sábado, 16 de dezembro de 2023

A política prevalece

Há uma tendência a afirmar que a sociedade brasileira está polarizada ideologicamente, e isso é verdade em certo grau. Mas a tese não ajuda a desvendar completamente os fenômenos políticos. Seria mais adequado dizer que, mesmo havendo polarização ideológica, a política prevalece. Enquanto a primeira se define por visões de mundo opostas, especialmente no plano das ideias, a segunda separa campos em plano mais terreno, material.

Não deixa de haver conexão entre as duas formas de determinação, mas seria um erro não compreender a autonomia relativa de cada uma.

Um exemplo claro foram as votações desta semana no Congresso Nacional. A oposição ligada ao ex-presidente Jair Bolsonaro apostou na polarização ideológica para tentar evitar que o Senado aprovasse Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal. Perdeu. Mas, logo depois, quem perdeu foi o governo petista, quando o Congresso derrubou os vetos presidenciais à lei do marco temporal e à prorrogação das desonerações sobre a folha de pagamento das empresas.

Sempre persiste a tentação de acreditar que, no limite, este Congresso Nacional faz o que desejam os personagens e grupos que comandam o Legislativo. Ou que aprova qualquer coisa, desde que o governo atenda o apetite dos parlamentares por verbas e cargos. Há uma dose de verdade nisso, mas é errado pensar em termos absolutos. No limite, mesmo tendo flexibilidade, costuma ser alto o custo de o parlamentar bater de frente com quem o elegeu.

Recente encontro de dirigentes petistas manifestou desconforto com o governo depender de uma maioria parlamentar inclinada à direita, até por, segundo o petismo, as eleições terem aprovado outra agenda. Há aí um acerto e um erro. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva depende mesmo de parlamentares eleitos em aliança com Bolsonaro, mas seria exagero afirmar que as eleições aprovaram uma agenda petista.

A eleição presidencial foi, em última instância, um plebiscito sobre a pessoa de Bolsonaro, e ele perdeu.

A aprovação de Dino e a derrubada dos vetos sobre o marco temporal e as desonerações mostram que, dentro de certos limites, o Congresso pode até absorver escolhas ideológicas de Lula e do PT, mas opõe e oporá resistência a uma agenda, para recorrer à terminologia “faria limer", anti-business. Pela simples razão de que a maioria do Poder Legislativo é francamente adepta de um ecossistema com mais liberdade para o capital buscar sua reprodução.

Pelo ângulo pragmático, talvez isso não chegue a ser problema para Lula. Pode constituir até uma solução. já que ali na frente, no fritar dos ovos, o povão vai querer saber principalmente se Lula 3 entregou crescimento e empregos. E para operar esse milagre da multiplicação dos pães o presidente precisa que os capitalistas invistam, pois não há como o Estado brasileiro substituí-los. Ainda que muitos fiéis acreditem nisso.

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Fechamos por aqui este ano de 2023. Boas Festas e um ótimo 2024 a todo mundo.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Princípios vencidos

A política costuma montar armadilhas para os políticos, lato sensu, que constroem a trajetória com base em princípios absolutos. Em algum momento, geralmente quando o político ou seu grupo ascendem a posições de poder, esses princípios são capturados no redemoinho das disputas políticas, e o princípio antes férreo acaba pintado com as cores da seletividade e da hipocrisia.

Esse roteiro é especialmente frequente entre os autoproclamados defensores dos direitos humanos. E do estado de direito. Nesses casos, é sempre útil fazer o teste definitivo. Quando estiver diante de um defensor dos direitos humanos, ou do devido processo legal, verifique se ele os defende também para os inimigos, e não apenas para os aliados.

Se o teste der negativo, você estará diante de um produto vencido.

Mas nem todo produto vencido está estragado. Mesmo ao custo de ver desvestida a hipocrisia, mesmo a nudez do rei estando visível, o estratagema pode perfeitamente funcionar. Acontece quando a hipocrisia e a seletividade entram em consonância com os desejos, ódios ou preconceitos das massas, e essas deformidades do espírito transformam-se em força material.

O mecanismo tem aplicabilidade quase universal. Na política externa, quando interessa, invoca-se o direito das nações à autodeterminação. Em outros casos, prevalece a exigência externa de que o país siga religiosamente os direitos humanos e certos modelos de democracia preestabelecidos.

Outro princípio é a exigência da solução pacífica dos conflitos. Mais um teste que nunca falha. Quando o político levanta a justa bandeira da paz, verifique se ele faz isso também quando o lado que ele apoia numa guerra está em vantagem, quando existe a possibilidade real de o conflito ser resolvido favoravelmente pela força das armas.

Nesses casos, o mais comum é o pacifista indignado transmutar-se rapidamente em defensor do direito à autodefesa, ou à rebelião.

Mas tudo tem um outro lado. A hipocrisia e a seletividade características da política abrem o mercado de oportunidades para os grilos falantes que se dedicam a exigir coerência. Para o que foi dito ontem continuar valendo hoje. E estará completo o elenco do teatro político. Mesmo os espetáculos de qualidade duvidosa atrairão público.

E estará garantido o meio de vida dos profissionais do ramo.

Quando é que o equilíbrio entra em risco? Uma situação clássica é quando a vida das massas se deteriora e o governante, de tantas máscaras vestidas e desvestidas, de tanto dizer algo e seu contrário, torna-se um desconhecido grotesco e perde a condição de liderar. Outra é quando alterações ambientais provocam o extermínio em massa dos grilos falantes.

Sempre uma tentação para o poder.

A combinação das duas circunstâncias costuma ser fatal. Aí aparecem os relâmpagos em céu azul, e tudo que é sólido se desmancha no ar.