quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Anticíclicos funcionam

A boa notícia do dia é a forte criação de empregos em agosto (leia). Boa notícia para o governo, para quem conseguiu se empregar ou tem esperança de encontrar uma vaga. O auxílio emergencial e as outras medidas excepcionais aprovadas contra a crise da Covid-19 parecem estar cumprindo seu papel.

Medidas anticíclicas funcionam. Onde está um desafio agora? Ver se a economia conseguirá respirar sozinha quando tirarem o respirador que a sustenta desde março. O que ajuda? Talvez não tenha havido nesse período destruição maciça de forças produtivas, apenas um breque.

Agora vem a parte mais complexa. O governo vai ter de achar espaço fiscal para dar uma mão aos que não sairão tão bem assim destes meses de paradeira. E vai ter de encaixar a coisa no teto de gastos, que a cada dia ganha mais adversários, abertos ou disfarçados.

Não é mesmo uma equação simples. De todo modo, os dados do Caged de agosto têm gás para dar um respiro à pressionada figura do ministro da Economia. Mas a vida dele é de ciclista. Tem de continuar pedalando (sem trocadilho) para não se esboroar.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Dono da bondade e da maldade

Os meios de comunicação explicaram ad nauseam que o governo queria um auxílio emergencial de 200 reais e quem forçou o aumento para 600 foi o Congresso. Resultado? Quem vem faturando politicamente é o governo, mais precisamente o presidente da República. E não os deputados e senadores.

O povo é sabido. Sabe que quando o governo não quer soltar um dinheiro ele, governo, luta até o último homem para segurar a coisa na boca do caixa. Ou seja, se pagaram os 600 por mês foi porque o governo concordou. Então parabéns ao governo.

Pela mesma lógica, é ilusão imaginar o povão caindo na conversa de que eventuais "medidas amargas" (leia) serão culpa do Legislativo. O Palácio do Planalto pode correr mas não conseguirá fugir. Os efeitos de aumento de impostos e corte de benefícios no humor coletivo vão em algum grau bater na porta dele.

E deixar para depois da eleição é brincar com fogo. Estelionatos eleitorais têm custo. Se for para fazer, é melhor assumir, explicar e preparar-se para o impacto. Ou alguém acha que os candidatos e militantes da oposição não vão desde já bater na tecla de que o eleitor está mais uma vez a caminho de ser enganado?

domingo, 27 de setembro de 2020

A enésima morte da nova política

A ideia da necessidade de uma política de tipo inteiramente novo não é novidade na política nacional. Basta lembrar do “Brasil novo” prometido pelo então candidato a presidente Fernando Collor de Mello, três décadas atrás. A tentação é permanente. Quem não gostaria de resolver os próprios problemas e aporrinhações simplesmente apertando o botão de reset?

De tempo em tempos, mais agudamente em crises que esgotam a paciência, o eleitor cai nessa. É arrastado pela promessa de que a ponte para superar os impasses é trocar as pessoas erradas pelas certas. E nunca faltam candidatos a preencher a necessidade. E acabam chegando ao poder carregados da esperança de que vão finalmente passar o sistema a limpo.

Mas tão previsível quanto o apelo cíclico das promessas de renovação é o poderoso efeito permanente da inércia. Se até nas rupturas dignas do nome ela opera com impacto decisivo nas políticas pós-revolucionárias, quanto mais em transições de superfície, como às que nosso país está habituado na sua já relativamente longa história.

O Brasil é quase um laboratório permanente de experimentação da teoria que adverte sobre o peso opressor das ideias mortas sobre as ações dos seres vivos que se imaginam como o novo. Nada é mais previsível por aqui que a alternância entre a euforia diante da novidade e o conformismo quando o velho finalmente volta a se impor.

O surto mais recente de ansiedade por uma nova política vem de 2014, impulsionado pela explosão de junho de 2013, o embrião do momento por que o país passa hoje. Mas se ao longo destes anos você fosse perguntando às pessoas “afinal, o que é a nova política”, provavelmente constataria, surpreso, que ninguém tinha a menor ideia da resposta.

Ao final, a nova política acabou se vestindo de algo bastante velho, o clássico bonapartismo. O culto ao poder unipessoal exercido em ligação direta com o desejo difuso das massas. O obstáculo? Este projeto unipessoal precisaria impor-se na prática aos bolsões de poder estabelecido.

No Brasil isso é praticamente impossível, ou muito difícil, por várias razões. Uma singela: o sistema está organizado para impedir qualquer presidente de eleger com ele a maioria parlamentar. Presidente, governadores e prefeitos. O problema está nos três níveis da federação. Na teoria, trata-se de um sistema de freios e contrapesos. Na prática, a garantia de que nada vai mudar.

Neste final da metade do (primeiro?) governo Jair Bolsonaro, assistimos ao enésimo enterro de um ensaio da possibilidade de uma política inteiramente nova. Mas, a exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva, o atual presidente teve a inteligência, e a prudência, de mandar a coisa toda do "novo" às favas enquanto ainda tinha força suficiente para dissuadir “a velha política” de tentar derrubá-lo.

