segunda-feira, 30 de julho de 2018

A polarização que vai vingar. E duas perguntas simples, que seria bom ter nas pesquisas eleitorais

Desde sempre sabe-se que as eleições deste ano serão disputadas em ambiente de polarização. Até por isso ser algo tautológico. O normal é eleições acabarem polarizadas, mesmo em períodos de dita paz política, quanto mais agora. As exceções são raras. Vender o contrário costuma ser um dos muitos contos-do-vigário da política.

A dúvida nunca é se vai haver ou não polarização, mas que polarização haverá. É como no judô: quem consegue a melhor pegada no quimono adversário mais chance tem de impor o golpe decisivo. No léxico político-eleitoral, quem impõe a pauta tem meio caminho andado para finalmente aplicar o ippon no dia da urna.

A economia vem mandando nas eleições desde há muito. O PSDB ganhou duas disputas presidenciais impondo a economia como pauta central. Era o tempo em que os tucanos sacavam do Real para ter voto nos pobres. Depois o PT ganhou quatro eleições também assim: uma pela insatisfação com o PSDB, e três pela superioridade dos resultados econômicos petistas.

O establishment vinha tentando mudar a lógica desta vez. Houvesse um nome “novo” viável e compromissado com a agenda liberal, seria possível vender a centralidade de renovar a política como veículo da continuidade do programa do governo Michel Temer. Não faltaram tentativas. Mas ninguém com o figurino conseguiu até agora massa crítica.

Marina Silva e Álvaro Dias estão aí, mas a melhor probabilidade de ainda impor essa polarização continua sendo Jair Bolsonaro. Entretanto, ele estar excessivamente à direita faz o establishment desconfiar de sua competitividade. Daí a celebração em torno das amplas alianças costuradas com competência por Geraldo Alckmin.

O establishment acredita que as concessões à "velha política” talvez possam se pagar. E é sempre melhor poder apostar em dois cavalos, ou talvez três, do que depender de um só. Poderiam ser até quatro, se Ciro Gomes tivesse atraído um pedaço da direita. Mas ao fim e ao cabo a turma não quis trocar o certo pelo duvidoso. Um governo do PSDB dificilmente trará surpresas.

Não existe almoço grátis, e Alckmin carregará com ele as frustrações do governo Temer. No fritar dos ovos, ou ele ou Bolsonaro serão “o candidato do Temer” no segundo turno, com algum espaço ainda para Marina e Álvaro Dias. O “candidato do Temer” pode bem ser alguém que passe a campanha atacando o presidente, desde que incorpore a agenda temerista.

E ao “candidato do Temer” é provável que se oponha na decisão um “candidato do Lula”. Pode ser alguém do PT ou o próprio Ciro. Ou, numa hipótese mais remota, até Marina. O nome importa, mas não é tudo. Vale o caráter da polarização. E hoje ela tende a girar de novo em torno da economia e ser esquerda x direita, ainda que esta venha fantasiada de centro.

Por isso, o desafio do establishment continua mais ou menos do mesmo tamanho. Ir ao segundo turno é bom, mas o que interessa mesmo é ganhar. E como ganhar vendendo algo que indica continuidade econômica num ambiente de alta demanda por mudanças? E com um “candidato do Lula” comparando a economia atual com a do ex-presidente?

Alckmin imagina contar com o peso maciço das máquinas federal e da maioria dos governos estaduais. Isso tem se mostrado decisivo nas recentes eleições extras nos estados. Ele terá também ampla simpatia da elite. Quanto pesarão os dois vetores na disputa presidencial? Só haverá uma maneira de ir acompanhando isso ao longo da campanha: as pesquisas.

Um problema é que as pesquisas, ao menos as registradas na Justiça, têm perguntado de tudo, menos o essencial. Poucas têm medido a intenção de voto em um “candidato do Lula” no primeiro e no segundo turnos. E não têm confrontado os candidatos “do Lula” e “do Temer” no segundo turno. Numa eleição sem grandes líderes dotados de voto próprio, seria bom.

Vai ser difícil fugir dessa polarização.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

A esquerda já teve faróis melhores

Netflix: ‘The Vietnam War’ é imperdível
É antídoto contra a burrice pandêmica


Vale muito ver a série de 10 episódios sobre a Guerra do Vietnã de autoria de Ken Burns, no Netflix. A obra dele sobre a participação americana na Segunda Guerra Mundial, também disponível no serviço de streaming, já era boa. Esta sobre o conflito no Sudeste Asiático é melhor. Uma aula detalhada de história dos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 do século 20.

