O Oriente Médio e as redondezas são uma cumbuca daquelas de macaco velho evitar pôr a mão. Seguem abaixo cinco exemplos de agora mesmo:
1) O Irã talvez seja o principal aliado operacional da Rússia no conflito ucraniano. Só Belarus emparelha, em alguma medida. E a Rússia deve sediar esta semana em Moscou uma cúpula política das principais correntes palestinas. Ao mesmo tempo, Israel e Rússia mantêm um acordo que permite aos israelenses atacar alvos iranianos no aliado-chave de Vladimir Putin ali, a Síria, sem ser ameaçados pelo potente armamento antiaéreo russo.
2) O Azerbaijão, de maioria xiita e fronteira com o Irã, é aliado firme de Israel. As relações no terreno militar e de energia são fortíssimas. Um pouco disso ficou comprovado nos conflitos recentes com a Armênia pelo controle de Nagorno-Karabakh. E armênios acusam a Rússia de ajudar, mesmo que indiretamente, os azeris, apesar de Moscou ter um acordo militar com Yerevan, que por sua vez ameaça arrastar uma asa para a Otan.
3) Transcorridos quase cinco meses da guerra entre Israel e o Hamas, não se nota até o momento (atencao para o Ramadã na Esplanada das Mesquitas) quase nenhuma reação da “rua árabe”. Protestos anti-Israel concentram-se no Ocidente. Na Cisjordânia, frustraram-se por enquanto as expectativas de um levante popular a partir de 7/10. A explicação: a Fatah, rival do Hamas, espera que Israel complete a missão, total ou parcialmente, para, com apoio norte-americano, a Autoridade Palestina tentar retomar Gaza a custo quase zero.
4) Países árabes que estabeleceram relações com Israel nos Acordos de Abraão, na presidência de Donald Trump, não tomaram nenhuma decisão drástica contra Jerusalém até o momento.
5) Precisou haver uma guerra de verdade ali para se perceber que o bloqueio e as restrições à entrada e saída de material militar em Gaza são uma ação conjunta de Israel e do Egito.
A esta altura, a leitura atenta já detectou meu uso abusivo do “por enquanto”, do “até o momento” etc. A prudência obriga. Afinal, estamos tratando do Oriente Médio e arredores, onde as alianças e afastamentos são mais dinâmicos até do que no nosso Congresso Nacional.
Aquilo é material com que mesmo os profissionais se atrapalham, vide a catastrófica falha da inteligência israelense no 7/10, que muito provavelmente levará à aposentadoria de Benjamin Netanyahu (outro erro dos analistas é achar que a mudança de guarda ali trará mudança importante de políticas).
Se os profissionais enrolam-se, tanto mais os amadores. Ficará na história o também catastrófico erro de cálculo de Yahia Sinwar, que fez a leitura completamente errada do grau de desagregação política interna em Israel e do estado das alianças globais do país.
Erros e falhas que carregam na sua contabilidade a tragédia dos mortos, dos feridos, das vidas destroçadas.
O Oriente Médio é um lugar (vou recorrer aos lugares-comuns) onde o apressado come cru e para todo problema complexo alguém aparece com uma solução simples, e errada. Uma hora a pessoa se entusiasma, calcula mal a tomada da curva, derrapa, sai da pista e atola na caixa de brita. E daí acelera e acelera em busca do retorno salvador ao providencial asfalto, sem entretanto sair do lugar. E fazendo atolar junto um monte de gente que em nada contribuiu para a derrapada.
Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
sábado, 24 de fevereiro de 2024
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024
Encaixado na narrativa
O teatro da política brasileira tem vivido de recorrer à troca de máscaras. A cada ato, o desafio preliminar é saber se o personagem é bom ou mau, nas circunstâncias dadas do enredo. Um exemplo é o presidente da Câmara, Arthur Lira, afagado ou execrado dependendo do alinhamento ou não com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
É preciso acompanhar com acuidade o debate público para, em todo momento, saber quem está do lado certo e deve ser apoiado e não se desatualizar.
