segunda-feira, 24 de junho de 2019

A ferida Moro pode ser útil para incomodar um presidente que resiste a dividir poder

É arriscado estabelecer linhas de defesa que possam ser facilmente penetradas pelo oponente. Mas de vez em quando é o que dá para fazer.

Pressionados pelas revelações do Intercept, a Lava-Jato e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, montaram com certa rapidez a defesa em quatro pilares:

1) Foi invasão ilegal de privacidade
2) O material não necessariamente é autêntico
3) O material pode ter sido adulterado
4) Em resumo, trata-se de crime e de criminosos

Invadir e capturar mensagens privadas é crime, mas há jurisprudência pela legalidade de o jornalista divulgar material obtido fora da lei por terceiros, e a avaliação de interesse público é exclusiva do jornalista.

Há anos a Lava-Jato e Moro ajudam a consolidar esse entendimento.

A defesa do morismo tem sido criminalizar a coisa toda para, no limite, estancar a divulgação e, quem sabe?, responsabilizar criminalmente os jornalistas. Na linha do que está acontecendo com Julian Assange.

Difícil, mas não impossível num Brasil de jurisprudências flutuantes ao sabor das conveniências políticas.

A isso o Intercept reagiu com uma manobra tática: dividiu as informações com um veículo institucionalmente prestigiado. Não mais só um “site”, mas agora também um importante jornal. Foi manobra de alto risco, pois a Folha de S.Paulo poderia ter analisado o material e recusado jogar seu nome na empreitada.

O jornal procurou as mensagens trocadas pelos seus repórteres com a Lava-Jato, e elas estavam ali. E se não estivessem? Que garantia tinha o Intercept de ter recebido todo o material em poder da fonte? Ou que o material não fora mexido antes de ser repassado ao Intercept?

O risco se pagou, pois a esta altura não bastará mais neutralizar o Intercept, o que já era tarefa complexa. O governo, a Lava-Jato e Moro estão diante de um novo teatro de operações.

Uma guerra prolongada, com baixa probabilidade de transformar rapidamente a defensiva em ofensiva.

Moro e a Lava-Jato conhecem bem a efetividade de divulgar em capítulos, de dar corda para os envolvidos se enrolarem nas próprias explicações.

A esta altura, aquela primeira linha de defesa foi furada em dois dos quatro pontos e um terceiro balança. Sobrou só a certeza de invasão ilegal de privacidade.

Mas este é um problema de quem invadiu: se for pego vai sofrer as consequências. A esperança das autoridades na berlinda talvez fosse associar o Intercept à invasão e aí matar dois coelhos de uma vez.

Mas agora, mesmo nesse cenário a Folha muito provavelmente continuaria a empreitada por si.

O que levará a Lava-Jato e Moro a uma situação complicada, conforme for se consolidando a certeza de a coisa ter andado fora da cartilha.

Com um detalhe: mesmo se o STF decidir por um bom tempo não decidir nada, o governo não tem base própria no Congresso. E este pode ter encontrado um caminho para causar problemas maiores ao governo.

Antes do Intercept, o Legislativo estava algo emparedado. Sua principal retaliação à concentração de poder no Executivo parecia ser... aprovar a pauta econômica do Executivo!

Uma vingança muito relativa, convenhamos.

Agora, em algum momento, deputados e senadores podem concluir que cutucar a ferida Moro pode ser útil para incomodar um presidente resistente a dividir poder.

Há um risco, claro, pois Moro é popular. Mas viver é correr riscos, e no ambiente parlamentar quem está disposto a lutar cresce.

E tem o STF. E desta vez vale muito a tese de que de cabeça de juiz ninguém tem ideia do que vai sair.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Moro agora depende de Paulo Guedes. E do que virá do STF

Por enquanto, o conflito político em torno do ministro da Justiça e ex-juiz Sérgio Moro passou de guerra de movimento para guerra de posição. Sai a lógica da blitzkrieg e entra a da guerra de trincheiras. Nem Moro conseguirá rapidamente amputar a série de revelações do Intercept, nem este parece estar perto de derrubar o símbolo maior da Lava-Jato.

O morismo teve alguma perda de musculatura. Acabou a unanimidade jornalística, e mesmo no mundo político personagens que antes assinavam cheques em branco para o então juiz e hoje ministro embainharam a caneta. E Moro não é mais juiz. Não pode mais mandar prender nem fazer busca e apreensão nem ordenar condução coercitiva.

