Análise Política
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
sábado, 31 de agosto de 2024
sexta-feira, 23 de agosto de 2024
Uma janela para Boulos
A semana trouxe novidades nas pesquisas públicas da eleição paulistana, tendências que já vinham detectadas nos trackings reservados. As principais mudanças não estão nos números, são políticas. Em resumo, o ensaio de guerra civil no bolsonarismo oferece ao campo petista-psolista a possibilidade de, por enquanto, jogar parado e concentrar-se em reduzir a rejeição de seu candidato à Prefeitura de São Paulo.
O principal problema de Guilherme Boulos (PSOL) não está no primeiro turno, pois é improvável que alguém roube dele fatia substancial dos votos de seu campo.
O desafio está nas simulações de segundo turno, em que invariavelmente aparece bem atrás do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A ida de Pablo Marçal (PRTB) à decisão ofereceria ao psolista uma narrativa mais verossímil na tentativa de reeditar a “frente ampla” que fez Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad chegarem na frente, respectivamente, de Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas na capital paulista dois anos atrás.
Pois é óbvio ser bem mais viável carimbar Marçal como “bolsonarista” do que fazer isso com Nunes, até porque o prefeito não oferece características para classificá-lo com qualquer viés político-ideológico.
A conturbação no campo da direita paulistana tem algumas raízes no estilo de liderança de Bolsonaro, algo caótica e inclemente. Isso deixou nos últimos seis anos um rastro de ressentimentos e diversos quadros feridos pelo caminho, que agora veem a oportunidade de voltar a ocupar espaço no afeto político do capitão reformado, guerreando contra a turma hoje prestigiada. Mas a janela não se abriria sozinha sem povo, daí a importância de Marçal.
Até ontem, quem se recusava em algum momento a seguir fielmente alguma diretriz bolsonarista acabava sem oxigênio político, pois os votos eram do próprio Bolsonaro, e de mais ninguém. Veremos se Marçal consegue romper a maldição. E ele está se esforçando para fugir de ser caracterizado como traidor, carimbo que amputou promissoras carreiras políticas na direita pós-2018.
Marçal não teria ambiente para fazer o que faz, na escala em que faz, não fosse por dois outros elementos da conjuntura.
O primeiro é um crescente incômodo popular com o universo paralelo brasiliense, em que os atores se movimentam como se não devessem explicações a ninguém e como se não houvesse amanhã. Isso vai reavivando as brasas da antipolítica, que um dia já se chamou “nova política”, mas vai se convertendo em rejeição da política em geral, dado que esta parece estar, de ponta a ponta, 100% abduzida pelo establishment.
Esse vetor acaba potencializando outro, o maximalismo de uma base social de direita, que se parece em algum grau com a esquerda lá atrás, quando esta imaginava ter um bilhete sem escalas ao ponto final de seu projeto. As agruras da vida domesticaram a esquerda, que aprendeu a suportar as paradas, mesmo rangendo os dentes, mas sempre de olho no destino sonhado.
A massa de direita ainda vive num estágio espiritual anterior.
O principal problema de Guilherme Boulos (PSOL) não está no primeiro turno, pois é improvável que alguém roube dele fatia substancial dos votos de seu campo.
O desafio está nas simulações de segundo turno, em que invariavelmente aparece bem atrás do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A ida de Pablo Marçal (PRTB) à decisão ofereceria ao psolista uma narrativa mais verossímil na tentativa de reeditar a “frente ampla” que fez Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad chegarem na frente, respectivamente, de Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas na capital paulista dois anos atrás.
Pois é óbvio ser bem mais viável carimbar Marçal como “bolsonarista” do que fazer isso com Nunes, até porque o prefeito não oferece características para classificá-lo com qualquer viés político-ideológico.
A conturbação no campo da direita paulistana tem algumas raízes no estilo de liderança de Bolsonaro, algo caótica e inclemente. Isso deixou nos últimos seis anos um rastro de ressentimentos e diversos quadros feridos pelo caminho, que agora veem a oportunidade de voltar a ocupar espaço no afeto político do capitão reformado, guerreando contra a turma hoje prestigiada. Mas a janela não se abriria sozinha sem povo, daí a importância de Marçal.
Até ontem, quem se recusava em algum momento a seguir fielmente alguma diretriz bolsonarista acabava sem oxigênio político, pois os votos eram do próprio Bolsonaro, e de mais ninguém. Veremos se Marçal consegue romper a maldição. E ele está se esforçando para fugir de ser caracterizado como traidor, carimbo que amputou promissoras carreiras políticas na direita pós-2018.
