O governo enfrenta turbulências para montar sua base parlamentar e quase três meses depois da largada não parece estar perto de uma solução. A tentação é debitar isso a algum tipo de falha humana, mas será honesto notar que a nova administração enfrenta um cenário de complexidade inédita nas relações com o Congresso Nacional. Pois está sem instrumentos tão eficazes assim para disciplinar uma base.
Pois não basta montá-la, ela precisa funcionar, especialmente na dificuldade. Exércitos devem saber desfilar, porém mais importante é lutar e vencer batalhas e guerras.
O objetivo de todo político é ampliar seu poder, ou no mínimo perenizar o existente. Deputados sonham com o Senado. Deputados e senadores sonham com governos estaduais e, por que não?, com a Presidência da República. Mas o programa mínimo de todo parlamentar é reeleger-se. Para isso precisa de apoio municipalista, pois nem o mais prestigiado dono de “voto de opinião” pode dispensar os estoques de eleitorado nas cidades.
Eleitorado que sempre mantém algum vínculo de clientela com prefeitos e vereadores, especialmente nas pequenas e médias.
Regra geral, o deputado vitorioso conseguiu eleger-se arrebanhando um bom naco dos votos na sua base eleitoral raiz, mas para chegar lá precisou do eleitor pulverizado em dezenas ou centenas de municípios.
As emendas parlamentares ao orçamento federal ajudam a cumprir esse papel. As últimas décadas vêm assistindo a uma certa depreciação moral do mecanismo junto à opinião pública, mas não tem jeito: nosso pork barrel é essencial para disciplinar o Parlamento. Porém ele só é eficaz quando funciona por uma lógica de premiação prioritária dos mais fiéis. Ser governo tem ônus, por isso é razoável que o governismo seja compensado com algum bônus.
Ser base de governo só faz sentido quando mais ajuda do que atrapalha a reproduzir o próprio poder. No caso específico das emendas parlamentares, é natural que os governistas tenham mais recursos orçamentários do que os oposicionistas para destinar às bases eleitorais. Mas, no Brasil acostumado ao achincalhamento do toma lá dá cá e à promoção de um pseudo-republicanismo hipócrita, é esperado que o Parlamento prefira ocultar isso.
O enfraquecimento quase terminal de Dilma Rousseff e Michel Temer e, na sequência, a luta de Jair Bolsonaro para chegar ao fim do mandato tiveram como efeito colateral a gigantesca anabolização das emendas parlamentares, pois o custo político de sobreviver na Presidência costuma crescer hiperbolicamente conforme se esvai o poder real do ocupante da cadeira. Disso tudo nasceu o teratoma da emenda de relator de muitos bilhões de reais.
Que para impacto jornalístico recebeu o rótulo de “orçamento secreto”. Para que o apoio congressual ao governo funcione, é sempre necessária uma porção “secreta” (não é pública a informação de que parlamentar destinou aquele recurso) no orçamento destinado às emendas. Mas a opinião pública tem dinâmicas próprias, e o assunto virou escândalo quando, em vez de alguns caraminguás, o montante chegou à casa dos dez dígitos.
Ao longo da campanha eleitoral, a oposição atacou o “orçamento secreto” com dois objetivos. Retomar para o eventual governo do PT o comando da discricionariedade na destinação do grosso das emendas parlamentares e emagrecer o mecanismo, para trazer de volta ao Executivo recursos destinados a investimento num orçamento federal grandemente engessado e amarrado a gastos obrigatórios de custeio.
Mas na hora de resolver o problema alguma coisa não saiu conforme o planejado, pois o resultado prático do acordo costurado após o STF “derrubar o orçamento secreto” 1) manteve o volume de dinheiro destinado a emendas parlamentares e 2) transformou boa parte da emenda de relator em emendas individuais, identificáveis, mas de execução obrigatória, pelo mecanismo chamado “orçamento impositivo”.
O produto da lambança é que todo deputado tem para 2023, no mínimo, mais de 30 milhões de reais para destinar às bases eleitorais, e cada senador tem mais quase 60 milhões. Independentemente de como votar ao longo destes quatro anos. Claro que quem votar com o governo vai poder destinar um tanto a mais, proveniente do orçamento próprio dos ministérios, mas a execução impositiva já garante ao parlamentar o colchão capaz de construir uma campanha eleitoral bem competitiva.
Fato ainda mais importante quando as contribuições empresariais de campanha estão proibidas e quando os recursos do fundo eleitoral costumam ser comidos pelas candidaturas majoritárias. E quando o que sobra do fundo eleitoral para os candidatos proporcionais fica ao arbítrio do dono da legenda.
Uma consequência do paradoxal enfraquecimento das emendas para efeito de disciplinamento da base, apesar do gigantesco volume de recursos nisso empregado, é o acirramento da disputa por espaços na máquina, que havia arrefecido em algum grau no governo Bolsonaro. Mas compreende-se a relutância do governo em abrir espaços generosos para forças políticas que até outro dia estavam contra Luiz Inácio Lula da Silva e o PT.
Só que dois terços do Congresso Nacional habitam do centro para a direita.
Há ainda outro mecanismo algo eficaz para disciplinar bases legislativas: a ameaça potencial de o dono dos votos majoritários não apoiar o parlamentar, ou apoiar um concorrente na base dele. Mas esse mecanismo funcionava mais com Bolsonaro, pois a maioria do Congresso provinha de um eleitorado alinhado ou inclinado ao então presidente. Agora, a maioria dos parlamentares elegeram-se ou contra Lula ou correndo em raia independente.
