sábado, 31 de outubro de 2020

Mais Brasília. Menos Brasil.

Há algumas dúvidas sobre o resultado desta eleição municipal. Uma: qual será o desempenho dos candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro. Outra: em que grau o PT conseguirá se recuperar da dura derrota de 2016, no auge da Lava-Jato. Mais outra: qual será desta vez o fôlego da chamada nova política.

Dúvidas à parte, pelo menos uma coisa é certa desde já. A grande massa dos prefeitos e vereadores eleitos chegarão a janeiro de 2021 abrigados nos partidos do chamado centrão. Ou do centrão formal, estrito senso, ou do centrão ideológico, lato senso. Uso aqui o “ideológico” apesar de parecer uma contradição em termos.

A previsão tem pelo menos três razões objetivas. Os partidos do centrão são em geral legendas médias, dotadas de razoáveis fundo partidário e eleitoral. São também relativamente alheios à recente agudização da polarização político-ideológica, o que os imuniza em algum grau contra ter de carregar fortes rejeições.

A terceira razão, entretanto, é a que pesa mais. Desde quando Jair Bolsonaro ajustou a rota e estabeleceu uma quase tradicional política de alianças no Congresso Nacional, os partidos que lhe ofereceram um colchão de segurança passaram a ter acesso preferencial ao orçamento. Que costuma ser essencial para investimentos na vida dos municípios.

Uma palavra de ordem muito usada na campanha eleitoral bolsonarista foi “Menos Brasília, Mais Brasil”. A descentralização de recursos para fortalecer estados e municípios e diminuir a dependência destes ao governo federal. Seria injusto fazer um diagnóstico definitivo depois de apenas dois anos, mas por enquanto pouco ou nada aconteceu nesse sentido. Ao contrário.

Uma rotina do presidente da República tem sido visitar os estados e municípios para lançar ou inaugurar obras feitas com dinheiro federal e canalizadas para a região por emendas parlamentares da autoria de deputados e senadores que apoiam o governo em Brasília, e por isso têm mais trânsito nos ministérios a quem compete liberar a verba.

É bastante razoável prever que deputados e senadores com mais acesso ao Orçamento Geral da União terão mais facilidade para eleger seus prefeitos e vereadores. Os quais, naturalmente, estarão propensos a apoiar os benfeitores daqui a dois anos. E mantém-se o tradicional sistema de reprodução de poder na República.

Eis por que é devaneio imaginar, como chegaram alguns, anos atrás, a iminência do colapso do que a ciência política apelidou de “peemedebismo”. E que não necessariamente tem a ver com o PMDB. É o predomínio numérico de uma massa de partidos sem capacidade hegemônica mas com suficiente musculatura para impedir qualquer um de governar sem se dobrar a eles.

Como romper a lógica? Um caminho seriam reformas políticas que permitissem ao eleito para o Executivo, nos três níveis, carregar com ele uma maioria parlamentar. Ou seja, pedir ao sistema que cometa haraquiri.

E olhe que não seria difícil encontrar fórmulas. Uma: calcular as cadeiras nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados não pelo voto dado às legendas na eleição parlamentar, mas na eleição de prefeito, governador e presidente.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Em excelente companhia

As pessoas cultivam com as pesquisas eleitorais uma relação de amor e ódio. Amam quando elas mostram o vigor dos candidatos preferidos, e odeiam na situação inversa. Mas no fritar dos ovos todo mundo fica neuroticamente ligado nelas para ter alguma noção do que está acontecendo.

Quatro anos atrás nesta hora as pesquisas davam vantagem para Hillary Clinton contra Donald Trump. Na soma total dos votos a vantagem dela confirmou-se, mas menor que a prevista. E diferenças quase microscópicas em estados-chave acabaram dando a vitória ao republicano no colégio eleitoral.

A história vai se repetir? Por enquanto não há sinal disso. A distância de Joe Biden para Trump nas pesquisas é maior que a de quatro anos atrás. E os estados-chave não mostram tendência pró-incumbente, ao contrário (leia). Mas sempre é bom manter alguma cautela.