A abordagem de Burns é pacifista, mas a série é honesta. Quem viveu aquela época vai concordar. Os diversos pontos de vista estão contemplados. O espectador consegue concluir baseado em fatos. Coisa difícil de achar hoje em dia. E uma conclusão é Richard Nixon ter sido um grande presidente, bem melhor que John Kennedy e Lyndon Johnson.

Pelo menos sob o parâmetro da política externa e do episódio mais importante do período: a guerra contra a guerrilha vietcongue do Vietnã do Sul e as forças regulares do Vietnã do Norte. O republicano Nixon deu um jeito de tirar o país de uma guerra “inganhável”, em que os americanos foram metidos pelos democratas Kennedy e Johnson.

Além disso, Nixon restabeleceu relações com a China, rompidas desde a chegada dos comunistas ao poder. E fechou o primeiro tratado de limitação de armas nucleares com a União Soviética. Sim, Nixon prosseguiu a política de desestabilizar e derrubar governos de esquerda mundo afora, mas nisso ele e os antecessores rezaram pela mesma cartilha.

A série de Burns faz relembrar um dos muitos detalhes macabros da Guerra do Vietnã, talvez o mais macabro deles. Num certo momento, a estratégia do comandante das tropas americanas, William Westmoreland, passou a ser matar guerrilheiros vietcongues em ritmo maior que a velocidade de recrutamento da guerrilha. O objetivo era produzir um impasse e forçar uma negociação de paz.

Lógico que a coisa colocada assim virou uma matança. Para “bater a meta”, chegou uma hora em que se começaram a matar civis em larga escala. A história é conhecida: isso ajudou a engrossar a repulsa dos americanos e do resto do mundo, e no final faltou apoio político para a estratégia militar ser concluída até o efetivo sucesso do plano.

Johnson, o genocida, jamais foi alvo de um processo de impeachment. Deixou o governo em 1968 e foi morrer alguns anos depois na paz do seu rancho texano. E faça-se justiça: Johnson não foi só um genocida. Foi também o presidente que institucionalizou a conquista dos direitos civis pelos negros, apesar e contra a forte resistência no interior de seu próprio partido.

O presidente mais lembrado por iniciativas legais contra a escravidão dos afro-americanos é o republicano Abraham Lincoln. E o mais vistoso símbolo da resistência final dos brancos do Sul à igualdade dos negros foi o democrata George Wallace. A história e a política costumam ser complexas e contraditórias, verdade difícil de aceitar na nossa era de burrice pandêmica da “militância das redes sociais”.

Johnson nunca foi ameaçado de impeachment apesar de genocida, e de isso ser sabido em tempo real. Nixon renunciou pois seria deposto por tentar encobrir a espionagem de adversários por apaniguados dele. Watergate fez a fama do Washington Post e da dupla de jornalistas que tocou o assunto no jornal. Os Papéis do Pentágono não tiveram maior efeito jurídico-criminal.

Os episódios da série de Burns sobre a Guerra do Vietnã são longos, quase duas horas cada, às vezes arrastados. Mas valem cada segundo. Especialmente em tempos nos quais a esquerda mundo afora parece capturada pela agenda do Partido Democrata americano e faz eco ingênuo ao belicismo antirrusso. E faz pouco caso da possibilidade de uma paz honrosa na Coreia.

A esquerda já teve faróis melhores.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 16 de julho de 2018

E se o preço da estabilidade for o imobilismo, o país preferirá a instabilidade? Façam as apostas

A política e as tribos dela dependentes ocupam-se de tentar adivinhar o nome do próximo presidente. O resto do país, alguma hora, vai querer saber o que ele fará. Aliás, o assim chamado mercado já anda entretido com isso. E um valor em alta nos pedidos para o final do ano é a estabilidade. Sem ela não iríamos a lugar nenhum, continuaríamos no pântano.

Às vezes a opinião pública gira em falso, em torno de certezas surgidas não se sabe bem de onde. Uma é que a estabilidade seria indispensável e também suficiente. A simples observação dos fatos derruba o postulado. O governo Michel Temer tem sido o mais estável desde a redemocratização. Resistiu a duas votações na Câmara para derrubá-lo. E daí? E daí nada.