O nó é complexo.
Análise Política
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
sábado, 18 de março de 2023
sábado, 11 de março de 2023
A economia, a política e os candidatos a amigos
Os dados da inflação não vieram bons nesta semana, especialmente o que os economistas chamam de núcleo do índice, não tão vulnerável aos choques de um ou outro item. A taxa parece resiliente. Nuvens carregadas, que prenunciam turbulências econômicas e políticas. Mantidas as atuais metas inflacionárias, o Banco Central dificilmente afrouxará os juros, se é que não vai apertar. E é pule de dez que, nesse caso, o governo não ficará só reclamando pela imprensa.
A tática governamental, por enquanto, tem sido dar sinais de que vai caminhar com alguma responsabilidade fiscal, na expectativa de sensibilizar o mercado e influenciar positivamente as expectativas, criando assim as condições para o BC não ter outro caminho a não ser desapertar a corda no pescoço da economia. Na teoria, pode funcionar. O problema talvez sejam os fatos, sempre teimosos. Os últimos números da inflação enquadram-se nessa categoria.
Um fato é o juro real do Brasil ser líder no mundo. Outro fato é a inflação estar num patamar desconfortável para a autoridade da moeda, pois mesmo com o juro obeso as taxas caminham longe do atingimento da meta. Onde está o nó? A tarefa legal do BC é buscar a meta, mas o governo acha o alvo atual irrealista. Na teoria, não seria complicado resolver: o governo tem dois dos três votos do Conselho Monetário Nacional, pode subir a meta.
É possível que o Planalto esteja preparando terreno para fazer isso. E vem aí o projeto de uma nova âncora fiscal, para substituir o falecido teto de gastos. Por enquanto, revogou-se parcialmente a desoneração dos combustíveis e taxaram-se as exportações de petróleo, num esforço para aumentar as receitas e ajudar o resultado primário. Um sinal bem claro de que o governo não economizará esforços para arrecadar.
Ao mesmo tempo, não dá sinal de nenhum esforço para cortar gastos. O que tampouco deve provocar surpresa. A linha econômica em execução segue as convicções dos eleitos. É verdade que havia alguma fé em que a frente ampla para eleger Luiz Inácio Lula da Silva produziria, talvez por geração espontânea, um governo algo liberal e austero na economia. Neste caso a fé não parece, por enquanto, capaz de mover montanhas.
Tivesse maioria parlamentar confortável, o governo certamente partiria para uma reforma mais estrutural, acabando com a autonomia do BC. Sem isso, precisará ater-se ao seu próprio cercadinho, e é bom, portanto, ficar de olho numa eventual elevação da meta de inflação. O que traz o risco de mais deterioração de expectativas, e daí mais aperto vindo do BC. Só que, na prática, é o caminho hoje disponível para o governo agir sem depender do Parlamento.
Onde aliás o Executivo vive uma encruzilhada. Não tem uma maioria firme, nem goza de um potencial alinhamento programático, algo que sempre reduz o custo de manter uma base funcional. O governo é de esquerda e o Congresso inclina-se à direita. Na teoria, este poderia ser disciplinado com verbas e cargos, mas nem todo o estímulo material transformará bancadas eleitas em alinhamento com Jair Bolsonaro numa cidadela em defesa do programa do PT.
Lula, experiente, sabe que corre o risco de concessões maximalistas que produzam, no máximo, apoio congressual minimalista. E resiste. O risco para ele está em a desaceleração econômica, agravada pelo esforço do BC para conter a inflação, trazer uma corrosão de popularidade que empodere os hoje candidatos a amigos, inimigos até outro dia e que não teriam nenhuma dificuldade para voltar a ser.
A tática governamental, por enquanto, tem sido dar sinais de que vai caminhar com alguma responsabilidade fiscal, na expectativa de sensibilizar o mercado e influenciar positivamente as expectativas, criando assim as condições para o BC não ter outro caminho a não ser desapertar a corda no pescoço da economia. Na teoria, pode funcionar. O problema talvez sejam os fatos, sempre teimosos. Os últimos números da inflação enquadram-se nessa categoria.
Um fato é o juro real do Brasil ser líder no mundo. Outro fato é a inflação estar num patamar desconfortável para a autoridade da moeda, pois mesmo com o juro obeso as taxas caminham longe do atingimento da meta. Onde está o nó? A tarefa legal do BC é buscar a meta, mas o governo acha o alvo atual irrealista. Na teoria, não seria complicado resolver: o governo tem dois dos três votos do Conselho Monetário Nacional, pode subir a meta.
É possível que o Planalto esteja preparando terreno para fazer isso. E vem aí o projeto de uma nova âncora fiscal, para substituir o falecido teto de gastos. Por enquanto, revogou-se parcialmente a desoneração dos combustíveis e taxaram-se as exportações de petróleo, num esforço para aumentar as receitas e ajudar o resultado primário. Um sinal bem claro de que o governo não economizará esforços para arrecadar.
Ao mesmo tempo, não dá sinal de nenhum esforço para cortar gastos. O que tampouco deve provocar surpresa. A linha econômica em execução segue as convicções dos eleitos. É verdade que havia alguma fé em que a frente ampla para eleger Luiz Inácio Lula da Silva produziria, talvez por geração espontânea, um governo algo liberal e austero na economia. Neste caso a fé não parece, por enquanto, capaz de mover montanhas.