Marçal não teria ambiente para fazer o que faz, na escala em que faz, não fosse por dois outros elementos da conjuntura.
O primeiro é um crescente incômodo popular com o universo paralelo brasiliense, em que os atores se movimentam como se não devessem explicações a ninguém e como se não houvesse amanhã. Isso vai reavivando as brasas da antipolítica, que um dia já se chamou “nova política”, mas vai se convertendo em rejeição da política em geral, dado que esta parece estar, de ponta a ponta, 100% abduzida pelo establishment.
Esse vetor acaba potencializando outro, o maximalismo de uma base social de direita, que se parece em algum grau com a esquerda lá atrás, quando esta imaginava ter um bilhete sem escalas ao ponto final de seu projeto. As agruras da vida domesticaram a esquerda, que aprendeu a suportar as paradas, mesmo rangendo os dentes, mas sempre de olho no destino sonhado.
A massa de direita ainda vive num estágio espiritual anterior.
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
As emendas da discórdia
O que a disputa em torno das emendas parlamentares, agudizada esta semana, não é? Não é uma pendenga 1)
entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal; ou 2) entre a irracionalidade e a racionalidade nas decisões de investimento com recursos do Orçamento; ou 3) entre a pulverização improdutiva e o
direcionamento estratégico dos investimentos; ou 4) entre o enfraquecimento e o fortalecimento da
capacidade de investir do governo.
O que ela é, então? Basicamente, uma batalha da guerra entre o Executivo e o Legislativo em torno de apenas um objetivo: reduzir ou aumentar a independência dos parlamentares diante do presidente da República. O que toma maior importância quando a eleição produz, como agora, o claro desalinhamento de orientações político-ideológicas entre o chefe do Palácio do Planalto e as maiorias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Se o Brasil, o governo ou o STF estivessem mesmo preocupados com o engessamento orçamentário e a pouca racionalidade na destinação dos recursos públicos, notar-se-ia um movimento para reduzir as vinculações orçamentárias. Até porque as emendas parlamentares são uma fração menor do gasto público, apesar de se terem tornado parte cada vez mais significativa do que se pode investir discricionariamente.
O problema é outro: dado que o sistema eleitoral brasileiro está organizado para impedir o presidente eleito de levar com ele a Brasília uma maioria parlamentar própria, restam ao vencedor três mecanismos principais para disciplinar o Legislativo: 1) a Justiça/polícia; 2) a distribuição de cargos; e 3) as emendas parlamentares. O primeiro ativo serve para coerção, e, como ninguém governa só com base nisso, os outros dois ajudam a construir algum consenso.
Seria porém complicado demais para qualquer governante lotear o grosso dos cargos entre seus adversários político-ideológicos, até pelo risco de eles o engolirem lá na frente. Resta, como arma disponível mais eficaz, a distribuição de dinheiro às bases dos parlamentares. Em resumo, se você vota comigo, você tem mais recursos para distribuir aos seus prefeitos. Se preferir fazer oposição, infelizmente terei de prestigiar seus adversários na base eleitoral.
Só que o fio dessa espada do Planalto anda cada vez mais cego, pelo avanço dos mecanismos impositivos no pagamento das emendas parlamentares. Traduzindo, uma parcela cada vez mais expressiva das emendas é de execução obrigatória. Aí o parlamentar eleito em oposição a Luiz Inácio Lula da Silva fica mais livre para não acompanhar o governo nas votações. E corre menos risco de desgaste na base e de ver surgir concorrência à direita quando tentar se reeleger.
E um detalhe curioso: dependendo do governo de turno, o leitor poderá observar interessantes pendulações na opinião pública. Os que num dia criticam o uso das emendas parlamentares por “comprar” deputados e senadores no outro criticam o Congresso Nacional por ampliar a execução obrigatória, e assim “retirar do presidente da República a capacidade de governar”. E vice-versa.
O que ela é, então? Basicamente, uma batalha da guerra entre o Executivo e o Legislativo em torno de apenas um objetivo: reduzir ou aumentar a independência dos parlamentares diante do presidente da República. O que toma maior importância quando a eleição produz, como agora, o claro desalinhamento de orientações político-ideológicas entre o chefe do Palácio do Planalto e as maiorias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Se o Brasil, o governo ou o STF estivessem mesmo preocupados com o engessamento orçamentário e a pouca racionalidade na destinação dos recursos públicos, notar-se-ia um movimento para reduzir as vinculações orçamentárias. Até porque as emendas parlamentares são uma fração menor do gasto público, apesar de se terem tornado parte cada vez mais significativa do que se pode investir discricionariamente.
