sábado, 20 de abril de 2024

Um esboço de (começo de) autópsia

Merecerá estudos, algum dia, a transição da promessa de uma democracia constitucional pluralista, base do otimismo histórico da redemocratização de 1984-85, para nosso atual ensaio de “democracia hobbesiana”, em que a única disputa real é sobre que lobo conseguirá, ao fim e ao cabo, eliminar a possibilidade de alternância no poder.

Tais reflexões deverão necessariamente dissecar a paradoxal absorção hoje em dia das narrativas excepcionalizantes do regime militar pelos que um dia se opuseram a ele e foram construindo, ao longo dos anos 1970 e 80, o movimento afinal vitorioso, cristalizado na Constituição de 1988. Um debate essencial se dará sobre se a deriva era inevitável ou se foi uma escolha.

Talvez ainda seja cedo para concluir a autópsia da ordem político-institucional produzida ali, apesar de ela jazer sem vida, mas vale começar a especular a respeito de onde começou a desandar. É natural que a esquerda finque o primeiro landmark na crise desencadeada pelas acusações de Roberto Jefferson em 2005. E que aponte especial destaque à Operação Lava-Jato e ao impeachment de Dilma Rousseff.

Assim como será natural, no futuro, os atuais movimentos da Justiça brasileira serem destaque na historiografia de direita.

Mas há dois acontecimentos, com suas circunstâncias, que exigirão um olhar mais detido, apesar de hoje estar algo ausentes das narrativas em choque. Um é o impeachment/renúncia do primeiro presidente eleito diretamente após o fim da ditadura, Fernando Collor de Mello. As mesmas forças que haviam saído às ruas em 1984 para exigir as diretas lideraram a derrubada dele.

Também por Collor representar, em algum grau, o ancien régime.

Se há argumentos para defender que Dilma foi vítima de um processo sem base substancial, qualquer um que se detenha nos motivos para a deposição de Collor notará a mesma, ou maior, vacuidade de elementos. A diferença é faltar ao ex-presidente quem esteja interessado em reabilitar a imagem histórica dele. No limite, falta-lhe um partido.

Ou talvez a origem do desandar precise ser buscada um pouco antes, no ambiente político que cercou o mandato de José Sarney. Quando a democracia liberal constitucional mostrou sua cara, junto veio um fabricado horror a seus aspectos menos elegantes. Especialmente a necessidade de o Executivo buscar maioria parlamentar por meio de negociação política que obrigatoriamente envolvesse concessões materiais.

É de então a ojeriza seletiva ao “toma lá dá cá” e o celebrizar de expressões como “fisiologismo”, hoje em conveniente desuso. Mas sempre ali na gaveta para qualquer necessidade.

Combinada aos fracassos na luta anti-inflacionária daqueles tempos, a repulsa à “política realmente existente” foi o tiro de largada, o “big bang” dos sucessivos surtos de neogolpismo dos antes não golpistas, ou antigolpistas. E um dos primeiros capítulos se deu quando os democratas radicais de 1984-85 tentaram amputar na Constituinte em dois anos o mandato de Sarney. No fim, conseguiram cortar um.

O que levou à eleição “solteira” de 1989, à vitória “bonapartista” de Collor e a todas as consequências que, como advertia o Conselheiro Acácio, vieram depois. Na base de tudo, aquela ojeriza à política e o veto a alternâncias reais. E aqui estamos.

sábado, 6 de abril de 2024

O debate econômico costeia o alambrado

O debate sobre o papel da economia no atual desgaste do governo vem “costeando o alambrado”, como diria Leonel Brizola. A razão é política. O ministro da Fazenda tem o mérito de conquistar para si alguma blindagem em áreas empresariais potencialmente mais refratárias a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT. No que, por tabela, acaba ajudando o presidente e o partido. Pois, ao fim e ao cabo, apoiar o ministro é apoiar o governo.