Tivesse maioria parlamentar confortável, o governo certamente partiria para uma reforma mais estrutural, acabando com a autonomia do BC. Sem isso, precisará ater-se ao seu próprio cercadinho, e é bom, portanto, ficar de olho numa eventual elevação da meta de inflação. O que traz o risco de mais deterioração de expectativas, e daí mais aperto vindo do BC. Só que, na prática, é o caminho hoje disponível para o governo agir sem depender do Parlamento.
Onde aliás o Executivo vive uma encruzilhada. Não tem uma maioria firme, nem goza de um potencial alinhamento programático, algo que sempre reduz o custo de manter uma base funcional. O governo é de esquerda e o Congresso inclina-se à direita. Na teoria, este poderia ser disciplinado com verbas e cargos, mas nem todo o estímulo material transformará bancadas eleitas em alinhamento com Jair Bolsonaro numa cidadela em defesa do programa do PT.
Lula, experiente, sabe que corre o risco de concessões maximalistas que produzam, no máximo, apoio congressual minimalista. E resiste. O risco para ele está em a desaceleração econômica, agravada pelo esforço do BC para conter a inflação, trazer uma corrosão de popularidade que empodere os hoje candidatos a amigos, inimigos até outro dia e que não teriam nenhuma dificuldade para voltar a ser.
sábado, 4 de março de 2023
Um olho na economia, outro no Congresso
A guerra das narrativas dá boa pista dos objetivos e táticas do governo neste 2023. Dada a premissa de um ano de baixo crescimento, mas de inflação algo resiliente, o Planalto já conseguiu alguma aderência à explicação de que a culpa será do Banco Central e de suas taxas de juros realmente estratosféricas.
A dúvida no momento são duas: 1) se ou quando o Executivo mandará seus votos demissíveis (Fazenda e Planejamento, dois dos três membros do Conselho Monetário Nacional; o outro é o BC) subir a meta de inflação; e 2) se ou quando Luiz Inácio Lula da Silva enviará ao Congresso proposta acabando com a autonomia do BC.
Pois apontar culpados funciona durante algum tempo, mas, no limite, governos são eleitos para resolver problemas. Um problema, paradoxalmente, é medidas como as acima terem potencial para provocar deterioração de expectativas, e o resultado prático acabar neutralizando as intenções. É uma encruzilhada.
Uma vantagem de Lula: outra eleição presidencial, só daqui a quase quatro anos. Se tiver boa base congressual, pode perfeitamente atravessar um eventual vale de popularidade e esperar pela subida do morro. Em condições muito piores, Jair Bolsonaro viu a recuperação pós-pandemia turbinar seu desempenho em 2022.
Para atravessar, entretanto, Lula precisa manter sólida a base social que lhe deu um terceiro mandato e sustentar a disputa nos demais grupos. No momento, as pesquisas mostram os cerca de 40% que votaram nele no segundo turno felizes com o governo, e pelo menos metade do resto (quem votou em Bolsonaro ou não apertou nem 13 nem 22) lhe dando algum crédito.
No ambiente de profunda divisão política na sociedade, não chega a ser ruim. Mas está longe de repetir os cenários da louvação pós-posse em 2003 ou da consagração ao final do segundo mandato, em 2010. A sociedade hoje está em disputa. A direita está viva, nas duas vertentes. Apenas espera a oportunidade.
Pois as mesmas pesquisas mostram que dois em cada dez brasileiros concordam com as reivindicações dos manifestantes de 8 de janeiro, e, incrivelmente, um em cada dez concorda com os métodos utilizados por eles. Em caso de mudança no humor coletivo, é uma massa crítica disponível para alavancar movimentos.
De um lado, o governo trabalha para administrar esse humor e conta com a capacidade comunicacional do presidente. Mas o restrospecto recomenda que também tenha cuidado com o Congresso, onde sua base é mais fluida do que seria prudente. A pressão do momento é sobre o União Brasil.
O Planalto avalia que o custo-benefício de dar três ministérios à legenda não está sendo bom. A pressão serve para esquentar a chapa sob o partido, mas também para mandar um recado aos demais integrantes da base não propriamente programático-ideológica do governo.
Mas, se o sentimento der uma piorada, quem vai crescer na relação será o Parlamento, pois o estímulo a apoiar o governo é função de duas variáveis: há as vantagens materiais aos congressistas, mas se o eleitor estiver ressabiado o parlamentar acaba sentindo sua base eleitoral mais vulnerável à concorrência.
A dúvida no momento são duas: 1) se ou quando o Executivo mandará seus votos demissíveis (Fazenda e Planejamento, dois dos três membros do Conselho Monetário Nacional; o outro é o BC) subir a meta de inflação; e 2) se ou quando Luiz Inácio Lula da Silva enviará ao Congresso proposta acabando com a autonomia do BC.
Pois apontar culpados funciona durante algum tempo, mas, no limite, governos são eleitos para resolver problemas. Um problema, paradoxalmente, é medidas como as acima terem potencial para provocar deterioração de expectativas, e o resultado prático acabar neutralizando as intenções. É uma encruzilhada.
Uma vantagem de Lula: outra eleição presidencial, só daqui a quase quatro anos. Se tiver boa base congressual, pode perfeitamente atravessar um eventual vale de popularidade e esperar pela subida do morro. Em condições muito piores, Jair Bolsonaro viu a recuperação pós-pandemia turbinar seu desempenho em 2022.