Pois a coisa anda perigosa. Invocar questiúnculas para derrubar governantes que perderam a (ou nunca tiveram a) maioria parlamentar parece estar virando, como se diz, carne de vaca. Comprova-se, de maneira ineditamente disseminada, que governos “técnicos” estão sempre a caminho de cair. Ainda mais com a atual exuberância de um Judiciário inebriado de poder.

E de Legislativos que perceberam que podem derrubar quem for sem enfrentar reação ponderável.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Fechados

A cidade de São Paulo vai fechar o último hospital de campanha que ainda estava aberto para atender pacientes de Covid-19 (leia). Não são mais necessários, pois a pandemia claramente refluiu na capital paulista, como mostra o gráfico organizado pelo deputado federal Eduardo Cury (PSDB-SP) (veja).

Na real, o pico das mortes na cidade de São Paulo foi atingido em meados de junho. De lá para cá, o que se viu foi um relaxamento progressivo do isolamento social na capital paulista. Que na teoria deveria ter trazido um repique dos casos e portanto de mortes. Mas não aconteceu.

Se as premissas desenvolvidas desde o início da pandemia pelos especialistas estiverem certas - e não há motivo para não estarem - desde junho a cidade de São Paulo deve estar combinando graus razoáveis de distanciamento social e de imunidade coletiva. Não há outra explicação.

E como a presença de anticorpos contra o SARS-CoV-2 ali nunca superou uma ordem de grandeza de 20%, só se pode concluir que, a depender da eficiência do distanciamento social, a imunidade coletiva pode mesmo ser atingida com bem menos que os inicialmente previstos 60% de infectados.

Ou vai ver tudo isso está errado e estamos na iminência de uma segunda onda forte de casos. O futuro dirá.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Pesquisas

Duas pesquisas divulgadas hoje trazem dados interessantes. A do Ibope para a CNI reforça a resiliência (propriedade de voltar à forma original após uma deformação elástica) do presidente da República (leia). 

Já segundo o Datafolha, entre os grandes cabos eleitorais, Jair Bolsonaro é o que menos agrega votos a um candidato que apoie para prefeito de São Paulo (leia).

A contradição pode ser apenas aparente, porque a própria CNI mostra que a aprovação ao presidente não é tão brilhante assim na região Sudeste, onde São Paulo pesa bem. Força mesmo ele mostra no Sul. E recupera terreno no Nordeste, apesar de ainda ser a pior região para ele.

A vida dirá qual será, no fritar dos ovos, o peso de cada apoio na eleição municipal. Uma coisa é o eleitor dizer que vai votar no candidato apoiado por alguém. Outra coisa é colocar o voto na urna. Aguardemos.

Outra curiosidade é saber como reagirão os beneficiados pelo auxílio emergencial quando este acabar. Mesmo que surja um novíssimo programa social, ele não deverá ter a cobertura e a dimensão do auxílio.

Que venham os próximos capítulos.


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A força

O debate em torno da substituição de Ruth Bader Ginsburg na Suprema Corte dos Estados Unidos é uma lição imperdível de realpolitik. Vale por um curso de Ciência Política. 

Quando Barack Obama quis nomear um juiz para a SCOTUS no último ano de mandato dele a maioria republicana bloqueou, com o argumento de que se deveria esperar pela eleição. 

Agora os democratas pedem coerência aos adversários. 

E os republicanos respondem com o argumento da força. Se eles têm os votos, por que arriscar deixando para depois?

Quem apostaria um picolé na hipótese de que se os democratas tivessem maioria numa situação invertida deixariam de fazer valer sua força política?

Na política, regra geral, pode-se ter certeza de uma coisa: o argumento da coerência costuma aparecer exatamente quando falta força. Já quando se tem a força, sempre é possível produzir narrativa que ofereça alguma argumentação coerente capaz de embalar o que se quer fazer.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Doria x Bolsonaro

Qual vai ser o efeito da Covid-19 na eleição municipal? A polêmica sobre as atitudes de Jair Bolsonaro promete ter impacto apenas relativo, pois a eleição é para prefeito e vereador e não para presidente. 

É provável que agora em novembro o eleitor julgue os candidatos mais pelo que fizeram de prático, ou deixaram de fazer, no combate à pandemia.

Mas há outro front na guerra política, este voltado a 2022: a vacina. O político que arrumar vacina, que funcione, para os governados em larga escala vai largar com combustível de primeira. Um trunfo e tanto.

Aqui, no momento, João Doria parece estar com algum gás. Promete nos próximos meses vacina Coronavac em quantidade suficiente para todo mundo que mora em São Paulo (leia).

Mas o Ministério da Saúde de Jair Bolsonaro também corre (leia). O problema são as dúvidas sobre a vacina preferida do governo federal (leia).

É o risco do efeito-bumerangue. A vacina que der zebra na hora da aplicação em massa, ou que acabar não sendo liberada por possíveis danos à saúde, pode ter o efeito eleitoral de uma arma de destruição em massa.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Rádio, TV e Internet

Definidas as chapas, chegou a hora de começar a prestar alguma atenção nas eleições municipais. A campanha no rádio e TV só dá a largada em outubro mas mesmo antes disso a coisa deve começar a dar uma esquentada na Internet e na imprensa. 

Bem, uma das curiosidades deste ano será verificar o peso específico de cada meio para definir o posicionamento do eleitor.