O problema é outro: dado que o sistema eleitoral brasileiro está organizado para impedir o presidente eleito de levar com ele a Brasília uma maioria parlamentar própria, restam ao vencedor três mecanismos principais para disciplinar o Legislativo: 1) a Justiça/polícia; 2) a distribuição de cargos; e 3) as emendas parlamentares. O primeiro ativo serve para coerção, e, como ninguém governa só com base nisso, os outros dois ajudam a construir algum consenso.
Seria porém complicado demais para qualquer governante lotear o grosso dos cargos entre seus adversários político-ideológicos, até pelo risco de eles o engolirem lá na frente. Resta, como arma disponível mais eficaz, a distribuição de dinheiro às bases dos parlamentares. Em resumo, se você vota comigo, você tem mais recursos para distribuir aos seus prefeitos. Se preferir fazer oposição, infelizmente terei de prestigiar seus adversários na base eleitoral.
Só que o fio dessa espada do Planalto anda cada vez mais cego, pelo avanço dos mecanismos impositivos no pagamento das emendas parlamentares. Traduzindo, uma parcela cada vez mais expressiva das emendas é de execução obrigatória. Aí o parlamentar eleito em oposição a Luiz Inácio Lula da Silva fica mais livre para não acompanhar o governo nas votações. E corre menos risco de desgaste na base e de ver surgir concorrência à direita quando tentar se reeleger.
E um detalhe curioso: dependendo do governo de turno, o leitor poderá observar interessantes pendulações na opinião pública. Os que num dia criticam o uso das emendas parlamentares por “comprar” deputados e senadores no outro criticam o Congresso Nacional por ampliar a execução obrigatória, e assim “retirar do presidente da República a capacidade de governar”. E vice-versa.
sexta-feira, 9 de agosto de 2024
“Cleaners” de Tarantino no teatro da política
Para candidatos a posar de mediador, o enrosco venezuelano apresenta alto grau de dificuldade no momento, pois a barreira entre as posições ainda é intransponível. A divergência central é sobre quem fica no poder. De um lado, a oposição tem até agora todos os elementos para informar que venceu na urna por larga margem. Do outro, o governo mantém o controle da autoridade eleitoral e, aparentemente, da força armada.
O objetivo de organizar uma transição pacífica em Caracas não é, por enquanto, uma meta intermediária entre os desejos das partes. O governo declara-se vencedor e busca musculatura militar para impor os números anunciados por sua fiel entidade eleitoral. Há também o complicador de a situação atual já ter sido fruto de uma negociação, e seu desfecho pouco ou nada acrescenta à credibilidade de uma nova rodada de entendimento.
Enquanto isso, segue o pingue-pongue sobre legitimidades. Chama atenção o argumento de respeitar a soberania da Venezuela, os países reconhecerem o governo de fato sem se imiscuir nos assuntos internos dali. Seria um argumento, não fosse pelo detalhe incômodo de ter sido ignorado lá atrás quando um dia o então governo petista usou contra o Paraguai a mesma lógica dos hoje adversários do petismo no imbroglio venezuelano.
Em 2012, o presidente paraguaio, Fernando Lugo, alinhado à esquerda, sofreu um impeachment-relâmpago heterodoxo, ainda que sustentado na letra da Constituição. A oposição aqui ao então governo petista exigiu respeitar a soberania do vizinho, mas a administração Dilma Rousseff enxergou a janela de oportunidade para incorporar a Venezuela ao Mercosul, o que vinha sendo bloqueado pelo Congresso em Assunção, de viés conservador.
O objetivo de organizar uma transição pacífica em Caracas não é, por enquanto, uma meta intermediária entre os desejos das partes. O governo declara-se vencedor e busca musculatura militar para impor os números anunciados por sua fiel entidade eleitoral. Há também o complicador de a situação atual já ter sido fruto de uma negociação, e seu desfecho pouco ou nada acrescenta à credibilidade de uma nova rodada de entendimento.