É raro, entretanto, que os ciclos escapem completamente ao sincronismo eleitoral. Em geral, a cada semiperíodo do pêndulo os personagens mantêm sua persona razoavelmente íntegra, a não ser que se metam, ou sejam metidos, em episódios com potencial para inverter radicalmente papéis. Foi o caso de Michel Temer, que, de timoneiro da salvação nacional, repentinamente passou a vilão.
Na política, além de ser bom, é preciso ter sorte. E talvez a maior sorte na política seja o alinhamento das frequências, que no popular é a pessoa certa estar no lugar certo na hora certa. É quando os elementos se conjugam para um pequeno empurrão fazer o balanço oscilar bem para cima. É a ressonância do tal “encaixar-se na narrativa”.
A estabilidade política deste governo Lula decorre de ele estar quase perfeitamente encaixado na narrativa do momento, de salvação da democracia. Uma situação radicalmente diferente do período 2013-2018, quando o eixo organizador da discussão política era a luta contra a corrupção, e ao PT impôs-se a máscara do malvado favorito da opinião pública.
Decorre principalmente daí o visível desconforto dos candidatos a críticos, que, com pouquíssimas exceções, precisam fazer mesuras e quase pedir desculpas quando apontam algo que acham desagradável nas ações do governo federal. No mais das vezes, apressam-se a pagar o pedágio básico de ressaltar que também criticam, e muito, o antecessor recém-removido de palácio.
Aqui e ali começam a surgir sinais esporádicos de desconforto com pontos de contato entre métodos de agora e o demonizado lavajatismo, mas nada que interrompa a tendência. E Lula, experiente, trabalha bem o encaixe entre as circunstâncias e a narrativa, trazendo junto ao peito, e bem protegidas, as cartas de personagem central do combate ao bolsonarismo.
Não chega a ser novidade, aliás é bem antigo, dizer que, na política, mais importante que escolher os aliados é escolher o adversário. Jair Bolsonaro agrega para Lula a vantagem decisiva de o presidente manter para si a sincronicidade com o Zeitgeist.
Lembrando que sempre há a possibilidade de uma hora o vento virar, como virou para Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Lula, além de tudo, tem-se reinventado em torno das pautas globais do momento. E mantém o discurso de não deixar o passado voltar, uma vaca que lhe deu tonéis de leite em três eleições contra os tucanos.
O risco potencial, para 2026? Além de algum desconforto provocado pela conjugação de mediocridade econômica, sanha arrecadatória e sinais exteriores de poder brasiliense usufruído em excesso, a ressurgência de um resiliente nacionalismo conservador, sempre potencialmente presente.
O exemplo norte-americano mostra que é uma variável crítica a monitorar. E nunca desconsiderar.
É preciso acompanhar com acuidade o debate público para, em todo momento, saber quem está do lado certo e deve ser apoiado e não se desatualizar.
É raro, entretanto, que os ciclos escapem completamente ao sincronismo eleitoral. Em geral, a cada semiperíodo do pêndulo os personagens mantêm sua persona razoavelmente íntegra, a não ser que se metam, ou sejam metidos, em episódios com potencial para inverter radicalmente papéis. Foi o caso de Michel Temer, que, de timoneiro da salvação nacional, repentinamente passou a vilão.
Na política, além de ser bom, é preciso ter sorte. E talvez a maior sorte na política seja o alinhamento das frequências, que no popular é a pessoa certa estar no lugar certo na hora certa. É quando os elementos se conjugam para um pequeno empurrão fazer o balanço oscilar bem para cima. É a ressonância do tal “encaixar-se na narrativa”.