Até 2018 o horário eleitoral jogava papel preponderante, na maioria dos casos. Mas naquele ano o latifúndio televisivo e radiofônico do candidato do PSDB não foi suficiente para alavancá-lo. 

Por outro lado, a TV e o rádio foram essenciais para informar ao eleitor do PT quem era o candidato apoiado por Luiz Inácio Lula da Silva. E isso permitiu uma escalada rápida do nome petista, e assegurou-lhe o direito de ir ao segundo turno.

E agora, como vai ser? Assistiremos à consolidação do protagonismo das redes sociais ou os meios tradicionais farão valer seu peso histórico?

Façam suas apostas.

sábado, 19 de setembro de 2020

Números, narrativas e certezas absolutas

A ciência gosta de calcular por meio de porcentagens a letalidade de um fenômeno qualquer. Até o momento, as mortes por Covid-19 pelo mundo resvalam em 0,1% da população nos casos mais agudos. É relativamente aceitável? Não chega a ser motivo para manchetes. Mas, e se você disser que o Brasil deve passar das 200 mil mortes pela ação do SARS-CoV-2? É bem mais impactante.

Perdas humanas são sempre trágicas, mas não se engane o leitor, ou leitora: para os políticos, lato sensu, elas são apenas uma variável da função que define o grau de sustentação do poder. Outra variável é a narrativa para explicar as fatalidades. Uma boa narrativa pode, em consequência, neutralizar um alto número de mortes, quando se calcula o efeito político delas.

Eis por que o governo federal se agarra à denúncia da resistência dos adversários à cloroquina. Há alguma evidência de que o uso precoce dela teria reduzido as contabilidades fatais? Nenhuma. A ciência já largou de mão faz tempo. Mas isso pouco importa. Interessa antes de tudo fornecer argumentos a quem vai te defender, na mesa do bar ou na reunião da família.

Mas seria injusto particularizar a caracterização no governo federal. Veja-se por exemplo a situação de São Paulo. Até sexta-feira o estado tinha 728 mortes por milhão de pessoas. São Paulo desde o início escalou uma profusão de celebridades científicas para dar cobertura à política. Depois implantou um sistema labiríntico para a saída da quarentena, o Plano São Paulo.

Bem, com suas 728 mortes por milhão, São Paulo está pior que o Brasil no seu conjunto, onde o número até sexta-feira estava em 641. É razoável deduzir então que o enfrentamento da Covid-19 vem sendo pior em São Paulo que no resto do país? Fica a dúvida. Mas é inegável que a performance de “culto à ciência” está ajudando, e bem, o Bandeirantes a atravessar a borrasca.

Voltemos aos 0,1%. Suponhamos que a China tivesse deixado a doença seguir seu curso natural, como fizeram em grande medida o Brasil e os Estados Unidos. É razoável projetar que teríamos então mais de um milhão de chineses mortos pela ação do SARS-CoV-2. Explica-se portanto o duríssimo rigor das autoridades ali. Seria um número de alta letalidade política e propagandística.

Números são números. E aí os políticos levam uma vantagem sobre os cientistas. Podem mudar de conversa de um instante para outro, pois no primeiro ramo a coerência não chega a ser um valor vital. Já no ramo científico espera-se que o dito hoje tenha ver com o dito ontem. Se não tiver, é obrigatório explicar por quê.

Uma explicação que os divulgadores científicos estão a dever é sobre o atingimento da imunidade de rebanho. Lá no começo da pandemia afirmava-se que seria necessário contaminar uns 60% da população para as curvas de casos e mortes entrarem na descendente. Bem, elas estão caindo por aqui sem que a população dotada de anticorpos ultrapasse 20%.

Pode ser que haja gente resistente à coisa mesmo sem exibir anticorpos. Ou pode ser que o número estivesse errado. Ou outra hipótese qualquer. Há muitas por aí. Certamente um dia será explicado. De lição, fica apenas constatar, novamente, que ciência de verdade não combina com certezas absolutas a respeito de assuntos que ainda não se conhece bem.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Para todos os gostos

Um fenômeno disseminado nesta pandemia da Covid-19 é a crescente falta de correlação entre casos e mortes. A letalidade do vírus parece estar reduzindo-se. Isso é mais visível em países que enfrentam uma clara "segunda onda".

Um caso forte de segunda onda é Israel. Que em pleno Ano Novo judaico entrou em um severo lockdown (leia).

As hipóteses são variadas, mais um sintoma de que a ciência, em larga medida, ainda tateia na busca de explicações. Pode ser que os indivíduos mais vulneráveis já tenham sido vitimados na primeira onda. Pode ser que o vírus se adapte para matar menos, e assim preservar seu estoque de "infectáveis".

Pode ser também que o uso intensivo de máscaras reduza a quantidade de vírus que atingem o indivíduo, a ponto de este acabar imunizando-se sem apresentar sintomas graves. A hipótese foi bem dissecada no episódio 51 do Luz no Fim da Quarentena, podcast da revista Piauí (ouça).

Tem explicações para todos os gostos.


A luta do centrismo

Uma característica destas eleições municipais, além da pulverização das candidaturas a prefeito trazida pelo fim das coligações para vereador, é a movimentação do centrismo para construir a base de alternativas competitivas na eleição presidencial. Acontece na esquerda e na direita. Nesta, nota-se a atração mútua entre PSDB, MDB e Democratas. Naquela, entre PSB e PDT.