Enquanto isso, segue o pingue-pongue sobre legitimidades. Chama atenção o argumento de respeitar a soberania da Venezuela, os países reconhecerem o governo de fato sem se imiscuir nos assuntos internos dali. Seria um argumento, não fosse pelo detalhe incômodo de ter sido ignorado lá atrás quando um dia o então governo petista usou contra o Paraguai a mesma lógica dos hoje adversários do petismo no imbroglio venezuelano.
Em 2012, o presidente paraguaio, Fernando Lugo, alinhado à esquerda, sofreu um impeachment-relâmpago heterodoxo, ainda que sustentado na letra da Constituição. A oposição aqui ao então governo petista exigiu respeitar a soberania do vizinho, mas a administração Dilma Rousseff enxergou a janela de oportunidade para incorporar a Venezuela ao Mercosul, o que vinha sendo bloqueado pelo Congresso em Assunção, de viés conservador.
A soberania paraguaia foi deixada de lado pelo Mercosul, o Paraguai foi suspenso e os demais introduziram Caracas no bloco, num “gol de mão". Depois os paraguaios voltaram ao grupo, mas o objetivo já fora atingido.
Harvey Keitel interpreta o sujeito que chega para limpar e dar sumiço na sujeira sanguinolenta produto de um homicídio cometido dentro de um carro. A frieza, objetividade e competência do “The Wolf” entraram para a história do cinema.
Os ovos já tinham virado omelete.
Aí chegou o ano da graça de 2016, e um momentâneo consenso subcontinental de governos à direita suspendeu a Venezuela, situação que persiste.
Fica a lição sobre a ingenuidade de levar excessivamente a sério as argumentações baseadas em doutrinas e princípios. Nas relações entre países, e em outras esferas da política, o argumento que costuma prevalecer é a força. Resta aos ideólogos e propagandistas tentar copiar o inesquecível Winston Wolfe, “The Cleaner” (limpador, ou faxineiro) no Pulp Fiction (1994) de Quentin Tarantino.
Aí chegou o ano da graça de 2016, e um momentâneo consenso subcontinental de governos à direita suspendeu a Venezuela, situação que persiste.
Fica a lição sobre a ingenuidade de levar excessivamente a sério as argumentações baseadas em doutrinas e princípios. Nas relações entre países, e em outras esferas da política, o argumento que costuma prevalecer é a força. Resta aos ideólogos e propagandistas tentar copiar o inesquecível Winston Wolfe, “The Cleaner” (limpador, ou faxineiro) no Pulp Fiction (1994) de Quentin Tarantino.
Harvey Keitel interpreta o sujeito que chega para limpar e dar sumiço na sujeira sanguinolenta produto de um homicídio cometido dentro de um carro. A frieza, objetividade e competência do “The Wolf” entraram para a história do cinema.
*
Por falar em teatro na política, e só para retomar um assunto inconcluso, segue o mistério. Luiz Inácio Lula da Silva e o PT descem a ripa em Roberto Campos Neto, mas os diretores do Banco Central nomeados pelo atual governo, incluído o suposto favorito para assumir a presidência do BC, votam alinhados com o presidente do banco.
sábado, 3 de agosto de 2024
Enrosco venezuelano
O impasse em torno da eleição na Venezuela aprisionou a política exterior brasileira na
contradição que esta corteja há tempos: qual a prioridade do Brasil no âmbito regional, expandir
a hegemonia político-ideológica do campo alinhado ao petismo ou consolidar a liderança brasileira
numa região que pendula, mas exibe um pluralismo bastante resiliente?
O dilema jogou um papel relevante na crise que tragou o PT na Operação Lava- Jato. Mas isso é passado, é história.
Sobre a disputa venezuelana, Luiz Inácio Lula da Silva vê-se diante de problemas intrincados.
Cabe ao governo de Caracas provar que ganhou mesmo a eleição, mas os dados das atas de urna jogam contra. E o governo dos Estados Unidos reconheceu a vitória da oposição. Seguir o caminho oposto levará o Brasil a um confronto aberto com Washington.
O que não seria tão complicado se Donald Trump estivesse na Casa Branca, porém Lula tem uma fatura aberta com Joe Biden por causa do apoio recebido em 2022 e no início de 2023, quando Jair Bolsonaro contestou a vitória do petista.
E Lula ambiciona voltar a um certo protagonismo global desfrutado nos primeiros mandatos. Aí precisa equilibrar-se entre 1) cortejar o campo político liderado por China e Rússia (para o que contribui sua inclinação estratégica pelo Irã na disputa de hegemonia no Oriente Médio); e 2) preservar o bom trânsito no campo atlantista.