Para atravessar, entretanto, Lula precisa manter sólida a base social que lhe deu um terceiro mandato e sustentar a disputa nos demais grupos. No momento, as pesquisas mostram os cerca de 40% que votaram nele no segundo turno felizes com o governo, e pelo menos metade do resto (quem votou em Bolsonaro ou não apertou nem 13 nem 22) lhe dando algum crédito.
No ambiente de profunda divisão política na sociedade, não chega a ser ruim. Mas está longe de repetir os cenários da louvação pós-posse em 2003 ou da consagração ao final do segundo mandato, em 2010. A sociedade hoje está em disputa. A direita está viva, nas duas vertentes. Apenas espera a oportunidade.
Pois as mesmas pesquisas mostram que dois em cada dez brasileiros concordam com as reivindicações dos manifestantes de 8 de janeiro, e, incrivelmente, um em cada dez concorda com os métodos utilizados por eles. Em caso de mudança no humor coletivo, é uma massa crítica disponível para alavancar movimentos.
De um lado, o governo trabalha para administrar esse humor e conta com a capacidade comunicacional do presidente. Mas o restrospecto recomenda que também tenha cuidado com o Congresso, onde sua base é mais fluida do que seria prudente. A pressão do momento é sobre o União Brasil.
O Planalto avalia que o custo-benefício de dar três ministérios à legenda não está sendo bom. A pressão serve para esquentar a chapa sob o partido, mas também para mandar um recado aos demais integrantes da base não propriamente programático-ideológica do governo.
Mas, se o sentimento der uma piorada, quem vai crescer na relação será o Parlamento, pois o estímulo a apoiar o governo é função de duas variáveis: há as vantagens materiais aos congressistas, mas se o eleitor estiver ressabiado o parlamentar acaba sentindo sua base eleitoral mais vulnerável à concorrência.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023
Falta combinar com os americanos
O título faz evidentemente referência ao célebre diálogo entre Garrincha e o treinador Vicente Feola antes do jogo contra a URSS na Copa de 1958. O técnico explicava, em detalhes, como seria a partida, e daí o Mané (com maiúscula) disse que o roteiro era muito bom, mas questionou se Feola já tinha combinado com os russos.
A diplomacia brasileira parece empenhada num jogo aparentemente inteligente: aproximar-se dos Estados Unidos no delicado tema da guerra da Ucrânia para, em troca, manter o essencial da liberdade de movimentos entre o Brasil e seu principal parceiro econômico, a China.
Isso implica algum sofrimento nas relações com a Rússia, mas Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty parecem ter avaliado como positiva a relação custo-benefício. Não se faz mesmo omelete sem quebrar ovos.
Entretanto, quando a esperteza é muita sempre pode virar bicho e comer o dono, e daí a malícia brasileira corre o risco de esbarrar num obstáculo: o alinhamento dos EUA e seus aliados do Norte global contra a Rússia é apenas estação intermediária na projeção da guerra principal deles contra a China.
Guerra que por enquanto se dá principalmente no campo econômico, com todo tipo de sanções, mas ensaia transbordar para outras esferas.
A aproximação entre Brasil e Estados Unidos anda facilitada pela semelhança da agenda sócio-comportamental-ambiental dos dois governos e pelo apoio, informal mas consistente, da administração Joe Biden a Luiz Inácio Lula da Silva na eleição do ano passado.
O ambiente amistoso e o amplo consenso programático na visita do brasileiro à Casa Branca não deixaram dúvidas.
Vivemos agora tempos muito diferentes de quando a então presidente Dilma Rousseff soube que tinha sido espionada pela administração Barack Obama, de quem Biden era vice. Disputando a reeleição, Dilma houve por bem cancelar uma prestigiosa “visita de estado” aos americanos.
Eram também tempos em que a digital estadunidense apareceu na Operação Lava-Jato. O que acirrou, compreensivelmente, o antiamericanismo dentro do Partido dos Trabalhadores. Mas nada resiste à passagem do tempo e aos interesses. E agora o cenário mudou.
O problema para o Brasil é o buraco estar mais embaixo. A disputa entre a unipolaridade e a multipolaridade não leva jeito de atenuar.
Será interessante acompanhar a evolução desse desfile, para ver como a nova linha se encaixa no enquadramento brasileiro aos Brics. Que aliás estão em fase de ampliação. Na composição atual, o Brasil é o único do grupo a mostrar simpatia pela tríade EUA-OTAN-UE no tema ucraniano.
O Itamaraty desencadeou uma de suas habituais operações “votamos nisso na ONU, mas não era bem nisso que queríamos votar”. Esforça-se para justificar um certo neo-atlantismo pelo viés da tradicional busca brasileira por soluções pacíficas e negociadas para os conflitos. Os fatos, sempre teimosos, trarão o resultado.
E há sempre a possibilidade de os diversos interlocutores chegarem à conclusão de que o Brasil tem relevância apenas relativa em escala planetária, que a movimentação brasileira se deve a um apetite de protagonismo não sustentado materialmente. E que, portanto, talvez não valha a pena arrumar confusão conosco.
Quem sabe seja uma solução.
A diplomacia brasileira parece empenhada num jogo aparentemente inteligente: aproximar-se dos Estados Unidos no delicado tema da guerra da Ucrânia para, em troca, manter o essencial da liberdade de movimentos entre o Brasil e seu principal parceiro econômico, a China.
