segunda-feira, 27 de maio de 2019

A batalha morro acima dos nutellas para reabilitar o presidencialismo de coalizão

A conjuntura anda meio paradoxal. O governo começou a contornar a ameaça de as medidas provisórias no Congresso caducarem, o dito centrão não se mostrou tão coeso assim, ficou evidente que a cúpula do Congresso tem poucas saídas além de tocar a pauta econômica governamental, etc. Não fosse uma entrevista atrapalhada do ministro da Economia, Paulo Guedes, a coisa teria transcorrido em certa paz. Mas permanece uma tensão política resiliente.

E a tensão tem características originais. Não é entre governo e oposição. É disputa essencialmente dentro do bloco político-social que elegeu Jair Bolsonaro com 46% no primeiro turno e 55% no segundo. Usando aqui livremente a linguagem algumas vezes bem-humorada das redes sociais, é uma luta entre o bolsonarismo raiz e o nutella para decidir quem vai mandar no governo. Hoje, domingo, o primeiro foi às ruas e mostrou disposição de combate.

Como a esquerda havia mostrado dia 15. Mas a esquerda está completamente fora do jogo, lançada à defensiva estratégica. É improvável que apoie os nutellas contra os raiz. Muito menos o inverso. E domingo ficou claro que estes últimos não se recolheram. Colocaram na rua menos gente que a esquerda? Mas a comparação talvez seja outra. Quem sairia de casa para defender a reabilitação do presidencialismo de coalizão? Quem levantaria uma faixa “governabilidade já!”?

Esse é um problema do bloco que reúne os saudosos da hegemonia do agora Novo PSDB de João Doria, o bolsonarismo arrependido, o bolsonarismo escanteado no governo e o dito centrão: se essa aliança informal mostra musculatura na opinião pública, falta-lhe povo. Também porque não é sexy exigir que o presidente da República ofereça cargos em troca de apoio congressual ou defender que o Judiciário seja um freio ao poder do Bonaparte.

A luta para reabilitar o presidencialismo de coalizão na preferência popular é inglória, pois rema contra uma lavagem cerebral de anos, para não dizer décadas. A reabilitação não é impossível, mas depende principalmente de o governo fracassar na economia e, junto com isso, a base bolsonarista concluir que a culpa foi do próprio Bolsonaro, por não ter seguido os trâmites tradicionais da política. Depende também de romper a aliança Bolsonaro-Guedes-Sérgio Moro.

Daí o Congresso e o dito centrão estarem numa sinuca de bico. Têm duas armas possíveis para emparedar o governo: sabotar a agenda econômica e ameaçar com o impeachment. Para a segunda, falta-lhes rua. Contra a primeira, há o risco real de o tiro sair pela culatra: em vez de emparedarem, serem emparedados pela base bolsonarista. Não lhes resta por enquanto, além do choro e ranger de dentes, outra saída senão comparecer e votar.

É um jogo arriscado para o governo? Em algum grau sim. As atribulações da família presidencial oferecem um potencial de oportunidade para o Legislativo explorar o “efeito Tim Maia”, o “me dê motivo”. Uma dificuldade do Congresso: para derrubar o presidente é preciso achar (ou fabricar) algo contra o próprio presidente. E sempre é bom lembrar: este não pode ser investigado por fatos anteriores ao início do mandato dele na Presidência. Está na lei e na jurisprudência recente.

Claro que tudo pode mudar, e o constitucionalismo iluminista-criativo está aí para isso mesmo. Mas golpes exigem povo, e até agora não está claro quem poderia fornecer. A esquerda e o petismo sairiam às ruas para apoiar a assunção do vice Hamilton Mourão? Por enquanto improvável. A esquerda pode não ter lido o 18 Brumário, talvez ocupada demais com as pautas do marxismo cultural, mas sabe que a tragédia pode se repetir como comédia, ou “farsa”.

Da última vez em que topou isso, abriu espaço para uma década de governos tucanos em aliança com o centrão. E as forças hoje em luta interna contra o bolsonarismo raiz estiveram na linha de frente das ações pela derrubada do último governo petista. É tudo muito recente. Seria mais natural portanto adotar a tática de observar a disputa intestina no adversário. Ainda que a questão não esteja tão pacificada assim na oposição, com uma parte estudando posições mais, digamos, pragmáticas.

Pois a esquerda governa estados e municípios que precisam de dinheiro.

E o que o "centro" em busca da ressurreição teria a oferecer à esquerda? Eleições antecipadas? A liberdade e a elegibilidade de Lula? Um governo de caráter provisório que reabrisse o debate da agenda econômica? A rediscussão dos mecanismos de financiamento do movimento sindical? Um freio na Lava-Jato?

