomia do Banco Central, no qual o governo buscará fortalecer suas orientações à medida que vai trocando diretores. E o declínio da inflação, derrubada pela bombada Selic, proporciona ao governo o melhor de dois mundos: pode falar mal do BC enquanto aufere os ganhos políticos da ação do BC sobre os preços.
O falecido teto de gastos foi trazido à vida em nova e sofisticada roupagem, de modo a facilitar a atração dos antes demonizados mercados, E, last but not least, é hora de atenuar os ataques ao agro. Afinal, é dali que tem vindo o combustível do PIB, índice-chave na disputa das narrativas, com sua parceira inseparável, a taxa de emprego/desemprego. Via Caged ou IBGE.
Aí é que está o nó.
O minimalismo programático e a flexibilidade para absorver em espaços de poder os ontem desafetos estabilizam momentaneamente Brasília, mas o desafio é fazer o Brasil arrancar, sem o que qualquer estabilidade do atual arranjo será temporária. O presidente da República parece saber disso, pois, segundo o noticiário, proibiu os ministros de ter novas ideias. Pede ação.
As pesquisas reafirmam a cada rodada: Luiz Inácio Lula da Silva mantém a fatia de mercado eleitoral que o levou à vitória no segundo turno. Mas ainda não consolidou áreas no resto do eleitorado. Para tanto, não haverá outro caminho fora do agarrar a bandeira do desenvolvimento e do emprego/trabalho. Para o PT, o eleitor não petista não precisa passar a gostar do partido, basta que em 2026 não queira arriscar a mudança.
Nesse desafio, o governo enfrenta dois obstáculos, um na esfera subjetiva e outro na objetiva. Na primeira, precisa ver como contornar o antidesenvolvimentismo que tomou conta do pensamento dito de esquerda por aqui, reproduzindo em verde e amarelo um vento planetário. Na segunda, precisa torcer para que o aumento da carga tributária (seu caminho de escolha para “acertar o fiscal”) não freie o investimento privado.
Aí veio o 8 de janeiro, cujos efeitos ainda se fazem sentir, mas com papel cada vez mais acessório no que interessa. Servem para animar e colorir o noticiário e, em certa medida, como demonstração de força estatal da coalizão Planalto-STF para conter a crítica, mas a grande política já ganha velocidade trafegando em trilhos próprios. E aí a correlação de forças da vida real mostra a que veio.
A política brasileira é resiliente. Uns dizem que a eficácia dos nossos freios e contrapesos arrasta os vetores para o centro - e defende assim a estabilidade. Outros notam que esses contrapesos e freios funcionam tão bem, e acabaram tão hipertrofiados, que terminam por travar o mecanismo - e assim impedem qualquer mudança substancial. Cada um que escolha a versão preferida.
A expressão mais visível da tensão entre um Executivo pendente à esquerda e um Congresso de maioria à direita são os arranca-rabos por espaços na Esplanada e verbas orçamentárias, para além da gorda fatia já oferecida compulsoriamente aos parlamentares em decorrência do acordo que pôs fim às emendas de relator.
Mas, enquanto o show prossegue, com as CPIs e as ações policiais no horário nobre, a realidade impõe-se, e as ambições maximalistas de lado a lado são freadas pela ética da responsabilidade, resultando num minimalismo algo consensual.
Maquiagens à parte, as reformas trabalhista e da previdência ficarão onde e como estão, bem como a autonomia do Banco Central, no qual o governo buscará fortalecer suas orientações à medida que vai trocando diretores. E o declínio da inflação, derrubada pela bombada Selic, proporciona ao governo o melhor de dois mundos: pode falar mal do BC enquanto aufere os ganhos políticos da ação do BC sobre os preços.
O falecido teto de gastos foi trazido à vida em nova e sofisticada roupagem, de modo a facilitar a atração dos antes demonizados mercados, E, last but not least, é hora de atenuar os ataques ao agro. Afinal, é dali que tem vindo o combustível do PIB, índice-chave na disputa das narrativas, com sua parceira inseparável, a taxa de emprego/desemprego. Via Caged ou IBGE.
Aí é que está o nó.
O minimalismo programático e a flexibilidade para absorver em espaços de poder os ontem desafetos estabilizam momentaneamente Brasília, mas o desafio é fazer o Brasil arrancar, sem o que qualquer estabilidade do atual arranjo será temporária. O presidente da República parece saber disso, pois, segundo o noticiário, proibiu os ministros de ter novas ideias. Pede ação.
As pesquisas reafirmam a cada rodada: Luiz Inácio Lula da Silva mantém a fatia de mercado eleitoral que o levou à vitória no segundo turno. Mas ainda não consolidou áreas no resto do eleitorado. Para tanto, não haverá outro caminho fora do agarrar a bandeira do desenvolvimento e do emprego/trabalho. Para o PT, o eleitor não petista não precisa passar a gostar do partido, basta que em 2026 não queira arriscar a mudança.
Nesse desafio, o governo enfrenta dois obstáculos, um na esfera subjetiva e outro na objetiva. Na primeira, precisa ver como contornar o antidesenvolvimentismo que tomou conta do pensamento dito de esquerda por aqui, reproduzindo em verde e amarelo um vento planetário. Na segunda, precisa torcer para que o aumento da carga tributária (seu caminho de escolha para “acertar o fiscal”) não freie o investimento privado.
sexta-feira, 9 de junho de 2023
Um velho princípio será útil a nossa política externa
As relações exteriores brasileiras correm o risco progressivo de uma assimetria com a realidade material da política planetária. Um exemplo é quando o Brasil insiste na centralidade de reforçar a Organização das Nações Unidas e conquistar protagonismo na instituição, por meio de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança.
Pois ambas, a ONU e seu órgão executivo, dão todos os sinais de caminhar para um destino semelhante ao da antecessora, a Liga das Nações, nascida da Primeira Guerra Mundial e falecida de morte morrida diante dos fatos trazidos pela Segunda.
A ONU e seu Conselho de Segurança emergiram dos resultados da guerra de 1939-45, daí a hegemonia, por meio do poder de veto, de americanos, soviéticos (hoje russos), chineses, britânicos e franceses.
O desenho resistiu por três décadas ao fim da Guerra Fria, mas finalmente parece estar virando um borrão, quando se consolida o realinhamento que hoje contrapõe os Estados Unidos, o G7, a Otan e a União Europeia à aliança, ainda informal, entre a República Popular da China e a Federação Russa, com a República Islâmica do Irã de coadjuvante.
Um sintoma dessa degeneração é o caráter cada vez mais decorativo do Conselho de Segurança. Vide a política de sanções, que, na teoria, só poderiam ser legalmente aplicadas pelo organismo, mas vêm sendo livremente implementadas pelo bloco ocidental conforme os interesses exclusivos deste.
Verdade que, por outro ângulo, tecer loas à ONU não deixa de ser um refúgio retórico temporário, sempre útil enquanto se espera para ver que bicho vai dar. Se a aliança entre russos e chineses obrigará o Ocidente a aceitar um mundo multipolar ou se o “mundo livre” se imporá taticamente a Moscou para, estrategicamente, isolar a superpotência asiática.
O terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva e quinto do Partido dos Trabalhadores largou buscando projetar poder diplomático para além da nossa natural zona de influência regional, no que não vem tendo sucesso por enquanto.
Pois o enigma a decifrar é como um país da América do Sul com aspirações a liderança faz para se equilibrar num cenário de radical polarização entre o Ocidente e o Oriente políticos, ou entre Norte e Sul, ficando “de boa” com os dois lados. Não será trivial.
Até porque o Brasil é o "elo mais fraco" dos Brics.
Nesse contexto, o lance mais produtivo até agora foi Lula buscar reagrupar o continente sul-americano para além das diferenças político-ideológicas, marcando até alguma diferença com as políticas de governos anteriores do PT. Falta só adaptar o discurso à prática. Não sermos juízes da vida alheia nem o presidente virar dublê de comentarista internacional.
Para a força da projeção internacional do Brasil, uma premissa essencial é a América do Sul se manter como zona de paz, integrada e dialogando sem restrições com ambos os blocos da polarização planetária.
Nessa premissa, talvez seja hora de levar à radicalidade o princípio do respeito à soberania dos países e do direito dos povos à autodeterminação. Se o objetivo é tornar a região cada vez mais coesa, deve-se escapar por todos os meios da armadilha imperial de fazer juízos de valor sobre as políticas internas de uns e de outros.
Pois ambas, a ONU e seu órgão executivo, dão todos os sinais de caminhar para um destino semelhante ao da antecessora, a Liga das Nações, nascida da Primeira Guerra Mundial e falecida de morte morrida diante dos fatos trazidos pela Segunda.
A ONU e seu Conselho de Segurança emergiram dos resultados da guerra de 1939-45, daí a hegemonia, por meio do poder de veto, de americanos, soviéticos (hoje russos), chineses, britânicos e franceses.
O desenho resistiu por três décadas ao fim da Guerra Fria, mas finalmente parece estar virando um borrão, quando se consolida o realinhamento que hoje contrapõe os Estados Unidos, o G7, a Otan e a União Europeia à aliança, ainda informal, entre a República Popular da China e a Federação Russa, com a República Islâmica do Irã de coadjuvante.
Um sintoma dessa degeneração é o caráter cada vez mais decorativo do Conselho de Segurança. Vide a política de sanções, que, na teoria, só poderiam ser legalmente aplicadas pelo organismo, mas vêm sendo livremente implementadas pelo bloco ocidental conforme os interesses exclusivos deste.
Verdade que, por outro ângulo, tecer loas à ONU não deixa de ser um refúgio retórico temporário, sempre útil enquanto se espera para ver que bicho vai dar. Se a aliança entre russos e chineses obrigará o Ocidente a aceitar um mundo multipolar ou se o “mundo livre” se imporá taticamente a Moscou para, estrategicamente, isolar a superpotência asiática.
O terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva e quinto do Partido dos Trabalhadores largou buscando projetar poder diplomático para além da nossa natural zona de influência regional, no que não vem tendo sucesso por enquanto.
Pois o enigma a decifrar é como um país da América do Sul com aspirações a liderança faz para se equilibrar num cenário de radical polarização entre o Ocidente e o Oriente políticos, ou entre Norte e Sul, ficando “de boa” com os dois lados. Não será trivial.
Até porque o Brasil é o "elo mais fraco" dos Brics.
Nesse contexto, o lance mais produtivo até agora foi Lula buscar reagrupar o continente sul-americano para além das diferenças político-ideológicas, marcando até alguma diferença com as políticas de governos anteriores do PT. Falta só adaptar o discurso à prática. Não sermos juízes da vida alheia nem o presidente virar dublê de comentarista internacional.
Para a força da projeção internacional do Brasil, uma premissa essencial é a América do Sul se manter como zona de paz, integrada e dialogando sem restrições com ambos os blocos da polarização planetária.
Nessa premissa, talvez seja hora de levar à radicalidade o princípio do respeito à soberania dos países e do direito dos povos à autodeterminação. Se o objetivo é tornar a região cada vez mais coesa, deve-se escapar por todos os meios da armadilha imperial de fazer juízos de valor sobre as políticas internas de uns e de outros.
sexta-feira, 2 de junho de 2023
O governo minimalista e a negociação programática
Os olhares sobre o andamento do Congresso Nacional e sobre as relações deste com os demais poderes, em particular com o Executivo, frequentemente deixam-se arrastar pelo viés personalista, desprezando um elemento-chave para a análise: os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado são primus inter pares, os primeiros entre seus iguais.