O objetivo de cada um é quebrar a hegemonia em seu campo. Na direita, reina soberano por enquanto Jair Bolsonaro. Na esquerda, apesar dos pesares, nenhum desafiante chega perto de Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo consideradas as atribulações jurídicas do ex-presidente. Ciro Gomes ainda consegue alguma musculatura. Mas João Doria come poeira.

E Sérgio Moro por enquanto é incógnita.

Em condições normais de temperatura e pressão a primeira fila no grid para 2022 estará portanto ocupada. O que pode porém mudar? No centrismo de esquerda, uma esperança é que desta vez o eleitorado de Lula, se ele não puder concorrer, não marche para o candidato de Lula. No centrismo de direita, o sonho é que Bolsonaro seja removido antes da largada por algum fato ainda fora do radar.

Daí que, num apenas aparente paradoxo, o foco da pancadaria de cada um seja o “aliado” potencial, e não o adversário eleitoral. O objetivo principal de tucanos, democratas e emedebistas nesta eleição de prefeito e vereador é derrotar o bolsonarismo. E o esforço maior de pessebistas e pedetistas é maximizar as dificuldades político-eleitorais do PT para impor ao partido de Lula o maior desgaste possível.

Observadores cartesianos da cena podem até achar estranho, mas assim é a política. Qualquer análise desta que não tenha como centro a luta crua pelo poder é desperdício de tempo e energia intelectual. E ninguém chega a um segundo turno sem passar pelo primeiro. E o principal obstáculo no primeiro turno costuma ser exatamente aquele “amigo”, para o eleitor de quem você vai ter de pedir apoio e voto quando chegar a hora da decisão.

Daí por que se compreende o presidente da República resistir a colocar o cacife dele na mesa dos primeiros turnos nos municípios. A não ser quando for importante para, desde agora, enfraquecer diretamente seus possíveis adversários em 2022. Já no caso de Lula, a prioridade parece ser evitar que o PT se dilua em alianças que podem fortalecer quem deseja aposentar o ex-presidente.

Não que ambos, Bolsonaro e Lula, dependam tanto assim do resultado deste novembro. Ele é vital para seus concorrentes, mas os dois podem sobreviver bastante bem a revezes de sua tropa. Pois eleição presidencial tem características de eleição solteira. O eleitor não vota no presidente porque o deputado ou o governador mandaram, mas pode muito bem decidir votar no governador ou no deputado porque são apoiados pelo candidato a presidente.

E tem outra: quanto mais cada partido, o bolsonarista e o lulista, vier a sofrer agora, mais precisará do líder para comandar a colheita na urna daqui a dois anos. Fica a dica.

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Publicado originalmente na revista Veja número 2705, de 23 de setembro de 2020

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Jaboticabal

A Folha de S.Paulo faz uma coisa diferente. Escolheu uma cidade no interior de São Paulo para realizar uma cobertura completa da sucessão municipal. É Jaboticabal (leia). Iniciativa interessante. Normalmente, a cobertura eleitoral dos jornais ditos nacionais é 100% concentrada nos maiores centros.

Milhares de municípios, mesmo grandes, ficam completamente nas sombras do trabalho jornalístico dos maiores veículos. E não só nas eleições. O que sabemos, por exemplo, do andamento da Covid-19 no interior do Brasil? Só as estatísticas, e mesmo isso é preciso escarafunchar.

Já se disse do Brasil que nunca deixará de ser um país litorâneo, considerando-se "litoral", quem sabe?, o espaço que vai até uns 100 km da costa. Este texto é curto para dissecar o fenômeno, mas nossa interiorização não teve a profundidade e a intensidade, por exemplo, da dos Estados Unidos. Infelizmente.

De todo modo, é saudável sempre olhar o Brasil como um todo. E eleições para prefeito e vereador são uma excelente oportunidade para lançar a vista além do que se costuma olhar. Pois conhecer o cenário completo é o melhor meio de minimizar a possibilidade de errar na análise.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Exercício inútil

Exigir coerência na política é um exercício inútil de ingenuidade. Aliás, coerência não chega a ser um valor em si nesse ramo de atuação. Se o governante está errado, espera-se que ele corrija o rumo, sob pena de conduzir os governados à catástrofe, se não o fizer. A história está repleta de exemplos.

Num dia o presidente da República diz não querer nem ouvir falar no Renda Brasil. No outro, dá sinal verde para o Congresso Nacional achar um espaço orçamentário adequado a um eventual novo programa social (leia). É incoerente? Sim. Mas, e daí?

Qual é a divergência? Aparentemente, a equipe econômica vê na criação do novo programa social um cavalo de troia que carregaria na barriga maldades compensatórias. O presidente, que ao contrário do mercado depende de voto, não quer nem ouvir falar.

Mas se suas excelências no Parlamento descobrirem de onde tirar dinheiro, e sem praticar maldades, claro que Jair Bolsonaro não vai se opor. E poderá saborear então uma doce derrota. Como o auxílio emergencial, proposta na qual ele foi derrotado nas manchetes mas faturou no povão.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

A corda

Não tem escapatória. Ideias econômicas estão sempre subordinadas às circunstâncias políticas do governo que precisa pilotar o transatlântico da economia. Quando os "gestores" econômicos têm dificuldade para compreender isso, preparam a corda do próprio enforcamento.