Deve-se também a esse fator a aceitação algo passiva da lógica que comanda a equação econômica em curso. Já que Lula não quer nem ouvir falar em cortar gastos, ao contrário, e já que Fernando Haddad deve boa parte da sustentação política dele na sociedade ao compromisso com alguma disciplina fiscal, a pauta da inevitabilidade de medidas que anabolizem receitas governamentais vem descendo goela abaixo da opinião pública com menos aspereza do que seria se os personagens fossem outros.

Adaptando Ortega y Gasset, as opiniões, no mais das vezes, são elas próprias combinadas com suas circunstâncias.

Em outras circunstâncias, a crítica do mainstream estaria voltada para a “sanha arrecadatória” e a resistência a melhorar a produtividade da máquina pública. Mas, nas condições dadas da conjuntura, o laser está apontado para o Congresso quando este resiste à pressão por mais impostos, mesmo que resultantes só do fim de renúncias fiscais. Pouca atenção se dá às dúvidas em torno da premissa: a resultante de aumentar agora a receita como proporção do PIB é boa ou ruim para a economia?

Justiça se faça a Lula, ele cansou de dizer que colocaria "os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda”. Aqui não tem estelionato nenhum, a orientação econômica do governo é uma social-democracia clássica: promover mais justiça social redistribuindo, via Estado, parte do valor socialmente produzido e concentrado. O desafio? Combinar esse distributivismo com a necessidade de um crescimento econômico robusto, que depende quase totalmente do investimento privado.

A social-democracia não está exatamente na moda no berço dela, a Europa. Nos Estados Unidos, enfrenta a dura oposição de um liberalismo econômico que casou com o conservadorismo dito cultural. E esses são países e regiões cujo nível da economia coloca até menos pressão na necessidade de desenvolvimento. Entre nós, o modelo social-democrata até agora passa longe de explicar como combinar o distributivismo com o estímulo a que os capitalistas invistam.

O governo Lula diz ter a solução: expandir o poder de compra da população expande o mercado e, portanto, é um chamado ao investimento privado. Um caminho diferente seria apostar principalmente na formação de poupança e no investimento produtivo privados, a trilha que a Ásia tomou para estar onde está. Menos social-democracia e mais capitalismo na veia.

Independentemente do caminho a seguir, o governo parece pouco capaz de entender certas características do Brasil que governa, produto até das anteriores administrações petistas. As razões histórico-econômicas merecem um detalhamento, mas o Brasil é, ou se acha, muito mais de classe média do que duas décadas atrás.

E, quando o governo e Lula falam em -e agem para- “colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda”, e como o Brasil não tem tantos ricos assim para sustentar um distributivismo mais agressivo, é natural que acenda uma luz amarela diante da classe média, ou de quem se enxerga na classe média.

sábado, 30 de março de 2024

Agruras da política externa

Era previsível, e foi previsto, que o Brasil deste novo mandato petista encontraria algumas encruzilhadas complicadas na política exterior. Resultado principalmente de certa compulsão por protagonismo, mesmo nas situações em que nossa sede por liderar não encontra bases objetivas para pelo menos parecer natural.

Deve-se considerar aqui o compreensível desejo do presidente da República por retomar certo papel pessoal em escala planetária. Um problema nesse particular tem sido a assimetria entre as aspirações de Luiz Inácio Lula da Silva e a capacidade real de o Brasil projetar poder.

No popular, o risco de dar pitaco onde não foi chamado.

Essa assimetria leva o presidente a ficar excessivamente exposto ou, como se diz em linguagem militar, com as linhas mais estendidas do que recomendaria a prudência.

De todo modo, “o Brasil voltou” vem sendo pilar fundamental da política externa deste governo, até num certo paralelismo com o “America is back” de Joe Biden. No caso do vizinho do norte, a materialização do slogan não tem revelado resultados propriamente brilhantes. Afeganistão, Ucrânia e Gaza que o digam.

