quinta-feira, 31 de maio de 2018

Há um Brasil só de Marias Antonietas

Elite vive em seu universo paralelo
Brioches não suprem a falta de pão


O governo está apanhando porque não deu pelota, ou estava desinformado, para a possibilidade de os caminhoneiros entrarem maciçamente em greve, por vontade própria ou estimulados pelos patrões, neste caso no assim chamado locaute. Governos têm o dever de estar bem informados. Governos informam-se por dois meios: os dele mesmo e a imprensa. Parece que nenhum dos dois funcionou neste caso.

Erros acontecem. A derrota acachapante na eleição de 1974 foi uma surpresa para o governo do presidente Ernesto Geisel no fechamento do seu primeiro ano de mandato. Se o SNI (Serviço Nacional de Informações) do então futuro presidente João Figueiredo tivesse cumprido o papel oficial com a mesma eficiência que tentava organizar a eliminação física de adversários políticos, Geisel, o governo e a Arena não teriam sido surpreendidos pela avalanche de votos no MDB.

Há entretanto diferenças importantes entre as duas situações. Em 1974 a imprensa trabalhava com um liberdade bem menor, não existia a cultura disseminada das pesquisas de opinião, havia censura, e autocensura. Mas o sistema governamental de informações estava à toda, com o Brasil ainda mergulhado numa guerra de verdade entre o regime militar e as organizações de esquerda, principalmente as que tinham decidido tentar derrubá-lo pela via armada.

Erros acontecem, e desdenhar depois é fácil. Tem mais sentido tentar entender o porquê. Em casos como agora e 1974, o motivo principal costuma ser um apego excessivo à construção mental que explica o mundo de modo confortável, e a consequente resistência a atentar aos sinais externos que podem desorganizar o diagnóstico. Daí a utilidade de buscar olhar o que vai contra nossa visão. É difícil, dolorido até para quem gosta demais das próprias ideias, mas muito útil.

É melhor dizer as coisas como são. A elite brasileira, lato sensu, vive num universo paralelo. Nele, até outro dia, Pedro Parente era um gestor exemplar, a Petrobras finalmente havia sido expurgada das influências políticas e passara, graças aos céus, a ser gerida por critérios empresariais, buscando o maior retorno possível para os acionistas, e com seus executivos firmemente a caminho de cumprir as metas e receber o merecido bônus.

Não ocorreu a ninguém que, eventualmente, mudanças quase diárias nos preços dos combustíveis, em geral para cima, pudessem desorganizar completamente a cadeia brasileira de transportes, fortemente alicerçada em rodovias e combustíveis fósseis. Nesse universo paralelo, o valor de mercado da Petrobras e o retorno aos acionistas eram o único parâmetro a considerar, estabelecendo definitivamente a superioridade da técnica sobre a política.

Deu no que deu. Depois de entornado o balde de leite, lamentamos (o plural não é majestático) não ter visto antes a pedra em que tropeçamos. É o caso de perguntar: se agora é possível reduzir o preço do diesel e congelar por 60 dias, por que diziam antes ser impossível? Vamos acordar. Se alguém tivesse avisado Maria Antonieta sobre a inviabilidade de brioches suprirem a falta de pão, talvez ela envelhecesse com a cabeça ainda colada no pescoço. #FicaaDica.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 28 de maio de 2018

A economia costuma decidir, mas é preciso sempre ter o cuidado de entender o que é “a economia”

As rupturas políticas podem acontecer quando as coisas vão mal.
E também quando melhoram e uma turma percebe que ficou de fora


O que nos diz a greve dos caminhoneiros?

Os debates sobre efeitos da economia nas eleições costumam ser orientados a partir da macroeconomia fria. Crescimento, inflação, taxa de juros, desemprego. Os grandes indicadores alimentam a planilha, mental ou digital, quando se quer saber o efeito do desempenho econômico sobre a urna, por exemplo numa eleição presidencial.

Está cada vez mais óbvio que o ditado de James Carville, “É a economia, estúpido”, precisa ser lido com sofisticação. O voto não convencional espalha-se em escala planetária, bem em meio à recuperação. Depois de ensaiar surpresas na França e na Alemanha, finalmente venceu num grande país europeu, a Itália. E a Espanha vai pelo mesmo caminho.

Cada país tem sua especificidade, mas é possível ao menos especular que o desconforto com a política mundo afora vem sendo anabolizado pela baixa esperança de que a elite política organize as coisas de modo a produzir prosperidade razoavelmente distribuída. Algumas vezes a desesperança aparece como revolta contra a corrupção, mas é bom tomar cuidado.

Uma coisa é o que se diz. Outra é o que se quer, ou sente. No próximo mês vai fazer cinco anos da explosão da nossa rua. Diziam ser principalmente para exigir melhores serviços públicos. Bem, ou os serviços públicos melhoraram demais desde lá, ou então é obrigatório concluir aquela gente toda não foi para a rua exatamente por isso.

O problema na passagem de 2012 para 2013 era a boca do jacaré começando a fechar. Crescimento econômico em queda e inflação em alta. Um ensaio incômodo de frustração de expectativas. Em 2014 o PT ainda ganharia a eleição, mas foi uma vitória de Pirro. Enfraqueceu-se demais e não conseguiu resistir quando os adversários decidiram derrubá-lo.

O novo governo petista sabia em 2015 que a economia ainda precisaria piorar antes de melhorar, e calculou estar vivo para colher política e eleitoralmente a onda positiva que finalmente chegaria. Calculou mal o timing. Os inimigos preferiram eles mesmos estar no poder em 2018, quando a bonança produzida pelo ajuste finalmente sucedesse a recessão.

O que vem dando errado no plano de quem derrubou Dilma? Um fator é a falta de coesão eleitoral. O ex-bloco governista é um balaio de caranguejos. Outro problema são as denúncias contra Michel Temer. Mas, se a recuperação estivesse de vento em popa nem a base estaria em frangalhos nem Temer politicamente tão enfraquecido pelo cerco da polícia.