A conclusão é imediata: a turma que sonha com um bolsonarismo sem Bolsonaro não tem por enquanto garrafas suficientes para entregar.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Bolsonaro tenta fazer o que imploraram a ele. Não ceder ao Congresso. A lógica disso e os riscos

Aqui e ali ouvem-se lamentos pelo desprestígio da dita arte da articulação política. Ou da habilidade política, na versão miniaturizada. Mas até os cachorros do Pavlov aprenderam a salivar conforme os estímulos certos, e é compreensível o presidente desconfiar da receita clássica.

Dos dois governantes recentes experts em articulação política, um já completou o primeiro aniversário na prisão e o outro anda num entra e sai. Atenção: não discuto a justeza dos castigos impostos a Lula e Temer. Apenas constato. E na política discutir se as coisas são justas ou não talvez seja desperdício de tempo.

Tanto pediram que aconteceu. O bonapartismo de Bolsonaro é produto de três décadas de esculacho e achincalhe da (articulação) política. Começou logo depois do fim dos governos militares. Quando José Sarney lutava por votos que evitassem ele ser deposto na Constituinte, o sarneyzista Roberto Cardoso Alves explicou: “É dando que se recebe”.

A política é assim desde que o mundo é mundo, e em qualquer lugar do mundo, mas foi a senha para o Robertão virar alvo dos milicianos recrutados pela opinião pública, na cruzada contra o pecado mortal rotulado de fisiologismo. E desde então pede-se ao presidente da hora que governe sem os políticos.

Ou contra eles.

E a coisa veio vindo assim, aos trancos e barrancos, até a Lava-Jato aparecer para pescar nesse tanque. Quando toda contribuição eleitoral, declarada ou não, fica suspeita se o beneficiado defende algum interesse do doador, a consequência é o Ministério Público divertir-se num pesque-e-pague em que os peixes são os políticos.

Mas também isso é produto de um trabalho sistemático e continuado de anos. O eleito defender interesses de quem o ajudou com dinheiro na campanha virou com o tempo grave violação ética. E aí, naturalmente, o financiamento eleitoral deslizou para as sombras e a clandestinidade.

A clandestinidade é um caldo de cultura ótimo para o crime. E aconteceu. Os operadores clandestinos de recursos eleitorais passaram a querer, e pegar, um naco do negócio. E aí todo o sistema político foi contaminado e ficou vulnerável para valer.

E chegou a recessão de 2015, e foi dito ao povo que dinheiro tinha, mas infelizmente estava sendo desviado pela corrupção e pelo desperdício. No Brasil tem muito dos dois, mas se ambos desaparecessem instantaneamente o problema fiscal continuaria praticamente do mesmo tamanho.

Mas vá você argumentar. Depois de anos de lavagem cerebral, o Brasil está convencido: um governo que não roube será capaz de prover serviços púbicos de qualidade e manter as contas organizadas, algo essencial para o desenvolvimento. E isso sem aumentar impostos.

Então, dada a situação econômica ruim -e provavelmente vai piorar, antes de talvez melhorar-, se o presidente deixar-se enredar numa teia política e for acusado de ser o responsável pelo sofrimento do povo, por ter cedido à velha política, sua excelência estará a caminho da guilhotina.

O que não será um grande problema para a elite e a opinião pública, desde que Bolsonaro já tenha entregado a mercadoria, a reforma da previdência. O ex-mito seria descartado a um custo quase zero, e outros abocanhariam a máquina rumo a 2022.

É razoável Bolsonaro não achar graça nisso, pois é humano que queira continuar com a cabeça politicamente grudada no pescoço. E é natural ele imaginar que se sobreviver aos primeiros quatro anos poderá ganhar mais quatro. Tem sido a lógica desde que a reeleição foi introduzida.

Daí o presidente resistir à divisão de poder com o Congresso. É mais saboroso ter tudo para si. E seria arriscadíssimo aparecer daqui a pouco como sócio de alguma confusão. Já bastam as dele e do entorno vindas do passado. Mas nestas ele não pode nem ser investigado.

E o Legislativo tampouco vai conseguir achar saídas fáceis. Não tem clima social ou político para pautas-bomba. A última ameaça do dito centrão é votar uma reforma da previdência da lavra dos congressistas. E impor ao governo uma agenda econômica pró-mercado mas nascida no Legislativo.

E lá são ameaças? Não será exatamente o que o governo quer? Um parâmetro sempre importante da política é a resposta à pergunta “se nada acontecer, acontece o quê?”. Se nada acontecer, é provável que alguma reforma da previdência passe? Sim.