Mas o ministro mantém fortes trunfos. O mais importante deles: sua presença na Esplanada continua mais ajudando que atrapalhando Jair Bolsonaro. E o presidente tem motivos reforçados para segurar o ministro, pois agora não é mais o um que depende do outro, é o outro que depende do um. E enquanto Moro estiver no alvo também concentra a sanha dos inimigos do governo.

Taticamente, o saldo de Moro no Senado foi neutro. É sempre ruim estar na berlinda por causa de acusações, mas o núcleo duro do morismo garante uma versão favorável do que aconteceu ali. Que contrabalança o desconforto de ter virado vidraça depois de anos de estilingue. E esse saldo tático seria até positivo, não fosse um detalhe: o trem vai continuar rodando.

Estrategicamente, há alguns complicadores. Se é mesmo crime a captação não autorizada de mensagens alheias trocadas em ambiente reservado, a divulgação delas é garantida não apenas pela Constituição mas por um punhado de decisões judiciais recentes. E para azar dos vazados a face visível do Intercept é um cidadão dos Estados Unidos da América. Complicado.

O que acompanhar nas atribulações de Moro? Principalmente a curva de prestígio-desprestígio que o ex-juiz transfere para o presidente, elemento central para avaliar a probabilidade de um ministro continuar no cargo. E por enquanto o saldo é favorável a ele continuar. Mas a novela está no começo. Aliás não chegou nem no fim do começo, muito menos no começo do fim.

E será necessário avaliar melhor mais adiante, quando, e se, a impaciência com a economia ruim começar a erodir para valer a gordura presidencial. As pessoas toleram melhor os ditos malfeitos, reais ou atribuídos, quando a economia vai bem ou quando têm a esperança forte de que vai melhorar. E toleram pior quando esse capital de otimismo é dissipado.

Moro agora depende muito de Paulo Guedes. E do Intercept, claro.

O próximo capítulo da série virá do STF, quando analisar o pedido de suspeição de Moro para julgar o ex-presidente Lula. Isso se o STF decidir enfrentar o problema, pois tem muitas maneiras de protelar. Pelo jeito a decisão vai depender do decano, Celso de Mello. Uma declaração de suspeição abriria caminho para a anulação do veredito de Moro no triplex.

domingo, 16 de junho de 2019

O governo faz inimigos de graça nas vacas gordas. E uma única certeza sobre o futuro

Semana estranha, prenunciando tempos estranhos. Estava tudo dando certo para o governo, então a imprudência nascida da euforia vai produzindo as condições para começar a dar errado. A semana trouxe a impressão de que o governo não quer só ganhar. Quer ganhar sozinho e, de preferência, tripudiando. Daí para alguém voltar com as clássicas teorias sobre “projeto de poder” será só um passo.

A semana registrou uma vitória-chave da política econômica: o relatório da reforma da previdência. É um sintoma de que o modelo de articulação, surpresa!, funciona. Mesmo sem participar do Executivo, as bancadas votam a economia que o governo quer, com algum desconto. Mas o ministro da Fazenda lato sensu fez questão de transformar a vitória em derrota. Pois retiraram a capitalização.

O presidente decidiu demitir por diferenças político-ideológicas, e de maneira humilhante, um general respeitado. E anunciou pela imprensa a demissão de outro. Pareceu um movimento na linha do quem manda sou eu, erradamente interpretado aqui e ali como enfraquecimento da ala militar. Mas há jeitos mais inteligentes e produtivos de praticar o manda quem pode, obedece quem tem juízo.

O Supremo Tribunal Federal deu outra vitória importante ao Planalto na semana, ao chancelar na essência o decreto que extinguiu os conselhos sociais. Mas o governo preferiu atacar o STF por decidir que homofobia é crime comparável ao racismo. Isso quando o comando do STF enfrenta resmungos internos e externos por topar um pacto de governabilidade com o governo que o ataca.

E o Senado? Estava convenientemente fora do noticiário, só esperando para votar a previdência no segundo semestre. Aí resolveu apreciar a derrubada do decreto das armas. A chance de isso ser referendado na Câmara era próxima de zero. O governo tinha ampla margem para renegociar. Aí as milícias virtuais começaram a ameaçar os senadores. O que obrigou o presidente do Senado a reagir.