Mas uma certa recuperação está sim de vento em popa. A Bolsa subiu, as contas externas foram ajustadas, o déficit fiscal parece estabilizado, o PIB vai crescer este ano e o desemprego pelo menos não está aumentando, desenha até alguma queda. Até que as pesquisas mostrassem uma anemia resiliente da direita dita de centro, havia algum otimismo.

Só que não. Não basta os números da Petrobras brilharem se isso implica aumentos brutais e sucessivos no combustível. Não basta as empresas melhorarem o desempenho se esse aumento de produtividade significa fazer mais com menos gente. Faz sentido nos balanços, mas não para quem perdeu o emprego e não consegue um ganhando pelo menos perto.

As rupturas políticas podem se dar quando está tudo mal, mas também quando as coisas começam a melhorar e uma turma razoável percebe que está ficando de fora. Destruições criativas são da lógica do capitalismo, e não adianta reclamar. Mas tampouco adianta chegar para um desempregado e dizer que ele busque se reinventar porque o passado já era.

Há bons argumentos para explicar aos operários do cinturão da ferrugem no Estados Unidos que é mais barato fabricar as coisas na China, e portanto devem se virar para sobreviver com essa realidade. Mas eles não são obrigados a aceitar a explicação, ainda mais se têm a opção de votar em alguém como Donald Trump. #FicaaDica.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

O jornalismo é a vítima não contabilizada em Gaza e na Venezuela

A certeza é inimiga do bom jornalismo. Os motores que produzem as melhores obras jornalísticas são a dúvida, a inquietação, o ceticismo, a curiosidade. A indignação é inimiga do bom jornalismo, porque turva a visão.

A grande reportagem sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém não foi para denunciar os crimes dos nazistas, foi para descrever o que a repórter Hannah Arendt entendeu ser a banalidade do mal. O melhor livro já escrito sobre um crime é A Sangue Frio, de Truman Capote. O bom jornalismo é brechtiano. Tem de ter distanciamento.

Vou escrever aqui sobre o jornalismo dos outros. É raro, porque tem poucas coisas mais desagradáveis do que velho jornalista, ou jornalista velho, praticando engenharia de obra feita.

O jornalismo é o exercício diário da imperfeição, e o jornalista que não quiser se chatear não deve reler seus textos, ou rever seus vídeos, ou reouvir seus áudios. Sempre daria para ter feito melhor o que você fez ontem, ou uma hora atrás, ou um minuto atrás. Hoje em dia, pelo menos, você pode corrigir coisas na internet. Melhor do que quando o erro ficava obrigatoriamente como uma cicatriz, para sempre.

Mas tudo tem limite, inclusive a paciência, e já chega de nariz de cera, não é? Então vamos ao que interessa.

As empresas jornalísticas têm defendido uma tese. Informações pouco ou nada confiáveis abundam na internet, particularmente nas redes sociais. Estamos ameaçados por uma epidemia de fake news. E a melhor vacina é refugiarmo-nos nas notícias, interpretações e comentários fornecidos pelo assim chamado jornalismo profissional, ilha de verdades cercada por um oceano infestado de fontes traiçoeiras, que querem a todo custo enganar as pessoas.

Será? Vamos começar pela Venezuela. Ali teve uma eleição presidencial, a maioria da oposição boicotou, e Nicolás Maduro elegeu-se com 68% dos votos válidos, num comparecimento de 46%, o que dá uns 31% do eleitorado. O número é consistente com o apoio que o chavismo ainda recolhe, mesmo na grave crise econômica.

A aritmética não autoriza, portanto, falar em fraudes com impacto decisivo no resultado. Maduro ganhou não por causa de fraudes, teve uma vitória fácil porque as principais correntes e personalidades da oposição ficaram fora da disputa.

Você viu por acaso alguém fazer essa conta simples e questionar as autoridades e políticos, das várias cores, que denunciaram as eleições venezuelanas como ilegítimas? Você viu essa conta e esse raciocínio simples merecerem destaque, nem que fosse para ter algum contraditório, nos noticiários de grande alcance? A oposição denuncia fraudes, mas não oferece comprovações, e o total dos votos dados a Maduro é compatível com o apoio ao governo dele registrado nas pesquisas. Simples e objetivo. Mas não se disse.

Ah, mas esse seria um viés favorável ao Maduro. O equilibrismo a título de isenção virou pretexto para amputar, da realidade descrita, os fatos que não se encaixam na narrativa, na “nossa posição”, como se diz.

Alguém decidiu que a Venezuela é uma ditadura, então as eleições ali são ilegítimas, e com certeza foram fraudadas. Dispensa comprovação. Ah, tem também o argumento de que lá os principais líderes da oposição estão presos e/ou impedidos pela Justiça de concorrer. Bem, parece que há outro país nas redondezas em situação parecida.

Se a eleição na Venezuela foi ilegítima também porque os líderes da oposição não puderam concorrer, o PT tem razão quando diz que a eleição aqui sem o Lula será fraude? Você vai concordar que é uma pergunta razoável de se fazer. Você viu alguém do jornalismo dito profissional fazê-la? Nem que fosse para o interlocutor responder que no Brasil a Justiça é independente, e na Venezuela ela é controlada pelo governo? Essa resposta seria boa, mas perigosa, pois a tréplica é imediata: aqui como lá só quem foi/está impedido de concorrer é gente da oposição com chance real de ganhar.

Ah, mas isso seria um viés favorável ao PT. Então a saída é cortar fora também essa parte da realidade. E de pedaço em pedaço cortado fora, o que sobra para o consumidor de informação é o caroço, a seleção dos fatos capazes de corroborar a “nossa linha” editorial.

Uma maneira de falsificar a realidade é dizer que acontece algo diferente do que está acontecendo. Outro jeito, bem mais esperto, é contar só uma parte da história. Como dizia aquela propaganda, é possível contar um monte de mentiras dizendo apenas a verdade.