De olho no segundo objetivo, o presidente brasileiro dispõe de três boas cartas na manga: a COP 30, o acordo Mercosul-União Europeia e a liderança regional.
A primeira vai melhor do que o segundo, mas a expectativa europeia de abocanhar o mercado brasileiro e sul-americano em troca apenas de arrochar um pouco seus próprios agricultores pode amortecer eventuais dissonâncias.
Só que tem também o terceiro ponto.
Lula não é um principiante na arte do equilibrismo, mas pequenas aporrinhações de vez em quando atrapalham.
O governo brasileiro conviveria sem maiores problemas com a Venezuela governada pela centro-direita, especialmente se Brasília tivesse um papel na estabilização política em Caracas. Mas, e as íntimas relações históricas com o chavismo? Daí, aparentemente, o Planalto ter adotado a linha de deixar o assunto resolver-se por si só.
Ainda que tudo seja provisório numa conjuntura tão instável.
Dias atrás Biden trocou umas ideias com Lula sobre o enrosco, pouco antes de o Departamento de Estado reconhecer que a oposição venezuelana ganhou no voto. É improvável que o americano não tenha avisado o brasileiro das suas intenções. Tampouco é provável que não se tenham acertado em algum grau.
Afinal, um dos papéis que Washington reserva a Lula é tomar conta da área. O Brasil, a Colômbia e o México ajudaram a derrotar na Organização dos Estados Americanos a demanda para que o governo da Venezuela apresente as atas de urna que comprovem sua declarada vitória, mas logo depois soltaram um comunicado pedindo exatamente a mesma coisa.
O dilema jogou um papel relevante na crise que tragou o PT na Operação Lava- Jato. Mas isso é passado, é história.
Sobre a disputa venezuelana, Luiz Inácio Lula da Silva vê-se diante de problemas intrincados.
Cabe ao governo de Caracas provar que ganhou mesmo a eleição, mas os dados das atas de urna jogam contra. E o governo dos Estados Unidos reconheceu a vitória da oposição. Seguir o caminho oposto levará o Brasil a um confronto aberto com Washington.
O que não seria tão complicado se Donald Trump estivesse na Casa Branca, porém Lula tem uma fatura aberta com Joe Biden por causa do apoio recebido em 2022 e no início de 2023, quando Jair Bolsonaro contestou a vitória do petista.
E Lula ambiciona voltar a um certo protagonismo global desfrutado nos primeiros mandatos. Aí precisa equilibrar-se entre 1) cortejar o campo político liderado por China e Rússia (para o que contribui sua inclinação estratégica pelo Irã na disputa de hegemonia no Oriente Médio); e 2) preservar o bom trânsito no campo atlantista.
De olho no segundo objetivo, o presidente brasileiro dispõe de três boas cartas na manga: a COP 30, o acordo Mercosul-União Europeia e a liderança regional.
A primeira vai melhor do que o segundo, mas a expectativa europeia de abocanhar o mercado brasileiro e sul-americano em troca apenas de arrochar um pouco seus próprios agricultores pode amortecer eventuais dissonâncias.
Só que tem também o terceiro ponto.
Lula não é um principiante na arte do equilibrismo, mas pequenas aporrinhações de vez em quando atrapalham.
O governo brasileiro conviveria sem maiores problemas com a Venezuela governada pela centro-direita, especialmente se Brasília tivesse um papel na estabilização política em Caracas. Mas, e as íntimas relações históricas com o chavismo? Daí, aparentemente, o Planalto ter adotado a linha de deixar o assunto resolver-se por si só.
Ainda que tudo seja provisório numa conjuntura tão instável.
Dias atrás Biden trocou umas ideias com Lula sobre o enrosco, pouco antes de o Departamento de Estado reconhecer que a oposição venezuelana ganhou no voto. É improvável que o americano não tenha avisado o brasileiro das suas intenções. Tampouco é provável que não se tenham acertado em algum grau.
Afinal, um dos papéis que Washington reserva a Lula é tomar conta da área. O Brasil, a Colômbia e o México ajudaram a derrotar na Organização dos Estados Americanos a demanda para que o governo da Venezuela apresente as atas de urna que comprovem sua declarada vitória, mas logo depois soltaram um comunicado pedindo exatamente a mesma coisa.
sexta-feira, 26 de julho de 2024
As voltas da História e o rei nu
A troca palaciana forçada de Joe Biden por Kamala Harris na chapa situacionista para as eleições presidenciais norte-americanas oferece a oportunidade de comparações na História.