Ou seja, a relação custo-benefício de se meter agora numa negociação de divisão de poder com o Congresso seria péssima para o presidente da República. Mas a condição para o plano andar é outros fazerem o serviço legislativo. Ou virá a narrativa de que a confusão está atrapalhando a economia.

O presidente parece acreditar que o Congresso não tem saída a não ser aprovar a pauta do mercado.

Na dúvida, o governo vai tratar de reocupar a rua. Depois das maciças manifestações do dia 15, precisa restabelecer o equilíbrio. E assim pressionar o Congresso de fora para dentro. Temia-se isso da esquerda. Mas quem está fazendo é a direita. Comum acontecer.

Pode dar errado? Só se a esquerda topar juntar com a direita ex-bolsonarista para levar ao poder alguém “de centro”. Improvável. Ou se vier uma ruptura intestina. Mas isso ainda não está no horizonte próximo.

sábado, 11 de maio de 2019

A utilidade do olavismo na transição entre narrativas. E a certeza que faz a economia sofrer

Em disputas políticas encaixar a narrativa desejada é mais ou menos como encaixar a pegada no quimono do oponente no judô: meio caminho andado para deixar o adversário de costas no chão. E na política um ippon vale tanto quanto no tatame.

Mas a política tem especificidades. A narrativa bem encaixada exige não ser percebida como narrativa, mas tradução única e fiel da realidade. Melhor ainda se a transição entre narrativas contraditórias acontece imperceptivelmente.

Por exemplo, a narrativa dominante do momento conta que o governo Bolsonaro se divide entre ideológicos e pragmáticos. Estes vêm encaixando melhor a pegada no quimono adversário do que aqueles, e estão em certa vantagem.

Mas quando foi mesmo que a luta contra a chamada velha política e o chamado fisiologismo perdeu de repente protagonismo em favor da ética da responsabilidade?

E depois ainda dizem que o presidente é ruim de jogo. Será? Veja você que ele deixou para ceder espaço político-orçamentário quando isso está sendo quase implorado pelo establishment, em nome da centralidade da sacrossanta reforma da previdência social.

Bolsonaro vai cometer o que a opinião pública chama fisiologismo, mas o custo político será quase zero. Ponto. Significa sem turbulências? De jeito nenhum. A turma do PSL, por exemplo, parece inconsolável por não ter como governar sozinha.

Ou ocupar sozinha os cargos apetitosos.

Acontece que o establishment já percebeu: não é suficiente mandar o mercado pressionar o Congresso, e junto intimidar as excelências com a ameaça de aplicar a força policial. Aliás, quanto mais cedo o ministro da Justiça notar isso melhor (para ele).

O governo é meio neófito, mas leva jeito de ter entendido que governos só têm duas opções: governar ou colapsar. E é sempre bom lembrar: não se conhece poder que preferiu o suicídio político para manter a coerência na narrativa original.

Na Argentina os liberais antes celebrados como paradigma agora congelam preços e controlam câmbio. Vale a velha regra do Império, adaptada: nada mais parecido com um heterodoxo que um ortodoxo politicamente pressionado.

Qual é o problema do presidente? Ele precisa fazer o caminho de volta da nova para a velha política sem perder substância, e mora aí a utilidade do chamado olavismo. Este serve para reafirmar a autenticidade. Como foram a política externa e as políticas sociais para Lula.

Bolsonaro tem três opções: 1) rompe com o círculo militar e com a dita velha política e naufraga amarrado ao leme da nau olavista, 2) rompe com o olavismo e aceita virar um pato manco tutelado com menos de seis meses de governo ou 3) segue o jogo.

Fica claro agora que a recentíssima ofensiva olavista-bolsonarista contra os generais tratou de colocar uma barreira de contenção ao namoro da elite com um certo sonho bonapartista-institucional-militar-chique.

Onde está o problema? As duas análises de conjuntura anteriores (em www.alon.jor.br) chamaram a atenção para o efeito político das dificuldades econômicas. Um governo de base gelatinosa e conflagrada fica mais vulnerável quando falta pão.

As projeções econômicas têm sofrido, mas não principalmente por causa de incerteza nas reformas. É porque se contrai a demanda agregada. E quanto mais certeza de que vai haver reformas mais o consumidor temerá o arrocho, e mais se retrairá. Pelo menos no curto prazo.

As projeções econômicas aceleraram o mergulho exatamente quando a reforma da previdência ganhou mais musculatura e deu sinais de passar. O que está fazendo a economia sofrer não são as incertezas, é a certeza do dinheiro pouco.

O risco para o governo é alguma hora consolidar a narrativa de que a economia vai mal por causa da zorra política. Por enquanto as estatísticas mostram que o eleitorado está lançando o problema na conta do PT. Mas alguma hora o centrismo hibernante vai dizer que a bagunça bolsonarista é a culpada.