Foi o que aconteceu em Gaza. O fato: num dia, cerca de 60 palestinos morreram vítimas de atiradores do exército de Israel. Uma versão: os israelenses atiraram indiscriminadamente em manifestantes pacíficos, num verdadeiro massacre. Outra versão: os atiradores neutralizaram combatentes do Hamas e de outros grupos armados que buscavam romper as barreiras fronteiriças para penetrar em território de Israel, com o objetivo de atingir bases militares e a população das comunidades perto da linha de armistício.

Na terça-feira sangrenta prevaleceu a primeira versão, que recebeu farta cobertura. Mas na quarta, um dirigente do Hamas informou orgulhosamente que 50 dos 60 mortos eram seus combatentes. A Jihad Islâmica reivindicou outros três.

Como assim? 90% dos mortos pertenciam a duas organizações armadas? Bem, isso reforçava a versão israelense. E contradizia a angulação da cobertura anterior. Num jornalismo, digamos, saudável, isso seria notícia. E desencadearia um esforço independente de apuração para tentar saber afinal onde estava a verdade.

Aconteceu o contrário. A notícia foi escondida, ou simplesmente ignorada. Quando publicada, vinha algumas vezes acompanhada de advertências sobre a dificuldade de checar a veracidade dela com fontes independentes. Uma preocupação ausente da cobertura do dia anterior.

Sabem de uma coisa? É até compreensível. Se tivesse sido publicada ou veiculada com destaque, certamente o veículo seria acusado de pender para o lado de Israel. Então, em nome da suposta isenção e do suposto equilíbrio, preferiu-se sonegar a informação ao distinto público.

Sem contar que alguns textos dos dias seguintes continuaram dando livre curso à versão de ter havido um massacre de civis que se manifestavam pacificamente. Nenhuma preocupação de pelo menos avisar da existência de informações contraditórias. Esforço de apuração para descobrir a verdade? Nenhum. Curiosidade e inquietação para saber o que de fato se passou? Nenhuma. Ceticismo diante da fonte? Zero.

Existe mais uma vítima, esta não contabilizada, na tragédia de Gaza e na crise da Venezuela: o jornalismo.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 21 de maio de 2018

As muitas mortes de Osvaldo Aranha

O brasileiro que comandava a ONU em 1947 morre de novo a cada vez que um representante brasileiro vota ali contra Israel

A Praça Vermelha em Moscou ainda tem o mausoléu com o corpo embalsamado de Lenin, o líder da revolução bolchevique. Fora do edifício tudo mudou. O socialismo e a União Soviética acabaram. A Rússia aposentou a foice e o martelo e reabilitou os símbolos do império. O Tratado de Varsóvia é história e a OTAN chega cada vez mais perto de Moscou. A antiga superpotência foi rebaixada a “país emergente” e ocupa modestamente uma cadeira nos Brics.

Mas o Lenin mumificado continua lá no mausoléu, ainda que de vez em quando alguém proponha enterrar o cadáver do revolucionário morto em 1924. A idéia costuma ser rapidamente abandonada, pelo temor da confusão política que a remoção e o sepultamento provocariam. A União Soviética e o socialismo estão em fase de reabilitação na alma russa, até por evocarem um período de glória nacional. Os russos, como se sabe, são muito sensíveis a essas coisas.

Osvaldo Aranha morreu de ataque cardíaco em 1960 após uma vida dedicada à turbulenta política brasileira do período. No ápice da sua projeção internacional comandou a Assembleia Geral da ONU que em novembro de 1947 aprovou a partilha entre dois países, um judeu e um árabe, das terras que vão do Jordão ao Mediterrâneo. Aranha presidiu a sessão e apoiou a resolução. Não se deve subestimar o papel dele, nem superestimar. Ele teve importância.

Assim como Lenin na Moscou pós-URSS, aqui no Brasil exibe-se a memória embalsamada de Aranha quando é conveniente evocar o passado glorioso. No nosso caso, a benigna participação brasileira na votação que ofereceu a base legal para a declaração de independência de Israel. A ONU não criou Israel, o país teria sido fundado de toda maneira, mas a existência de um fundamento jurídico vem tendo peso no reconhecimento internacional do estado judeu, apesar da maciça rejeição árabe e muçulmana.

A favor do Brasil, pode-se argumentar que aqui, ao menos, a memória persiste, mesmo que reduzida a um ritual. Na URSS dos últimos anos de Stalin, com a tardia inclinação dele pelo antissemitismo, e depois da sua morte, o poder procurou insistentemente esconder que 1) os soviéticos votaram a favor da partilha da Palestina, 2) foram os primeiros a reconhecer Israel de jure e 3) armaram o estado judeu para travar e vencer a Guerra de Independência contra os árabes em 1948-49 (1).

A guinada antissionista da União Soviética veio quando os movimentos antimonárquicos e anticoloniais tragaram o mundo árabe e islâmico nos anos 50 do século passado. Na teoria, convinha mais à URSS apoiá-los e ligar-se a eles do que manter boas relações com Israel. O prêmio de ocupar o lugar dos britânicos como potência hegemônica na região era tentador demais. E até os anos 80 o investimento parecia ter retornado com sobras.

No Brasil, numa lógica algo paralela, a virada veio pelas mãos do regime militar, quando cristalizou-se a visão do destino do Brasil-potência vocacionado a disputar espaços com os Estados Unidos. Essa linha percorre todos os governos desde então. Com o estímulo decisivo dos dois choques do petróleo, o filo-arabismo e o filo-islamismo antissionistas consolidaram-se como nossa política de estado. E resistem bravamente a toda alternância de governo.

Resistem inclusive a toda mudança na geopolítica do Oriente Médio. O pan-arabismo deu lugar a uma disputa feroz entre os eixos sunita e xiita. A chamada “Primavera Árabe” atestou que o conflito entre Israel e os palestinos não é o único e nem de longe o principal ali. Mas o Brasil continua aprisionado em seus próprios preconceitos e ortodoxias. Para abusar da metáfora, a política externa brasileira para o Oriente Médio é outra que foi embalsamada.

