sábado, 25 de maio de 2024

A dura vida da bailarina

Há certos debates de viés filosófico que acabam tendo impacto imediato na política. O do momento é sobre o conceito de “verdade”. Buscam-se mecanismos que impeçam a contaminação do tecido social pela “não verdade”, e o caminho tateado é estabelecer normas para tanto e instâncias que as apliquem, premiando a verdade e punindo seu oposto.

Como se trata de um caso típico em que falar é mais fácil do que fazer, a tentativa por aqui vem atolando no pântano dos fatos, da correlação de forças e das malvadas contradições, sempre elas. Dois problemas imediatos já bem identificados: 1) achar os critérios que definam com alguma precisão qual é a verdade em cada caso e 2) quem ficará encarregado de julgar, premiar e punir.

Daí também um certo impasse legislativo em torno do tema, pois impor “a verdade” sem permitir que ela nasça a partir da observação da realidade e do confronto aberto entre opostos só é possível, e mesmo assim de maneira imperfeita e temporária, pelo terror. E, como mostra o retrospecto, todo regime que se sustenta apenas com base na violência tem encontro marcado com o colapso.

Já que estamos tratando da verdade, eis mais uma: é mais confortável deixar a racionalidade para lá, ou ignorar Werner Heisenberg e seu Princípio da Incerteza, e buscar o conforto do pensamento único. O curioso, mas não inesperado, é essa obsessão hoje ser marca de quem atravessou os anos 90, após o colapso do socialismo real na Europa, reclamando e se lamentando por causa da tentativa de impor o fim da história e a hegemonia liberal.

Mas exigir coerência na política é ingenuidade ou hipocrisia, não percamos tempo.

A análise vem se espantando com a resiliência da polarização. Como já dito em textos aqui, há algum equívoco em absolutizar, pois muitos governadores e prefeitos, talvez a maioria, conseguem escapar da própria bolha e lançar pontes ao campo dos que não votaram neles.

Porém a ossificação é um fato na esfera nacional. Talvez pelo protagonismo da política mais ideológica. Vai saber…

Talvez tenha a ver com uma lógica atualmente hegemônica, mais voltada a criminalizar ideias e ações políticas dos adversários do que a derrotá-los com algum uso da razão. Quando discutia sua prisão, Luiz Inácio Lula da Silva argumentava que retirá-lo de circulação não resolveria o problema dos oponentes, pois ele tinha deixado de ser apenas uma pessoa. Tinha se transformado numa ideia.

Se vale para ele, quem sabe valha também para os contra ele.

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E as armadilhas no caminho de quem tenta se apresentar como político guiado por princípios genéricos?

Nesta semana, o procurador no Tribunal Penal Internacional pediu a prisão de dois líderes israelenses e três do Hamas. O que causou certo desconforto entre parte dos críticos de Israel na Esplanada. Como festejar uma parte do parecer e criticar outra? Complicado. Ainda mais quando o presidente da Rússia também teve sua prisão decretada pelo TPI.

É mesmo dura a vida da bailarina.

sábado, 18 de maio de 2024

Tragédia e oportunidade. E o bilhete esquecido da Mega-Sena

Há pouca dúvida de que o Rio Grande do Sul é vítima principalmente não dos arroubos da mãe natureza, mas das ações, ou inações, de seus governantes. A prova definitiva está em que já tinha havido ali um evento climático de dimensões semelhantes, em 1941. E outros de menor intesidade são comuns.

Se a Holanda conseguiu e consegue há tanto tempo ganhar terras do mar, por que não seria possível proteger por aqui de maneira permanente áreas como a do Guaíba e da Lagoa dos Patos, tão potencialmente vulneráveis à subida das águas?

Sobre isso, há relatos de incúria estatal recente, descaso e desleixo, que serão objeto de investigação, e naturalmente resultarão conclusões convenientes para quem, à época, tiver mais força política para conduzi-la.

De todo modo, está aberta uma janela animadora de oportunidade em terras gaúchas para políticos que apareçam com propostas, e credibilidade, de como resolver os gravíssimos problemas imediatos e evitar, ou pelo menos tentar evitar, que se repitam.

A tragédia das inundações no Rio Grande do Sul é o que se pode chamar, neste caso com justiça, de evento politicamente disruptivo. Talvez ainda não nacionalmente, mas com certeza na esfera local. É possível (talvez agora eu esteja sendo otimista) que, por isso, as próximas disputas ali consigam escapar do ramerrame recente, para não dizer pantomima, das eleições brasileiras.

Repetindo, é uma janela de oportunidade fantástica para quem consiga se colocar numa perspectiva de futuro.

Também por isso, soam algo ridículas as lamúrias de que os atores estão se conduzindo politicamente. Luiz Inácio Lula da Silva e o PT têm agora a oportunidade de romper o isolamento político numa capital e num estado que já governaram e onde mais recentemente acabaram amputados da expectativa real de poder por forças políticas que agora amargam a desmoralização.