Para quem curte pesquisas, amando ou odiando, duas sugestões. O serviço da The Economist (leia). E o já antes indicado FiveThirtyEight.com (leia). De uma coisa pode ter certeza: se você errar junto com eles na eleição americana estará errando em excelente companhia.

Salada indigesta

Qualquer um que erre pouco e portanto colha sucessos em série corre o risco crescente de alguma hora cometer um erro muito grave. Costuma ser um subproduto da autossuficiência. Será o caso de Jair Bolsonaro se continuar colocando dificuldades no caminho da produção e distribuição por aqui em massa de alguma vacina eficaz contra o SARS-CoV-2.

Imagine o leitor ou leitora uma situação em que a vacinação já tenha começado em diversos lugares do planeta, mas esteja parada aqui devido a questiúnculas políticas.

Um que errava pouco e quando errou decidiu caprichar foi Donald Trump. Só olhar as pesquisas de março para cá. Se Joe Biden ganhar na terça-feira, a maior parte da conta irá para o comportamento errático e politicamente primário do incumbente. Que deixou de bandeja para o adversário a defesa da saúde e do bem-estar coletivos.

Trump, a exemplo de Bolsonaro, apostou no ponto futuro. Alguma hora as pessoas passariam a ter mais medo da ruína que do vírus. Não deixa de fazer sentido. Onde estava o risco maior para Trump? No meio do caminho tinha uma eleição, e era prudente saber como estaria a pandemia na hora de os eleitores saírem para a urna.

Bolsonaro leva algumas vantagens sobre o colega. Duas são as principais. Não enfrenta uma oposição unificada e o mandato dele só estará em jogo daqui a dois anos. Por enquanto, o preço que paga pela imagem de certo desdém diante da vida humana não compromete decisivamente sua musculatura político-eleitoral.

E é altamente provável que em 2022 a Covid-19 já esteja bem mais controlada.

Acontece que, ao contrário de Trump, o presidente brasileiro não tem uma base parlamentar sólida e coesa. Foi o que salvou o norte-americano no impeachment. O risco para Bolsonaro se mergulhar na impopularidade é bem maior. Os animais selvagens no ecossistema de Brasília têm um faro especialmente aguçado para sentir o cheio de patos mancos.

Todas as pesquisas mostram que quando existir uma vacina a esmagadora maioria da população vai querer se vacinar. Há aqui e ali preferências sobre a nacionalidade do imunizante, mas na hora do vamos ver o cidadão e a cidadã comuns não ficarão indiferentes a um passaporte para a volta à normalidade no transporte, na escola, no trabalho, no lazer.

Bolsonaro tem mostrado desconforto sobre a possibilidade de a guerra da vacina acabar judicializada. Se raciocinar bem, talvez seja uma solução para o presidente. Ele fica por aí adulando o núcleo mais duro da sua base, enquanto outros resolvem o problema prático que se não for resolvido irá causar grave dor de cabeça ao ocupante do Planalto.

Aconteceu assim com o auxílio emergencial. E, por falar nele, Bolsonaro já tem bons desafios para abrir 2021. O fim do auxílio. A necessidade declarada de cumprir draconianamente o teto de gastos. A sucessão nas presidências do Congresso. O rescaldo de um resultado (até agora) não brilhante da eleição municipal. A possível derrota de Trump.

Uma crise com a vacina da Covid-19 será um tempero e tanto para essa salada já indigesta.

====================

Publicado originalmente na revista Veja número 2711, de 04 de novembro de 2020

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Três notícias

A boa notícia do dia foi a criação líquida de empregos em setembro, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). É o melhor setembro da série histórica (leia). O saldo no ano ainda é negativo, mas a tendência de recuperar pelo menos em parte as perdas da pandemia parece real.

Uma má notícia do dia, pelo menos para quem curte o Carnaval de rua no Rio de Janeiro, é a decisão de não fazer a festa em 2021 (leia). Os responsáveis chegaram à conclusão de que sem a vacina não tem como. Quem é que fiscalizaria o distanciamento social no Carnaval?

Uma notícia preocupante, já de alguns dias, é a força da segunda onda de contágios pelo SARS-CoV-2 na Europa. Será o caso de torcer e rezar para que o fenômeno não replique por aqui. Se replicar, o efeito na economia será direto, ainda mais num ambiente de forte dispersão política.