Isso implica algum sofrimento nas relações com a Rússia, mas Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty parecem ter avaliado como positiva a relação custo-benefício. Não se faz mesmo omelete sem quebrar ovos.
Entretanto, quando a esperteza é muita sempre pode virar bicho e comer o dono, e daí a malícia brasileira corre o risco de esbarrar num obstáculo: o alinhamento dos EUA e seus aliados do Norte global contra a Rússia é apenas estação intermediária na projeção da guerra principal deles contra a China.
Guerra que por enquanto se dá principalmente no campo econômico, com todo tipo de sanções, mas ensaia transbordar para outras esferas.
A aproximação entre Brasil e Estados Unidos anda facilitada pela semelhança da agenda sócio-comportamental-ambiental dos dois governos e pelo apoio, informal mas consistente, da administração Joe Biden a Luiz Inácio Lula da Silva na eleição do ano passado.
O ambiente amistoso e o amplo consenso programático na visita do brasileiro à Casa Branca não deixaram dúvidas.
Vivemos agora tempos muito diferentes de quando a então presidente Dilma Rousseff soube que tinha sido espionada pela administração Barack Obama, de quem Biden era vice. Disputando a reeleição, Dilma houve por bem cancelar uma prestigiosa “visita de estado” aos americanos.
Eram também tempos em que a digital estadunidense apareceu na Operação Lava-Jato. O que acirrou, compreensivelmente, o antiamericanismo dentro do Partido dos Trabalhadores. Mas nada resiste à passagem do tempo e aos interesses. E agora o cenário mudou.
O problema para o Brasil é o buraco estar mais embaixo. A disputa entre a unipolaridade e a multipolaridade não leva jeito de atenuar.
Será interessante acompanhar a evolução desse desfile, para ver como a nova linha se encaixa no enquadramento brasileiro aos Brics. Que aliás estão em fase de ampliação. Na composição atual, o Brasil é o único do grupo a mostrar simpatia pela tríade EUA-OTAN-UE no tema ucraniano.
O Itamaraty desencadeou uma de suas habituais operações “votamos nisso na ONU, mas não era bem nisso que queríamos votar”. Esforça-se para justificar um certo neo-atlantismo pelo viés da tradicional busca brasileira por soluções pacíficas e negociadas para os conflitos. Os fatos, sempre teimosos, trarão o resultado.
E há sempre a possibilidade de os diversos interlocutores chegarem à conclusão de que o Brasil tem relevância apenas relativa em escala planetária, que a movimentação brasileira se deve a um apetite de protagonismo não sustentado materialmente. E que, portanto, talvez não valha a pena arrumar confusão conosco.
Quem sabe seja uma solução.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
O peso da História
Um paradoxo assombra a política e a análise política. Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores elegeram-se porque conseguiram atrair por gravidade o apoio de um segmento minoritário da direita não bolsonarista. Um setor que participara ativamente da ofensiva antilulista e antipetista no dito mensalão, na Lava-Jato, no impeachment de Dilma Rousseff e na inelegibilidade e prisão de Lula.
Decorre também desse paradoxo o cenário curioso, mas analiticamente bem decifrável, em que Lula está obrigado a fazer um governo de coalizão com o “centro”, pois não detém maioria parlamentar própria, está longe disso, enquanto busca a todo momento e em todos os terrenos fortalecer seu campo político, programática e organicamente, e enfraquecer esse centro.
Tem lógica, mas é uma linha algo diferente da do outro presidente Lula, aquele do passado.
Todo líder e grupo político buscam o poder. Se estão nele, a preocupação central é como mantê-lo. No caso de Lula e do PT, o cálculo delicado parece buscar o ponto ótimo em que a direita centrista estará com o governo para evitar sua queda, mas não ficará forte o suficiente para nutrir realisticamente ambições próprias. Ou, pior, voltar a flertar com o bolsonarismo que apoiou em 2018.
Enquanto oferece recompensas a esse grupo, ou conjunto de grupos, precisa também submetê-lo. É o que no PT se chama de “fazer a disputa”. No momento, Lula e o PT não estão “fazendo a disputa” somente contra Jair Bolsonaro, que afinal continua sendo o dono da esmagadora maioria do voto antipetista, mas também, e talvez principalmente, contra os companheiros ocasionais de viagem.
No passado, houve momentos em que Lula pareceu atraído pela possibilidade de as alianças táticas ganharem caráter estratégico. Entre 1989 e 1994, PT e PSDB foram partidos quase irmãos, ou pelo menos primos, nutridos ambos na luta contra o que se chamava de “corrupção e fisiologismo” da Nova República. O namoro acabou quando Fernando Henrique Cardoso se juntou ao PFL (hoje União Brasil) para derrotar Lula.
Depois, ao longo de seus 14 anos no Planalto, Lula pareceu progressivamente atraído pela possibilidade de uma união estável com o "centro democrático". O momento-chave foi quando buscou uma aliança com o então PMDB de Michel Temer na eleição da presidência da Câmara dos Deputados em 2007, o que abriu caminho para Temer ser o vice de Dilma em 2010. O mesmo Temer que viraria o pivô da deposição dela em 2016.
É verdade que em algum momento parte do PT calculou ser melhor para o futuro do partido a abreviação do governo Dilma. Outra verdade: na véspera do desfecho, Lula buscou os velhos aliados do MDB com um apelo dramático pela permanência de Dilma, mas bateu num muro de gelo. Ali já estava em pleno trabalho de parto o projeto de poder da aliança PMDB-PSDB.