Óbvio que, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil está isento de ser acusado de provocar a eclosão de qualquer guerra. O problema aqui é outro: o rebatimento para o cenário interno das ações do Itamaraty e de Lula não tem trazido capital político ao governo e ao presidente, ao contrário.

Há, ainda, mais um problema insolúvel nesse aspecto da ação governamental, além da já citada desconexão entre o que o Brasil é o que Lula quer ser: qualquer política exterior que se apresente como fundada em princípios morais a seguir ferreamente revela-se alguma hora contraditória e até hipócrita, ou mesmo farsesca.

O que a enfraquece.

É caso da posição brasileira sobre as eleições na Venezuela. É visível ali que o presidente Nicolás Maduro procura aproximar a vitória eleitoral alijando da disputa os adversários potencialmente mais capazes de derrotá-lo. A suavidade e o cuidado do Brasil diante disso trazem rachaduras na tese de que, por aqui, a aliança entre governo Lula e STF em defesa da legitimidade do processo eleitoral vem sendo o alicerce da defesa da democracia.

A propósito de Gaza, as declarações de Lula que parecem contribuir para alguma erosão na popularidade governamental vêm sendo explicadas a posteriori pela indignação do presidente diante do sofrimento humano ali. O problema é essa indignação só aparecer em algumas situações politicamente convenientes, quando o lado a acusar não inclui companheiros de viagem.

Uma seletividade que tira força do argumento.

A boa notícia é as soluções para os tropeços estarem à mão. O assunto Venezuela poderia ser facilmente contornado se o Brasil se limitasse a dizer que as eleições ali são assunto interno e que vamos nos relacionar com qualquer governo eleito pelos venezuelanos. A velha ferramenta do respeito à autodeterminação dos povos.

Bandeira que já foi popular entre a esquerda.

O problema? Se o princípio vale para as relações com a Venezuela, deveria valer também para a Argentina de Javier Milei. E para muitos outros casos. Até porque governante e comentarista de política internacional são atividades bem distintas, que não se confundem.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Propósito e pertencimento, os dois pês

Os últimos levantamentos recolocam na roda o debate sobre o peso da economia nas decisões do eleitorado. A primazia do vetor econômico é quase um dogma desde que Bill Clinton derrotou George H W Bush em 1992, com o “é a economia, estúpido”, o lema interno da equipe da campanha vitoriosa.

Tal dogmática, entretanto, não explica os cenários quando a economia vai bem, mas mesmo assim o governo sofre perdas estatísticas no apoio. Como parece ser o caso agora aqui no Brasil, situação que ainda não se sabe se é pontual ou tendência.

Uma explicação envereda pela tese de que a polarização acaba secundarizando os efeitos políticos da economia.

A tese ainda espera comprovação, e há dados político-eleitorais recentes que lançam pontos de dúvida sobre ela. Um deles é a boa avaliação dos prefeitos em geral, situação que em certa medida se repete com os governadores, ressalvada uma ou outra exceção. A avaliação dos governadores e prefeitos parece menos contaminada pela polarização.

Sobre a economia, uma hipótese a analisar é sua importância crescer na eleição quando 1) a economia vai mal ou quando 2) vai bem e há a ameaça real de piorar se o governo mudar de mãos. Quando políticas econômicas propostas por governo e oposição apontam para rumos parecidos, diminui a letalidade eleitoral provocada pelo medo da mudança.

Outro cuidado a tomar é sobre o que se quer dizer com “a economia”. Ela pode estar indo bem nos números macro que abastecem as manchetes, mas é sempre prudente olhar para o microcosmo das pessoas e das famílias, se se quer fazer um diagnóstico mais preciso. E nunca se deve perder de vista a equação “resultado - expectativa = satisfação”.

Quando um governo só olha para suas entregas, e se esquece de comparar com as expectativas que criou, pode ser surpreendido pela queda na satisfação do eleitorado.