Um governo pode ser ao mesmo tempo muito estável e viver imobilizado, que é o caso. Então, como fazer para o próximo presidente conseguir combinar estabilidade na função e iniciativa política e econômica para enfrentar os desafios do cargo? Começando pela retomada da economia e dos empregos, especialmente para a população mais jovem.

Há aqui problemas antigos e novos. O antigo é um sistema partidário-eleitoral organizado para negar ao chefe do Executivo a maioria automática no Congresso. Melhor dizendo, para negar ao eleitor, na prática, a possibilidade de construir democraticamente na urna maioria congressual para o presidente eleito executar seu programa.

Há todo um portfólio de modelos para resolver isso, mas não há interesse em implementar. A resistência conhecida vem de um sistema partidário feudalizado. Mas essa é a face visível. A invisível é outra: impor compulsoriamente ao presidente estar em minoria no Legislativo tem sido útil para frear a influência “cesarista" do voto majoritário sobre o poder.

Um jeito de dar ao Planalto melhores instrumentos para formar maioria na Câmara seria determinar a verticalização das coligações (o voto vinculado) e distribuir as vagas de deputado de acordo com a votação recebida não pelos deputados, mas pelo presidente. E a base que eventualmente ainda faltasse ao final do primeiro turno seria reunida para o segundo.

Não vai acontecer. E aqui compreende-se melhor por que fracassaram as tentativas de implantar o parlamentarismo entre nós. Onde ele faz sucesso é porque, na real, a eleição do primeiro-ministro acaba sendo “direta". O eleitor vota no partido ou no candidato a deputado já sabendo em quem está votando para governar o país. E consegue.

Mas, além dos problemas antigos há agora os novos. Não bastará ao próximo presidente formar maioria num Congresso balcanizado, precisará recolocar para dentro da jaula a profusão de pólos carnívoros de poder liberados desde 2014 para caçar os políticos. Isso resultou, como era inevitável, num sistema multipolar em que uns neutralizam os outros, e a resultante é zero.

O ambiente político no Brasil está cada vez mais parecido com a Rússia dos Romanov, menos por um detalhe: falta o czar. A profusão de mecanismos de controle e regulação, a produção compulsiva de regulamentos, o empoderamento dos burocratas, o ambiente opressivo, o poder da polícia. Está tudo aí. Só falta alguém capaz de fazer o emaranhado dar em algo útil.

O próximo presidente chegará em 2019 com minoria no Congresso e já tolhido pela impermeabilidade de um Estado que passou a prestar contas só a si mesmo e ao pedaço da elite econômica com acesso ao que se convencionou chamar de opinião pública. E se quiser fazer coisas que esta segunda pede, como reformar a previdência, terá de enfrentar a primeira.

Dos quatro eleitos para a Presidência desde 1989, dois foram derrubados. É humano que o quinto queira fugir disso. Um jeito é compor-se com o poder real e profundo, descrito nos parágrafos anteriores. Isso traria estabilidade. E também imobilismo. Pois as forças que podem prover estabilidade são as mais beneficiadas por nada mudar.

Seria uma fórmula vencedora, não fosse pelo detalhe de que uma hora o circo sozinho não resolve, é preciso distribuir algum pão. O que pode eventualmente levar a sociedade a pedir não estabilidade, mas instabilidade. O momento está próximo? Não parece ainda. Mas é sempre bom ficar de olho em quando e como essa demanda vai surgir.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

A conciliação não tem mandato popular

Cada lado acha que pode eliminar o outro
Como ninguém tem força suficiente, há impasse


Uma originalidade desta eleição: ao contrário das anteriores desde o fim dos governos comandados por militares, nenhum campo político definiu ainda seu pole-position. Na esquerda, correm um ainda não designado “candidato do Lula” e Ciro Gomes. Na direita, Jair Bolsonaro e Geraldo Alckmin. Com um pé em cada barco, Marina equilibra-se ali pelo meio e consegue, até o momento, segurar os votos dela.

Fatos são fatos, e não adianta reclamar. A direita adoraria estar agora unificada em torno de um único concorrente, que já pareasse com o ex-presidente petista em intenção de voto e exercesse forte magnetismo sobre os satélites tradicionais.