Que depois foi atropelado pela revolução bolsonarista com quem o centro se abraçara em 2015-16.
A eleição de 2022 e os fatos recentes vêm ressuscitando o discurso da “frente ampla em defesa da democracia”, graças também à ajuda de Bolsonaro. Mas essa tentativa de repetição da história traz boa dose de artificialidade, pois, se é verdade que o PT nunca fez a autocrítica que os adversários lhe exigiram, também é fato que, no olhar de Lula e do PT, os hoje aliados são os mesmos que ontem os esfaquearam.
A História pesa.
Decorre também desse paradoxo o cenário curioso, mas analiticamente bem decifrável, em que Lula está obrigado a fazer um governo de coalizão com o “centro”, pois não detém maioria parlamentar própria, está longe disso, enquanto busca a todo momento e em todos os terrenos fortalecer seu campo político, programática e organicamente, e enfraquecer esse centro.
Tem lógica, mas é uma linha algo diferente da do outro presidente Lula, aquele do passado.
Todo líder e grupo político buscam o poder. Se estão nele, a preocupação central é como mantê-lo. No caso de Lula e do PT, o cálculo delicado parece buscar o ponto ótimo em que a direita centrista estará com o governo para evitar sua queda, mas não ficará forte o suficiente para nutrir realisticamente ambições próprias. Ou, pior, voltar a flertar com o bolsonarismo que apoiou em 2018.
Enquanto oferece recompensas a esse grupo, ou conjunto de grupos, precisa também submetê-lo. É o que no PT se chama de “fazer a disputa”. No momento, Lula e o PT não estão “fazendo a disputa” somente contra Jair Bolsonaro, que afinal continua sendo o dono da esmagadora maioria do voto antipetista, mas também, e talvez principalmente, contra os companheiros ocasionais de viagem.
No passado, houve momentos em que Lula pareceu atraído pela possibilidade de as alianças táticas ganharem caráter estratégico. Entre 1989 e 1994, PT e PSDB foram partidos quase irmãos, ou pelo menos primos, nutridos ambos na luta contra o que se chamava de “corrupção e fisiologismo” da Nova República. O namoro acabou quando Fernando Henrique Cardoso se juntou ao PFL (hoje União Brasil) para derrotar Lula.
Depois, ao longo de seus 14 anos no Planalto, Lula pareceu progressivamente atraído pela possibilidade de uma união estável com o "centro democrático". O momento-chave foi quando buscou uma aliança com o então PMDB de Michel Temer na eleição da presidência da Câmara dos Deputados em 2007, o que abriu caminho para Temer ser o vice de Dilma em 2010. O mesmo Temer que viraria o pivô da deposição dela em 2016.
É verdade que em algum momento parte do PT calculou ser melhor para o futuro do partido a abreviação do governo Dilma. Outra verdade: na véspera do desfecho, Lula buscou os velhos aliados do MDB com um apelo dramático pela permanência de Dilma, mas bateu num muro de gelo. Ali já estava em pleno trabalho de parto o projeto de poder da aliança PMDB-PSDB.
Que depois foi atropelado pela revolução bolsonarista com quem o centro se abraçara em 2015-16.
A eleição de 2022 e os fatos recentes vêm ressuscitando o discurso da “frente ampla em defesa da democracia”, graças também à ajuda de Bolsonaro. Mas essa tentativa de repetição da história traz boa dose de artificialidade, pois, se é verdade que o PT nunca fez a autocrítica que os adversários lhe exigiram, também é fato que, no olhar de Lula e do PT, os hoje aliados são os mesmos que ontem os esfaquearam.
A História pesa.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023
A quimera e a cor do gato
O governo ultrapassou seu primeiro obstáculo significativo ao vencer as eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Não garantiu ali, é verdade, um alinhamento automático, visto que os parlamentares estão amparados na solução político-jurídica alcançada para as emendas de relator. Mesmo quem decidir passar os quatro anos na oposição terá garantido um volume confortável de recursos para as bases eleitorais.
Mas, com a vitória, o Palácio do Planalto evitou a criação de um foco de turbulência e um ponto de apoio à atividade institucional da oposição. Arquimedes já dizia que com um ponto de apoio pode-se mover o mundo. Sem isso, a oposição continua ilhada num nicho desconfortável, marcado pelas circunstâncias do 8 de Janeiro e sob a sombra da figura dominante do ex-presidente, popular, mas politicamente imobilizado, ou quase.
As vitórias no Congresso, entretanto, se evitam turbulências adicionais prematuras, não alteram o quadro estratégico. O governo eleito ano passado precisa navegar em meio a 1) um Legislativo de maioria conservadora; 2) um Judiciário onipresente e onipotente; e 3) Forças Armadas ressabiadas. Daí que o presidente da República não possa se dar ao luxo de perder popularidade. E daí a importância da economia no curto/médio prazo.
Os sinais são contraditórios. O real está ganhando terreno junto ao dólar, o que vai ajudar a conter a inflação, oferecendo argumentos ao Executivo na queda de braço com o Banco Central em torno da nossa exuberante taxa real de juros. Mas, e se o avanço do real decorrer, principalmente, do belo prêmio oferecido a quem investe em títulos do Tesouro? Nesta hipótese, estaríamos retornando à armadilha da âncora cambial.
Que segura a inflação, mas também o crescimento.