Os ministros da Esplanada não podem fazer o impeachment do presidente da República, mas os deputados e senadores têm o poder de cassar o mandato do comandante da respectiva casa legislativa. Desde a chegada do PT ao governo em 2003, dois chefes da Câmara caíram pela ação dos colegas: Severino Cavalcanti e Eduardo Cunha.
Este último alvejado no ápice do poder, depois de ter comandado a derrubada de uma presidente da República.
Ser o primeiro entre seus iguais faz do poder dos presidentes do Congresso uma função de duas variáveis: 1) quanto os deputados, ou senadores, dependem dele para aumentar a capacidade de projetar seu próprio poder adiante no tempo e 2) ele próprio não se tornar uma ameaça à sobrevivência, ou ao menos à saúde política, da categoria.
Em última instância, os presidentes da Câmara e do Senado precisam dançar conforme a música tocada pela orquestra dos colegas.
É tentador concluir que o problema de Luiz Inácio Lula da Silva com a Câmara dos Deputados é seu presidente, mas isso reflete apenas uma parte, e não tão significativa, da realidade. O nó na articulação política do governo está em dois elementos externos ao próprio governo, um deles trazido da eleição; o outro, do destino que se deu ao “orçamento secreto”.
A eleição trouxe a Brasília um presidente à esquerda e um Congresso bem à direita. Não chega a ser uma novidade. Mas a diferença está em dois fatos. O primeiro: os anteriores governos do PT aconteceram numa época em que a direita estava aprisionada política e ideologicamente pelo campo social-liberal não petista, mas não antagônico ao PT.
Isso começou a acabar em 2013. Acabou em 2018.
O segundo é o destino dado às emendas de relator (RP9). O PT queria eliminar o “orçamento secreto” para reconcentrar poder no presidente da República. Acabou tirando poder dos presidentes da Câmara e do Senado, pois boa parte dos recursos passou às emendas individuais impositivas, portanto de execução obrigatória. Aumentou com isso a independência do parlamentar.
Nenhum presidente de casa legislativa pode se dar ao luxo de virar inimigo do governo. Mas hoje em dia, diante principalmente do segundo fator acima exposto, tem bem menos poder para simplesmente tratorar a base e impor a vontade. E isso vai exigir do Planalto um ajuste na linha tradicional da articulação. Vai exigir que o governo, sem abrir mão da força, enverede pelas negociações programáticas.
E precise ser mais minimalista que maximalista.
Num certo grau, está acontecendo na votação do “arcabouço”.
Sempre haverá, é claro, a tentação de aprofundar o “fechamento informal” do Congresso por meio dos seguidos recursos ao Judiciário. Mas isso traz dois riscos. Um é concentrar ainda mais poder no STF e agregados. O outro é o Legislativo, por continuar aberto e com a faca no pescoço, acabar instado a lutar pela própria sobrevivência. Sun Tzu continua atual.
Os ministros da Esplanada não podem fazer o impeachment do presidente da República, mas os deputados e senadores têm o poder de cassar o mandato do comandante da respectiva casa legislativa. Desde a chegada do PT ao governo em 2003, dois chefes da Câmara caíram pela ação dos colegas: Severino Cavalcanti e Eduardo Cunha.
Este último alvejado no ápice do poder, depois de ter comandado a derrubada de uma presidente da República.
Ser o primeiro entre seus iguais faz do poder dos presidentes do Congresso uma função de duas variáveis: 1) quanto os deputados, ou senadores, dependem dele para aumentar a capacidade de projetar seu próprio poder adiante no tempo e 2) ele próprio não se tornar uma ameaça à sobrevivência, ou ao menos à saúde política, da categoria.
Em última instância, os presidentes da Câmara e do Senado precisam dançar conforme a música tocada pela orquestra dos colegas.
É tentador concluir que o problema de Luiz Inácio Lula da Silva com a Câmara dos Deputados é seu presidente, mas isso reflete apenas uma parte, e não tão significativa, da realidade. O nó na articulação política do governo está em dois elementos externos ao próprio governo, um deles trazido da eleição; o outro, do destino que se deu ao “orçamento secreto”.
A eleição trouxe a Brasília um presidente à esquerda e um Congresso bem à direita. Não chega a ser uma novidade. Mas a diferença está em dois fatos. O primeiro: os anteriores governos do PT aconteceram numa época em que a direita estava aprisionada política e ideologicamente pelo campo social-liberal não petista, mas não antagônico ao PT.
Isso começou a acabar em 2013. Acabou em 2018.
O segundo é o destino dado às emendas de relator (RP9). O PT queria eliminar o “orçamento secreto” para reconcentrar poder no presidente da República. Acabou tirando poder dos presidentes da Câmara e do Senado, pois boa parte dos recursos passou às emendas individuais impositivas, portanto de execução obrigatória. Aumentou com isso a independência do parlamentar.
Nenhum presidente de casa legislativa pode se dar ao luxo de virar inimigo do governo. Mas hoje em dia, diante principalmente do segundo fator acima exposto, tem bem menos poder para simplesmente tratorar a base e impor a vontade. E isso vai exigir do Planalto um ajuste na linha tradicional da articulação. Vai exigir que o governo, sem abrir mão da força, enverede pelas negociações programáticas.
E precise ser mais minimalista que maximalista.
Num certo grau, está acontecendo na votação do “arcabouço”.
Sempre haverá, é claro, a tentação de aprofundar o “fechamento informal” do Congresso por meio dos seguidos recursos ao Judiciário. Mas isso traz dois riscos. Um é concentrar ainda mais poder no STF e agregados. O outro é o Legislativo, por continuar aberto e com a faca no pescoço, acabar instado a lutar pela própria sobrevivência. Sun Tzu continua atual.
sexta-feira, 26 de maio de 2023
O governo equilibra os pratos, para continuar jogando em casa
As diferentes forças políticas reagem cada uma a sua moda diante da realidade: nenhuma delas saiu da eleição com poder suficiente para subjugar as demais. Até agora, quem atua de maneira mais pragmática é o presidente da República, que reconhece explicitamente a necessidade de negociar com um Congresso de maioria à direita. E vai equilibrando os pratos.
Adeptos de Luiz Inácio Lula da Silva prefeririam que ele se aliasse ao Supremo Tribunal Federal para tentar “enquadrar” o Legislativo, mas o presidente é mais esperto que isso. Uma operação assim teria dois resultados possíveis: 1) o fracasso, com a consequente anabolização ainda maior do Congresso; 2) um “sucesso” que faria de Lula refém do STF.
Haveria ainda, na teoria, uma terceira opção: mobilizar as ruas para ajudar o Executivo na desejada reconcentração de poder. Há aí, entretanto, dois problemas: 1) os movimentos sociais da esquerda, em particular o movimento sindical, são pálida sombra do que foram um dia; e 2) transferir a disputa política para as ruas abre espaço para a mobilização social da oposição.
Hoje, a oposição ao governo do PT é contida pelos freios judiciais impostos pelo empoderado Supremo e está em minoria no Legislativo. Então interessa ao situacionismo continuar “jogando em casa”, e não repetir junho de 2013, quando a confusão de rua começou beneficiando a esquerda -e pelas mãos da esquerda-, mas acabou como uma festa da direita.
Há contraexemplos, como na Colômbia, mas uma diferença é óbvia. Ali, o governo de esquerda de Gustavo Petro é novidade histórica, a direita está acuada, a esquerda ainda desfruta uma imagem de pureza, e os movimentos sociais autonomeados progressistas estão na ponta dos cascos. Não é, definitivamente, o caso brasileiro.
A dúvida é por onde o governo deveria trabalhar para alterar a correlação de forças, e parece nítido que isso só será possível se Lula colocar o Brasil numa rota de crescimento econômico consistente, de criação de empregos e geração e distribuição de renda. Talvez seja a única forma de descongelar a persistente divisão social e política meio a meio.
A aposta da equipe econômica desenha um ajuste fiscal baseado na elevação da carga tributária, para aí permitir o afrouxamento da política monetária e alavancar a economia com base na redução dos juros. A dúvida é se retirar recursos do setor privado não vai desestimular o investimento, sem que o governo tenha como compensar com investimento público.
Até o momento, Lula mantém a fatia eleitoral do segundo turno, uns 39% do estoque total de votos no país. No começo do governo, como mostraram as pesquisas, metade dos que não tinham votado nele manifestava alguma boa vontade. Mas isso parece estar se erodindo, ainda que lentamente. O governo precisa da economia para reverter a tendência.
P.S.: No momento, a oposição e os “aliados” da direita ajudam Lula a moderar a turma dele, o que em determinados pontos lhe é útil. Mas, se a popularidade cair, o outro lado e os companheiros circunstanciais de viagem vão crescer o olho.
Adeptos de Luiz Inácio Lula da Silva prefeririam que ele se aliasse ao Supremo Tribunal Federal para tentar “enquadrar” o Legislativo, mas o presidente é mais esperto que isso. Uma operação assim teria dois resultados possíveis: 1) o fracasso, com a consequente anabolização ainda maior do Congresso; 2) um “sucesso” que faria de Lula refém do STF.
Haveria ainda, na teoria, uma terceira opção: mobilizar as ruas para ajudar o Executivo na desejada reconcentração de poder. Há aí, entretanto, dois problemas: 1) os movimentos sociais da esquerda, em particular o movimento sindical, são pálida sombra do que foram um dia; e 2) transferir a disputa política para as ruas abre espaço para a mobilização social da oposição.
Hoje, a oposição ao governo do PT é contida pelos freios judiciais impostos pelo empoderado Supremo e está em minoria no Legislativo. Então interessa ao situacionismo continuar “jogando em casa”, e não repetir junho de 2013, quando a confusão de rua começou beneficiando a esquerda -e pelas mãos da esquerda-, mas acabou como uma festa da direita.
Há contraexemplos, como na Colômbia, mas uma diferença é óbvia. Ali, o governo de esquerda de Gustavo Petro é novidade histórica, a direita está acuada, a esquerda ainda desfruta uma imagem de pureza, e os movimentos sociais autonomeados progressistas estão na ponta dos cascos. Não é, definitivamente, o caso brasileiro.
A dúvida é por onde o governo deveria trabalhar para alterar a correlação de forças, e parece nítido que isso só será possível se Lula colocar o Brasil numa rota de crescimento econômico consistente, de criação de empregos e geração e distribuição de renda. Talvez seja a única forma de descongelar a persistente divisão social e política meio a meio.
A aposta da equipe econômica desenha um ajuste fiscal baseado na elevação da carga tributária, para aí permitir o afrouxamento da política monetária e alavancar a economia com base na redução dos juros. A dúvida é se retirar recursos do setor privado não vai desestimular o investimento, sem que o governo tenha como compensar com investimento público.
Até o momento, Lula mantém a fatia eleitoral do segundo turno, uns 39% do estoque total de votos no país. No começo do governo, como mostraram as pesquisas, metade dos que não tinham votado nele manifestava alguma boa vontade. Mas isso parece estar se erodindo, ainda que lentamente. O governo precisa da economia para reverter a tendência.