A segunda das muitas mortes daquele Oswaldo Aranha de 1947 veio quando o Brasil de Ernesto Geisel apoiou em 1975 nas Nações Unidas a resolução que colou no sionismo o rótulo de "racista". Não faz sentido o não-racista apoiar a existência de um estado de maioria judaica e ao mesmo tempo dizer que a tese da libertação nacional dos judeus é uma doutrina racista. A coisa simplesmente não fica em pé. Ainda que política e coerência não costumem andar juntas.

Anos depois a ONU revogou a infâmia, mas a mancha ficou. Até porque a lógica daquele ato persiste até hoje. Algum país árabe ou islâmico apresenta uma proposta qualquer contra Israel e lá corre o Brasil a apoiar. É uma área da política externa brasileira que anda no piloto automático. Um exemplo é o endosso aos textos na Unesco negando, na essência, direitos de Israel à soberania sobre Jerusalém e demais lugares sagrados para os judeus na Terra Santa.

Aqui vale uma constatação. O antissemitismo tradicional diz que os judeus merecem ser castigados porque mataram Jesus Cristo. O fato de Roma ser a potência dominante na Judeia na época não sensibiliza os antissemitas clássicos, mas a acusação tem ao menos o mérito macabro de embutir uma constatação: admite que os judeus estavam ali dois mil anos atrás, antes portanto de Muhammad e da religião que ele criou, o Islã. Isso deveria ser irrefutável.

Não é irrefutável para o antissemitismo contemporâneo, que disfarçado de antissionismo nega qualquer vínculo nacional, histórico, religioso ou espiritual dos judeus com a Terra Santa, Hebron, Belém, e, principalmente, Jerusalém. Essa “interpretação” seria apenas uma aberração, não fosse pela ainda mais aberrante insistência da Unesco de “apagar” a presença judaica na Terra Prometida. E com o igualmente insistente voto favorável do Brasil.

O humor judaico é conhecido pelos traços cáusticos e por fazer graça das situações mais terríveis. Está bem retratado por Roberto Benini em La Vita è Bella, o premiado filme sobre pai e filho judeus italianos num campo de extermínio alemão. Talvez fosse o caso então de pedir aos novos antissemitas: “por favor, acusem-nos de termos matado Cristo; ele morreu em Jerusalém, então pelo menos assim vocês admitem que há dois mil anos nós já estávamos lá”.

Oswaldo Aranha despede-se de novo deste mundo sempre que o representante brasileiro vota na ONU em assuntos relacionados ao estado judeu. A morte mais recente foi quando o Brasil ajudou a condenar a decisão dos EUA de reconhecer Jerusalém como capital de Israel. Possuída por um antissionismo fanático, nossa política externa não notou que o voto agredia os fundamentos dela própria, e também as sistemáticas manifestações brasileiras sobre o conflito.

Na teoria, o Brasil defende o princípio da não-ingerência. E o que exatamente temos a ver com onde os Estados Unidos colocam sua embaixada em Israel? Se o Brasil seguisse neste caso sua própria doutrina, deveria considerar o assunto relativo apenas àqueles dois países. E votar contra a condenação. Como votaria nas situações similares, desde que não envolvessem Israel. Quando o estado judeu entra em pauta, nossos governos mandam às favas todos os alardeados princípios.

O contra-argumento a esse argumento é óbvio. O Brasil não reconhece Jerusalém como a capital de Israel porque se trata de região em litígio. E aí entra o aspecto mais pernicioso da atitude brasileira. Pois se há uma posição consolidada entre nós a respeito das eventuais fronteiras entre Israel e um possível estado palestino, ela defende respeitar a linha de armistício que vigorou entre 1949 e a Guerra dos Seis Dias, de junho de 1967.

Se o Brasil exigisse a implementação da resolução de 1947 defenderia a volta às fronteiras da partilha e a manutenção do status internacional de Jerusalém. Os mapas provam que só lunáticos veem viabilidade nisso. O racional é propor as fronteiras vigentes entre 1949 e 1967. Mas as escolhas têm consequências: durante a Guerra de Independência de 1948-49 Israel conquistou Jerusalém Ocidental, e até 1967 os muros da Cidade Velha eram parte da fronteira com a Jordânia.

Todas as instituições do governo e do estado israelenses ficam em Jerusalém Ocidental, dentro portanto dos limites reconhecidos pelo Brasil como de soberania israelense antes mesmo de 1967. Na Guerra dos Seis Dias Israel conquistou Jerusalém Oriental e a Cidade Velha, onde fica o Muro das Lamentações. Se o Brasil levasse a sério suas próprias declarações, deveria aceitar como legítima a total autoridade de Israel sobre o pedaço de Jerusalém que na prática vem sendo sua capital desde a Independência.

Ao recusar isso, a política externa brasileira envereda pelo curioso e talvez original “princípio da soberania relativa”: está de acordo que os israelenses exerçam a autodeterminação no território que o Brasil reconhece como sendo de Israel, mas desde que os palestinos também estejam de acordo. Dá poder de veto aos palestinos em decisões que deveriam ser soberanas do estado judeu. Ou seja, relativiza a posição brasileira de 1947.

Essa “autocrítica” de 1947 é uma marca registrada. Procurem-se as notas brasileiras de condenação quando líderes muçulmanos e árabes manifestam a intenção de riscar Israel do mapa e aniquilar os judeus dali. É muito difícil e raro ver algo pelo menos parecido com o repúdio que seria natural. Nas relações do Brasil com o Irã, por exemplo, esse é um não assunto. O Brasil exige que Israel aceite a Palestina, mas não exige que o Irã aceite Israel.

A regra tem sido o Brasil valorizar a relação com Israel nos aspectos em que o Brasil é beneficiado. E manter-se insensível ao interesse israelense em todas as outras situações, até nas mais delicadas. Enquanto isso, a memória de Osvaldo Aranha é evocada ritualmente sempre que é preciso cumprir o protocolo e as formalidades para mostrar que algo sobrevive daquele espírito que conduziu o voto brasileiro na ONU no já distante novembro de 1947.