Uma referência possível é 1968, quando, no auge na onda de mobilizações desencadeadas pelo Maio parisiense, pelos protestos contra a Guerra do Vietnã e pelo prestígio das revoluções armadas, o Partido Democrata do liberal (ali isso significa esquerda) Hubert Horatio Humphrey Jr foi derrotado pelos republicanos de Richard Milhous Nixon.
Para refinar ainda mais os paralelismos, Humphrey era vice do incumbente, Lyndon Johnson, que desistira de concorrer precisamente por causa do desgaste trazido pela guerra no Sudeste Asiático. Dizem que a desistência foi apenas uma manobra e que Johnson imaginava retomar gloriosamente a indicação apresentando-se na hora "h" como a única alternativa ao caos entre os democratas.
Dizem também que ele foi demovido da ideia depois que o Serviço Secreto não lhe garantiu as necessárias condições de segurança para comparecer à conflagrada convenção partidária.
O ambiente agora entre os democratas parece bem mais pacificado, mas a disputa com o campo oposto será algo parecida, até por alguma semelhança reputacional entre Nixon e o atual desafiante republicano. Quem vai levar? O liberalismo cosmopolita de Kamala Harris ou o conservadorismo patriótico de Donald Trump?
Se a comparação mais imediata é com 1968, vale também dar uma olhada no que aconteceu quatro anos depois, quando o conflito vietnamita já caminhava para uma derrota calamitosa dos americanos e apareciam as primeiras sombras de Watergate. Mesmo assim, Nixon conseguiu a reeleição vencendo o democrata ultraliberal George Stanley McGovern em todos os estados, com exceção de Massachusetts e da capital (DC). Um landslide.
Claro que nestes nossos tempos acelerados meio século faz diferença, e os EUA hoje não são uma cópia do país de então. Estamos, como o culto a certa modernidade gosta de ressaltar, "em pleno século 21". De todo jeito, a disputa será uma medida de quanto os Estados Unidos mudaram ou continuam iguais.
Vale observar e verificar se Kamala Harris conseguirá agrupar a aliança social que deu vitórias recentes aos democratas, juntando uma base trabalhadora-sindical tradicionalista e o “wokismo” de elites liberais, financeiras e intelectuais. Ou se o radicalismo pretensamente modernizante empurrará, como em 2016, uma fração decisiva do antigo operariado para favorecer Trump em estados-chave pendulares.
Não à toa a demografia ali ganha terreno sobre a marquetagem. Isso muito se deve ao protagonismo dos resultados eleitorais estaduais naquele país, algo particularíssimo. Mas os grandes movimentos do eleitorado americano não refletem uma realidade apenas local. A Europa que o diga.
Ainda sobre a troca de candidatos no Partido Democrata, é relevante que a fragilidade mental de Biden para governar só tenha sido admitida por seu campo político depois de escancarada no primeiro debate.
Um típico caso de “o rei estava nu”, para recorrer ao clássico sobre a roupa nova do monarca. Um exemplo paradigmático de como ter lado (e todo mundo tem um) acaba limitando a capacidade de o jornalismo cumprir sua primeira missão: contar o que realmente acontece.
O Poder360 fez uma matéria interessante sobre isso.
E restará para sempre a dúvida se a agora ex-campanha de Biden não era só uma operação política para eleger Kamala sem ela precisar disputar no voto.
Uma referência possível é 1968, quando, no auge na onda de mobilizações desencadeadas pelo Maio parisiense, pelos protestos contra a Guerra do Vietnã e pelo prestígio das revoluções armadas, o Partido Democrata do liberal (ali isso significa esquerda) Hubert Horatio Humphrey Jr foi derrotado pelos republicanos de Richard Milhous Nixon.
Para refinar ainda mais os paralelismos, Humphrey era vice do incumbente, Lyndon Johnson, que desistira de concorrer precisamente por causa do desgaste trazido pela guerra no Sudeste Asiático. Dizem que a desistência foi apenas uma manobra e que Johnson imaginava retomar gloriosamente a indicação apresentando-se na hora "h" como a única alternativa ao caos entre os democratas.
Dizem também que ele foi demovido da ideia depois que o Serviço Secreto não lhe garantiu as necessárias condições de segurança para comparecer à conflagrada convenção partidária.