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P.S.: No momento, a oposição e os “aliados” da direita ajudam Lula a moderar a turma dele, o que em determinados pontos lhe é útil. Mas, se a popularidade cair, o outro lado e os companheiros circunstanciais de viagem vão crescer o olho.
sábado, 20 de maio de 2023
O equilíbrio possível. E a troca das máscaras no teatro grego da política
Era previsível, e foi previsto, que o desfecho da corrida eleitoral de 2022 traria uma de duas arquiteturas políticas bem distintas. Vencesse Jair Bolsonaro, o cenário se desenharia numa aproximação entre Executivo e Legislativo para isolar o Judiciário crescentemente ativista. Como deu Luiz Inácio Lula da Silva, a aliança informal é entre esse Judiciário e o Planalto, para, se necessário, esquentar a chapa sob os pés de deputados e senadores.
Mas alienar completamente o Congresso Nacional seria de alto risco para o novo governo, que não dispõe, na real, de base parlamentar. E, bem ou mal, algumas propostas oficialistas precisam ser votadas ali. Então, além da coerção, como diria Antonio Gramsci, é preciso algum consenso. Que é obtido pelo tradicional meio de usar o orçamento e espaços na máquina para ajudar as excelências do Legislativo a aumentar a probabilidade de reproduzir o próprio poder.
Daí que, mesmo aos trancos e barrancos, a vida siga nas relações entre Executivo e Congresso com alguma produtividade. Polvilhada por sobressaltos, mas nada que preocupe demais. E a contradição entre a maioria conservadora de deputados e senadores e um governo petista? No que der, como é o caso do “arcabouço”, vota-se. No que não der, chama-se o STF para abrir caminho aos desejos do Palácio do Planalto.
Eis então que tenhamos chegado a algum equilíbrio, em que todo mundo está contemplado em certo grau. Menos, naturalmente, o núcleo bolsonarista, o “inimigo público” da hora, como um dia foi o PT. E menos também os ícones da Lava-Jato, objeto da ira particular da autoridade presidencial. A política é dinâmica, e, nesse teatro grego, entre um ato e outro, trocam-se as máscaras de garantistas e punitivistas, porque, acima de tudo, o espetáculo tem de continuar.
E sua excelência, o eleitor? Este anda mais preocupado com a economia, em especial com a alta dos preços e com a possibilidade de perder o emprego. A desocupação acendeu algumas luzes amarelas no primeiro trimestre, mas é preciso esperar para saber se não foi sazonalidade. A inflação parece enjaulada pelos juros, ainda que o núcleo dela esteja rugindo dentro da jaula e a disseminação das pressões altistas preocupe.
O risco potencial para o governo, contemplado nesta largada com uma boa vontade de opinião pública acima do habitual em começos de mandato (deve agradecer a Bolsonaro), é uma eventual sensação de mesmice econômica impregnar negativamente o humor popular. O povão se cansar do circo Lula x Bolsonaro e começar a pedir mais pão. O Bolsa Família acima de 600 reais na média funciona como proteção poderosa, mas é bom ficar de olho.
De olho na economia e nas pesquisas. Lula mantém, na essência, a fatia de mercado eleitoral que deu a ele a vitória no segundo turno em outubro. Mas, por enquanto, não está ampliando, ainda que conte com alguma boa vontade de parte dos que não votaram nele. Apoio popular sempre é bom, ainda mais para quem não tem uma maioria programática nem na Câmara dos Deputados nem no Senado Federal.
Governo sem base está sempre vulnerável à imponderabilidade.
Mas alienar completamente o Congresso Nacional seria de alto risco para o novo governo, que não dispõe, na real, de base parlamentar. E, bem ou mal, algumas propostas oficialistas precisam ser votadas ali. Então, além da coerção, como diria Antonio Gramsci, é preciso algum consenso. Que é obtido pelo tradicional meio de usar o orçamento e espaços na máquina para ajudar as excelências do Legislativo a aumentar a probabilidade de reproduzir o próprio poder.
Daí que, mesmo aos trancos e barrancos, a vida siga nas relações entre Executivo e Congresso com alguma produtividade. Polvilhada por sobressaltos, mas nada que preocupe demais. E a contradição entre a maioria conservadora de deputados e senadores e um governo petista? No que der, como é o caso do “arcabouço”, vota-se. No que não der, chama-se o STF para abrir caminho aos desejos do Palácio do Planalto.
Eis então que tenhamos chegado a algum equilíbrio, em que todo mundo está contemplado em certo grau. Menos, naturalmente, o núcleo bolsonarista, o “inimigo público” da hora, como um dia foi o PT. E menos também os ícones da Lava-Jato, objeto da ira particular da autoridade presidencial. A política é dinâmica, e, nesse teatro grego, entre um ato e outro, trocam-se as máscaras de garantistas e punitivistas, porque, acima de tudo, o espetáculo tem de continuar.
E sua excelência, o eleitor? Este anda mais preocupado com a economia, em especial com a alta dos preços e com a possibilidade de perder o emprego. A desocupação acendeu algumas luzes amarelas no primeiro trimestre, mas é preciso esperar para saber se não foi sazonalidade. A inflação parece enjaulada pelos juros, ainda que o núcleo dela esteja rugindo dentro da jaula e a disseminação das pressões altistas preocupe.
O risco potencial para o governo, contemplado nesta largada com uma boa vontade de opinião pública acima do habitual em começos de mandato (deve agradecer a Bolsonaro), é uma eventual sensação de mesmice econômica impregnar negativamente o humor popular. O povão se cansar do circo Lula x Bolsonaro e começar a pedir mais pão. O Bolsa Família acima de 600 reais na média funciona como proteção poderosa, mas é bom ficar de olho.
De olho na economia e nas pesquisas. Lula mantém, na essência, a fatia de mercado eleitoral que deu a ele a vitória no segundo turno em outubro. Mas, por enquanto, não está ampliando, ainda que conte com alguma boa vontade de parte dos que não votaram nele. Apoio popular sempre é bom, ainda mais para quem não tem uma maioria programática nem na Câmara dos Deputados nem no Senado Federal.
Governo sem base está sempre vulnerável à imponderabilidade.
sábado, 15 de abril de 2023
Políticas semelhantes, cenários bem diferentes
Toda tentativa de justificar política exterior com base em princípios tão bonitos quanto absolutos costuma terminar em impasse, quando não em comédia; ou tragédia. Pois os interesses frios sempre acabam prevalecendo, restando aos ideólogos dar aquela maquiada básica para salvar a face. Um exemplo recente é o conflito da Ucrânia.
Dois princípios nas relações internacionais são o direito à autodeterminação e o direito à integridade territorial. No conflito da hora, Kiev esgrime com o segundo, mas Moscou argumenta com o primeiro para as repúblicas do Donbass e as regiões sulistas do vizinho, Crimeia inclusive, que decidiram se desligar.
Na dissolução e fragmentação da Iugoslávia, duas décadas atrás, os Estados Unidos e a OTAN invocaram o direito à autodeterminação, enquanto uma enfraquecida Rússia argumentava, impotentemente, em defesa da integridade territorial da Iugoslávia. No final, quem pôde mais chorou menos.
O observador razoavelmente atento notará que os EUA e a União Europeia retiraram dos arquivos o playbook da Guerra Fria 1.0 para conter a ascensão da China. Impor crescentes constrangimentos econômicos, deflagrar uma corrida armamentista e dar o golpe final por meio das tensões étnico-nacionais e do separatismo.
Entre as dificuldades na tentativa de repetir o roteiro, uma frequenta mais amiúde os pesadelos do Ocidente. Quando a URSS declinou e finalmente desapareceu, havia tempo que não era mais aliada da China, que na geopolítica estava até mais próxima dos EUA. Hoje, a ameaça existencial comum empurra chineses e russos a aliar-se estrategicamente.
Na economia e na esfera militar são nações que se complementam num encaixe quase perfeito.
Eis por que o Ocidente não pode nem pensar em conter a China, o objetivo central na Guerra Fria 2.0, sem atrair a Rússia para sua esfera de influência ou desmembrá-la, a exemplo do que foi feito com a URSS.
Ou as duas coisas.
A Federação Russa permanece um dos poucos estados de fato plurinacionais no planeta, com potenciais tensões separatistas permanentes. Enquanto o Ocidente argumenta com o direito à integridade territorial da Ucrânia, usa a Ucrânia para desestabilizar a integridade territorial russa.
O que, aliás, somado à crescente simpatia ocidental pela tese de Taiwan independente e pelas pressões separatistas em Hong Kong e Xinjiang, ajuda a amalgamar a aliança entre Moscou e Beijing.
E o Brasil com isso? O cenário internacional para nós, também pelos motivos expostos, é incomparavelmente mais complexo do que quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto pela primeira vez, em 2003.
Naqueles tempos, 1) os EUA tinham o foco na guerra ao terror; 2) uma enfraquecida Rússia estava saindo do catastrófico governo de Boris Ieltsin; e 3) ainda prevalecia a esperança ocidental de que o desenvolvimento econômico chinês, orientado ao mercado e à globalização, faria entrar em colapso o poder comunista.
Assim, Lula pôde implodir o projeto norte-americano da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) sem maior consequência, teve espaço para projetar poder econômico-financeiro regional e o Brasil ajudou alegremente a construir os Brics.
Mas os ventos começaram a mudar lá pelo final da década, acelerados pela crise de 2008/09, e quem acabou pagando o pato da insatisfação de Washington com o expansionismo e o independentismo brasileiros foi Dilma Rousseff.
Os EUA estão crescentemente nervosos diante da ameaça de um ocaso em seu reinado de única superpotência. E bem quando a história parecia ter chegado ao fim, dando razão a Francis Fukuyama, e quando o breve século XX, na definição de Eric Hobsbawm, tinha ficado para trás.
Mas as duas teses balançam. Fukuyama e Hobsbawn estão em xeque. O século XXI está cada vez mais parecido com o anterior.
Como Lula vai descascar o abacaxi? Até agora, recorreu aos velhos truques, de eficácia comprovada. Foi a Washington e disse coisas agradáveis aos anfitriões, depois dirigiu-se a Beijing para falar coisas que fizeram bem aos ouvidos dos chineses. Nas duas viagens, procurou extrair o melhor da relação.
Não deixa de ser inteligente como aposta para não queimar pontes.
Só é preciso saber até quando isso será suficiente. Pois de vez em quando chega uma hora em que os princípios, como tratado no início deste texto, e as declarações genéricas de intenções não dão mais para o gasto.
E 2023 não é 2003.
Dois princípios nas relações internacionais são o direito à autodeterminação e o direito à integridade territorial. No conflito da hora, Kiev esgrime com o segundo, mas Moscou argumenta com o primeiro para as repúblicas do Donbass e as regiões sulistas do vizinho, Crimeia inclusive, que decidiram se desligar.
Na dissolução e fragmentação da Iugoslávia, duas décadas atrás, os Estados Unidos e a OTAN invocaram o direito à autodeterminação, enquanto uma enfraquecida Rússia argumentava, impotentemente, em defesa da integridade territorial da Iugoslávia. No final, quem pôde mais chorou menos.
O observador razoavelmente atento notará que os EUA e a União Europeia retiraram dos arquivos o playbook da Guerra Fria 1.0 para conter a ascensão da China. Impor crescentes constrangimentos econômicos, deflagrar uma corrida armamentista e dar o golpe final por meio das tensões étnico-nacionais e do separatismo.
Entre as dificuldades na tentativa de repetir o roteiro, uma frequenta mais amiúde os pesadelos do Ocidente. Quando a URSS declinou e finalmente desapareceu, havia tempo que não era mais aliada da China, que na geopolítica estava até mais próxima dos EUA. Hoje, a ameaça existencial comum empurra chineses e russos a aliar-se estrategicamente.