Entretanto, assim como Lenin em seu mausoléu, as reverências e referências a Osvaldo Aranha são apenas o registro daquele mundo que não existe mais.

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(1) "Who Saved Israel in 1947?.” Artigo de Martin Kramer na revista eletrônica Mosaic Magazine. Link-> https://mosaicmagazine.com/essay/2017/11/who-saved-israel-in-1947/

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Publicado originalmente na edição de maio de 2018 dos Cadernos da Confederação Israelita do Brasil

Pressões para o PT apoiar Ciro são peça de um jogo maior: viabilizar o centro, mas pela esquerda

Uma parte conhecida do jogo político é o sistema de gôndolas. Os grupos sociais, hegemônicos ou subordinados, buscam alternativas nas facções políticas, para construir as maiorias eleitorais ou parlamentares indispensáveis à concretização dos chamados projetos de poder. Como quem escolhe produtos na gôndola do supermercado.

Assim, as facções político-parlamentares deslocam-se conforme sopra o vento, de olho principalmente na própria sobrevivência imediata. É um fenômeno que na literatura clássica recebeu o nome de cretinismo parlamentar. A força do desejo vai produzindo uma cegueira progressiva para o que existe fora do microcosmo. E o curto prazo esmaga o longo.

Claro que isso tem um custo, para quem flutua: logo à frente ele é descartado, e na primeira oportunidade, conforme deixa de ter utilidade. Mas o pássaro na mão costuma ser suficientemente tentador para desestimular a troca pelos dois que voam. E o ritual se repete em ciclos, sempre com novos atores. Não costuma faltar produto na gôndola.

Talvez estejamos vivendo um desses momentos. O nó da eleição está no fato de o establishment não ter um candidato que, ao mesmo tempo, empolgue a massa e se comprometa com a continuidade estrita do programa econômico e geopolítico do governo Michel Temer. Já se tentou de tudo. Ou, pensando bem, quase tudo. Ainda existem pelos menos duas cartas na manga.

Já se tentou construir a alternativa por dentro do governo Temer. Ela viria na onda do sucesso da economia e teria o nome de Henrique Meirelles. Mas a onda parece ser fraca, e politicamente quebrou cedo. E se viesse forte o presidente perguntaria, como perguntou: “por que não eu?". Então a coisa anda mal parada, tanto que a especulação passou a ser Meirelles vice.

Teve também a fase do novo. No começo era Luciano Huck, o que faria os liberais se conectarem ao povão pela primeira vez desde o Plano Real. Mas faltou couro grosso. Na hora h o astro percebeu que a relação entre o benefício e custo não seria boa. Huck precificou o risco e a inteligência prevaleceu sobre a vaidade. E ele caiu fora. Como Joaquim Barbosa depois.

A fraqueza do governo e o esvaziamento dos ensaios de novidade abrem uma nova janela de oportunidade para o PSDB. Bem ou mal, Geraldo Alckmin roça os dois dígitos, o partido tem musculatura, experiência com alianças políticas, tradição de algum diálogo com os adversários e a confiança absoluta do establishment. É, sem dúvida, a primeira carta na manga agora.

Alckmin e o PSDB enfrentam vento contra, por serem de algum modo sócios-fundadores do governo Temer e não estarem imunes aos estilhaços da Lava-Jato. É um erro pensar que o PSDB está fora do jogo, mas o partido e o candidato vão travar uma batalha morro acima. Além de tudo tem Bolsonaro e mais um punhado de gente no pelotão que disputa os votos da direita.

O establishment nunca aposta num único cavalo. E se Alckmin não decolar? Marina Silva parece frágil, e Bolsonaro é risco sério de derrota num segundo turno contra a esquerda. Álvaro Dias ainda precisa provar competitividade. Por que então não voltar ao supermercado e procurar uma esquerda que dê tonalidades populares a essa coisa de centro? Lula poderia ser isso, mas está fora.

Então por que não Ciro Gomes? Uma aliança com Ciro representaria para o PT a possibilidade de recomposição com o establishment, mas numa posição subordinada. Faz sentido para os governadores candidatos à reeleição. E faz sentido para petistas com perfil para a vice de Ciro. Mas não faz tanto sentido assim para Lula, que antes de tudo quer continuar mandando na própria tropa.

E o PT está preso a Lula, porque é ele quem tem os votos. E enquanto tiver isso estará politicamente vivo, mesmo preso. Ou seja, o preço que o establishment cobra para apoiar a esquerda, a morte política de Lula, é proibitivo para quem na esquerda tem garrafas para entregar, o próprio Lula. Esse é o principal complicador da segunda carta na manga.

Há sempre a alternativa de isolar o PT e tentar construir uma aliança apresentável como de centro-esquerda. O risco, como aconteceu em 2014, é direita e esquerda se juntarem taticamente para neutralizar o risco da quebra da polarização clássica, ou de repaginação da polarização.

E segue o jogo.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Preso, Lula mantém a iniciativa na disputa eleitoral

O mercado financeiro anda nervoso, dizem, com as últimas pesquisas. Uma razão, dizem também, é a anemia dos candidatos ditos de centro. Talvez devêssemos pedir um desconto na compra dessa versão, pois o nervosismo cambial parece afetar os emergentes em bloco. Mas alguma coisa está dando errado no roteiro das conexões projetadas entre economia e política.

O motivo parece claro: os resultados da ponte para o futuro, do consórcio que fez trocar Dilma Rousseff por Michel Temer, não parecem sensibilizar o eleitor a ponto de convencê-lo a decidir pela continuidade. E, assim como a maioria do eleitorado apoiou dois anos atrás aquela mudança, os levantamentos de intenção de voto indicam propensão a uma nova troca de guarda.

Importa menos aqui argumentar que a dose do remédio foi insuficiente, ou que o tratamento dará certo se o paciente esperar mais tempo pelos resultados: infelizmente, os dois turnos da eleição estão marcados para outubro. Isso implica que o resultado da urna será fortemente impactado pelo estado de ânimo do eleitor em agosto/setembro. É como as coisas funcionam.