A última que acreditou poder fazer um ajuste fiscal #supermegablaster porque, afinal, teria muito tempo para recuperar depois a popularidade foi Dilma Rousseff. O desfecho daquele projeto é conhecido. Parece que Jair Bolsonaro não cultiva a pretensão de ter a cabeça oferecida em sacrifício aos deuses do mercado.

O problema: parte dos que o elegeram esperam ainda ver ele cumprir a promessa de delegar 100% da política econômica. Mesmo ao custo de ter de deitar o pescoço na guilhotina. Trata-se de uma contradição de difícil equacionamento nos marcos da paz (leia).

A reeleição traz seus problemas, mas mesmo se o mandato fosse único o presidente, nas regras de agora, estaria sempre sob risco de perder a maioria congressual e cair. A questão é outra: para ter liberdade de praticar políticas duras, para qualquer lado, o presidente precisaria eleger com ele a maioria do Congresso.

Mas aqui o sistema está organizado para evitar isso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Lixando-se

Em algumas áreas, o serviço público deveria estar iniciando o retorno às atividades mas não está, devido a decisões judiciais e posicionamentos particulares (leia). O mais espantoso é que os envolvidos já tiveram mais de meio ano para se organizar. E para pensar como seria a volta. E nada.

No final das contas, estão se lixando para o cidadão comum.

O contraste entre as praias lotadas e, por exemplo, a recusa dos profissionais a atender o público no INSS é chocante. O mesmo se dá com o contraste entre as praias lotadas e as escolas vazias. Estas últimas poderiam até ser lidas como um exemplo de preocupação com a saúde. Se não fosse, repito, o contraste.

Sem falar na teia de decisões judiciais contraditórias entre si, movidas, ao menos no que aparentam, mais por interesses particulares que pelo interesse coletivo. Ainda que venham fantasiadas de ações "em nome do bem comum".

Sintomas de um país doente.

sábado, 12 de setembro de 2020

Uma dúvida para 2021

Resta pouca dúvida de que o auxílio emergencial teve um formidável efeito-tampão sobre duas variáveis na conjuntura: a atividade econômica, em particular no comércio, e a sustentação popular de Jair Bolsonaro. Produziu também, junto com o real fraco e a voracidade estrangeira por estoques, algo de carestia em alimentos básicos. O governo aposta que este efeito será passageiro e não vai se propagar.

Certa dúvida porém tende a colocar uma pulga atrás da orelha daqui até dezembro. Qual será o efeito do fim do auxílio, pois no momento o governo não quer que ele entre em 2021. Há o projeto do Renda Brasil, mas ainda está no forno e não tem nem de longe a dimensão do auxílio emergencial. Nas condições normais de temperatura e pressão, a cidadania vai ter de voltar a andar com as próprias pernas depois que a São Silvestre passar.

Partamos então da premissa de que vai ser assim mesmo. Uma dúvida: como o povão vai reagir? Vai voltar-se contra o governo por este ter esticado a coisa até a eleição e depois tirado? Ou vai sentir-se grato por o governo ter encontrado uma solução de emergência na pandemia e assim evitado o colapso econômico e social? Quem tiver certeza, que faça sua aposta. Não é um jogo de previsão simples.

Concessões e benefícios são fáceis de dar, e difíceis de tirar. Eis uma verdade, mesmo que não seja novidade. Mas é verdade também que uma conta mensal de R$ 50 bi não tem sustentação fiscal, ainda mais numa economia há uma década oscilando entre regressões brutais e crescimentos medíocres. Distribuir dinheiro funciona, mas precisa vir junto com aumento da produção ou da importação. Ou as duas coisas. Sem isso, é crise contratada.

A história recente traz dois casos em que governantes esticaram o conto de fadas até passar a eleição, depois tiveram de dar a real e viram a popularidade despencar: José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Há também o cavalo de pau de Dilma Rousseff entre o primeiro e o segundo mandatos. Os dois primeiros tinham base no Congresso e no establishment. Sobreviveram. Dilma pagou o preço por não fazer os amigos certos na época das vacas gordas.

Mas a história política brasileira é também pródiga em situações nas quais a gratidão popular acaba falando mais alto. Governantes que implementam programas de forte apelo junto ao povão acabam ganhando uma gordura de popularidade para queimar nas horas difíceis. E Jair Bolsonaro tem um trunfo: diferente de Sarney com o Cruzado e FHC com o dólar -- e o frango -- a um real, ninguém poderá dizer dele que prometeu o auxílio-emergencial para sempre.

O governo acaba de organizar uma base no Congresso Nacional, mais na Câmara dos Deputados que no Senado Federal. O ministro da Economia parece acreditar na solidez dela, mas as ironias de Rodrigo Maia deveriam acender uma luz amarela no Planalto. Na última linha da planilha, a administração e o próprio presidente da República dependem do que deles acha o povão. Daí a importância da dúvida para 2021.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Dois indícios

As curvas de casos e mortes por Sars-CoV-2 trazem dois indícios sobre países que apresentam uma assim chamada segunda onda: 1) as taxas de letalidade são inferiores às da primeira e 2) costumam acontecer em países que mais rigidamente contiveram a propagação do vírus na fase inicial.