Debater a economia é fundamental, ela sempre tem grande peso na decisão do voto. Mas talvez valha a pena olhar também para outras variáveis. Especialmente quando, como agora, não se vislumbra que as possíveis trocas de guarda no Brasil trariam mudanças radicais na condução econômica.

Também por a área econômica deste governo e sua orientação continuarem recebendo sustentação maciça em meios informativos tradicionais. Os mesmos que no passado ofereciam sua rede de segurança para autoridades às quais o PT se opunha na época. Excetuadas as turbulências trazidas por declarações e decisões presidenciais pontuais, reina na área boa dose de paz.

Sem subestimar a economia, tampouco é demais olhar para aspectos mais subjetivos dos mecanismos de produção de opiniões políticas. O capital político dos governos sempre se beneficia de dois pês: propósito e pertencimento. Quando está claro a que veio o governo, e quando ele passa a sensação de querer o bem de todo mundo, e não só de sua turma.

Acirrar as contradições e estimular a guerra de todos contra todos pode ser útil para reforçar o poder momentâneo, mas um efeito colateral é produzir sensação de exclusão em áreas que o andamento da economia pode até, eventualmente, estar beneficiando.

Por isso se diz que a política tem de andar de mãos dadas com a economia, para que a safra eleitoral não decepcione.

sábado, 9 de março de 2024

Qualquer gordurinha pode fazer falta

As pesquisas recentes deram visibilidade ao fim do período de graça deste terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, graça cuja extensão foi diretamente proporcional à durabilidade e ao brilho dos percalços jurídicos do antecessor. Não que o fim da graça a Lula faça descer as cortinas para o contraponto a Jair Bolsonaro, ao contrário, mas doravante a atual administração estará cada vez mais pressionada a dizer a que veio.

Seria precipitado creditar o brusco fim da graça a um único vetor. Como na surrada comparação com acidentes aéreos, é mais prudente olhar para uma cesta de variáveis que foram, e estão, amadurecendo devagar, até um dia o acúmulo quantitativo produzir a alteração qualitativa.

Elementos que contribuem para incrementar dificuldades do governo:

1) Algum grau de desaceleração da economia, combinada com a pressão dos preços da comida. Os bons números do PIB de 2023 foram carregados principalmente pela largada do ano e pelo agronegócio. Todas as previsões, ou ao menos a maioria, são algo otimistas para o desempenho da economia em 2024, mas, ao contrário do ano passado, a previsão é que os números só ficarão mais lustrosos na medida em que o ano avançar.

2) O mercado de trabalho melhorou em 2023, mas persiste o velho problema da baixa qualidade dos empregos. Os setores intensivos em mão de obra não lideram a recuperação da economia.

3) O aspecto mais visível da orientação econômica é o desejo de aumentar a arrecadação de impostos. Mesmo que o governo repise o mantra de taxar os ricos para dar aos pobres, nunca se deve esquecer que o Brasil é um país de classe média numerosa. E todo mundo sabe que para efeito de aumentar imposto governos costumam extremamente flexíveis na definição de “rico”.

4) O governo talvez esteja transmitindo a impressão de ocupar-se muito com assuntos a que a população dá menos importância. E pouco com os temas mais sensíveis ao eleitorado. A população, segundo as pesquisas, parece não ver maiores entregas reais nas áreas que tradicionalmente se revezam no topo da preocupação popular, com destaque para a saúde e a segurança pública.

5) A posição do governo basileiro em relação a Israel ajuda a repaginar a oposição. O noticiário sobre Bolsonaro e os dele vinha girando só em torno da agenda judicial. A importação, por Lula, da ultrapolaridade na guerra Israel x Hamas, temperada por outras abordagens igualmente “fora da caixa” sobre política exterior, oferece à oposição temas mais nobres, que ela naturalmente agarra. O ato de 25/2 em São Paulo foi um bom termômetro.