A estabilidade política deste governo Lula decorre de ele estar quase perfeitamente encaixado na narrativa do momento, de salvação da democracia. Uma situação radicalmente diferente do período 2013-2018, quando o eixo organizador da discussão política era a luta contra a corrupção, e ao PT impôs-se a máscara do malvado favorito da opinião pública.
Decorre principalmente daí o visível desconforto dos candidatos a críticos, que, com pouquíssimas exceções, precisam fazer mesuras e quase pedir desculpas quando apontam algo que acham desagradável nas ações do governo federal. No mais das vezes, apressam-se a pagar o pedágio básico de ressaltar que também criticam, e muito, o antecessor recém-removido de palácio.
Aqui e ali começam a surgir sinais esporádicos de desconforto com pontos de contato entre métodos de agora e o demonizado lavajatismo, mas nada que interrompa a tendência. E Lula, experiente, trabalha bem o encaixe entre as circunstâncias e a narrativa, trazendo junto ao peito, e bem protegidas, as cartas de personagem central do combate ao bolsonarismo.
Não chega a ser novidade, aliás é bem antigo, dizer que, na política, mais importante que escolher os aliados é escolher o adversário. Jair Bolsonaro agrega para Lula a vantagem decisiva de o presidente manter para si a sincronicidade com o Zeitgeist.
Lembrando que sempre há a possibilidade de uma hora o vento virar, como virou para Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Lula, além de tudo, tem-se reinventado em torno das pautas globais do momento. E mantém o discurso de não deixar o passado voltar, uma vaca que lhe deu tonéis de leite em três eleições contra os tucanos.
O risco potencial, para 2026? Além de algum desconforto provocado pela conjugação de mediocridade econômica, sanha arrecadatória e sinais exteriores de poder brasiliense usufruído em excesso, a ressurgência de um resiliente nacionalismo conservador, sempre potencialmente presente.
O exemplo norte-americano mostra que é uma variável crítica a monitorar. E nunca desconsiderar.
sábado, 3 de fevereiro de 2024
Mare (Paranoá) nostrum
É um desafio conseguir lembrar algum momento no passado em que a harmonia entre os poderes em Brasília tenha sido tão harmônica. Pode haver, e há, divergências, mas nada que esgarce o funcionamento ritmado e sincrônico das instituições. No momento, Executivo, Legislativo e Judiciário remam todos para o mesmo lado, com pouca ou nenhuma resistência ou crítica da imprensa ou do que se convencionou chamar de sociedade civil.
De vez em quando algum ator mostra-se desconfortável diante de algum detalhe e vem uma crítica, sempre pontual, que pipoca para logo ser engolfada pelas ondas de opinião situacionista sob a capa da defesa da democracia. Não há oposição política organizada com expressão e capacidade real de convocatória no establishment. Jair Bolsonaro continua popular, é bem recebido pelos apoiadores, tem a simpatia de uns 40%, mas perdeu poder de mobilização na elite, lato sensu.
E o autodenominado centro democrático, depois de perder a eleição, perdeu agora para o PT a bandeira da luta "contra o extremismo”.
Daí uma pax quase romana, o Lago Paranoá ter virado um mare nostrum.
Brasília vive a era dos consensos. O primeiro é sobre a necessidade e a justeza de aumentar a receita com impostos. A divergência que resta é uma, bastante administrável, entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional para ver quem comanda quanto da destinação da verba. O segundo consenso, conjugado ao primeiro, é em torno da desnecessidade de cortar ou controlar a expansão das despesas, mesmo as de custeio.
O terceiro consenso sustenta a legitimidade de medidas excepcionais para defender a democracia e, com tal objetivo, algum grau, não tão bem definido, de judicialização da política. Alguns poucos observadores se incomodam por isso hoje ser vocalizado por quem ontem se opunha à dita judicialização, mas talvez valha lembrar que na ética da política realmente existente a coerência não é necessariamente uma virtude.