Daqui até lá, os candidatos precisarão treinar ideias e colocar algumas propostas no forno, que ajudem a responder isto: para a economia crescer e gerar empregos, em quantidade e de qualidade, a melhor receita é mais Estado ou mais mercado? E tem os corolários, um deles como fazer para melhorar a situação da previdência social, esse abacaxi e tanto.

Em mais uma constatação de que não existe almoço grátis, se Dilma ainda estivesse no Planalto o PT estaria enredado no desafio de explicar por que produziu uma recessão recorde, e o liberalismo econômico estaria confortável em vender-se como a salvação da lavoura. Mas o governo Dilma foi para os arquivos, e o argumento eleitoral do PT serão os oito anos de Lula.

E atacar o PT, Lula, Dilma, terá efeito apenas relativo. É um engano achar que o petismo mostrou resiliência no poder porque atacou Fernando Henrique e o PSDB. O PT no poder ganhou três eleições seguidas porque seus resultados foram melhores, na percepção. As circunstâncias ajudaram? Isso não tem a menor importância como argumento de venda para o eleitor.

As pesquisas mostram um cenário em boa medida congelado, com um terço pelo menos do eleitorado à espera da definição de se Lula será candidato. Ou, numa proporção menor, quem será o candidato apoiado por Lula. Aqui, interpretações de viés messiânico vão errar: o pessoal não está aguardando cegamente a palavra do líder, espera pelo portador de alguma boa nova.

A opinião pública anda entretida com ideias vazias de significado popular, como o tal “centro”, ou então teses que impactam muito lateralmente, como o "novo”. Esqueceram que precisam responder o “para fazer o quê?". E o PT aproveitou esse lapso, de tempo e de ideias, para consolidar no eleitorado dele a saudade dos tempos de Lula, e da figura de Lula.

Eis por que o ex-presidente, preso, continua com a iniciativa. E isso dá sentido à tática petista de lançar a candidatura dele e ir com ela o mais longe possível. E ir observando os acontecimentos. E, na hipótese razoável de nenhum outro conseguir encarnar com força a esperança de dias melhores para o povão, aparecer, aí sim, com uma novidade. Esse parece ser o desenho.

Se vai funcionar, os fatos, sempre eles, dirão. Tudo sempre pode dar errado. Ainda mais num cenário confuso e complexo. Mas algum otimismo petista é justificável, pois os outros atores têm dado uma boa ajuda.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

domingo, 13 de maio de 2018

Os problemas de cada um na corrida pela vaga no segundo turno. E a lógica de Lula da prisão.

Vamos começar pela esquerda.

Ela tem alguns ativos: Lula e a má avaliação do governo Michel Temer e da política econômica. E tem problemas graves: Lula está preso e ficará inelegível quando a candidatura dele for registrada. Para complicar, sem Lula e sua liderança natural cada pedaço da esquerda enxerga a janela de oportunidade para deixar a sombra do PT.

Outro obstáculo é o isolamento político. O PT e aliados venceram as últimas quatro eleições presidenciais tendo também o apoio de pedaços da direita. Hoje isso é mais difícil. O PT perdeu o governo, e sua expectativa de poder é um ponto de interrogação. E a dificuldade de convergir o progressismo também dificulta atrair quem só se preocupa em acertar o ganhador.

Uma velha piada dos anos 70, quando se debatia interminavelmente na esquerda se a tática política deveria incluir alianças com não esquerdistas mas adversários da ditadura, os na época chamados de liberais: “Sabe a diferença entre o cara de direita e o liberal? Liberal é o cara de direita que nos apoia. Direita é o liberal que não quer nos apoiar." Desce o pano.

Neste 2018, quatro décadas depois, está em falta o não esquerdista que tope aderir a um projeto político capitaneado pela esquerda. Por duas razões. O capitalismo nacionalista foi abduzido de fora ou triturado, e deixou de ter capacidade de projetar subimperialismos. E o liberalismo dito centrista virou coadjuvante e se submete à hegemonia ideológica da direita.

Agora vamos olhar para a direita.

Ela tem dois ativos: o desgaste do PT e a inelegibilidade de Lula. E tem um problema grave, além da falta de resultados populares na economia: o radicalismo abre espaço a que o PT e a esquerda voltem a ter mercado eleitoral potencial em segmentos que vinham progressivamente buscando distância de Lula e aliados. A direita também corre o risco de isolar-se no fim.

Sobre a economia, o problema da direita é a recuperação em curso estar fortemente baseada em ganhos de produtividade. Ninguém, ou quase ninguém, está recontratando no ritmo das demissões da recessão. Por isso, a retomada só é bonita nas páginas do jornalismo econômico. Quem está desempregado ou caiu degraus na escala social do trabalho não acha graça.

Outro problema: Nas últimas quatro eleições o PSDB perdeu mas manteve a hegemonia em seu campo porque conseguiu, em algum momento, apresentar-se como a expectativa mais palpável de poder. Um desafio de Geraldo Alckmin é descolar do bolo de um dígito e, a partir daí, passar a atrair os outros pedaços da direita que se vestiram de centro para a festa da eleição.

E tem Jair Bolsonaro. A resiliência dele cria um obstáculo aritmético para os desafiantes em seu campo. A velha lógica diz que ele perderá substância quando a campanha começar, pelo pouco tempo de televisão. Mas, e se a lógica tiver mudado? Como fazer? Bater nele? Nos concorrentes “de centro”? No PT? Não bater? Um desafio e tanto para o marketing.

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Na esquerda, o aliancismo lamenta que Lula e o PT estejam aferrados à tática de esticar a corda até o final e segurar o jogo. Mas, se a viabilidade da aliança depende do PT e de Lula, por que estes deveriam se submeter à lógica política de quem tem menos garrafas para entregar?

As manifestações de Lula da prisão são óbvias: ninguém está obrigado a segui-lo, mas se quiser seguir será nos termos dele, que é quem tem os votos.

Não tem bonzinho na política, outro ramo da atividade humana onde quem pode mais chora menos. E se alguém chora mais é porque pode menos.