Na economia e na esfera militar são nações que se complementam num encaixe quase perfeito.
Eis por que o Ocidente não pode nem pensar em conter a China, o objetivo central na Guerra Fria 2.0, sem atrair a Rússia para sua esfera de influência ou desmembrá-la, a exemplo do que foi feito com a URSS.
Ou as duas coisas.
A Federação Russa permanece um dos poucos estados de fato plurinacionais no planeta, com potenciais tensões separatistas permanentes. Enquanto o Ocidente argumenta com o direito à integridade territorial da Ucrânia, usa a Ucrânia para desestabilizar a integridade territorial russa.
O que, aliás, somado à crescente simpatia ocidental pela tese de Taiwan independente e pelas pressões separatistas em Hong Kong e Xinjiang, ajuda a amalgamar a aliança entre Moscou e Beijing.
E o Brasil com isso? O cenário internacional para nós, também pelos motivos expostos, é incomparavelmente mais complexo do que quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto pela primeira vez, em 2003.
Naqueles tempos, 1) os EUA tinham o foco na guerra ao terror; 2) uma enfraquecida Rússia estava saindo do catastrófico governo de Boris Ieltsin; e 3) ainda prevalecia a esperança ocidental de que o desenvolvimento econômico chinês, orientado ao mercado e à globalização, faria entrar em colapso o poder comunista.
Assim, Lula pôde implodir o projeto norte-americano da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) sem maior consequência, teve espaço para projetar poder econômico-financeiro regional e o Brasil ajudou alegremente a construir os Brics.
Mas os ventos começaram a mudar lá pelo final da década, acelerados pela crise de 2008/09, e quem acabou pagando o pato da insatisfação de Washington com o expansionismo e o independentismo brasileiros foi Dilma Rousseff.
Os EUA estão crescentemente nervosos diante da ameaça de um ocaso em seu reinado de única superpotência. E bem quando a história parecia ter chegado ao fim, dando razão a Francis Fukuyama, e quando o breve século XX, na definição de Eric Hobsbawm, tinha ficado para trás.
Mas as duas teses balançam. Fukuyama e Hobsbawn estão em xeque. O século XXI está cada vez mais parecido com o anterior.
Como Lula vai descascar o abacaxi? Até agora, recorreu aos velhos truques, de eficácia comprovada. Foi a Washington e disse coisas agradáveis aos anfitriões, depois dirigiu-se a Beijing para falar coisas que fizeram bem aos ouvidos dos chineses. Nas duas viagens, procurou extrair o melhor da relação.
Não deixa de ser inteligente como aposta para não queimar pontes.
Só é preciso saber até quando isso será suficiente. Pois de vez em quando chega uma hora em que os princípios, como tratado no início deste texto, e as declarações genéricas de intenções não dão mais para o gasto.
E 2023 não é 2003.
sábado, 1 de abril de 2023
A grande coalizão para arrecadar. E façam suas apostas
Toda política econômica é um exercício de economia política. Todo governo olha, antes de tudo, para a manutenção e ampliação do próprio poder. Assim, quando governos movimentam as peças econômicas, a bússola aponta para um norte político. É assim que a prudência orienta a análise e a leitura do cenário.
Feita a introdução, deve-se recordar que o PT é contra a existência de um teto de gastos públicos e na campanha presidencial prometeu acabar com ele. E não precisou assumir qualquer compromisso em contrário para atrair os votos do antibolsonarismo liberal em assuntos de política econômica.
Um mistério ronda a Esplanada: por que o governo petista, dispondo de uma margem de 200 bi acima do limite para gastar este ano, não deixou o agonizante teto terminar de passar desta para a melhor. Pois está evidente desde 2020 que qualquer governo dotado de base parlamentar pode simplesmente ignorar o teto.
A hipótese benigna, para o mercado, é que o PT e Luiz Inácio Lula da Silva mudaram de ideia. Não seria a primeira vez. Mas, como dito na abertura deste texto, é sempre mais esperto olhar para a política.
Está explícito que, com a apresentação do novo teto de gastos (agora chamado de “arcabouço fiscal”, um rótulo que, convenientemente, pode ao mesmo tempo significar tudo e nada), o governo opera para pressionar o Banco Central a reduzir o juro básico. Mas talvez esse não seja o objetivo principal.
A administração petista precisa, sim, forçar o BC autônomo a afrouxar a política monetária, que mantida nos níveis atuais vai produzir desemprego. E Lula, ao contrário do primeiro mandato, não parece ter muita gordura política para queimar. As pesquisas mostram. Então é necessário desenhar alguma disciplina fiscal.
“Corte de gastos” é uma expressão totalmente ausente do discurso do novo poder, então só resta aumentar a arrecadação. Para tanto, é preciso acumular força política, reunir exércitos, pois o adversário, o contribuinte, também tem seus trunfos. Afinal é ele quem comparece à urna de dois em dois anos (no DF é de quatro em quatro).
O teto de gastos vigente, ao desvincular despesa possível e receita, eliminou qualquer motivação do mundo político para aumentar impostos. Pois, mesmo se a arrecadação explodisse, o limite do gasto seria o anterior mais a inflação. O novo “arcabouço” informa que, quanto mais o governo arrecadar, mais poderá gastar.
Se o Planalto operar bem a articulação com deputados, senadores, governadores e prefeitos, e se todos puderem em alguma medida participar da engorda dos cofres, tem boa chance de montar uma grande coalizão para arrecadar, essencial para alcançar, sem cortar gastos, algum resultado fiscal digerível pelo mercado.
A peça apresentada esta semana promete isso, e mais.
Lula terá algum recurso para turbinar o investimento público. O mercado e o BC receberão o presente de um renovado limite de gastos, pois haverá um teto e um piso de crescimento da despesa. E o governo, especialmente sua articulação política, não precisará todo final de ano pedir autorização para contornar a lei.
Claro que tudo isso ainda precisa ser posto em prática. Há dúvidas sobre algumas contas e sobre a viabilidade de aumentar os impostos, formal ou informalmente. Mas o caminhão pegou a estrada, e as melancias na carroceria costumam acomodar-se conforme sobrevêm os solavancos produzidos pelas lombadas e pela buraqueira.
Ainda resta uma incógnita. A função operada pelo governo informa que aumentar o investimento público, casado com um amolecimento do coração do BC, inverterá a tendência de desaceleração econômica. Outra hipótese é que o aumento da carga tributária (ou a ameaça de) simplesmente apertará o freio na atividade, pois os empresários entrarão em modo defensivo.
Façam suas apostas.
Feita a introdução, deve-se recordar que o PT é contra a existência de um teto de gastos públicos e na campanha presidencial prometeu acabar com ele. E não precisou assumir qualquer compromisso em contrário para atrair os votos do antibolsonarismo liberal em assuntos de política econômica.
Um mistério ronda a Esplanada: por que o governo petista, dispondo de uma margem de 200 bi acima do limite para gastar este ano, não deixou o agonizante teto terminar de passar desta para a melhor. Pois está evidente desde 2020 que qualquer governo dotado de base parlamentar pode simplesmente ignorar o teto.
A hipótese benigna, para o mercado, é que o PT e Luiz Inácio Lula da Silva mudaram de ideia. Não seria a primeira vez. Mas, como dito na abertura deste texto, é sempre mais esperto olhar para a política.
Está explícito que, com a apresentação do novo teto de gastos (agora chamado de “arcabouço fiscal”, um rótulo que, convenientemente, pode ao mesmo tempo significar tudo e nada), o governo opera para pressionar o Banco Central a reduzir o juro básico. Mas talvez esse não seja o objetivo principal.
A administração petista precisa, sim, forçar o BC autônomo a afrouxar a política monetária, que mantida nos níveis atuais vai produzir desemprego. E Lula, ao contrário do primeiro mandato, não parece ter muita gordura política para queimar. As pesquisas mostram. Então é necessário desenhar alguma disciplina fiscal.
“Corte de gastos” é uma expressão totalmente ausente do discurso do novo poder, então só resta aumentar a arrecadação. Para tanto, é preciso acumular força política, reunir exércitos, pois o adversário, o contribuinte, também tem seus trunfos. Afinal é ele quem comparece à urna de dois em dois anos (no DF é de quatro em quatro).
O teto de gastos vigente, ao desvincular despesa possível e receita, eliminou qualquer motivação do mundo político para aumentar impostos. Pois, mesmo se a arrecadação explodisse, o limite do gasto seria o anterior mais a inflação. O novo “arcabouço” informa que, quanto mais o governo arrecadar, mais poderá gastar.
Se o Planalto operar bem a articulação com deputados, senadores, governadores e prefeitos, e se todos puderem em alguma medida participar da engorda dos cofres, tem boa chance de montar uma grande coalizão para arrecadar, essencial para alcançar, sem cortar gastos, algum resultado fiscal digerível pelo mercado.
A peça apresentada esta semana promete isso, e mais.
Lula terá algum recurso para turbinar o investimento público. O mercado e o BC receberão o presente de um renovado limite de gastos, pois haverá um teto e um piso de crescimento da despesa. E o governo, especialmente sua articulação política, não precisará todo final de ano pedir autorização para contornar a lei.
Claro que tudo isso ainda precisa ser posto em prática. Há dúvidas sobre algumas contas e sobre a viabilidade de aumentar os impostos, formal ou informalmente. Mas o caminhão pegou a estrada, e as melancias na carroceria costumam acomodar-se conforme sobrevêm os solavancos produzidos pelas lombadas e pela buraqueira.
Ainda resta uma incógnita. A função operada pelo governo informa que aumentar o investimento público, casado com um amolecimento do coração do BC, inverterá a tendência de desaceleração econômica. Outra hipótese é que o aumento da carga tributária (ou a ameaça de) simplesmente apertará o freio na atividade, pois os empresários entrarão em modo defensivo.
Façam suas apostas.
sábado, 25 de março de 2023
Tan lejos y tan cerca
Por décadas, a aceitação do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas vem sendo meta da nossa política externa. A demanda sempre provocou algumas dúvidas razoáveis. Uma delas: além de oportunidade de protagonismo pessoal, para que servirá mesmo uma cadeira fixa se o Brasil não dispuser do poder de veto?
Claro que uma opção seria a abolição do poder de veto, como algumas vezes se aventou. Mas a chance de isso acontecer é zero.
A ONU também é referida nos frequentes discursos em defesa de uma governança global, quando os temas ultrapassam as fronteiras nacionais. Seria o caso das mudanças climáticas e do combate à fome. Já há instituições e articulações planetárias a cuidar desses assuntos, mas sem poder decisório. Pois as decisões supranacionais, com exceção das adotadas pelo Conselho de Segurança, precisam ser referendadas nacionalmente. São recomendações.
No mais das vezes, diria William Shakespeare, costuma ser muito barulho por nada. Ou quase nada.
Se as iniciativas pela reformulação do Conselho e pela ampliação de uma governança global baseada na entidade sediada em Nova York não chegaram a caminhar quando as Nações Unidas exibiam alguma ascendência, mais dificuldades ainda enfrentarão na nova era marcada pela “desglobalização”. Esta merece uma análise à parte, mas, em função dela, a ONU vem perdendo substância aceleradamente, com o impulso ocidental a que os blocos e instituições dominadas pelas potências do Norte político tomem seu lugar.