A regra, desde pelo menos 2006, era um tucano mostrar-se bem mais competitivo a esta altura. E o PT preferiria estar, como no último quarto de século, no controle absoluto do voto das diversas tonalidades da esquerda.

Mas tudo na vida tem dois lados. A bagunça atrapalha cada um, mas também ajuda. A falta de definição num campo acaba retardando a arrumação no outro, deixando aberta a porta para variadas possibilidades.

Enquanto isso segue o baile, que leva jeito de querer se estender até bem perto do primeiro turno. É razoável projetar, no limite, uma indefinição até as últimas horas sobre quem passa à final. Serão fortes as emoções.

Veja-se o papel de Ciro. Ele produz incerteza sobre a presença de um “candidato do Lula” no segundo turno. Mas ao mesmo tempo impede, por enquanto, que Alckmin ganhe massa crítica, quando o agora pedetista trabalha alianças que a esta altura já deveriam estar na bagagem do PSDB. E não é absurdo imaginar que Bolsonaro também acompanhe esses movimentos com alguma satisfação. Enquanto o dito centro está dividido, ele ganha tempo e espaço para virar opção palatável.

O bolsonarismo resiliente é um problema para o PSDB, mas aqui também tem outro lado. Uma direita nítida e de raiz permite ao conservadorismo brasileiro fantasiar-se de “centro” e vender-se como alternativa moderada num ambiente de alta radicalização. O problema habitual nestes casos? Criar jacaré (Bolsonaro) na piscina de casa é arriscado, principalmente se ele cresce e passa a querer devorar quem o criou. Mas viver é correr riscos.

Claro que uma hora a coisa vai ter de se arrumar, e aí assistiremos às batalhas internas decisivas dentro de cada campo, pela vaga na decisão. Que serão provavelmente sangrentas, com a esquerda em posição algo mais confortável que a direita no caso de dar zebra. É menos problemático ao PT apoiar Ciro do que ao PSDB e demais “de centro” subirem no palanque de Bolsonaro. Mas se for preciso farão, e não seria prudente duvidar.

Especular sobre o desfecho é, por enquanto, apenas isto: especulação. Uma dúvida é sobre se no final vai prevalecer a polarização dura ou algum tipo de conciliação. A favor da segunda, o cansaço progressivo com a crise. A favor da primeira, a falta absoluta de um mandato popular para a segunda.

Cada pedaço do país está convencido de que a saída é eliminar o adversário, e esse espírito percorre a sociedade na vertical e na horizontal.

Uma razão do atual impasse é ninguém ter reunido força suficiente para realizar o desejo de eliminar o inimigo. A rigor, o país está paralisado há anos num empate catastrófico.

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Publicado originalmente em www.poder360.com.br

segunda-feira, 9 de julho de 2018

As circunstâncias da guerrilha e da contra-guerrilha no domingo de escaramuças em torno de Lula

A guerra em torno da liberdade ou não de Lula é assimétrica. Os inimigos dele têm larga vantagem em forças convencionais. Têm hegemonia no Judiciário e na imprensa, e por enquanto maioria nas pesquisas feitas no conjunto da sociedade. É uma correlação de forças que lhes tem permitido manter preso e inelegível o ex-presidente.

É natural portanto que as forças lulistas acabem levadas a táticas de guerrilha, como a que buscou neste domingo libertar o ainda pré-candidato do PT à Presidência. E os efeitos da escaramuça precisam ser vistos à luz de dois critérios: 1) o resultado militar propriamente dito e 2) a resultante propagandística e militar no cenário geral da guerra.

A #LavaJato travou a batalha militar tática para impedir que Lula fosse solto, mesmo que por uns instantes. Mostrou força, o que é sempre importante. E o lulismo conquistou uma primeira vitória propagandística, ao impor ao adversário que este usasse abertamente de métodos pírricos, do tipo que fazem o vencedor sair do conflito mais fraco do que entrou.

Os adversários de Lula acreditam ser mais fácil vencer a eleição com o ex-presidente preso e inelegível. Farão de tudo para manter isso. O problema? O PT gostaria de muito de Lula poder concorrer, mas tem outras opções. Que dependem em última instância de o partido conseguir sustentar uma narrativa favorável, e que alavanque outro eventual nome em outubro.