Entretanto, até o momento, o que Lula perdeu principalmente foi apoio numa camada de gente que não votou nele em 2022, mas vinha dando seu voto de confiança ao presidente e ao governo. Por enquanto, o governo e o presidente só queimaram gordura.

O problema é que num cenário de divisão eleitoral acirrada qualquer gordurinha pode fazer falta lá adiante. Sem contar que, quando a gordura acaba, o organismo acaba tendo de consumir tecidos mais nobres.

domingo, 3 de março de 2024

Sai a dialética, entra a aritmética

O tamanho, a coesão política e a dirigibilidade da manifestação liderada por Jair Bolsonaro em 25/2 na cidade de São Paulo deixaram mais visível uma inversão de papéis. No passado não tão distante era a esquerda quem trabalhava para ocupar as ruas e mostrar poder de mobilização, restando à direita depreciar a contabilidade adversária e ameaçar com a polícia.

O observador algo atento nota, faz anos, que a esquerda vem frequentando mais as antessalas do Ministério Público e dos tribunais, e menos os locais de trabalho onde poderia estabelecer contato com quem declara representar. A fraqueza dos sindicatos e entidades associativas dos trabalhadores fala por si.

Não que não haja na mesma esquerda inquietação e perplexidade a respeito. Algumas explicações apontam para as mudanças estruturais no mercado de trabalho. Elas têm seu papel, mas também ajudam a dar imerecido protagonismo a um confortável fatalismo determinista.

Outro viés é o circular. “Estamos desconectados das bases porque não damos suficiente atenção ao contato com as bases.” Verdade, mas não ajuda. É um sistema possível e indeterminado. Admite infinitas soluções. O que não resolve o problema de quem persegue “a” solução.

O terceiro viés é a fuga para adiante. Acreditar que falta à massa de trabalhadores a iluminação de compreender a necessidade do autogoverno. O pensamento talvez reflita um estágio superior de desconexão entre intelectuais e povo. Deve haver assunto mais ausente dos desejos da massa, mas encontrá-lo seria desafio e tanto.

Uma dificuldade que atrapalha muito é o abandono da saudável tradição polemista-argumentativa. Ela saiu de cena e deu lugar à ditadura das narrativas, uma variante do terraplanismo aplicado à política.

“Fazer a disputa” ultimamente resume-se a reunir mais apoio para martelar teses de laboratório até colher o relatório que mostra você em vantagem sobre o oponente nas redes sociais. A aritmética substituiu a dialética.

Por que terraplanismo? Porque a Terra não se tornaria plana nem se toda a humanidade comparecesse ao ex-Twitter (hoje “X”) para afirmar que o planeta é, na verdade, um disco bem achatado.

Talvez não haja assunto mais instigante, e inquietante, nos meios ditos progressistas do que o avanço da direita sobre os grupos sociais que a esquerda julgava historicamente reservados para si. E, quando o problema entra em pauta, vem junto a circularidade entre o “falta trabalho de base” e o “falta consciência”.

É possível que o desvendar da incômoda equação esteja mais à mão do que parece. Depende, entretanto, de a esquerda aceitar que a realidade talvez não ande bem encaixada nos desejos. Ajuda, também, procurar aprender com a experiência, olhar para o que já aconteceu e tentar, se possível, dar crédito ao que dá certo e desconfiar do que costuma dar errado.

A esquerda moderna, até como rótulo, nasceu na Revolução Francesa, com os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Mais adiante, a filosofia da práxis vinculou a terceira consigna à busca do desenvolvimento. Deixando para trás, num primeiro momento, o ludismo, e, muito depois, quando a China se livrou da Revolução Cultural, um igualitarismo a-histórico.

Não estivéssemos em plena era de terraplanismo político, deveria despertar curiosidade intelectual a direita ter tomado da esquerda as bandeiras da liberdade e do desenvolvimento, e até da igualdade. Já a esquerda defende restringir a primeira, adverte que o segundo vai destruir a vida no planeta e reinterpreta a terceira revestimdo de opressores boa parte dos que um dia disse serem oprimidos.