Como o Brasil vai atualizar suas estratégias e discursos num cenário em que Brics tende a andar para um lado e G7 UE para o outro? Um cenário em que a palavra de ordem do Ocidente político é desplugar-se da candidata a superpotência que vem do Sul político, a China? Uma moldura em que a ONU continua depositária da ritualística estabelecida no Pós-Guerra, mas suas decisões, ou sua incapacidade de tomá-las, não têm o menor efeito prático além de oferecer combustível ao noticiário?
A política exterior brasileira parece estar tateando em busca de um novo ponto de equilíbrio, entre as pressões políticas crescentes, que tendem a se tornar insuportáveis, do atlantismo e a força gravitacional dos parceiros majoritariamente responsáveis por a economia brasileira continuar caminhando. O governo Luiz Inácio Lula da Silva parece meio espremido entre não afrontar Washington neste momento de alta tensão e impedir a obstrução dos vasos econômicos comunicantes com Pequim. Vai precisar de talento.
Um caminho possível é o da Índia e da Turquia, a neutralidade ativa. Mas os turcos têm o trunfo de serem o flanco oriental da Organização do Tratado do Atlântico Norte, e não melindrar a Índia é estratégico para o Ocidente. Este não pode se dar ao luxo de empurrar os indianos para perto da entente de fato entre russos, chineses e iranianos.
O Brasil se vê restringido por aquele provérbio feito inicialmente para os mexicanos, mas que a Doutrina Monroe faz sempre ver que é para o conjunto das Américas: “Tan lejos de Dios y tan cerca a los Estados Unidos”.
Claro que uma opção seria a abolição do poder de veto, como algumas vezes se aventou. Mas a chance de isso acontecer é zero.
A ONU também é referida nos frequentes discursos em defesa de uma governança global, quando os temas ultrapassam as fronteiras nacionais. Seria o caso das mudanças climáticas e do combate à fome. Já há instituições e articulações planetárias a cuidar desses assuntos, mas sem poder decisório. Pois as decisões supranacionais, com exceção das adotadas pelo Conselho de Segurança, precisam ser referendadas nacionalmente. São recomendações.
No mais das vezes, diria William Shakespeare, costuma ser muito barulho por nada. Ou quase nada.
Se as iniciativas pela reformulação do Conselho e pela ampliação de uma governança global baseada na entidade sediada em Nova York não chegaram a caminhar quando as Nações Unidas exibiam alguma ascendência, mais dificuldades ainda enfrentarão na nova era marcada pela “desglobalização”. Esta merece uma análise à parte, mas, em função dela, a ONU vem perdendo substância aceleradamente, com o impulso ocidental a que os blocos e instituições dominadas pelas potências do Norte político tomem seu lugar.
Como o Brasil vai atualizar suas estratégias e discursos num cenário em que Brics tende a andar para um lado e G7 UE para o outro? Um cenário em que a palavra de ordem do Ocidente político é desplugar-se da candidata a superpotência que vem do Sul político, a China? Uma moldura em que a ONU continua depositária da ritualística estabelecida no Pós-Guerra, mas suas decisões, ou sua incapacidade de tomá-las, não têm o menor efeito prático além de oferecer combustível ao noticiário?
A política exterior brasileira parece estar tateando em busca de um novo ponto de equilíbrio, entre as pressões políticas crescentes, que tendem a se tornar insuportáveis, do atlantismo e a força gravitacional dos parceiros majoritariamente responsáveis por a economia brasileira continuar caminhando. O governo Luiz Inácio Lula da Silva parece meio espremido entre não afrontar Washington neste momento de alta tensão e impedir a obstrução dos vasos econômicos comunicantes com Pequim. Vai precisar de talento.
Um caminho possível é o da Índia e da Turquia, a neutralidade ativa. Mas os turcos têm o trunfo de serem o flanco oriental da Organização do Tratado do Atlântico Norte, e não melindrar a Índia é estratégico para o Ocidente. Este não pode se dar ao luxo de empurrar os indianos para perto da entente de fato entre russos, chineses e iranianos.
O Brasil se vê restringido por aquele provérbio feito inicialmente para os mexicanos, mas que a Doutrina Monroe faz sempre ver que é para o conjunto das Américas: “Tan lejos de Dios y tan cerca a los Estados Unidos”.
sábado, 18 de março de 2023
O nó para montar uma base
O governo enfrenta turbulências para montar sua base parlamentar e quase três meses depois da largada não parece estar perto de uma solução. A tentação é debitar isso a algum tipo de falha humana, mas será honesto notar que a nova administração enfrenta um cenário de complexidade inédita nas relações com o Congresso Nacional. Pois está sem instrumentos tão eficazes assim para disciplinar uma base.
Pois não basta montá-la, ela precisa funcionar, especialmente na dificuldade. Exércitos devem saber desfilar, porém mais importante é lutar e vencer batalhas e guerras.
O objetivo de todo político é ampliar seu poder, ou no mínimo perenizar o existente. Deputados sonham com o Senado. Deputados e senadores sonham com governos estaduais e, por que não?, com a Presidência da República. Mas o programa mínimo de todo parlamentar é reeleger-se. Para isso precisa de apoio municipalista, pois nem o mais prestigiado dono de “voto de opinião” pode dispensar os estoques de eleitorado nas cidades.
Eleitorado que sempre mantém algum vínculo de clientela com prefeitos e vereadores, especialmente nas pequenas e médias.
Regra geral, o deputado vitorioso conseguiu eleger-se arrebanhando um bom naco dos votos na sua base eleitoral raiz, mas para chegar lá precisou do eleitor pulverizado em dezenas ou centenas de municípios.
As emendas parlamentares ao orçamento federal ajudam a cumprir esse papel. As últimas décadas vêm assistindo a uma certa depreciação moral do mecanismo junto à opinião pública, mas não tem jeito: nosso pork barrel é essencial para disciplinar o Parlamento. Porém ele só é eficaz quando funciona por uma lógica de premiação prioritária dos mais fiéis. Ser governo tem ônus, por isso é razoável que o governismo seja compensado com algum bônus.
Ser base de governo só faz sentido quando mais ajuda do que atrapalha a reproduzir o próprio poder. No caso específico das emendas parlamentares, é natural que os governistas tenham mais recursos orçamentários do que os oposicionistas para destinar às bases eleitorais. Mas, no Brasil acostumado ao achincalhamento do toma lá dá cá e à promoção de um pseudo-republicanismo hipócrita, é esperado que o Parlamento prefira ocultar isso.
O enfraquecimento quase terminal de Dilma Rousseff e Michel Temer e, na sequência, a luta de Jair Bolsonaro para chegar ao fim do mandato tiveram como efeito colateral a gigantesca anabolização das emendas parlamentares, pois o custo político de sobreviver na Presidência costuma crescer hiperbolicamente conforme se esvai o poder real do ocupante da cadeira. Disso tudo nasceu o teratoma da emenda de relator de muitos bilhões de reais.
Que para impacto jornalístico recebeu o rótulo de “orçamento secreto”. Para que o apoio congressual ao governo funcione, é sempre necessária uma porção “secreta” (não é pública a informação de que parlamentar destinou aquele recurso) no orçamento destinado às emendas. Mas a opinião pública tem dinâmicas próprias, e o assunto virou escândalo quando, em vez de alguns caraminguás, o montante chegou à casa dos dez dígitos.
Ao longo da campanha eleitoral, a oposição atacou o “orçamento secreto” com dois objetivos. Retomar para o eventual governo do PT o comando da discricionariedade na destinação do grosso das emendas parlamentares e emagrecer o mecanismo, para trazer de volta ao Executivo recursos destinados a investimento num orçamento federal grandemente engessado e amarrado a gastos obrigatórios de custeio.
Mas na hora de resolver o problema alguma coisa não saiu conforme o planejado, pois o resultado prático do acordo costurado após o STF “derrubar o orçamento secreto” 1) manteve o volume de dinheiro destinado a emendas parlamentares e 2) transformou boa parte da emenda de relator em emendas individuais, identificáveis, mas de execução obrigatória, pelo mecanismo chamado “orçamento impositivo”.
O produto da lambança é que todo deputado tem para 2023, no mínimo, mais de 30 milhões de reais para destinar às bases eleitorais, e cada senador tem mais quase 60 milhões. Independentemente de como votar ao longo destes quatro anos. Claro que quem votar com o governo vai poder destinar um tanto a mais, proveniente do orçamento próprio dos ministérios, mas a execução impositiva já garante ao parlamentar o colchão capaz de construir uma campanha eleitoral bem competitiva.
Fato ainda mais importante quando as contribuições empresariais de campanha estão proibidas e quando os recursos do fundo eleitoral costumam ser comidos pelas candidaturas majoritárias. E quando o que sobra do fundo eleitoral para os candidatos proporcionais fica ao arbítrio do dono da legenda.
Uma consequência do paradoxal enfraquecimento das emendas para efeito de disciplinamento da base, apesar do gigantesco volume de recursos nisso empregado, é o acirramento da disputa por espaços na máquina, que havia arrefecido em algum grau no governo Bolsonaro. Mas compreende-se a relutância do governo em abrir espaços generosos para forças políticas que até outro dia estavam contra Luiz Inácio Lula da Silva e o PT.
Só que dois terços do Congresso Nacional habitam do centro para a direita.
Há ainda outro mecanismo algo eficaz para disciplinar bases legislativas: a ameaça potencial de o dono dos votos majoritários não apoiar o parlamentar, ou apoiar um concorrente na base dele. Mas esse mecanismo funcionava mais com Bolsonaro, pois a maioria do Congresso provinha de um eleitorado alinhado ou inclinado ao então presidente. Agora, a maioria dos parlamentares elegeram-se ou contra Lula ou correndo em raia independente.
O nó é complexo.
Pois não basta montá-la, ela precisa funcionar, especialmente na dificuldade. Exércitos devem saber desfilar, porém mais importante é lutar e vencer batalhas e guerras.
O objetivo de todo político é ampliar seu poder, ou no mínimo perenizar o existente. Deputados sonham com o Senado. Deputados e senadores sonham com governos estaduais e, por que não?, com a Presidência da República. Mas o programa mínimo de todo parlamentar é reeleger-se. Para isso precisa de apoio municipalista, pois nem o mais prestigiado dono de “voto de opinião” pode dispensar os estoques de eleitorado nas cidades.
Eleitorado que sempre mantém algum vínculo de clientela com prefeitos e vereadores, especialmente nas pequenas e médias.
Regra geral, o deputado vitorioso conseguiu eleger-se arrebanhando um bom naco dos votos na sua base eleitoral raiz, mas para chegar lá precisou do eleitor pulverizado em dezenas ou centenas de municípios.
As emendas parlamentares ao orçamento federal ajudam a cumprir esse papel. As últimas décadas vêm assistindo a uma certa depreciação moral do mecanismo junto à opinião pública, mas não tem jeito: nosso pork barrel é essencial para disciplinar o Parlamento. Porém ele só é eficaz quando funciona por uma lógica de premiação prioritária dos mais fiéis. Ser governo tem ônus, por isso é razoável que o governismo seja compensado com algum bônus.
Ser base de governo só faz sentido quando mais ajuda do que atrapalha a reproduzir o próprio poder. No caso específico das emendas parlamentares, é natural que os governistas tenham mais recursos orçamentários do que os oposicionistas para destinar às bases eleitorais. Mas, no Brasil acostumado ao achincalhamento do toma lá dá cá e à promoção de um pseudo-republicanismo hipócrita, é esperado que o Parlamento prefira ocultar isso.