O segundo fator é relativamente fácil de explicar, ou ao menos especular. Países que mais decisivamente atuaram para conter a propagação do vírus na largada provavelmente têm mais população suscetível. Não existe mesmo almoço grátis. Tudo na vida tem dois lados.

Ditos os clichês, vamos à menor letalidade. Duas hipóteses. Uma é que a Medicina já sabe melhor como enfrentar o problema. Outra: talvez o vírus tenha se adaptado para matar menos gente e portando não abater a sua galinha dos ovos de ouro. Vírus precisam de seres vivos para sobreviver.

Certezas? A única por enquanto é que vamos conviver com o vírus por um bom tempo. Ainda mais com a escalada do antivacinismo. A coisa é especialmente preocupante em países de sistema político bagunçado e em guerra interna eterna. Como por exemplo os Estados Unidos e o Brasil.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Uma dúvida para o pós

As vendas do comércio registram forte recuperação (leia). O motivo é cristalino: o auxílio emergencial que repôs e em muitos casos multiplicou de um dia para o outro o poder de compra das pessoas e das famílias.

Uma consequência indesejada é a inflação nos preços dos alimentos. Que certamente é sazonal. O risco é ela se propagar para o restante da economia. Mas será que isso vai mesmo acontecer se a confiança do consumidor continuar em baixa?

As gentes estão indo ao supermercado ou ao mercadinho comprar arroz, feijão, ovos, carne, óleo. Mas será que um consumidor cabreiro com a possibilidade de perder o emprego, ou de não arrumar um, vai sair por aí comprando bens mais caros? Os chamados supérfluos.

Uma dúvida no pós-pandemia, ou no pós fase crítica da pandemia, é se o novo consumidor vai mudar a proporção entre o que poupa e o que gasta. O Brasil não é propriamente conhecido pela propensão a poupar. Mas será que vai continuar sendo assim?

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A ciência que interessa

A suspensão dos testes com a vacina da AstraZeneca desencadeou uma guerra de informação e contrainformação, conflito em que a confiança do público é o alvo principal. 

Será ingenuidade acreditar que no mundo multibilionário das vacinas para a Covid-19 as ações, inclusive as das bolsas de valores, vão flutuar apenas com base na busca do bem e da verdade. 

O buraco é sem dúvida mais embaixo.

O leitor ou leitora são suficientemente inteligentes para notar os diferentes tratamentos dados pelo universo informacional às diversas vacinas, e para fazer a correlação com os interesses geopolíticos envolvidos. 

Melhor não se enganar: é briga de cachorro grande.

Numa outra esfera, algo deve preocupar. O fato de o diz-que-diz-que e de o "minha vacina é que é a boa" poder, quem sabe?, dar um gás ao antivacinismo. 

Para que a sociedade esteja protegida é preciso que a vacinação atinja obrigatoriamente um certo percentual. E isso será definido pela ciência.

Que preferencialmente não deve ser a ciência política. Ou a crendice política.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

A bolha

Há certas coisas sobre as quais se pode ter certeza absoluta, pelo menos pelo tempo que a vista alcança. Uma é o sol nascer e se pôr todos os dias. Outra é que, com a chegada da internet, de tempos em tempos teremos uma bolha nos ativos relacionados à alta tecnologia. Outra ainda é que toda bolha um dia estoura.

A Nasdaq por estes dias apenas confirma a certeza (leia). É um acumulado de problemas. Com a Tesla (que perdeu US$ 70 bi em valor de mercado em duas semanas), com a ameaça de Donald Trump de cortar todos os laços de negócios com a China e também por causa do mercado inundado de dinheiro posto a circular para enfrentar a crise desencadeada pela pandemia.

O excesso de dinheiro em circulação é como uma esquadrilha de aviões todos no ar mas que em certo momento precisam pousar. Aí os ativos se valorizam. Mas uma hora quem comprou começa a achar que talvez seja o momento de vender antes dos demais, porque se ficar para trás pode dar ruim.

É que nem naquela tradicional dança das cadeiras. Ninguém quer sobrar. Ninguém quer ficar com o mico na mão. E a coisa sempre começa de um jeito discreto. Depois acelera. E aí é o salve-se quem puder. O jeito é torcer para desta vez ser diferente. Sonhar não custa nada.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Usado em alta

Pandemias trazem, conforme diz o já batido clichê, um "novo normal". Nos Estados Unidos, um aspecto da nova vida pós emergência da Covid-19 é o aumento da demanda - e portanto do preço - de carros usados (leia). E as razões são duas.

Uma, naturalmente, é a queda da oferta de carros novos, resultado da paradeira na indústria. Mas a segunda é mais interessante: a disposição de trocar o transporte coletivo pelo individual. Ou trocar o Uber pelo carro próprio.

Aliás, quem anda de Uber - e não opta pela absurda possibilidade de impedir o condutor de abrir a boca - sabe como caiu a demanda pelo serviço depois da chegada do SARS-CoV-2.

Mas se a compra de carros "seminovos" aponta para o alto nos EUA é também porque o transporte coletivo ali é largamente utilizado pela classe média que tem carro - ou poderia ter - mas prefere deixar em casa. Definitivamente, não é o caso aqui.