Seria também impensável Lula não se animar com a possibilidade de colocar uma cunha na região Sul, a que mais vem se opondo ao PT nas eleições. Imaginem qual seria a animação do campo oposto se algo similar atingisse algum estado do Nordeste e oferecesse a oportunidade de construir alternativa política a partir de necessidades vitais de um eleitorado levado ao desespero.

A tragédia no Sul é também uma oportunidade de Lula mostrar serviço para o conjunto e romper o cercadinho político-ideológico de seu campo político. Isso tem imposto a ele perda de capacidade hegemônica interna e relevância externa. Em 2022, o presidente ganhou na Mega-Sena da política, mas dá a impressão de não lembrar onde guardou o bilhete, e sem isso fica difícil sacar o prêmio.

sábado, 4 de maio de 2024

"É a política, estúpido"

O governo federal encontra alguns percalços pelo caminho. Isoladamente, não chegam a ter grande impacto, mas no conjunto acabam provocando sensação de desconforto. E a abordagem do governo tem sido tópica. O ato do Primeiro de Maio foi fraco? Culpa da fraca convocação. As relações com o Congresso andam pedregosas? Herança maldita de Jair Bolsonaro, que cedeu poder demais ao centrão. As pesquisas preocupam? Falta comunicar-se melhor.

A administração Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta ainda uma dificuldade adicional. Na esteira do ambiente produzido pelo 8/1, toda crítica contundente corre o risco de ver-se criminalizada, visto a declarada prioridade de proteger as instituições nacionais. Há poucas coisas mais perigosas para governos do que o apoio e a proteção praticamente consensuais na opinião pública. Pois nem os aplausos unânimes nem a interdição do debate conseguem represar eternamente os problemas ou o sentimento popular.

É a velha história do canário na mina de carvão.

São bem conhecidas na historiografia e na bibliografia as situações em que tudo parece estar sob controle, até que um dia, de repente, o poder topa com a urna ou com a rua. Ou com as duas. Os relâmpagos em céu azul.

Olhar para a política é o movimento mais prudente quando os problemas parecem chegar em série.

Certa leitura mecânica do impacto da economia na aritmética eleitoral tende a produzir determinismos perniciosos. Nem sempre uma economia positiva produz pesquisas, ou urnas, decisivamente a favor. Um exemplo é Joe Biden agora. Os números econômicos ali são bons, o incumbent sempre será competitivo, mas por enquanto a aprovação dele vai mal e ele come poeira para Donald Trump.

Outro exemplo é o próprio Bolsonaro. Chegou à disputa da reeleição com a economia recuperando-se bem, isso até permitiu a ele manter-se competitivo, mas não foi suficiente para compensar uma rejeição que pouco ou nada tinha a ver com a condução econômica. Recorde-se, por falar em bolso, que o então presidente mais que triplicou o valor do Bolsa Família, renomeado Auxílio Brasil, mas isso não lhe rendeu qualquer avanço substancial em votos no público beneficiado.

Nem sempre o “é a economia, estúpido,” (crédito ao Carville) é quem decide. Em eleições como a nossa para o Executivo, quando disputadas em dois turnos, é preciso ter 50% mais um dos votos. 50% menos um não adianta nada.

É possível que o governo Lula tenha partido de um diagnóstico pouco preciso quanto ao país que decidiu dar a ele este novo mandato. Na narrativa oficial, o Brasil precisava ser reconstruído. Mas talvez a vitória em 2022 tenha decorrido principalmente de uma rejeição à pessoa de Bolsonaro, nem tanto ao governo que ele presidia. O que talvez exigisse mais cuidado no manejar a polarização e mais esforços para a busca de pontos de contato e possíveis consensos entre os campos político-sociais.

Isolar o campo da direita e exercer o poder principalmente por meio da coerção jurídica têm tido alguma eficácia operacional, mas parecem reduzir a possibilidade da busca de consensos. Antonio Gramsci desenvolveu bem a relação entre coerção, consenso e conquista da hegemonia. Até numa ditadura propriamente dita é dificílimo governar contra metade da população. Quanto mais num regime político que mantém traços de democracia constitucional.

E o argumento de que a polarização estaria cristalizada não resiste ao teste empírico, pois diversos governadores e prefeitos da direita e da esquerda têm conseguido avançar sobre o eleitorado que preferiu o campo oposto na última eleição. Basta olhar os números atuais de avaliação e aprovação deles.

E tem também a combinação de vetores dos interesses da Fazenda (exibir disciplina fiscal) e do restante do Executivo (gastar, investir), sem que um e outro demonstrem qualquer preocupação com conter o gasto público ineficiente. A única resultante possível é a pressão para arrecadar mais. O governo sempre repete que a ideia é taxar os ricos, mas a cidadania acaba desconfiando, com alguma razão, que o esforço arrecadatório sairá do bolso dos de sempre e acabará no bolso dos de sempre.