O ambiente agora entre os democratas parece bem mais pacificado, mas a disputa com o campo oposto será algo parecida, até por alguma semelhança reputacional entre Nixon e o atual desafiante republicano. Quem vai levar? O liberalismo cosmopolita de Kamala Harris ou o conservadorismo patriótico de Donald Trump?
Se a comparação mais imediata é com 1968, vale também dar uma olhada no que aconteceu quatro anos depois, quando o conflito vietnamita já caminhava para uma derrota calamitosa dos americanos e apareciam as primeiras sombras de Watergate. Mesmo assim, Nixon conseguiu a reeleição vencendo o democrata ultraliberal George Stanley McGovern em todos os estados, com exceção de Massachusetts e da capital (DC). Um landslide.
Claro que nestes nossos tempos acelerados meio século faz diferença, e os EUA hoje não são uma cópia do país de então. Estamos, como o culto a certa modernidade gosta de ressaltar, "em pleno século 21". De todo jeito, a disputa será uma medida de quanto os Estados Unidos mudaram ou continuam iguais.
Vale observar e verificar se Kamala Harris conseguirá agrupar a aliança social que deu vitórias recentes aos democratas, juntando uma base trabalhadora-sindical tradicionalista e o “wokismo” de elites liberais, financeiras e intelectuais. Ou se o radicalismo pretensamente modernizante empurrará, como em 2016, uma fração decisiva do antigo operariado para favorecer Trump em estados-chave pendulares.
Não à toa a demografia ali ganha terreno sobre a marquetagem. Isso muito se deve ao protagonismo dos resultados eleitorais estaduais naquele país, algo particularíssimo. Mas os grandes movimentos do eleitorado americano não refletem uma realidade apenas local. A Europa que o diga.
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Ainda sobre a troca de candidatos no Partido Democrata, é relevante que a fragilidade mental de Biden para governar só tenha sido admitida por seu campo político depois de escancarada no primeiro debate.
Um típico caso de “o rei estava nu”, para recorrer ao clássico sobre a roupa nova do monarca. Um exemplo paradigmático de como ter lado (e todo mundo tem um) acaba limitando a capacidade de o jornalismo cumprir sua primeira missão: contar o que realmente acontece.
O Poder360 fez uma matéria interessante sobre isso.
E restará para sempre a dúvida se a agora ex-campanha de Biden não era só uma operação política para eleger Kamala sem ela precisar disputar no voto.
sábado, 22 de junho de 2024
Uma briga combinada?
As orientações políticas e econômicas no Brasil parecem presas, há décadas, num labirinto de contradições, sem chance de encontrar a rota de saída. Daí o país viver eternamente seu Dia da Marmota, seu “Groundhog Day”, o também eterno clássico de 1993 com Bill Murray e Andie McDowell. Com uma diferença: o filme tem um desfecho.
A Constituição de 1988 apresenta-se, e é apresentada, como o esteio da nossa dita democracia, mas todo presidente que entra traz como primeira iniciativa mudar a Constituição. O texto caminha para as quatro décadas de vida, mas não se passou um dia desde então sem que o debate econômico girasse também em torno da necessidade de mexer profundamente nele.
Fora da economia, há bem menos iniciativas por mudar a Carta produzida pela última Constituinte, mas a vida, como o rio diante de uma barreira, acaba encontrando seus caminhos. Um deles é a metamorfose informal do Supremo Tribunal Federal (STF) em corte Constituinte, em vez de Corte constitucional, a pretexto de interpretar e atualizar o escrito. Coisas do Brasil.
A obra dos constituintes legou-nos também a combinação genial (ironia) entre 1) o Pacote de Abril de 1977; 2) um generoso pluripartidarismo; 3) o voto proporcional em lista aberta; e 4) eleições presidenciais em dois turnos. O resultado prático? Nenhum presidente consegue eleger com si mesmo uma maioria parlamentar.
Repare o leitor que todo governo brasileiro atravessa o mandato enroscado com dois problemas: as "inadiáveis reformas" (a do momento é a tributária, mas já, já vem aí de novo a previdenciária) e os meandros de uma articulação política paralisante. E todo governo aceita essa ordem de prioridades como fato determinado.
Mais ou menos como a turma presa dentro da mansão em outro clássico, “O Anjo Exterminador” (1962), de Luis Buñuel (o final não deixa de apontar dicas de saídas para o impasse brasileiro). E qual o resultado da relativa impotência? Acelerar a tendência contemporânea de as narrativas ocuparem completamente o lugar das ações na alimentação das percepções.