Um campo interessante de estudos será o consumo no pós-pandemia, ou após a fase mais aguda dela. Disso dependerá, e muito, a recuperação econômica. Bom ficar de olho. 


sábado, 5 de setembro de 2020

O passado e o futuro

Já foi dito aqui que a tendência da eleição municipal é a pulverização partidária, causada pela proliferação de candidaturas a prefeito, esta por sua vez provocada também pelo fim das coligações na eleição de vereador. Além disso, não se antevê nenhum partido, ao menos por enquanto, surfando com vantagem sobre os demais na onda da renovação, uma parteira tradicional de votos nas eleições aqui.

Mas se no âmbito das legendas a força resultante parece ser centrífuga, é razoável também supor que no funil dos segundos turnos, e em alguns primeiros, possa estabelecer-se a polarização entre campos políticos nacionais. Que hoje distribuem-se grosso modo assim: bolsonarismo/centrão, direita não Bolsonaro, esquerda não petista e petismo+psolismo. 

Claro que é um esquema, e como qualquer esquema possui limitações.

Essa distribuição tem porém sua lógica interna, até por seguir de algum modo a disponibilidade das principais pré-candidaturas presidenciais: Bolsonaro, Moro/João Doria, Ciro, Lula/Haddad/Dino. Não se trata entretanto de um cenário pronto. Os blocos ainda vão rearranjar-se conforme a água vai passando por baixo da ponte. 

Jogo jogado só em 2022. Tem muito tempo, e espaço, para deslocamentos.

A esquerda vem na defensiva desde o impeachment de Dilma Rousseff, e com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 foi lançada numa defensiva estratégica. Suas bases sociais têm sido meticulosamente enfraquecidas, desorganizadas e desidratadas pela nova hegemonia, uma aliança informal mas efetiva desde o autonomeado centro até o bolsonarismo mais raiz.

Essa defensiva, paradoxalmente, ou dialeticamente, desencadeou uma luta sem quartel pela hegemonia no dito campo progressista. Aqui renova-se a utilidade de às vezes colocar a política no "mudo". Enquanto se digladiam nas palavras sobre o caráter da frente de oposição a Bolsonaro (ampla ou de esquerda), nos atos os partidos da velha aliança progressista seguem cada qual seu caminho. As exceções apenas reforçam a regra.

Tal peculiaridade, dizem as pesquisas, leva a que a esquerda possa ficar fora na maioria das, ou pelo menos nas mais expressivas, disputas municipais. O que a levaria em certas situações críticas a ter de optar pelo apoio à direita não Bolsonaro em eventuais segundos turnos ou resignar-se à neutralidade. Opção também à mão do chamado centro se precisar decidir entre o bolsonarismo e o PT. Ou o PSOL.

Qual é a dúvida? Se as eleições de 2020 representarão apenas o epílogo da desagregação da antiga “frente democrática” que construiu a Nova República e com ela gangrenou, ou se já trarão pelo menos sinais embrionários das alianças para 2022. Se precisarão ainda servir de instrumento para o inevitável ajuste de contas com o passado, ou se darão à luz os primeiros sinais para o futuro.

Quem está no momento mais bem posicionado no xadrez é o centrismo, que poderá agir com o agudo e já tradicional senso de oportunidade ao se apresentar de um lado como estuário para o antibolsonarismo e de outro como desaguadouro para o antipetismo. Nunca se deve subestimar essa equação. Ela tem garantido, por exemplo, décadas de hegemonia em São Paulo.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Gamaleya

A gritaria segue, mas a caravana continua passando. Tem a turma que é contra vacinas. E tem o pessoal que é contra vacinas de países ideológica ou geopoliticamente “suspeitos”.

Ao fim e ao cabo, tiradas as operações de contra-informação motivadas por interesses comerciais, a disputa é mesmo entre a luz e as trevas.

E tem a falsa oposição entre direitos individuais e coletivos. Ora, vacinação em massa não é para proteger apenas os indivíduos que se vacinam, mas o conjunto da população.

Vacinação coletiva tem o objetivo de produzir imunidade coletiva, algo só alcançado quando um certo percentual da coletividade se protege com a vacina.

E parabéns ao Instituto Gamaleya (conheça), cuja vacina Sputnik 5 vem passando nos testes mais complicados.

Esperteza que engole o dono

O noticiário relata que os presidentes do Senado e da Câmara buscam um atalho para se candidatarem à reeleição, mesmo no meio da legislatura. A Constituição proíbe expressamente isso, mas argumenta-se que o tema é interno às casas legislativas. Assunto interna corporis, a ser resolvido entre os candidatos e seus eleitores (deputados e senadores).

Se o Brasil não tivesse sido transformado, e sempre sob as anunciadas melhores intenções, num paraíso da insegurança e do criacionismo jurídicos, a tese continuísta seria rechaçada sem piedade. Mas aqui a pessoa acorda de manhã sem saber que trecho da Constituição está vigorando, ou se algo foi introduzido durante a noite na Carta “porque é justo”.

Nessas horas é prudente recorrer à sabedoria do Conselheiro Acácio, o personagem de Eça de Queiroz que nos advertiu sobre as consequências virem sempre depois. Se os presidentes das duas Casas do Congresso podem pleitear um novo mandato contra a letra expressa da Carta, argumentando ser "assunto interno" do Legislativo, por que não usar o mesmo critério para o presidente da República e os eleitores dele?