E como ficariam, nesse cenário, os sonhos de reindustrialização? Complicado. Outro fator de complicação: a atividade e o emprego ensaiam alguma perda de fôlego, até pela defensiva empresarial. Num cenário de juros reais apetitosos e perspectiva de aumento da carga tributária (aparentemente, o caminho que o governo escolheu para burilar a reputação de disciplinado fiscal), é natural que as empresas cuidem antes de tudo do caixa.
Não se ouve falar em grandes planos de investimento.
O risco político para o governo Luiz Inácio Lula da Silva está na economia. A dupla Jair Bolsonaro/Paulo Guedes passou o bastão com um crescimento de 3% do PIB em 2022 e desemprego caindo de 12% para 8%. O alarido em torno do 8 de Janeiro, e adjacências, preenche o noticiário, mas não põe comida na mesa. Por isso, será saudável politicamente que a nova administração cuide de ao menos manter o ritmo da recuperação econômica.
Até agora, sabe-se que o governo quer promover uma reforma tributária, vai jogar todos os esforços nisso. Quer aproveitar o acúmulo congressual a respeito para avançar na busca de mais justiça social, por meio de impostos. É um compromisso de campanha. Mas falta saber que medidas o governo adotará para estimular o investimento privado, sem o que qualquer expectativa de crescer e criar empregos é quimera.
Parafraseando Deng Xiaoping, a discussão econômica tem girado em torno da cor do gato, sem que se tenha muita informação sobre como ele vai caçar os ratos.
Mas, com a vitória, o Palácio do Planalto evitou a criação de um foco de turbulência e um ponto de apoio à atividade institucional da oposição. Arquimedes já dizia que com um ponto de apoio pode-se mover o mundo. Sem isso, a oposição continua ilhada num nicho desconfortável, marcado pelas circunstâncias do 8 de Janeiro e sob a sombra da figura dominante do ex-presidente, popular, mas politicamente imobilizado, ou quase.
As vitórias no Congresso, entretanto, se evitam turbulências adicionais prematuras, não alteram o quadro estratégico. O governo eleito ano passado precisa navegar em meio a 1) um Legislativo de maioria conservadora; 2) um Judiciário onipresente e onipotente; e 3) Forças Armadas ressabiadas. Daí que o presidente da República não possa se dar ao luxo de perder popularidade. E daí a importância da economia no curto/médio prazo.
Os sinais são contraditórios. O real está ganhando terreno junto ao dólar, o que vai ajudar a conter a inflação, oferecendo argumentos ao Executivo na queda de braço com o Banco Central em torno da nossa exuberante taxa real de juros. Mas, e se o avanço do real decorrer, principalmente, do belo prêmio oferecido a quem investe em títulos do Tesouro? Nesta hipótese, estaríamos retornando à armadilha da âncora cambial.
Que segura a inflação, mas também o crescimento.
E como ficariam, nesse cenário, os sonhos de reindustrialização? Complicado. Outro fator de complicação: a atividade e o emprego ensaiam alguma perda de fôlego, até pela defensiva empresarial. Num cenário de juros reais apetitosos e perspectiva de aumento da carga tributária (aparentemente, o caminho que o governo escolheu para burilar a reputação de disciplinado fiscal), é natural que as empresas cuidem antes de tudo do caixa.
Não se ouve falar em grandes planos de investimento.
O risco político para o governo Luiz Inácio Lula da Silva está na economia. A dupla Jair Bolsonaro/Paulo Guedes passou o bastão com um crescimento de 3% do PIB em 2022 e desemprego caindo de 12% para 8%. O alarido em torno do 8 de Janeiro, e adjacências, preenche o noticiário, mas não põe comida na mesa. Por isso, será saudável politicamente que a nova administração cuide de ao menos manter o ritmo da recuperação econômica.
Até agora, sabe-se que o governo quer promover uma reforma tributária, vai jogar todos os esforços nisso. Quer aproveitar o acúmulo congressual a respeito para avançar na busca de mais justiça social, por meio de impostos. É um compromisso de campanha. Mas falta saber que medidas o governo adotará para estimular o investimento privado, sem o que qualquer expectativa de crescer e criar empregos é quimera.
Parafraseando Deng Xiaoping, a discussão econômica tem girado em torno da cor do gato, sem que se tenha muita informação sobre como ele vai caçar os ratos.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
O gato escaldado
Pouco a pouco, nota-se o surgimento de algum desconforto com Luiz Inácio Lula da Silva estar, essencialmente, governando com os dele e com as ideias dele e dos dele. O motivo da linha de Lula parece relativamente singelo e foi antevisto em meados do ano passado.
“Ao contrário do que propõe a sabedoria convencional, o ex-presidente evita (...) inclinar-se programaticamente ao centro. Uma hipótese é o petista querer atrasar esse movimento o máximo possível, para reduzir o alcance das inevitáveis concessões. Mas há outra explicação, pragmática: Lula não modera o discurso e o PT não lipoaspira seu programa porque, simplesmente, não precisam fazer isso.” (“Todos trabalham por Lula”, de 17 de junho de 2022).
A tática política costuma ser a expressão concentrada da correlação de forças. É verdade que Lula venceu as eleições por margem pequena e para isso dependeu dos minguados, ainda que decisivos na ocasião, votos do autonomeado centro democrático. o que poderia levar a duas conclusões opostas: 1) fazer de tudo para reter esses votos, portanto guinar ao centro; ou 2) buscar ampliar a base própria, para não depender desse pessoal nas próximas empreitadas.