Sobre este último aspecto, é interessante notar que já são alguns dias desde a retomada, em outro patamar, da refrega entre os presidentes da República e do Banco Central, sem que uma dúvida preliminar se esclareça. Por que os indicados de Luiz Inácio Lula da Silva votaram com Roberto Campos Neto para interromper a sequência de quedas da taxa básica de juros?
Bem, ou 1) era isso mesmo que, tecnicamente, tinha de ser feito para evitar a corrosão acelerada da moeda, que seria politicamente fatal para o governo; ou 2) os nomeados por Lula capitularam diante dos neoliberais e das pressões do mercado. No segundo caso, esperava-se que a bancada do atual governo no BC entrasse na linha de tiro do oficialismo. Mas não. Só quem apanha é o presidente do banco.
E as personalidades governamentais que mantêm abertos os vasos comunicantes com a banca sustentam, com seu silêncio, as posições da autoridade monetária. Resta ao observador suspeitar que, na impossibilidade de sair do labirinto, estamos diante de mais uma cena do permanente teatro da política brasileira.
Uns falam para as bases, outros para o dinheiro. No final, o poder se protege de todos os lados.
É uma hipótese a demonstrar, mas que seria coerente com a velha máxima atribuída ao chefe da Constituinte de 1987-88, Ulysses Guimarães. Ele dizia que em Brasília até a briga é combinada.
A Constituição de 1988 apresenta-se, e é apresentada, como o esteio da nossa dita democracia, mas todo presidente que entra traz como primeira iniciativa mudar a Constituição. O texto caminha para as quatro décadas de vida, mas não se passou um dia desde então sem que o debate econômico girasse também em torno da necessidade de mexer profundamente nele.
Fora da economia, há bem menos iniciativas por mudar a Carta produzida pela última Constituinte, mas a vida, como o rio diante de uma barreira, acaba encontrando seus caminhos. Um deles é a metamorfose informal do Supremo Tribunal Federal (STF) em corte Constituinte, em vez de Corte constitucional, a pretexto de interpretar e atualizar o escrito. Coisas do Brasil.
A obra dos constituintes legou-nos também a combinação genial (ironia) entre 1) o Pacote de Abril de 1977; 2) um generoso pluripartidarismo; 3) o voto proporcional em lista aberta; e 4) eleições presidenciais em dois turnos. O resultado prático? Nenhum presidente consegue eleger com si mesmo uma maioria parlamentar.
Repare o leitor que todo governo brasileiro atravessa o mandato enroscado com dois problemas: as "inadiáveis reformas" (a do momento é a tributária, mas já, já vem aí de novo a previdenciária) e os meandros de uma articulação política paralisante. E todo governo aceita essa ordem de prioridades como fato determinado.
Mais ou menos como a turma presa dentro da mansão em outro clássico, “O Anjo Exterminador” (1962), de Luis Buñuel (o final não deixa de apontar dicas de saídas para o impasse brasileiro). E qual o resultado da relativa impotência? Acelerar a tendência contemporânea de as narrativas ocuparem completamente o lugar das ações na alimentação das percepções.
Sobre este último aspecto, é interessante notar que já são alguns dias desde a retomada, em outro patamar, da refrega entre os presidentes da República e do Banco Central, sem que uma dúvida preliminar se esclareça. Por que os indicados de Luiz Inácio Lula da Silva votaram com Roberto Campos Neto para interromper a sequência de quedas da taxa básica de juros?
Bem, ou 1) era isso mesmo que, tecnicamente, tinha de ser feito para evitar a corrosão acelerada da moeda, que seria politicamente fatal para o governo; ou 2) os nomeados por Lula capitularam diante dos neoliberais e das pressões do mercado. No segundo caso, esperava-se que a bancada do atual governo no BC entrasse na linha de tiro do oficialismo. Mas não. Só quem apanha é o presidente do banco.
E as personalidades governamentais que mantêm abertos os vasos comunicantes com a banca sustentam, com seu silêncio, as posições da autoridade monetária. Resta ao observador suspeitar que, na impossibilidade de sair do labirinto, estamos diante de mais uma cena do permanente teatro da política brasileira.
Uns falam para as bases, outros para o dinheiro. No final, o poder se protege de todos os lados.
É uma hipótese a demonstrar, mas que seria coerente com a velha máxima atribuída ao chefe da Constituinte de 1987-88, Ulysses Guimarães. Ele dizia que em Brasília até a briga é combinada.
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Em férias. Até a volta.
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