O Planalto andava infeliz com o presidente do BNDES, por não oferecer denúncias de corrupção nas gestões petistas. No governo Temer fizeram uma devassa e não acharam nada. O “Livro verde: um balanço da atuação do BNDES entre 2001 e 2016” está na rede. Foi produzido na gestão Paulo Rabello de Castro, que depois virou vice de Álvaro Dias, o candidato presidencial mais defensor da Lava-Jato.

Então o presidente da República decide fritar o presidente do BNDES pela imprensa, e o pretexto é ter nomeado um petista. Bem, mas o próprio Joaquim Levy havia participado do último governo do PT. A exemplo de um punhado de oficiais-generais, e que nem por isso estão na lista negra do Planalto. Pelo menos parece que não estão. Quem sabe tenhamos surpresas aí também?

É a tal usina de crises, do desabafo (programado) do presidente da Câmara dos Deputados. Usina que leva jeito de ser abastecida pelo deslumbramento com o brinquedo novo do poder, manejado como um joystick que faz as coisas acontecerem em tempo real. Até outro dia a turma da Lava-Jato também tinha seu próprio joystick, e parecia se divertir às pampas com ele. Mas, como se diz, uma hora pode dar ruim.

Um segredo do poder é mandar sem fazer mais inimigos que o necessário. Outro segredo é cultivar amizades no período das vacas gordas, para ter, pelo menos, canais de diálogo abertos quando chegarem as magras. E elas virão quando as reformas não produzirem instantaneamente o espetáculo do crescimento, e quando se fechar a rota de fuga de culpar os outros pelos próprios infortúnios.

Os sinais das vacas magras vêm todos aí. A economia não dá sinal de reação, a Lava-Jato está na berlinda. Esse detalhe, aliás, reduz bastante a capacidade de pressão do Executivo sobre o Legislativo. E aqui vale lembrar uma regra que não admite exceção. Ninguém tem certeza de como vai ser o futuro. A única certeza absoluta é que ele vai chegar um dia. E não levar isso em conta é burrice.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Quando Moro vai se transformar de ativo em passivo para Bolsonaro?

Nunca se saberá com certeza se Luiz Inácio Lula da Silva candidato teria vencido a eleição. Os números do primeiro e segundo turnos indicam um deslocamento rápido e maciço do voto petista para o candidato Fernando Haddad. A campanha na TV foi decisiva. Será que apesar da bem-sucedida operação eleitoral do “candidato do Lula” ainda ficaram uns votos sem passar? E quantos? Será um tema para debate até o fim dos tempos.

Mas é inegável que Lula impugnado em 2018 tornou-se um ativo e tanto para a narrativa petista. O PT poderá dizer para sempre que se o ex-presidente tivesse concorrido seria imbatível. Era o que diziam as pesquisas enquanto ele estava no páreo e enquanto ele constava das pesquisas. Não há números da véspera da eleição comparando o desempenho de Haddad com o de uma hipotética candidatura Lula. Pena.

Só que narrativas não dependem de demonstração científica prévia. Quem diz que o “Petrolão” foi “o maior caso de corrupção da história” não tem como provar, pois tampouco se saberá se houve outro maior, apenas nunca revelado. Se existisse algo como um “jornalismo científico”, quem afirma isso deveria obrigatoriamente, pelo menos, publicar uma tabela comparativa. Mas acho que os manuais hoje em dia não exigem.

Política é guerra, inclusive de narrativas. E a do PT faz um gol importante com a revelação (que surpresa!) das relações íntimas, e talvez promíscuas, entre a Lava-Jato e o então juiz Sérgio Moro. Deve se dar um desconto no “uh! oh!”, pois não apenas Moro e a LJ sempre foram tratados pela opinião pública como uma coisa só: Moro sempre recebeu da mesma opinião pública o tratamento de chefe da LJ. Mas o cinismo e a hipocrisia também fazem parte.

A dúvida agora é outra. Quando exatamente Moro ministro deixará de ser um ativo para o presidente Jair Bolsonaro e se transformará em passivo? E livrar-se de Moro, numa eventualidade, será um problema ou uma solução para o presidente? O ministro da Justiça até agora injetava prestígio nos cofres políticos do governo. Mas, como Elio Gaspari comentou neste domingo, talvez o chefe esteja desconfiado de que o chefiado quer seu lugar.

É baixa por enquanto a probabilidade de as revelações do Intercept sobre os detalhes das relações Moro-LJ baterem na porta do gabinete presidencial. Mas o Intercept diz ter muito material, e uma tática jornalística legítima é deixar o alvo de acusações afundar-se nos próprios desmentidos, enrolar-se na própria língua. O fato: Moro e a LJ estão sendo empurrados para o modo de defensiva. Sabe-se que jogam bem no ataque. Agora veremos se sabem também jogar na defesa.