A primeira vitória de uma guerrilha é sobreviver. No caso, o PT precisa apenas impedir que a situação política do país se estabilize com o poder em mãos adversárias. Por enquanto vem conseguindo. O governo Temer ensaiou consolidar-se e projetar uma expectativa de poder futuro, mas atrapalhou-se no plano policial e os efeitos foram imediatos sobre a economia.

A política é maratona, não corrida de cem metros. Olhe-se o caso mexicano. Uma hora a esquerda iria ganhar, desde que conseguisse impedir a estabilização da hegemonia adversária. E a direita esticou tanto a corda que quando a esquerda finalmente ganhou foi um tsunami, que lhe deu com a Presidência ampla maioria no Legislativo para governar.

Quanto mais o PT conseguir evidências de que a prisão e a inelegibilidade de Lula são produto de uma, como alega, farsa judicial, mais difícil será aos adversários consolidar uma alternativa eleitoral capaz de projetar algum tipo de pacificação política do país. Sem o que é inimaginável a tramitação de reformas impopulares, como as que o campo liberal acredita essenciais.

Uma guerrilha pode chegar ao poder, total ou compartilhado, pela via militar, como em Cuba, ou por um caminho político, como na África do Sul e, de algum modo, na Colômbia. Nesse segundo caso, basta-lhe inviabilizar as saídas que a excluam. E um componente desse “inviabilizar” é obrigar o adversário a usar métodos que drenem a legitimidade da contra-guerrilha.

Uma parte da sociedade acredita que qualquer coisa vale para manter Lula preso e inelegível. É minoria. Outra parte, também minoritária, pensa que Lula é puramente um perseguido político. Os primeiros tomaram a iniciativa quando o governo Dilma se mostrou incapaz de controlar minimamente a política e acender a luz no fim do túnel da economia.

Os segundos vão retomando alguma iniciativa diante da fraqueza progressiva do bloco político que entronizou e mantém Temer. Basta olhar as pesquisas. E quanto mais durar a barafunda política, mais inviável será acelerar a retomada econômica, sem o que qualquer hegemonia do dito centro para a direita será difícil de estabilizar.

Até porque a solução clássica de simplesmente eliminar a guerrilha no plano físico não está à mão. A correlação de forças não permite. Daí que aqui e ali se comece a tatear por um “centro” que busque algum modo de “união nacional”. Mas as experiências anteriores desautorizam otimismo sobre conciliações que partam da exclusão de alguém ainda relevante.

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Não existe almoço grátis, nem para o Judiciário. Manter perenemente o poder absoluto é uma arte, que bem poucos dominaram ao longo da história da humanidade. Regra geral: ser capaz de autocontenção é bem mais útil para preservar a saúde no longo prazo. Mas nem sempre é fácil resistir aos holofotes. O problema é que uma hora a conta do almoço chega.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

A mentalidade colonizada contaminou nosso futebol

Garrincha e Pelé: precursores do @NeymarJr
Necessidade de ser ‘bem visto lá fora’ virou patologia


Alguma coisa mudou no futebol. Ou alguma coisa está fora de lugar sobre como o vemos. Ou alguma coisa mudou no psiquismo nacional nestes últimos anos. Ou é o VAR. Ou é tudo isso junto e misturado. Mas que as falas andam meio estranhas, elas andam. Como dizia o velho filósofo, e na época ele não era tão velho assim, tudo que é sólido parece desmanchar-se no ar. A única certeza é a completa perda de referência na maneira como se olha o nosso jogar bola.

Os filmes do saudoso Canal 100 estão aí, e também os vídeos sobre os gols do Brasil na final da Copa de 1958. Quando alguém lembra do Garrincha, a imagem inesquecível é ele parado a uma certa distância do lateral-esquerdo, ameaçando sair para a direita. Uma vez, duas vezes, até que ele finalmente sai. O drible era sempre igual, mas tinha uma grande chance de dar certo. O Botafogo e o Brasil ganharam muita coisa assim.

Se Garrincha jogasse futebol hoje em dia, parando na frente do lateral e ameaçando driblar, até finalmente driblar, o que aconteceria? Seria acusado de humilhar gratuitamente o marcador, o “João” da vez? As faltas violentas contra ele seriam recebidas com compreensão, uma reação natural e legítima às “palhaçadas” do famoso ponta? Não houve e provavelmente não haverá, nunca mais, um palhaço como Garrincha na história do futebol. Não é, “profe” Osorio?