O enfraquecimento quase terminal de Dilma Rousseff e Michel Temer e, na sequência, a luta de Jair Bolsonaro para chegar ao fim do mandato tiveram como efeito colateral a gigantesca anabolização das emendas parlamentares, pois o custo político de sobreviver na Presidência costuma crescer hiperbolicamente conforme se esvai o poder real do ocupante da cadeira. Disso tudo nasceu o teratoma da emenda de relator de muitos bilhões de reais.
Que para impacto jornalístico recebeu o rótulo de “orçamento secreto”. Para que o apoio congressual ao governo funcione, é sempre necessária uma porção “secreta” (não é pública a informação de que parlamentar destinou aquele recurso) no orçamento destinado às emendas. Mas a opinião pública tem dinâmicas próprias, e o assunto virou escândalo quando, em vez de alguns caraminguás, o montante chegou à casa dos dez dígitos.
Ao longo da campanha eleitoral, a oposição atacou o “orçamento secreto” com dois objetivos. Retomar para o eventual governo do PT o comando da discricionariedade na destinação do grosso das emendas parlamentares e emagrecer o mecanismo, para trazer de volta ao Executivo recursos destinados a investimento num orçamento federal grandemente engessado e amarrado a gastos obrigatórios de custeio.
Mas na hora de resolver o problema alguma coisa não saiu conforme o planejado, pois o resultado prático do acordo costurado após o STF “derrubar o orçamento secreto” 1) manteve o volume de dinheiro destinado a emendas parlamentares e 2) transformou boa parte da emenda de relator em emendas individuais, identificáveis, mas de execução obrigatória, pelo mecanismo chamado “orçamento impositivo”.
O produto da lambança é que todo deputado tem para 2023, no mínimo, mais de 30 milhões de reais para destinar às bases eleitorais, e cada senador tem mais quase 60 milhões. Independentemente de como votar ao longo destes quatro anos. Claro que quem votar com o governo vai poder destinar um tanto a mais, proveniente do orçamento próprio dos ministérios, mas a execução impositiva já garante ao parlamentar o colchão capaz de construir uma campanha eleitoral bem competitiva.
Fato ainda mais importante quando as contribuições empresariais de campanha estão proibidas e quando os recursos do fundo eleitoral costumam ser comidos pelas candidaturas majoritárias. E quando o que sobra do fundo eleitoral para os candidatos proporcionais fica ao arbítrio do dono da legenda.
Uma consequência do paradoxal enfraquecimento das emendas para efeito de disciplinamento da base, apesar do gigantesco volume de recursos nisso empregado, é o acirramento da disputa por espaços na máquina, que havia arrefecido em algum grau no governo Bolsonaro. Mas compreende-se a relutância do governo em abrir espaços generosos para forças políticas que até outro dia estavam contra Luiz Inácio Lula da Silva e o PT.
Só que dois terços do Congresso Nacional habitam do centro para a direita.
Há ainda outro mecanismo algo eficaz para disciplinar bases legislativas: a ameaça potencial de o dono dos votos majoritários não apoiar o parlamentar, ou apoiar um concorrente na base dele. Mas esse mecanismo funcionava mais com Bolsonaro, pois a maioria do Congresso provinha de um eleitorado alinhado ou inclinado ao então presidente. Agora, a maioria dos parlamentares elegeram-se ou contra Lula ou correndo em raia independente.
O nó é complexo.
sábado, 11 de março de 2023
A economia, a política e os candidatos a amigos
Os dados da inflação não vieram bons nesta semana, especialmente o que os economistas chamam de núcleo do índice, não tão vulnerável aos choques de um ou outro item. A taxa parece resiliente. Nuvens carregadas, que prenunciam turbulências econômicas e políticas. Mantidas as atuais metas inflacionárias, o Banco Central dificilmente afrouxará os juros, se é que não vai apertar. E é pule de dez que, nesse caso, o governo não ficará só reclamando pela imprensa.
A tática governamental, por enquanto, tem sido dar sinais de que vai caminhar com alguma responsabilidade fiscal, na expectativa de sensibilizar o mercado e influenciar positivamente as expectativas, criando assim as condições para o BC não ter outro caminho a não ser desapertar a corda no pescoço da economia. Na teoria, pode funcionar. O problema talvez sejam os fatos, sempre teimosos. Os últimos números da inflação enquadram-se nessa categoria.
Um fato é o juro real do Brasil ser líder no mundo. Outro fato é a inflação estar num patamar desconfortável para a autoridade da moeda, pois mesmo com o juro obeso as taxas caminham longe do atingimento da meta. Onde está o nó? A tarefa legal do BC é buscar a meta, mas o governo acha o alvo atual irrealista. Na teoria, não seria complicado resolver: o governo tem dois dos três votos do Conselho Monetário Nacional, pode subir a meta.
É possível que o Planalto esteja preparando terreno para fazer isso. E vem aí o projeto de uma nova âncora fiscal, para substituir o falecido teto de gastos. Por enquanto, revogou-se parcialmente a desoneração dos combustíveis e taxaram-se as exportações de petróleo, num esforço para aumentar as receitas e ajudar o resultado primário. Um sinal bem claro de que o governo não economizará esforços para arrecadar.
Ao mesmo tempo, não dá sinal de nenhum esforço para cortar gastos. O que tampouco deve provocar surpresa. A linha econômica em execução segue as convicções dos eleitos. É verdade que havia alguma fé em que a frente ampla para eleger Luiz Inácio Lula da Silva produziria, talvez por geração espontânea, um governo algo liberal e austero na economia. Neste caso a fé não parece, por enquanto, capaz de mover montanhas.
Tivesse maioria parlamentar confortável, o governo certamente partiria para uma reforma mais estrutural, acabando com a autonomia do BC. Sem isso, precisará ater-se ao seu próprio cercadinho, e é bom, portanto, ficar de olho numa eventual elevação da meta de inflação. O que traz o risco de mais deterioração de expectativas, e daí mais aperto vindo do BC. Só que, na prática, é o caminho hoje disponível para o governo agir sem depender do Parlamento.
Onde aliás o Executivo vive uma encruzilhada. Não tem uma maioria firme, nem goza de um potencial alinhamento programático, algo que sempre reduz o custo de manter uma base funcional. O governo é de esquerda e o Congresso inclina-se à direita. Na teoria, este poderia ser disciplinado com verbas e cargos, mas nem todo o estímulo material transformará bancadas eleitas em alinhamento com Jair Bolsonaro numa cidadela em defesa do programa do PT.
Lula, experiente, sabe que corre o risco de concessões maximalistas que produzam, no máximo, apoio congressual minimalista. E resiste. O risco para ele está em a desaceleração econômica, agravada pelo esforço do BC para conter a inflação, trazer uma corrosão de popularidade que empodere os hoje candidatos a amigos, inimigos até outro dia e que não teriam nenhuma dificuldade para voltar a ser.
A tática governamental, por enquanto, tem sido dar sinais de que vai caminhar com alguma responsabilidade fiscal, na expectativa de sensibilizar o mercado e influenciar positivamente as expectativas, criando assim as condições para o BC não ter outro caminho a não ser desapertar a corda no pescoço da economia. Na teoria, pode funcionar. O problema talvez sejam os fatos, sempre teimosos. Os últimos números da inflação enquadram-se nessa categoria.
Um fato é o juro real do Brasil ser líder no mundo. Outro fato é a inflação estar num patamar desconfortável para a autoridade da moeda, pois mesmo com o juro obeso as taxas caminham longe do atingimento da meta. Onde está o nó? A tarefa legal do BC é buscar a meta, mas o governo acha o alvo atual irrealista. Na teoria, não seria complicado resolver: o governo tem dois dos três votos do Conselho Monetário Nacional, pode subir a meta.
É possível que o Planalto esteja preparando terreno para fazer isso. E vem aí o projeto de uma nova âncora fiscal, para substituir o falecido teto de gastos. Por enquanto, revogou-se parcialmente a desoneração dos combustíveis e taxaram-se as exportações de petróleo, num esforço para aumentar as receitas e ajudar o resultado primário. Um sinal bem claro de que o governo não economizará esforços para arrecadar.
Ao mesmo tempo, não dá sinal de nenhum esforço para cortar gastos. O que tampouco deve provocar surpresa. A linha econômica em execução segue as convicções dos eleitos. É verdade que havia alguma fé em que a frente ampla para eleger Luiz Inácio Lula da Silva produziria, talvez por geração espontânea, um governo algo liberal e austero na economia. Neste caso a fé não parece, por enquanto, capaz de mover montanhas.
Tivesse maioria parlamentar confortável, o governo certamente partiria para uma reforma mais estrutural, acabando com a autonomia do BC. Sem isso, precisará ater-se ao seu próprio cercadinho, e é bom, portanto, ficar de olho numa eventual elevação da meta de inflação. O que traz o risco de mais deterioração de expectativas, e daí mais aperto vindo do BC. Só que, na prática, é o caminho hoje disponível para o governo agir sem depender do Parlamento.
Onde aliás o Executivo vive uma encruzilhada. Não tem uma maioria firme, nem goza de um potencial alinhamento programático, algo que sempre reduz o custo de manter uma base funcional. O governo é de esquerda e o Congresso inclina-se à direita. Na teoria, este poderia ser disciplinado com verbas e cargos, mas nem todo o estímulo material transformará bancadas eleitas em alinhamento com Jair Bolsonaro numa cidadela em defesa do programa do PT.
Lula, experiente, sabe que corre o risco de concessões maximalistas que produzam, no máximo, apoio congressual minimalista. E resiste. O risco para ele está em a desaceleração econômica, agravada pelo esforço do BC para conter a inflação, trazer uma corrosão de popularidade que empodere os hoje candidatos a amigos, inimigos até outro dia e que não teriam nenhuma dificuldade para voltar a ser.
sábado, 4 de março de 2023
Um olho na economia, outro no Congresso
A guerra das narrativas dá boa pista dos objetivos e táticas do governo neste 2023. Dada a premissa de um ano de baixo crescimento, mas de inflação algo resiliente, o Planalto já conseguiu alguma aderência à explicação de que a culpa será do Banco Central e de suas taxas de juros realmente estratosféricas.
A dúvida no momento são duas: 1) se ou quando o Executivo mandará seus votos demissíveis (Fazenda e Planejamento, dois dos três membros do Conselho Monetário Nacional; o outro é o BC) subir a meta de inflação; e 2) se ou quando Luiz Inácio Lula da Silva enviará ao Congresso proposta acabando com a autonomia do BC.
Pois apontar culpados funciona durante algum tempo, mas, no limite, governos são eleitos para resolver problemas. Um problema, paradoxalmente, é medidas como as acima terem potencial para provocar deterioração de expectativas, e o resultado prático acabar neutralizando as intenções. É uma encruzilhada.
Uma vantagem de Lula: outra eleição presidencial, só daqui a quase quatro anos. Se tiver boa base congressual, pode perfeitamente atravessar um eventual vale de popularidade e esperar pela subida do morro. Em condições muito piores, Jair Bolsonaro viu a recuperação pós-pandemia turbinar seu desempenho em 2022.