Essas três notícias são quase uma síntese. A economia está retomando, mas não retomará completamente sem que a vida volte ao normal. E estamos longe disso. E qualquer tentativa de volta à normalidade depende em última instância da vacina. O resto é o resto.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Está chegando a hora

Mais da metade do contingente de eleitores que votaram em 2016 para presidente dos Estados Unidos já votou este ano, presencialmente ou pelo correio (leia). Dois motivos principais. O primeiro é naturalmente a pandemia da Covid-19 e a precaução para evitar aglomerações.

O segundo, e mais importante, é o gigantesco esforço que o Partido Democrata está fazendo para que a, até agora, vantagem nas pesquisas não vire pó por causa do receio do eleitor de ir votar no dia da eleição, a próxima terça-feira. O “já ganhou”, sabe-se, atrapalhou bastante os democratas em 2016.

Mas não é só o “já ganhou”. Os eleitores de Donald Trump proporcionalmente são mais céticos em relação ao SARS-CoV-2, à necessidade de isolamento e afastamento social, à conveniência do uso de máscaras e a outras medidas que visam conter a propagação do novo coronavírus.

Ou seja, têm menos medo de ir votar presencialmente no dia. Por isso os democratas temem uma onda trumpista na hora “h”. O quanto cada um desses fatores vai fazer diferença dia 3? Só saberemos depois da contagem dos votos. A madrugada promete ser longa. 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Argentina, Brasil, Europa

A Argentina decidiu reabrir seletivamente as fronteiras para o turismo dos brasileiros e demais vizinhos. Mas as medidas ainda são bastante restritivas (leia). De todo modo, já é um alento para quem, com razão, gosta de passear pelas terras portenhas. Sim, a coisa ainda está restrita a Buenos Aires.

A Argentina é um dos mistérios em busca de explicação nesta pandemia (veja o gráfico do Financial Times, clique nele para ampliar). Um lockdown rigorosíssimo não impediu a escalada constante de mortes, e a média móvel de sete dias contada proporcionalmente à população já deixou a tragédia brasileira na poeira.

Por que o lockdown argentino só conseguiu retardar a ascensão da curva? Foi mal feito? Vai ver que sim, pois lockdowns costumam funcionar. Outra curva no gráfico mostra a evolução do quadro na União Europeia. Os lockdowns jogaram a curva no chão.

Agora, depois da reabertura, ela volta a crescer. E o remédio é fechar de novo. Mas parece que o povo por ali não está muito feliz em ter de voltar a ficar trancado em casa.




segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Constituinte

O líder do governo na Câmara dos Deputados, pelo visto falando em caráter pessoal, defendeu a ideia de uma Assembleia Constituinte também aqui no Brasil, seguindo o exemplo chileno (leia). Seu argumento é um que vem há tempos: a Carta de 1988 tornou o Brasil ingovernável.

Qualquer um que analisar a situação objetivamente irá concordar com ele. Qualquer governador ou prefeito da oposição irá concordar com ele. Mas a política é mais complexa. Tem certas coisas que podem até ser verdade, mas não convém dizer (leia).

Na prática, a Constituição não existe mais, de tão remendada e reinterpretada. Aliás, remendar e reinterpretar foi só o que se fez desde 1988. Como ninguém tem certeza que bicho sairia da Constituinte, todo mundo em posições de poder (oposição também é posição de poder) prefere ignorar a realidade.

Enquanto isso, na prática já há uma "constituinte" instalada, funcionando a pleno vapor. São os onze ministros do STF. A discussão portanto não é sobre se vai ter ou não uma Assembleia Constituinte, mas quem elege, quem compõe e o que ela decide.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Algumas dúvidas nesta eleição municipal

São elas: 1) Qual o efeito da polêmica das vacinas de Covid-19 no desempenho dos candidatos que mais se identificam com Jair Bolsonaro? 2) Qual o peso real dos padrinhos? 3) Haverá na reta final do primeiro turno alguma onda, e qual seria? 4) Qual será o anti da vez, que rejeição vai prevalecer?