Uma certa repulsa à modernidade, que, sem surpresas, traz junto teratologias como o “socialismo dos tolos”, tão bem descrito por August Bebel.

Outra mudança, talvez até mais estrutural, é o abandono pela esquerda, e a captura pela direita, da ideia de emancipação nacional. Isso fica para uma próxima.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Na caixa de brita

O Oriente Médio e as redondezas são uma cumbuca daquelas de macaco velho evitar pôr a mão. Seguem abaixo cinco exemplos de agora mesmo:

1) O Irã talvez seja o principal aliado operacional da Rússia no conflito ucraniano. Só Belarus emparelha, em alguma medida. E a Rússia deve sediar esta semana em Moscou uma cúpula política das principais correntes palestinas. Ao mesmo tempo, Israel e Rússia mantêm um acordo que permite aos israelenses atacar alvos iranianos no aliado-chave de Vladimir Putin ali, a Síria, sem ser ameaçados pelo potente armamento antiaéreo russo.

2) O Azerbaijão, de maioria xiita e fronteira com o Irã, é aliado firme de Israel. As relações no terreno militar e de energia são fortíssimas. Um pouco disso ficou comprovado nos conflitos recentes com a Armênia pelo controle de Nagorno-Karabakh. E armênios acusam a Rússia de ajudar, mesmo que indiretamente, os azeris, apesar de Moscou ter um acordo militar com Yerevan, que por sua vez ameaça arrastar uma asa para a Otan.

3) Transcorridos quase cinco meses da guerra entre Israel e o Hamas, não se nota até o momento (atencao para o Ramadã na Esplanada das Mesquitas) quase nenhuma reação da “rua árabe”. Protestos anti-Israel concentram-se no Ocidente. Na Cisjordânia, frustraram-se por enquanto as expectativas de um levante popular a partir de 7/10. A explicação: a Fatah, rival do Hamas, espera que Israel complete a missão, total ou parcialmente, para, com apoio norte-americano, a Autoridade Palestina tentar retomar Gaza a custo quase zero.

4) Países árabes que estabeleceram relações com Israel nos Acordos de Abraão, na presidência de Donald Trump, não tomaram nenhuma decisão drástica contra Jerusalém até o momento.

5) Precisou haver uma guerra de verdade ali para se perceber que o bloqueio e as restrições à entrada e saída de material militar em Gaza são uma ação conjunta de Israel e do Egito.

A esta altura, a leitura atenta já detectou meu uso abusivo do “por enquanto”, do “até o momento” etc. A prudência obriga. Afinal, estamos tratando do Oriente Médio e arredores, onde as alianças e afastamentos são mais dinâmicos até do que no nosso Congresso Nacional.

Aquilo é material com que mesmo os profissionais se atrapalham, vide a catastrófica falha da inteligência israelense no 7/10, que muito provavelmente levará à aposentadoria de Benjamin Netanyahu (outro erro dos analistas é achar que a mudança de guarda ali trará mudança importante de políticas).

Se os profissionais enrolam-se, tanto mais os amadores. Ficará na história o também catastrófico erro de cálculo de Yahia Sinwar, que fez a leitura completamente errada do grau de desagregação política interna em Israel e do estado das alianças globais do país.

Erros e falhas que carregam na sua contabilidade a tragédia dos mortos, dos feridos, das vidas destroçadas.

O Oriente Médio é um lugar (vou recorrer aos lugares-comuns) onde o apressado come cru e para todo problema complexo alguém aparece com uma solução simples, e errada. Uma hora a pessoa se entusiasma, calcula mal a tomada da curva, derrapa, sai da pista e atola na caixa de brita. E daí acelera e acelera em busca do retorno salvador ao providencial asfalto, sem entretanto sair do lugar. E fazendo atolar junto um monte de gente que em nada contribuiu para a derrapada.