Para atravessar, entretanto, Lula precisa manter sólida a base social que lhe deu um terceiro mandato e sustentar a disputa nos demais grupos. No momento, as pesquisas mostram os cerca de 40% que votaram nele no segundo turno felizes com o governo, e pelo menos metade do resto (quem votou em Bolsonaro ou não apertou nem 13 nem 22) lhe dando algum crédito.
No ambiente de profunda divisão política na sociedade, não chega a ser ruim. Mas está longe de repetir os cenários da louvação pós-posse em 2003 ou da consagração ao final do segundo mandato, em 2010. A sociedade hoje está em disputa. A direita está viva, nas duas vertentes. Apenas espera a oportunidade.
Pois as mesmas pesquisas mostram que dois em cada dez brasileiros concordam com as reivindicações dos manifestantes de 8 de janeiro, e, incrivelmente, um em cada dez concorda com os métodos utilizados por eles. Em caso de mudança no humor coletivo, é uma massa crítica disponível para alavancar movimentos.
De um lado, o governo trabalha para administrar esse humor e conta com a capacidade comunicacional do presidente. Mas o restrospecto recomenda que também tenha cuidado com o Congresso, onde sua base é mais fluida do que seria prudente. A pressão do momento é sobre o União Brasil.
O Planalto avalia que o custo-benefício de dar três ministérios à legenda não está sendo bom. A pressão serve para esquentar a chapa sob o partido, mas também para mandar um recado aos demais integrantes da base não propriamente programático-ideológica do governo.
Mas, se o sentimento der uma piorada, quem vai crescer na relação será o Parlamento, pois o estímulo a apoiar o governo é função de duas variáveis: há as vantagens materiais aos congressistas, mas se o eleitor estiver ressabiado o parlamentar acaba sentindo sua base eleitoral mais vulnerável à concorrência.
A dúvida no momento são duas: 1) se ou quando o Executivo mandará seus votos demissíveis (Fazenda e Planejamento, dois dos três membros do Conselho Monetário Nacional; o outro é o BC) subir a meta de inflação; e 2) se ou quando Luiz Inácio Lula da Silva enviará ao Congresso proposta acabando com a autonomia do BC.
Pois apontar culpados funciona durante algum tempo, mas, no limite, governos são eleitos para resolver problemas. Um problema, paradoxalmente, é medidas como as acima terem potencial para provocar deterioração de expectativas, e o resultado prático acabar neutralizando as intenções. É uma encruzilhada.
Uma vantagem de Lula: outra eleição presidencial, só daqui a quase quatro anos. Se tiver boa base congressual, pode perfeitamente atravessar um eventual vale de popularidade e esperar pela subida do morro. Em condições muito piores, Jair Bolsonaro viu a recuperação pós-pandemia turbinar seu desempenho em 2022.
Para atravessar, entretanto, Lula precisa manter sólida a base social que lhe deu um terceiro mandato e sustentar a disputa nos demais grupos. No momento, as pesquisas mostram os cerca de 40% que votaram nele no segundo turno felizes com o governo, e pelo menos metade do resto (quem votou em Bolsonaro ou não apertou nem 13 nem 22) lhe dando algum crédito.
No ambiente de profunda divisão política na sociedade, não chega a ser ruim. Mas está longe de repetir os cenários da louvação pós-posse em 2003 ou da consagração ao final do segundo mandato, em 2010. A sociedade hoje está em disputa. A direita está viva, nas duas vertentes. Apenas espera a oportunidade.
Pois as mesmas pesquisas mostram que dois em cada dez brasileiros concordam com as reivindicações dos manifestantes de 8 de janeiro, e, incrivelmente, um em cada dez concorda com os métodos utilizados por eles. Em caso de mudança no humor coletivo, é uma massa crítica disponível para alavancar movimentos.
De um lado, o governo trabalha para administrar esse humor e conta com a capacidade comunicacional do presidente. Mas o restrospecto recomenda que também tenha cuidado com o Congresso, onde sua base é mais fluida do que seria prudente. A pressão do momento é sobre o União Brasil.
O Planalto avalia que o custo-benefício de dar três ministérios à legenda não está sendo bom. A pressão serve para esquentar a chapa sob o partido, mas também para mandar um recado aos demais integrantes da base não propriamente programático-ideológica do governo.
Mas, se o sentimento der uma piorada, quem vai crescer na relação será o Parlamento, pois o estímulo a apoiar o governo é função de duas variáveis: há as vantagens materiais aos congressistas, mas se o eleitor estiver ressabiado o parlamentar acaba sentindo sua base eleitoral mais vulnerável à concorrência.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023
Falta combinar com os americanos
O título faz evidentemente referência ao célebre diálogo entre Garrincha e o treinador Vicente Feola antes do jogo contra a URSS na Copa de 1958. O técnico explicava, em detalhes, como seria a partida, e daí o Mané (com maiúscula) disse que o roteiro era muito bom, mas questionou se Feola já tinha combinado com os russos.
A diplomacia brasileira parece empenhada num jogo aparentemente inteligente: aproximar-se dos Estados Unidos no delicado tema da guerra da Ucrânia para, em troca, manter o essencial da liberdade de movimentos entre o Brasil e seu principal parceiro econômico, a China.
Isso implica algum sofrimento nas relações com a Rússia, mas Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty parecem ter avaliado como positiva a relação custo-benefício. Não se faz mesmo omelete sem quebrar ovos.
Entretanto, quando a esperteza é muita sempre pode virar bicho e comer o dono, e daí a malícia brasileira corre o risco de esbarrar num obstáculo: o alinhamento dos EUA e seus aliados do Norte global contra a Rússia é apenas estação intermediária na projeção da guerra principal deles contra a China.
Guerra que por enquanto se dá principalmente no campo econômico, com todo tipo de sanções, mas ensaia transbordar para outras esferas.
A aproximação entre Brasil e Estados Unidos anda facilitada pela semelhança da agenda sócio-comportamental-ambiental dos dois governos e pelo apoio, informal mas consistente, da administração Joe Biden a Luiz Inácio Lula da Silva na eleição do ano passado.
O ambiente amistoso e o amplo consenso programático na visita do brasileiro à Casa Branca não deixaram dúvidas.
Vivemos agora tempos muito diferentes de quando a então presidente Dilma Rousseff soube que tinha sido espionada pela administração Barack Obama, de quem Biden era vice. Disputando a reeleição, Dilma houve por bem cancelar uma prestigiosa “visita de estado” aos americanos.
Eram também tempos em que a digital estadunidense apareceu na Operação Lava-Jato. O que acirrou, compreensivelmente, o antiamericanismo dentro do Partido dos Trabalhadores. Mas nada resiste à passagem do tempo e aos interesses. E agora o cenário mudou.
O problema para o Brasil é o buraco estar mais embaixo. A disputa entre a unipolaridade e a multipolaridade não leva jeito de atenuar.
Será interessante acompanhar a evolução desse desfile, para ver como a nova linha se encaixa no enquadramento brasileiro aos Brics. Que aliás estão em fase de ampliação. Na composição atual, o Brasil é o único do grupo a mostrar simpatia pela tríade EUA-OTAN-UE no tema ucraniano.
O Itamaraty desencadeou uma de suas habituais operações “votamos nisso na ONU, mas não era bem nisso que queríamos votar”. Esforça-se para justificar um certo neo-atlantismo pelo viés da tradicional busca brasileira por soluções pacíficas e negociadas para os conflitos. Os fatos, sempre teimosos, trarão o resultado.
E há sempre a possibilidade de os diversos interlocutores chegarem à conclusão de que o Brasil tem relevância apenas relativa em escala planetária, que a movimentação brasileira se deve a um apetite de protagonismo não sustentado materialmente. E que, portanto, talvez não valha a pena arrumar confusão conosco.
Quem sabe seja uma solução.
A diplomacia brasileira parece empenhada num jogo aparentemente inteligente: aproximar-se dos Estados Unidos no delicado tema da guerra da Ucrânia para, em troca, manter o essencial da liberdade de movimentos entre o Brasil e seu principal parceiro econômico, a China.
Isso implica algum sofrimento nas relações com a Rússia, mas Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty parecem ter avaliado como positiva a relação custo-benefício. Não se faz mesmo omelete sem quebrar ovos.
Entretanto, quando a esperteza é muita sempre pode virar bicho e comer o dono, e daí a malícia brasileira corre o risco de esbarrar num obstáculo: o alinhamento dos EUA e seus aliados do Norte global contra a Rússia é apenas estação intermediária na projeção da guerra principal deles contra a China.
Guerra que por enquanto se dá principalmente no campo econômico, com todo tipo de sanções, mas ensaia transbordar para outras esferas.
A aproximação entre Brasil e Estados Unidos anda facilitada pela semelhança da agenda sócio-comportamental-ambiental dos dois governos e pelo apoio, informal mas consistente, da administração Joe Biden a Luiz Inácio Lula da Silva na eleição do ano passado.
O ambiente amistoso e o amplo consenso programático na visita do brasileiro à Casa Branca não deixaram dúvidas.
Vivemos agora tempos muito diferentes de quando a então presidente Dilma Rousseff soube que tinha sido espionada pela administração Barack Obama, de quem Biden era vice. Disputando a reeleição, Dilma houve por bem cancelar uma prestigiosa “visita de estado” aos americanos.
Eram também tempos em que a digital estadunidense apareceu na Operação Lava-Jato. O que acirrou, compreensivelmente, o antiamericanismo dentro do Partido dos Trabalhadores. Mas nada resiste à passagem do tempo e aos interesses. E agora o cenário mudou.
O problema para o Brasil é o buraco estar mais embaixo. A disputa entre a unipolaridade e a multipolaridade não leva jeito de atenuar.
Será interessante acompanhar a evolução desse desfile, para ver como a nova linha se encaixa no enquadramento brasileiro aos Brics. Que aliás estão em fase de ampliação. Na composição atual, o Brasil é o único do grupo a mostrar simpatia pela tríade EUA-OTAN-UE no tema ucraniano.
O Itamaraty desencadeou uma de suas habituais operações “votamos nisso na ONU, mas não era bem nisso que queríamos votar”. Esforça-se para justificar um certo neo-atlantismo pelo viés da tradicional busca brasileira por soluções pacíficas e negociadas para os conflitos. Os fatos, sempre teimosos, trarão o resultado.
E há sempre a possibilidade de os diversos interlocutores chegarem à conclusão de que o Brasil tem relevância apenas relativa em escala planetária, que a movimentação brasileira se deve a um apetite de protagonismo não sustentado materialmente. E que, portanto, talvez não valha a pena arrumar confusão conosco.
Quem sabe seja uma solução.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
O peso da História
Um paradoxo assombra a política e a análise política. Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores elegeram-se porque conseguiram atrair por gravidade o apoio de um segmento minoritário da direita não bolsonarista. Um setor que participara ativamente da ofensiva antilulista e antipetista no dito mensalão, na Lava-Jato, no impeachment de Dilma Rousseff e na inelegibilidade e prisão de Lula.
Decorre também desse paradoxo o cenário curioso, mas analiticamente bem decifrável, em que Lula está obrigado a fazer um governo de coalizão com o “centro”, pois não detém maioria parlamentar própria, está longe disso, enquanto busca a todo momento e em todos os terrenos fortalecer seu campo político, programática e organicamente, e enfraquecer esse centro.
Tem lógica, mas é uma linha algo diferente da do outro presidente Lula, aquele do passado.