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Talvez o mais inacreditável na história do documento da CIA sobre Ernesto Geisel, João Figueiredo e a política de extermínio de adversários políticos é o papel ser público desde 2015 e ter sido descoberto só agora, por acaso. Engenharia de obra feita, pelos outros, é fácil. Dito isso, cada um que tire suas próprias conclusões sobre o episódio.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

As boas intenções nos levam ao inferno

Joaquim Barbosa saiu da disputa presidencial e (surpresa!) culpou o sistema político. Mais ou menos como fizera Luciano Huck. Assim, até eu. Quando o jogo é à vera e fica difícil, caio fora e não brinco mais. A vida é dura, camaradas.

Huck desistiu duas vezes da candidatura, e o farto noticiário secou. Barbosa está filiado ao PSB, e daqui até agosto pode ser especulado para outras posições. Deve continuar frequentando, agora talvez como moeda de troca do partido.

O sistema político brasileiro é mesmo bastante impermeável à renovação. E aqui vale o velho ditado, de que de boas intenções está cheio o inferno. Os recentes movimentos para melhorar só têm ajudado a piorar.

A opinião pública exigiu fidelidade partidária. Exigiu o fim do financiamento empresarial das campanhas e partidos. Conseguiu ambos. O resultado: a política brasileira consolidou seu traço cartorial. Consolidou o poder dos proprietários de legenda.

Se o sujeito não quiser enveredar pelo crime nem ser fantoche de milionário entediado que resolve gastar um troco para brincar de renovar a política, o único caminho é submeter-se a algum dono de partido.

Para poder concorrer e ter recursos na campanha. Daí por que todas as previsões apontem taxa de renovação baixa este ano no Congresso. Pois o dinheiro do fundo eleitoral será canalizado preferencialmente para quem já tem mandato. #FicaaDica.

Verdade que nossa opinião pública lutou bravamente contra o fundo público eleitoral. Mas aí também já seria demais. Fazer política sem dinheiro é quase tão possível quanto, por exemplo, fazer jornalismo sem dinheiro. A realidade acaba por prevalecer.

De um jeito ou de outro. E ela prevaleceu. Não completamente, como lembrou na 3ª feira ao Poder360 um aliviado Jair Bolsonaro, quando perguntado como fazer para diminuir o excessivo número de partidos.

Singelamente, o atual líder nas pesquisas sem Lula respondeu que se houvesse menos partidos –outra exigência da opinião pública– possivelmente ele não conseguiria ser candidato. Você não precisa curtir o Bolsonaro para aceitar essa verdade.

Se ao quadro atual acrescentarmos a cláusula de barreira, aí sim o serviço estará completo. E isso já está contratado, para daqui a 4 anos. E a opinião pública poderá, como Nero, tocar harpa enquanto Roma pega fogo.

A causa de o Brasil ter muitos partidos não é legislação frouxa. Os partidos multiplicam-se porque é impossível desafiar os donos de legenda por dentro das estruturas.

Aqui Barack Obama jamais teria derrotado Hillary Clinton, muito menos Donald Trump conseguiria tratorar todo o establishment do Grand Old Party. O resultado é a multiplicação das siglas pelo que na biologia se chama de cissiparidade. Quando o ser vivo nasce do outro por uma simples mitose.

E mesmo essa fresta será em boa medida bloqueada, pois a partir de 2022 os novos partidos não terão mais dinheiro nem tempo de televisão. Sem poder arrecadar de empresas ou comprar publicidade, quem quiser desafiar o sistema terá de lutar em condições completamente desiguais.

Ou meter-se a negociar com o oligopólio partidário. E teremos regredido na política ao estágio tribal. Vai ser divertido assistir o pessoal tentando desatar o nó.

Não seria tão difícil assim de resolver. Bastaria impor mecanismos para democratizar a vida partidária-eleitoral. Por exemplo, exigindo que os candidatos sejam escolhidos em eleições internas com direito a voto de todos os filiados. E limitando o direito de veto a filiações. E proibindo o partido de ter candidato onde só tenha comissão provisória. E voltando o financiamento empresarial, mas com duros controles. E permitindo a compra de publicidade.

Dá para fazer. Seria um avanço civilizatório para a nossa democracia. E seria glorioso ver varridos para a lixeira todos os “aperfeiçoamentos” recentes. Vai acontecer? Duvido. Os sabichões da opinião pública precisariam admitir que fracassaram e que suas brilhantes ideias produziram o oposto do que prometiam. Não sei se estão preparados para tanto.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Álvaro Dias corre por fora. Se encostar em Alckmin, ganha músculos para disputar o projeto dito centrista

Poucas vezes no Brasil foi tão verdade a máxima do mineiro Magalhães Pinto, da política como as nuvens no céu. “Você olha, e está de um jeito; você olha de novo, e está de outro.” Em especial no chamado centro, que procura se ajeitar para tirar ou a esquerda ou a direita de raiz do quase certo segundo turno, dado o número de candidatos com razoável intenção de voto.

A semana foi boa para Geraldo Alckmin, que vê murchar rapidamente a viabilidade de um adversário governista puro na eleição. As atribulações jurídicas atrapalham Michel Temer e a pasmaceira econômica é um obstáculo a Henrique Meirelles. Nada é definitivo, mas qualquer um dos dois terá de enfrentar batalha morro acima para demover o MDB de não ter candidato.

A tática de Alckmin é boa. Garantir uma coligação com algum músculo e esperar pelo esvaziamento dos adversários em seu campo. Com o governismo, isso já está encaminhado. Restam porém dois problemas: o polo Marina Silva/Joaquim Barbosa e, menos falado, o projeto do senador Álvaro Dias. O primeiro está sujeito aos humores do PSB. Vamos então tratar do segundo.

A pré-campanha de Dias vai em relativo silêncio, mas tem ganhado terreno. Seu Podemos atraiu parlamentares, ele mantém consistentemente um patamar não desprezível nas pesquisas e está bem fincado no Sul, especialmente no seu estado, o Paraná, essa Canudos da Lava-Jato. Tem experiência na administração, foi governador, e percorre longa carreira legislativa.