Diz a tradição oral, e vai saber se é isso mesmo, que ele quase foi cortado da seleção em 1958 porque num amistoso pré-Copa resolveu driblar desnecessariamente o adversário em cima da linha do gol, em vez de simplesmente fazer o gol. Eu acompanho futebol há meio século e nunca vi ninguém propondo a “releitura crítica” desta e outras ditas molecagens do Mané. E olha que releituras do passado à luz dos valores do presente estão na moda. Salve Monteiro Lobato.

Verdade que Garrincha nunca divertiu por divertir. Era o jeito de ele jogar e produzir para o time. O Mané era, como se diz hoje em dia, vertical. Driblava humilhantemente o adversário, mas em direção ao gol. Mais ou menos como o @NeymarJr. E o mistério que não consigo decifrar é por que o mesmo comentarista que amava o Garrincha, e cultua a memória do jeito de o Garrincha jogar, odeia o @NeymarJr. Alguém aí vai protestar por eu comparar os dois. Comparo mesmo.

Já vivi o suficiente para saber como é o futebol, pelo qual sou fanático desde que me conheço por gente. Desde que vi na TV branco e preto o Santos virar em 1963 sobre o Milan, sob uma chuva diluviana no Maracanã, e arrancar para o bi mundial. Posso garantir que @NeymarJr é da tradição vitoriosa do futebol brasileiro. Inclusive no que se convencionou chamar de malandragem. E ninguém foi mais malandro que Edson Arantes do Nascimento, o Pelé.

Ele simulava faltas sofridas como ninguém, e abusava da violência quando achava que podia fazer de um jeito que o juiz não visse. Fraturava a perna dos zagueiros sem dó, e usava o cotovelo sem cerimônia para revidar marcações duras. Não lembro de ele ter sido criticado por isso. Em 1970, contra a Inglaterra, o time ficou com medo que Pelé fosse expulso depois de apanhar muito. Aí Carlos Alberto chamou a tarefa de bater num inglês. Foi celebrado.

E se Maradona fosse brasileiro? Do jeito que a coisa vai, provavelmente proporiam devolvermos a Copa de 1986, e fazermos uma autocrítica pelo famoso gol contra a Inglaterra, aquele com la mano de Dios. E o pior é que foi feito contra os ingleses, uma gente tão civilizada. Eles não mereciam ser tratados com tanto desrespeito, não é? Afinal, ali tem a Premiere League, o mais badalado (um verbo sintomático) campeonato nacional de ludopédio.

Talvez o futebol esteja revelando a face mais nítida da definitiva degradação da autoestima nacional. O que antes era visto como o jeito brasileiro de jogar transformou-se em pecado. Driblar é proibido. Especialmente quando alguém, mesmo que seja um zé ninguém, com sobrenome ou sotaque inglês, ou do resto do “primeiro mundo”, vem nos repreender pelo modo incivilizado como nossos dribladores praticam o bullying sobre os driblados.

Os ingleses exploraram até o tutano (dos negros) o tráfico negreiro. Um dia os ventos da Revolução Industrial pediram mão de obra livre. Junto, claro, com a liberdade de o capital dispor da força de trabalho como quisesse. E aí o tráfico virou crime. Os EUA abriram caminho na bala e na corrupção para as empresas deles dominarem os mercados em escala planetária. Quando conseguiram, a corrupção dos concorrentes virou pecado capital não passível de perdão.

O Brasil sempre teve uma necessidade patológica de ser bem falado lá fora, e está disposto a sacrificar seus interesses por isso. Você não vê algo assim entre americanos, ingleses, alemães, franceses. Mas nesta Copa a coisa vai atingindo o paroxismo. Talvez seja um sintoma a mais dos tempos. Também nisso o lastro mental do colonizado nos arrasta para o fundo como âncora. Se o inglês simula, a culpa talvez seja do @NeymarJr e seu mau exemplo.

É capaz de uma hora alguém quebrar propositalmente a perna do @NeymarJr e o nosso jornalismo esportivo acusar que a culpa foi, no fundo no fundo, dele mesmo.

Alguém duvida?

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Publicado originalmente em www.poder360.com.br