Sobre o primeiro ponto, é razoável projetar que vai ganhar fichas quem for identificado como preocupado em tornar a vacina disponível em massa para a população. Aqui, o governador de São Paulo, João Doria, conseguiu uma pegada no quimono melhor que seu adversário de tatame, o presidente Jair Bolsonaro.

Um segredo da política é nunca desvelar que os interesses mesquinhos estão sempre em primeiro lugar. A sabedoria reside em embalá-los no papel de presente do “interesse público”. Bolsonaro tentou fazer isso com o argumento de que o povo não será cobaia, mas depende de o medo da vacina tornar-se maior que o medo do vírus. Improvável.

Outro problema do governo: a ira do presidente contra o governador de São Paulo terá o efeito colateral de vir a despertar desconfianças sobre uma eventual morosidade da Anvisa na liberação da vacina objeto da polêmica. E isso legitimará ainda mais a provável intervenção do Judiciário, uma instituição já atraída pelos holofotes do ativismo.

Sobre os padrinhos, até agora o peso deles tem se mostrado apenas relativo. Uma hipótese é funcionarem melhor quando há correspondência de cargo. Por exemplo, um prefeito seria mais efetivo como padrinho na própria sucessão do que políticos de outras esferas. Pois a força do apadrinhamento refletiria em algum grau a avaliação da gestão.

O próprio conceito de “padrinho” é duvidoso. Parte da premissa de o eleitor pertencer ao político. Melhor considerar a relação inversa de pertinência. O eleitor na verdade vê o político como um funcionário, e escolhe o que lhe for mais conveniente. Isso vale em toda a escala social. Não pensam assim só os ricos e a classe média. Os pobres também.

E qual será, se houver, a onda no primeiro turno? A “nova política” dá sinais de fadiga, mas nunca é bom subestimar. E a quarta pergunta? O antipetismo anda meio esquecido, até porque o desempenho do PT, como era de esperar, não tem sido até agora dos mais brilhantes. Se esta onda vier, deve vir como antiesquerda, que anda bem pulverizada.

Uma possibilidade é um certo antibolsonarismo, que por enquanto anda de breque de mão puxado. Pois é difícil fazer o casamento do jacaré com a cobra d’água, a junção da esquerda com o pedaço da direita que desgarra do presidente em busca de projetos próprios. Mas é bom ficar de olho.

Quem tem escapado de virar alvo do anti são exatamente a direita que descolou de Bolsonaro e a autonomeada centro-esquerda que descolou do PT para se vacinar contra o antipetismo. São candidatos a boas colheitas.

E uma lembrança: é bom ficar atento a sua excelência, o imprevisível. No nosso modelo eleitoral, raios em céu azul costumam provocar incêndios inesperados. E o imprevisível, não custa repetir, é das coisas mais difíceis de se prever.

Inflação?

A inflação ganhou fôlego em outubro, como já se previa e sabia. A comida puxou o índice de preços para cima (leia). Vamos ver os próximos meses. Por enquanto, a taxa está dentro da meta anual, não há motivo para o Banco Central agir. Até porque as pespectivas não são brilhantes.

Com o tanto de desempregados por aí e a demanda ainda fraca, o risco de propagação da alta é relativo.

E tem mais. Se nada for feito, em janeiro acaba o auxílio emergencial e vai ser um tranco daqueles no poder de compra da população. De novo, se nada for feito, mais de 60 milhões de brasileiros (e seus dependentes) terão uma queda brusca na renda.

E tem mais ainda. O governo, para agradar ao mercado financeiro, pode ficar tentado a meter o pé no breque do gasto público para valer, e ainda por cima aparecer com alguma(s) proposta(s) de aumento de impostos. As nuvens cinzentas já estão no horizonte.

Sem falar na Covid-19. Que corre, corremos nós, o risco de continuar por aqui durante um bom tempo. Principalmente se não pararem com a guerra em torno da vacina.


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Imunidade paulistana

Os casos e óbitos por Covid-19 são declinantes na cidade de São Paulo faz algum tempo. O que, a crer nas palavras dos especialistas desde o início da pandemia, indica algum grau de imunidade coletiva, combinada com a eficiência das medidas de afastamento social.

Se houver outras hipóteses, que desabrochem.