Será uma narrativa conveniente, pois a opção seria admitir que a política econômica talvez não seja tão boa assim. E isso nem pensar.

Mais ou menos o que está acontecendo na Argentina. A narrativa preferida do péssimo momento eleitoral da direita é “a economia não colapsou por causa das políticas do Macri, mas pelo medo da volta da Cristina”. Será?

Nas receitas como a de Paulo Guedes as coisas costumam piorar antes de melhorar. Não sei quanto de fato Bolsonaro curte o olavismo, mas o presidente parece acreditar que precisa do radicalismo e do histrionismo dele para atravessar o tempo das vacas magras.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Não existem problemas graves endógenos na política. Eles começam a aparecer onde não se esperava

O senso primeiro sobre o governo Bolsonaro sustentava-se em duas convicções: 1) sólidos fundamentos, massa crítica intelectual e gerencial na economia e 2) dificuldades potenciais na política, causadas principalmente pela dispersão (ainda maior) do quadro partidário-parlamentar.

Havia também a percepção, bem difundida, de que a segunda poderia atrapalhar a primeira. A “velha política” iria colocar obstáculos a uma aprovação rápida da reforma da previdência e isso poderia enervar o mercado, atrasando o necessário despertar do instinto animal empresarial.

Um semestre depois, a política vai razoavelmente conforme desejado. As espumas do noticiário podem conduzir ao erro na análise, mas a agenda previdenciária tem maioria potencial para ser aprovada com alguma tranquilidade. Depende de uma mínima execução política, muito provável.

Quem vendeu uma tramitação rápida vendeu terreno na lua, mas só é problema para quem comprou. O restrospecto das últimas reformas da previdência indica que a atual está muito dentro do prazo. Vai ser algo emagrecida mas tem imensa possibilidade de passar na Câmara, e ir com músculos ao Senado.

A economia das mudanças será crescente no tempo, então a esperança de elas induzirem a reação econômica está baseada centralmente na teoria das expectativas. O #jáestádandocerto substituiria o #temdedarcerto. E, como num balanço de parquinho, pequenos impulsos criariam um movimento amplo.

Mas o andamento do plano convive com um ruído, que parece crescente: a economia não apenas não reage, mas traz sinais de sofrimento progressivo. As previsões de crescimento do PIB descem os degraus, a confiança do consumidor idem, o desempenho da indústria decepciona. Rareiam boas notícias.

E tem o nervo exposto do desemprego. Dá a impressão de ter virado estrutural na casa de dois dígitos. E é razoável aceitar que a primeira reação do consumidor ao avanço da reforma da previdência seja de cautela. Se vai ser mais difícil se aposentar e vai ser preciso poupar, a prudência tem lógica.

Onde está então o risco? As dificuldades econômicas trazerem desalento, isso bater na popularidade do presidente e do governo, e daí a falta de base própria sólida no Congresso começar a elevar demais o custo, inclusive orçamentário, de disciplinar a maioria.

O risco que o governo corre é atolar. Se por enquanto o alarido em torno das atrações do circo mantém a plateia entretida, e a torcida mobilizada pelo seu gladiador-chefe (é o que se filtra das redes sociais), uma hora o pão vai ter de aparecer. Daí que o Planalto esteja à cata de boias econômicas.

Fora a reforma da previdência, e o prosseguimento das concessões na infraestrutura, a impressão é haver um certo ambiente de improviso. Se o governo tem um plano abrangente não se sabe. Por enquanto, a impressão é tudo se basear na crença de que alguma hora o mercado vai ficar otimista e resolver.

Se funcionar, beleza. Se não, o governo vai enfrentar turbulências crescentes, e dificuldades políticas no ano eleitoral municipal de 2020. Deputados ficam mais ligados em ano de eleição nos municípios, fundamentais para a tentativa de reproduzir o mandato parlamentar dali a dois anos.

O presidente está com algo de torno de 35% de bom+ótimo. É razoável. Não pode baixar muito disso. Se baixar dos 30% acende-se a luz amarela. Se cair para perto dos 20% liga-se a vermelha. Quando isso acontece o som das facas sendo afiadas no centro da Praça dos Três Poderes aumenta muito.

O Congresso desconfia que Bolsonaro está macio agora mas em 2022 vai para cima do que chama de velha política se estiver forte. Dada essa desconfiança, não é prudente o presidente se deixar conduzir a um córner em que precise do Congresso para compensar a falta de povo.

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Turbulência política atrapalha a economia? Duvidoso. Os Estados Unidos estão há dois anos em meio a turbulências políticas graves e a economia vai muito bem, obrigado.

O que ajuda ou atrapalha mesmo a economia são as políticas econômicas.