Todo líder e grupo político buscam o poder. Se estão nele, a preocupação central é como mantê-lo. No caso de Lula e do PT, o cálculo delicado parece buscar o ponto ótimo em que a direita centrista estará com o governo para evitar sua queda, mas não ficará forte o suficiente para nutrir realisticamente ambições próprias. Ou, pior, voltar a flertar com o bolsonarismo que apoiou em 2018.
Enquanto oferece recompensas a esse grupo, ou conjunto de grupos, precisa também submetê-lo. É o que no PT se chama de “fazer a disputa”. No momento, Lula e o PT não estão “fazendo a disputa” somente contra Jair Bolsonaro, que afinal continua sendo o dono da esmagadora maioria do voto antipetista, mas também, e talvez principalmente, contra os companheiros ocasionais de viagem.
No passado, houve momentos em que Lula pareceu atraído pela possibilidade de as alianças táticas ganharem caráter estratégico. Entre 1989 e 1994, PT e PSDB foram partidos quase irmãos, ou pelo menos primos, nutridos ambos na luta contra o que se chamava de “corrupção e fisiologismo” da Nova República. O namoro acabou quando Fernando Henrique Cardoso se juntou ao PFL (hoje União Brasil) para derrotar Lula.
Depois, ao longo de seus 14 anos no Planalto, Lula pareceu progressivamente atraído pela possibilidade de uma união estável com o "centro democrático". O momento-chave foi quando buscou uma aliança com o então PMDB de Michel Temer na eleição da presidência da Câmara dos Deputados em 2007, o que abriu caminho para Temer ser o vice de Dilma em 2010. O mesmo Temer que viraria o pivô da deposição dela em 2016.
É verdade que em algum momento parte do PT calculou ser melhor para o futuro do partido a abreviação do governo Dilma. Outra verdade: na véspera do desfecho, Lula buscou os velhos aliados do MDB com um apelo dramático pela permanência de Dilma, mas bateu num muro de gelo. Ali já estava em pleno trabalho de parto o projeto de poder da aliança PMDB-PSDB.
Que depois foi atropelado pela revolução bolsonarista com quem o centro se abraçara em 2015-16.
A eleição de 2022 e os fatos recentes vêm ressuscitando o discurso da “frente ampla em defesa da democracia”, graças também à ajuda de Bolsonaro. Mas essa tentativa de repetição da história traz boa dose de artificialidade, pois, se é verdade que o PT nunca fez a autocrítica que os adversários lhe exigiram, também é fato que, no olhar de Lula e do PT, os hoje aliados são os mesmos que ontem os esfaquearam.
A História pesa.
Decorre também desse paradoxo o cenário curioso, mas analiticamente bem decifrável, em que Lula está obrigado a fazer um governo de coalizão com o “centro”, pois não detém maioria parlamentar própria, está longe disso, enquanto busca a todo momento e em todos os terrenos fortalecer seu campo político, programática e organicamente, e enfraquecer esse centro.
Tem lógica, mas é uma linha algo diferente da do outro presidente Lula, aquele do passado.
Todo líder e grupo político buscam o poder. Se estão nele, a preocupação central é como mantê-lo. No caso de Lula e do PT, o cálculo delicado parece buscar o ponto ótimo em que a direita centrista estará com o governo para evitar sua queda, mas não ficará forte o suficiente para nutrir realisticamente ambições próprias. Ou, pior, voltar a flertar com o bolsonarismo que apoiou em 2018.
Enquanto oferece recompensas a esse grupo, ou conjunto de grupos, precisa também submetê-lo. É o que no PT se chama de “fazer a disputa”. No momento, Lula e o PT não estão “fazendo a disputa” somente contra Jair Bolsonaro, que afinal continua sendo o dono da esmagadora maioria do voto antipetista, mas também, e talvez principalmente, contra os companheiros ocasionais de viagem.
No passado, houve momentos em que Lula pareceu atraído pela possibilidade de as alianças táticas ganharem caráter estratégico. Entre 1989 e 1994, PT e PSDB foram partidos quase irmãos, ou pelo menos primos, nutridos ambos na luta contra o que se chamava de “corrupção e fisiologismo” da Nova República. O namoro acabou quando Fernando Henrique Cardoso se juntou ao PFL (hoje União Brasil) para derrotar Lula.
Depois, ao longo de seus 14 anos no Planalto, Lula pareceu progressivamente atraído pela possibilidade de uma união estável com o "centro democrático". O momento-chave foi quando buscou uma aliança com o então PMDB de Michel Temer na eleição da presidência da Câmara dos Deputados em 2007, o que abriu caminho para Temer ser o vice de Dilma em 2010. O mesmo Temer que viraria o pivô da deposição dela em 2016.
É verdade que em algum momento parte do PT calculou ser melhor para o futuro do partido a abreviação do governo Dilma. Outra verdade: na véspera do desfecho, Lula buscou os velhos aliados do MDB com um apelo dramático pela permanência de Dilma, mas bateu num muro de gelo. Ali já estava em pleno trabalho de parto o projeto de poder da aliança PMDB-PSDB.
Que depois foi atropelado pela revolução bolsonarista com quem o centro se abraçara em 2015-16.
A eleição de 2022 e os fatos recentes vêm ressuscitando o discurso da “frente ampla em defesa da democracia”, graças também à ajuda de Bolsonaro. Mas essa tentativa de repetição da história traz boa dose de artificialidade, pois, se é verdade que o PT nunca fez a autocrítica que os adversários lhe exigiram, também é fato que, no olhar de Lula e do PT, os hoje aliados são os mesmos que ontem os esfaquearam.
A História pesa.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023
A quimera e a cor do gato
O governo ultrapassou seu primeiro obstáculo significativo ao vencer as eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Não garantiu ali, é verdade, um alinhamento automático, visto que os parlamentares estão amparados na solução político-jurídica alcançada para as emendas de relator. Mesmo quem decidir passar os quatro anos na oposição terá garantido um volume confortável de recursos para as bases eleitorais.
Mas, com a vitória, o Palácio do Planalto evitou a criação de um foco de turbulência e um ponto de apoio à atividade institucional da oposição. Arquimedes já dizia que com um ponto de apoio pode-se mover o mundo. Sem isso, a oposição continua ilhada num nicho desconfortável, marcado pelas circunstâncias do 8 de Janeiro e sob a sombra da figura dominante do ex-presidente, popular, mas politicamente imobilizado, ou quase.
As vitórias no Congresso, entretanto, se evitam turbulências adicionais prematuras, não alteram o quadro estratégico. O governo eleito ano passado precisa navegar em meio a 1) um Legislativo de maioria conservadora; 2) um Judiciário onipresente e onipotente; e 3) Forças Armadas ressabiadas. Daí que o presidente da República não possa se dar ao luxo de perder popularidade. E daí a importância da economia no curto/médio prazo.
Os sinais são contraditórios. O real está ganhando terreno junto ao dólar, o que vai ajudar a conter a inflação, oferecendo argumentos ao Executivo na queda de braço com o Banco Central em torno da nossa exuberante taxa real de juros. Mas, e se o avanço do real decorrer, principalmente, do belo prêmio oferecido a quem investe em títulos do Tesouro? Nesta hipótese, estaríamos retornando à armadilha da âncora cambial.
Que segura a inflação, mas também o crescimento.
E como ficariam, nesse cenário, os sonhos de reindustrialização? Complicado. Outro fator de complicação: a atividade e o emprego ensaiam alguma perda de fôlego, até pela defensiva empresarial. Num cenário de juros reais apetitosos e perspectiva de aumento da carga tributária (aparentemente, o caminho que o governo escolheu para burilar a reputação de disciplinado fiscal), é natural que as empresas cuidem antes de tudo do caixa.
Não se ouve falar em grandes planos de investimento.
O risco político para o governo Luiz Inácio Lula da Silva está na economia. A dupla Jair Bolsonaro/Paulo Guedes passou o bastão com um crescimento de 3% do PIB em 2022 e desemprego caindo de 12% para 8%. O alarido em torno do 8 de Janeiro, e adjacências, preenche o noticiário, mas não põe comida na mesa. Por isso, será saudável politicamente que a nova administração cuide de ao menos manter o ritmo da recuperação econômica.
Até agora, sabe-se que o governo quer promover uma reforma tributária, vai jogar todos os esforços nisso. Quer aproveitar o acúmulo congressual a respeito para avançar na busca de mais justiça social, por meio de impostos. É um compromisso de campanha. Mas falta saber que medidas o governo adotará para estimular o investimento privado, sem o que qualquer expectativa de crescer e criar empregos é quimera.
Parafraseando Deng Xiaoping, a discussão econômica tem girado em torno da cor do gato, sem que se tenha muita informação sobre como ele vai caçar os ratos.
Mas, com a vitória, o Palácio do Planalto evitou a criação de um foco de turbulência e um ponto de apoio à atividade institucional da oposição. Arquimedes já dizia que com um ponto de apoio pode-se mover o mundo. Sem isso, a oposição continua ilhada num nicho desconfortável, marcado pelas circunstâncias do 8 de Janeiro e sob a sombra da figura dominante do ex-presidente, popular, mas politicamente imobilizado, ou quase.
As vitórias no Congresso, entretanto, se evitam turbulências adicionais prematuras, não alteram o quadro estratégico. O governo eleito ano passado precisa navegar em meio a 1) um Legislativo de maioria conservadora; 2) um Judiciário onipresente e onipotente; e 3) Forças Armadas ressabiadas. Daí que o presidente da República não possa se dar ao luxo de perder popularidade. E daí a importância da economia no curto/médio prazo.
Os sinais são contraditórios. O real está ganhando terreno junto ao dólar, o que vai ajudar a conter a inflação, oferecendo argumentos ao Executivo na queda de braço com o Banco Central em torno da nossa exuberante taxa real de juros. Mas, e se o avanço do real decorrer, principalmente, do belo prêmio oferecido a quem investe em títulos do Tesouro? Nesta hipótese, estaríamos retornando à armadilha da âncora cambial.
Que segura a inflação, mas também o crescimento.
E como ficariam, nesse cenário, os sonhos de reindustrialização? Complicado. Outro fator de complicação: a atividade e o emprego ensaiam alguma perda de fôlego, até pela defensiva empresarial. Num cenário de juros reais apetitosos e perspectiva de aumento da carga tributária (aparentemente, o caminho que o governo escolheu para burilar a reputação de disciplinado fiscal), é natural que as empresas cuidem antes de tudo do caixa.
Não se ouve falar em grandes planos de investimento.
O risco político para o governo Luiz Inácio Lula da Silva está na economia. A dupla Jair Bolsonaro/Paulo Guedes passou o bastão com um crescimento de 3% do PIB em 2022 e desemprego caindo de 12% para 8%. O alarido em torno do 8 de Janeiro, e adjacências, preenche o noticiário, mas não põe comida na mesa. Por isso, será saudável politicamente que a nova administração cuide de ao menos manter o ritmo da recuperação econômica.
Até agora, sabe-se que o governo quer promover uma reforma tributária, vai jogar todos os esforços nisso. Quer aproveitar o acúmulo congressual a respeito para avançar na busca de mais justiça social, por meio de impostos. É um compromisso de campanha. Mas falta saber que medidas o governo adotará para estimular o investimento privado, sem o que qualquer expectativa de crescer e criar empregos é quimera.
Parafraseando Deng Xiaoping, a discussão econômica tem girado em torno da cor do gato, sem que se tenha muita informação sobre como ele vai caçar os ratos.
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