Como as curvas são declinantes no conjunto do país, e não apenas na capital paulista, parece cada vez mais claro que boa parte da população brasileira já foi atacada pelo vírus e desenvolveu imunidade.

Mensurável em parte pelo achado de anticorpos sanguíneos específicos para o SARS-CoV-2, o novo coronavírus. 

E tem ainda o pessoal que desenvolveu imunidade mas não apresenta os anticorpos ao exame.

Sobre anticorpos, uma nova pesquisa na cidade de São Paulo detectou a presença deles em um em cada quatro moradores da capital (leia). O que comprova a grande proporção de assintomáticos, ou com sintomas bem leves.

Seria bom se tivéssemos esses números em escala nacional. Seria útil para um debate mais racional sobre o tema.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

E depois os políticos reclamam

A análise ontem ("Responsabilidade Vacinal") teve a fortuna de estar adequada ao noticiário de hoje. Só não era tão lógico assim que os contendores políticos fossem arrastados tão rapidamente para a refrega. Mas aconteceu. E quem é que vai se dar bem ao final?

Muito provavelmente, o primeiro que tiver a vacina para oferecer em massa à população. Os movimentos antivacina ainda são bastante minoritários, e o avanço da pandemia tende a marginalizá-los ainda mais, especialmente nos países que não conseguem controlar sem uma vacina a propagação do vírus.

Uma coisa é certa. Quando alguma vacina estiver disponível, serão imensas as pressões sobre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária para a liberação. Pressões sociais e pressões políticas. Qual será o comportamento da Anvisa num cenário de conflito político?

Outro palpite com grande chance de confirmar-se: quando houver uma vacina, ou vacinas, haverá uma natural onda de decisões judiciais para garantir o direito a ela, ou a elas. E isso tem tudo para chegar ao Supremo Tribunal Federal. Que mais uma vez estará no centro do palco.

E depois os políticos reclamam.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Responsabilidade vacinal

O debate sobre tomar ou não vacina para a Covid-19, ou obrigar que seja ministrada, tem tudo para perdurar no tempo, já que a vacinação em massa não parece tão próxima assim. Junto com a suspensão do auxílio emergencial em janeiro, corre o risco de virar uma dor de cabeça e tanto para o governo federal.

Suponhamos que a vacina chinesa de João Doria fique pronta antes da inglesa de Jair Bolsonaro. O que este vai fazer? Mandar a Anvisa enrolar a liberação da vacina do desafeto? Complicado. E se a vacina, qualquer uma, mostrar-se eficaz, o governo vai fazer corpo mole?

Afinal, se tem campanha de vacinação para tudo, por que não para a Covid-19? Difícil de explicar para o cidadão ou cidadã comum, que querem uma solução e não estão nem aí para as arengas dos políticos. Essa história de liberdade individual é bonita, mas sabe-se que ela vai até onde começa a do outro.

Pois um objetivo de qualquer campanha de vacinação é provocar a tão falada imunidade de rebanho, mas sem o custo de deixar a grande massa da população adoecer. A pessoa não se imuniza só para não ficar doente, imuniza-se para não transmitir o patógeno a outros.

É o que se chama de, na expressão da moda, responsabilidade social.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Não tem "se" na política?

Na política, a exemplo do futebol e de quase tudo na vida, o "se" não joga. Mas é legítimo especular com ele, especialmente para construir narrativas. Beneficiam-se disso especialmente aqueles cujos conselhos não foram seguidos. 

Como ninguém jamais saberá o que teria acontecido se tivessem sido ouvidos, podem sempre pontificar a partir de uma posição inexpugnável. "Se vocês tivessem feito o que eu mandei..."

O que teria acontecido na Bolívia se Evo Morales tivesse aceitado a derrota no plebiscito e desistido de mais uma reeleição? Muito provavelmente o partido dele teria vencido, como se comprovou ontem. Sem que a coisa tivesse descambado, como descambou, depois da eleição anulada. 

Mas, e se não, e se a eleição de qualquer um do MAS naquela época tivesse resultado na mesma barafunda? Nas mesmas acusações de fraude? Quem pode garantir que não teria acontecido exatamente o que aconteceu?