O quarto consenso é sobre a premência de restringir a liberdade de expressão, liberdade hoje amplificada pelas possibilidades explosivas do mundo digital e potencializada pela inteligência artificial. Este consenso é particular e especialmente possível pelo já descrito alinhamento de astros institucionais. A dúvida que precisará ser destrinchada são duas: como isso será feito e quem fará o tal controle.
Nesse cenário pacificado, a turbulência possível é sempre a mesma: na eleição, único momento em que a base da sociedade pode de fato expressar algum sentimento de oposição aos arranjos da cúpula. Nada indica até agora que a disputa municipal deste ano vá ser nacionalizada, à exceção de São Paulo, mas o PT deseja, legitimamente, recuperar espaço nas cidades, e resta ver como o partido e o governo administrarão as tensões com os aliados.
Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição por margem bem estreita. É natural que busque ao longo do primeiro mandato acumular musculatura adicional para depender menos de aliados em 2026, para o que 2024 é passo importante. A economia anda estável em torno de um desempenho médio, mas os exemplos aqui dentro e lá fora mostram que guerras culturais e em torno da oposição modernidade x antimodernidade têm potencial para produzir surpresas.
E o imprevisível? Já disse aqui, mais vezes do que seria suportável: é o mais difícil de prever.
De vez em quando algum ator mostra-se desconfortável diante de algum detalhe e vem uma crítica, sempre pontual, que pipoca para logo ser engolfada pelas ondas de opinião situacionista sob a capa da defesa da democracia. Não há oposição política organizada com expressão e capacidade real de convocatória no establishment. Jair Bolsonaro continua popular, é bem recebido pelos apoiadores, tem a simpatia de uns 40%, mas perdeu poder de mobilização na elite, lato sensu.
E o autodenominado centro democrático, depois de perder a eleição, perdeu agora para o PT a bandeira da luta "contra o extremismo”.
Daí uma pax quase romana, o Lago Paranoá ter virado um mare nostrum.
Brasília vive a era dos consensos. O primeiro é sobre a necessidade e a justeza de aumentar a receita com impostos. A divergência que resta é uma, bastante administrável, entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional para ver quem comanda quanto da destinação da verba. O segundo consenso, conjugado ao primeiro, é em torno da desnecessidade de cortar ou controlar a expansão das despesas, mesmo as de custeio.
O terceiro consenso sustenta a legitimidade de medidas excepcionais para defender a democracia e, com tal objetivo, algum grau, não tão bem definido, de judicialização da política. Alguns poucos observadores se incomodam por isso hoje ser vocalizado por quem ontem se opunha à dita judicialização, mas talvez valha lembrar que na ética da política realmente existente a coerência não é necessariamente uma virtude.
O quarto consenso é sobre a premência de restringir a liberdade de expressão, liberdade hoje amplificada pelas possibilidades explosivas do mundo digital e potencializada pela inteligência artificial. Este consenso é particular e especialmente possível pelo já descrito alinhamento de astros institucionais. A dúvida que precisará ser destrinchada são duas: como isso será feito e quem fará o tal controle.
Nesse cenário pacificado, a turbulência possível é sempre a mesma: na eleição, único momento em que a base da sociedade pode de fato expressar algum sentimento de oposição aos arranjos da cúpula. Nada indica até agora que a disputa municipal deste ano vá ser nacionalizada, à exceção de São Paulo, mas o PT deseja, legitimamente, recuperar espaço nas cidades, e resta ver como o partido e o governo administrarão as tensões com os aliados.
Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição por margem bem estreita. É natural que busque ao longo do primeiro mandato acumular musculatura adicional para depender menos de aliados em 2026, para o que 2024 é passo importante. A economia anda estável em torno de um desempenho médio, mas os exemplos aqui dentro e lá fora mostram que guerras culturais e em torno da oposição modernidade x antimodernidade têm potencial para produzir surpresas.
E o imprevisível? Já disse aqui, mais vezes do que seria suportável: é o mais difícil de prever.
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