Uma desvantagem de Dias para Alckmin, no momento, é São Paulo. Mas o ex-governador paulista enfrenta em seu reduto um Jair Bolsonaro que parece entrincheirado. Se e quando conseguirá finalmente esvaziar o balão do capitão, é uma incógnita. Em 2014 Aécio Neves conquistou São Paulo só na última semana do primeiro turno, e por absoluta falta de adversário.

Outro problema de Dias é a relativa fraqueza partidária. Que ajuda a vender a ideia de uma candidatura “nova”, mas traz também desvantagens operacionais e políticas, como a a dúvida que assola a dupla Marina-Barbosa: “Vai conseguir governar?". Horror aos políticos e à política é chique antes da eleição. Depois de eleito, passa a ser um passivo.

Se bem que 2019 trará, caso vingue a eleição de um dito centrista, a pressão furiosa do establishment, imprensa incluída, para o Legislativo absorver, sem grande resistência, os projetos do vencedor. “É agora ou nunca.” A passividade algo bovina do atual Congresso diante da desenvoltura legislativa-constituinte do Supremo Tribunal Federal faz crer que a tática pode colar.

Poucas vezes se viu um Congresso tão disposto a abrir mão de poder, para proteger-se. Diante do movimento em pinça da Lava-Jato e do STF sobre o Legislativo, a reação dos deputados e senadores tem sido o não-confronto. Se isso se mantiver após janeiro, um presidente dito centrista poderia ter a oportunidade de tentar governar por meio de um bonapartismo de elites.

Mas é prudente um candidato a presidente procurar costurar alguma base política. Quem está mais adiantado nisso é Alckmin. Se Dias atrair o PRB de Flávio Rocha e avançar na disputa do Democratas, entra decisivamente no jogo. E se Dias encostar nas pesquisas em Alckmin pode criar uma onda, ou pelo menos uma janela de moda. Se vai aproveitar ou não, é outra história.

Só uma coisa é certa: o establishment fará o diabo para empurrar um mais autêntico dos seus ao segundo turno. Onde o antipetismo, a rejeição a Bolsonaro ou a anemia político-programática de Marina ou Barbosa serão usados maciçamente para definir a eleição. A peça está escolhida, o teatro também, e entramos agora na fase da seleção do elenco.

A economia entra no período eleitoral como um passivo. A não ser que haja um milagre daqui até outubro, os condutores dela deverão ter de explicar o que deu errado. Especialmente na reforma trabalhista, que reduziu custos do capital mas não implicou retomada da força de trabalho. Um desafio e tanto para os jornalistas e publicitários das campanhas.

E um problema para Alckmin, pois a reforma trabalhista é mais até do PSDB que do governo Temer.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Ortodoxos de mau humor, um sintoma de que as coisas não vão bem

Um indicador importante do andamento da política econômica é o humor dos economistas que defendem a política econômica. E eles estão de mau humor, com razão. O Poder360 listou os números mais recentes 2ª feira, bem no meio do feriado prolongado, e são desanimadores.

Na imprensa e nas redes sociais, os chamados ortodoxos têm escorregado para a desqualificação dos adversários. É sempre um sintoma.

A escolha dos adversários do PT em 2015/2016 não era simples. A economia do 2º mandato de Dilma Rousseff estava em frangalhos, produzia-se uma recessão de tempos de guerra.

O PT chegaria à eleição de 2018 com a missão duríssima e monotemática: responder por que tinha conduzido o país ao desastre. Mas deixar o PT no poder era arriscado. O partido já tinha mostrado 3 vezes que no governo tem o know-how para ganhar eleição.

O que aconteceu todo mundo sabe, e o governo Michel Temer assumiu com um objetivo: melhorar a economia e chegar a 2018 com o mérito de ter salvo o país do desastre produzido pelo PT.

O argumento eleitoral seria automático. “Você quer que o Brasil continue se recuperando ou prefere a volta de quem quebrou o Brasil e produziu a recessão e o desemprego?” Para alcançar o alvo, a receita era mais disciplina fiscal e forte estímulo ao investimento privado.

Só que parece não estar funcionando. Nesta véspera de eleição a economia vai mal, o governo e o Congresso patinam e a oposição tem a oportunidade de fazer do debate um julgamento da política econômica de viés liberal.

Uma única bala para atingir 3 adversários: o do governo, Geraldo Alckmin e o próprio Jair Bolsonaro, que terceirizou o assunto para Paulo Guedes. Sem contar outros hoje menos votados, como João Amoêdo e Flávio Rocha.

É tentador demais. “Por que a economia afundou no governo Dilma? Porque ela abriu mão de impostos, acreditou que os empresários investiriam e gerariam emprego, mas os empresários preferiram colocar o dinheiro a juros. Aí a situação das contas públicas se deteriorou, o desemprego explodiu, o consumo despencou e a economia foi para o abismo. Se a gente ganhar em outubro, a política econômica vai ser a do Lula, e não a da Dilma.”

Note, leitor ou leitora, as aspas. Não discuto aqui se esses argumentos estão “certos” ou “errados”. Ou quanto de honestidade intelectual há nas teses lado a lado. Vou deixar isso para o interminável debate entre liberais e keynesiano-marxistas, polêmica que promete se prolongar até o fim dos tempos.

A discussão aqui é sobre percepção, o elemento decisivo nas campanhas eleitorais. Já que, para desgosto dos especialistas, a eleição é decidida pelos leigos.

O liberalismo entra em desvantagem na porfia. Terá de explicar que o resultado não é bom porque a dose do remédio foi insuficiente. Ou que a política atrapalhou a economia. Vão soar como desculpinhas.

A saída? Tentar deslocar o debate eleitoral da economia para a corrupção, sempre um tema popular. O problema? Uma disputa eleitoral centrada na denúncia da corrupção política não seria o melhor ambiente para um candidato “de centro”. #FicaaDica.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br