Vale a pena ficar de olho na segunda hipótese.
Desde o último debate no segundo turno, Lula tem insistido na interpretação de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado. Isso tem o potencial de alienar hoje apoiadores, mas simultaneamente coloca o segmento na desconfortável posição de identificados com o hoje demonizado Jair Bolsonaro.
Pois o jogo da deposição de Dilma só foi decidido mesmo quando PSDB e o então PMDB se juntaram à direita raiz para alçar Michel Temer ao Planalto.
Na época, o centro democrático deu o número parlamentar para a operação, mas, como se verificaria depois, era a direita raiz quem já oferecia ao movimento a base de massas e o coração da narrativa. Não existe “inevitabilidade” política, mas essa associação permitiu a Bolsonaro arrastar por gravidade a esmagadora maioria dos votos do centro democrático em 2018 e, com isso, suplantar Fernando Haddad cavalgando o antipetismo.
Assim como Lula surfou na onda anti-Bolsonaro para atrair, também por gravidade, um contingente centrista quatro anos depois. Verificou-se, portanto, que se trata de um grupo pendular e instável. O raciocínio cartesiano recomendaria adulá-lo para retê-lo. Mas a política nem sempre é cartesiana, e às vezes vale a pena procurar desenvolver musculatura própria para não depender, ou depender menos, de companheiros de viagem.
Se com essas ações Lula vai colher hegemonia própria ou crise, os fatos dirão. Vai depender, na última linha da planilha, dos rumos da economia, se o petismo econômico “puro” conseguirá produzir bem-estar ou assitirá à desaceleração do crescimento e à perda de tração da queda do desemprego.
Sobre a economia, aliás, um detalhe que não ajuda na estabilidade das relações entre o petismo e o centrismo é exatamente o fator econômico na história da derrubada de Dilma.
Ao assumir, ela aceitou nomear um ministro da Fazenda liberal e adotar medidas econômicas que teoricamente lhe trariam apoio fora da esquerda. Aconteceu o contrário: os adversários centristas aproveitaram o choque político do “estelionato eleitoral” para acelerar o processo político desencadeado em junho de 2013, de que Dilma conseguira escapar na reeleição. O ditado é antigo mas vale: gato escaldado tem medo de água fria.
“Ao contrário do que propõe a sabedoria convencional, o ex-presidente evita (...) inclinar-se programaticamente ao centro. Uma hipótese é o petista querer atrasar esse movimento o máximo possível, para reduzir o alcance das inevitáveis concessões. Mas há outra explicação, pragmática: Lula não modera o discurso e o PT não lipoaspira seu programa porque, simplesmente, não precisam fazer isso.” (“Todos trabalham por Lula”, de 17 de junho de 2022).
A tática política costuma ser a expressão concentrada da correlação de forças. É verdade que Lula venceu as eleições por margem pequena e para isso dependeu dos minguados, ainda que decisivos na ocasião, votos do autonomeado centro democrático. o que poderia levar a duas conclusões opostas: 1) fazer de tudo para reter esses votos, portanto guinar ao centro; ou 2) buscar ampliar a base própria, para não depender desse pessoal nas próximas empreitadas.
Vale a pena ficar de olho na segunda hipótese.
Desde o último debate no segundo turno, Lula tem insistido na interpretação de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado. Isso tem o potencial de alienar hoje apoiadores, mas simultaneamente coloca o segmento na desconfortável posição de identificados com o hoje demonizado Jair Bolsonaro.
Pois o jogo da deposição de Dilma só foi decidido mesmo quando PSDB e o então PMDB se juntaram à direita raiz para alçar Michel Temer ao Planalto.
Na época, o centro democrático deu o número parlamentar para a operação, mas, como se verificaria depois, era a direita raiz quem já oferecia ao movimento a base de massas e o coração da narrativa. Não existe “inevitabilidade” política, mas essa associação permitiu a Bolsonaro arrastar por gravidade a esmagadora maioria dos votos do centro democrático em 2018 e, com isso, suplantar Fernando Haddad cavalgando o antipetismo.
Assim como Lula surfou na onda anti-Bolsonaro para atrair, também por gravidade, um contingente centrista quatro anos depois. Verificou-se, portanto, que se trata de um grupo pendular e instável. O raciocínio cartesiano recomendaria adulá-lo para retê-lo. Mas a política nem sempre é cartesiana, e às vezes vale a pena procurar desenvolver musculatura própria para não depender, ou depender menos, de companheiros de viagem.
Se com essas ações Lula vai colher hegemonia própria ou crise, os fatos dirão. Vai depender, na última linha da planilha, dos rumos da economia, se o petismo econômico “puro” conseguirá produzir bem-estar ou assitirá à desaceleração do crescimento e à perda de tração da queda do desemprego.
Sobre a economia, aliás, um detalhe que não ajuda na estabilidade das relações entre o petismo e o centrismo é exatamente o fator econômico na história da derrubada de Dilma.
Ao assumir, ela aceitou nomear um ministro da Fazenda liberal e adotar medidas econômicas que teoricamente lhe trariam apoio fora da esquerda. Aconteceu o contrário: os adversários centristas aproveitaram o choque político do “estelionato eleitoral” para acelerar o processo político desencadeado em junho de 2013, de que Dilma conseguira escapar na reeleição. O ditado é antigo mas vale: gato escaldado tem medo de água fria.
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