É um chavão, mas será mesmo o caso de aguardar os próximos capítulos. O mais relevante para a política real: ver se a dinâmica agora favorável no Congresso será afetada. Na teoria, o Legislativo ganha se mostrar disposição de tocar a pauta do mercado enquanto Moro e a LJ tentam não afundar. Mas nem sempre a política se move por decisões racionais. E Moro e a LJ fizeram um número não prudente de inimigos nos últimos anos.

A crise de Itararé (a que não houve) e a dúvida existencial da oposição

Semanas atrás, a agitação em torno da anunciada instabilidade, talvez terminal, do governo Jair Bolsonaro trouxe um ânimo para a oposição. Que andava meio entorpecida (natural, nas circunstâncias) e recebeu uma lufada de ar naquele 15 de maio. Baixada a poeira, a realidade se impôs: tudo continua mais ou menos do jeito que estava.

A oposição tem um longo caminho pela frente, pois a hegemonia da direita leva jeito de ser menos provisória do que poderia parecer no pós-eleição. E os atritos intestinos no governo e no bloco político nascido da longa crise (aí sim, a palavra cabe) de 2013-18 são, como a diz palavra, internos. Os personagens em luta pelo poder são uma turma só.

Algum governista está tão infeliz que apoiaria a volta do PT, ou algum satélite? Se você não vive no mundo da lua, e por isso respondeu negativamente, pode concluir fácil que as melancias estão chacoalhando e se ajeitando na carroceria do caminhão situacionista mas ele não está perto de capotar. E nunca esteve. Mais uma batalha de Itararé.

A raiz da agitação está num fato e numa constatação. O fato: a eleição do ano passado teve um vencedor, o bolsonarismo, um perdedor, o petismo, e os dizimados, o chamado centro liberal e a social-democracia não propriamente de esquerda. A constatação: a relativa instabilidade deve-se a que os dizimados querem mandar nos vencedores.

Mas isso só seria viável se os dizimados aceitassem juntar com os derrotados numa frente ampla para emparedar o governo. E o que exatamente têm a oferecer à esquerda, além da agenda do progressismo liberal? A liberdade de Lula? Mais oxigênio (recursos) para os sindicatos? A volta da reforma agrária? Mais orçamento para os pobres?

Difícil. O dito centro está aprisionado pela direita pois as diferenças entre ambos não estão no que fazer. Estão no jeito de fazer. O pedaço da elite econômica e política que torce o nariz para Bolsonaro não tem alternativa à agenda dele. Daí que enquanto o apocalipse era anunciado o Congresso voltava a andar, e sintonizado.

Então tudo são flores para o governismo? Não. Ele tem seu encontro marcado com a crescente turbulência política se a economia e os empregos não reagirem. Mas isso ainda leva algum tempo. E quando mais o Congresso enrolar na reforma da previdência mais o presidente poderá dizer que a situação só não melhora por causa dos políticos.

Sim, a tática tem limite, pois governos são eleitos para resolver, e não para explicar por que não resolveram.

E a esquerda? Tem um problema, uma oportunidade e uma dúvida. O problema é o isolamento social. A oportunidade é a onda antiestablishment, quem sabe?, abrir possibilidades para o “novo de esquerda”, pois a direita está no poder. A dúvida? Se dá prioridade a alternativas eleitorais próprias ou se apoia dissidências do outro lado.

A resposta a essa última questão vai depender principalmente de que programa a esquerda vai levar às campanhas eleitorais do próximo ano e de 2022. Se optar por uma plataforma liberal-progressista, termo que a Ciência Política vem usando, será quase automático que não consiga se distinguir do tal centro, e será natural o apoio a terceiros.

Mas se preferir um caminho mais raiz, explorando a polarização social e o custo do ajuste austeroliberal, a esquerda precisará construir dentro de seu campo alternativas eleitorais. Algumas viáveis, algumas destinadas a preparar o terreno para dali a dois anos. Quando enfrentará ou Bolsonaro ou um bolsonarismo recauchutado para agradar aos salões.

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Os Estados Unidos do livre-comércio distribuem sanções e sobretaxas a torto e a direito, como cura para todos os males. E esta semana China e Rússia saíram em defesa da “globalização de face humana”. O mundo não está para principiantes.