Se alguém pode ter direito a uma reeleição que a Constituição proíbe, bastando para isso que assim o queiram os eleitores envolvidos, por que negar ao ocupante do Palácio do Planalto a possibilidade de se submeter ao julgamento do eleitorado para tentar obter um terceiro mandato? Ou um quarto? Ou um quinto? E por que não a possibilidade da reeleição ilimitada?

Afinal, se o povo não estiver de acordo, que derrote o presidente-candidato.

Seria só a extensão para o conjunto dos eleitores de um direito antes reservado aos membros do colégio eleitoral que escolhe os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Se suas excelências do Congresso Nacional podem outorgar-se essa possibilidade, por que negar ao povo?

Foi aliás o argumento de Evo Morales para driblar a consulta popular que o derrotara e tentar buscar um novo mandato de presidente na Bolívia. O resultado é conhecido. Como se diz, esperteza quando é muita vira bicho e come o dono.

O Brasil não é propriamente um exemplo de apego à letra da lei. O estado de direito por aqui costuma ser, digamos, flexível. Coisa exacerbada nesta era de bonapartismos, quando o pessoal que pede respeito às regras é visto como uma gente chata que abusa do mimimi.

No rumo atual vamos deslizando perigosamente para o predomínio de uma única lei: a do mais forte. Sabe-se hoje que as portas do inferno foram abertas lá atrás com a aprovação da reeleição no Executivo. O que veio depois foi só consequência. Não tem mesmo jeito, sempre acabamos voltando à sabedoria do Conselheiro.

Poderia ser o contrário. Poderíamos aproveitar o momento para dar um basta na reeleição ou pelo menos estabelecer regras mais justas. Por que um governador ou prefeito precisam renunciar ao mandado para poder concorrer contra um presidente que pode lutar pela reeleição confortavelmente sentado na cadeira e com a caneta na mão?

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Publicado originalmente na revista Veja 2.703, de 09 de setembro de 2020

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Cansou?

Um périplo pelos jornais digitais nesta tarde trouxe a grande novidade: a Covid-19 parece ter deixado de ser notícia. 

Um paradoxo, pois as mortes diariamente registradas ainda estão no patamar, por exemplo, dos momentos mais graves da pandemia na Itália, primeiro país do hemisfério ocidental a expressar em números a dimensão da doença. 

Mas hoje no Brasil a página parece ter sido virada.

E a substituição não foi por algo assim tão atraente: uma proposta de reforma administrativa cujos efeitos práticos só serão sentidos, se aprovada, bem lá adiante. Mas paciência, o espetáculo precisa continuar. E quando o assunto da hora cansa, qualquer coisa serve para tentar atrair a atenção.

É inegável que o momento traz algum otimismo. As últimas estatísticas mostram que o crescimento do número de casos desacelerou na ampla maioria dos grandes municípios (leia). É uma boa notícia, ainda que a contabilidade de casos seja um número de precisão bastante duvidosa. Mas não deixa de ter utilidade.


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Teatral e artificial

O fivethirtyeight.com, dirigido por Nate Silver (@natesilver538), é um serviço bacana para acompanhar as estatísticas e probabilidades relacionadas à política norte-americana. Claro que pode errar. Todo mundo erra. Ainda mais nas eleições recentes mundo afora. Mas o serviço do "538" é bom.

A constatação interessante deles: houve sim este ano o tradicional efeito das convenções partidárias, cada candidato cresceu depois da respectiva, mas no caso de Trump foi relativamente leve e está virando fumaça com uma certa rapidez (leia).

Uma explicação possível é o ambiente de polarização permanente produzir um clima de campanha eleitoral permanente, e solenidades específicas acabam influindo menos para oscilações das curvas. Outra: convenção virtual é moderna, mas na prática não mobiliza.

Nos espetáculos esportivos de arquibancada vazia o barulho do público tem sido substituído por gravações. Para quem está jogando ou vendo pela tevê, ajuda a movimentar. Ainda não introduziram esse recurso na política. E sem massa, sem aplauso, sem vaia, a política tende a ficar ainda mais teatral e artificial.

Contra isso, vai crescer a importância dos debates.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Remédio de uso contínuo

E veio finalmente o número ruim do PIB do segundo trimestre, menos 9,7%. Era esperado, pois entre março e junho de fato o Brasil parou. E ficamos ali pelo meio numa tabela de países de todo o planeta (leia). Não foi bom, mas tampouco amargamos a rabeira. Certamente os números do trimestre atual serão melhores, dada a retomada progressiva da atividade. Vamos aguardar.

Se o retrato do que ficou para trás não é assim tão aterrador, mais preocupante é o que pode vir pela frente. A aposta dos otimistas é uma retomada em V, rápida, mas a previsão encara desconfianças. As exportações até que vão bem, turbinadas pelo real fraco, mas o mercado interno não dá qualquer sinal de querer voltar rapidamente aos tempos de exuberância.

A economia brasileira vem atravessando razoavelmente a tempestade graças principalmente às doses maciças do medicamento que recebe na UTI: o auxílio emergencial. Mas agora é que vem o desafio. O auxílio irá progressivamente dizendo adeus, e a dúvida é se a terapia vai ser adequadamente substituída pelo melhor remédio de uso contínuo: o emprego.