O fato é que a oposição a Evo precisou agora ir para um processo eleitoral depois de ser governo na prática, com as delícias e principalmente as dores que tal fato acarreta. Não se deve desprezar esse fator nas causas da sua derrota.

Fica a dica.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

E se der Biden?

A pouco mais de duas semanas para a eleição presidencial nos Estados Unidos, as pesquisas são unânimes ao apontar larga vantagem (em torno de dez pontos percentuais) para o democrata Joe Biden. Mais importante: elas indicam também boa folga para o desafiante sobre o republicano Donald Trump no colégio eleitoral.

Dirão o leitor e a leitora que em 2016 as pesquisas também projetavam isso, e no final deu Trump.

Verdade, mas só até certo ponto. Em primeiro lugar, porque a dianteira de Biden agora é bem maior que a de Hillary Clinton na época. Em segundo, porque as empresas de pesquisa aperfeiçoaram seus métodos. E em terceiro, porque os levantamentos nos estados-chave confirmam até o momento a tendência.

Mas sempre é bom esperar a urna, pois o velho ditado sempre nos lembra que dela pode sair qualquer coisa. De todo modo, diante dos números, é bom começar a especular o que pode mudar para o Brasil, para melhor ou para pior, caso a tendência das pesquisas se confirme e Donald Trump seja mandado de volta para casa, em Nova York ou na Flórida.

As relações especiais entre o Brasil e os Estados Unidos, mais particularmente entre Jair Bolsonaro e Donald Trump, parecem ser um eixo organizador da atual política exterior brasileira. E desde janeiro de 2019 o Brasil vem abandonando a política externa construída a partir de meados do regime militar, de um certo não-alinhamento.

Os resultados econômicos por enquanto não chegam a ser estimulantes, ao contrário, mas esta parece ser uma preocupação secundária em Brasília. Os aspectos ideológicos e geopolíticos têm falado mais alto. O Brasil vem aceitando sofrer por enquanto nas relações econômicas desde que Trump se reeleja e assim reforce-se o apoio dele por aqui.

O que pode mudar com Biden? Bem, talvez seja precipitação imaginar um confronto aberto e definitivo. Se as relações com os Estados Unidos são importantes para o Brasil, e mais ainda para o atual governo, boas relações com o Brasil também são essenciais para a Casa Branca. Inclusive porque se o Brasil “cuida” das redondezas é um problema a menos para Washington.

E no principal desafio atual para os americanos, a tendência a serem deixados para trás pela China, não consta que Biden vá ser mais, digamos, relaxado. Talvez mudem algumas táticas, mas o objetivo permanecerá. E garantir que o Brasil não seja estimulado a trocar Washington por Beijing nas preferências continuará sendo vital para a potência do norte.

O nó mais complicado talvez esteja mesmo na questão ambiental, em que Biden quererá mostrar serviço para 1) agradar à base e 2) garantir que outros países não se aproveitem de uma eventual rigidez ambiental dos Estados Unidos para ganhar espaço econômico sobre os americanos. Mas será que isso vai ser suficiente para deteriorar as relações com o Brasil?

Improvável. Há um amplo leque de possibilidades intermediárias para um acordo, especialmente porque chegar a um acordo interessará a ambos. E o governo brasileiro, inclusive e antes de tudo Jair Bolsonaro, tem mostrado inusitado apetite por recuos e acordos quando o que está em jogo é a sobrevivência política.

Dificilmente o governo vai dormir no ponto e abrir espaço para que outros, nos mais diversos pontos do espectro político, apresentem-se como mais capazes de bem conduzir as relações por aqui com os Estados Unidos. Inclusive porque não faltam candidatos a desempenhar esse papel na improvável alternativa Jair Bolsonaro desejar abandoná-lo.

Onda menos letal?

Fernando Canzian, da Folha de S.Paulo, fez um levantamento interessante sobre o já conhecido certo descolamento entre as curvas de casos e mortes na "segunda onda" europeia de contaminação pelo SARS-CoV-2 (leia). 

E esse descolamento é mais pronunciado nas regiões mais duramente atingidas na primeira onda da Covid-19. E quais seriam as explicações?

Há várias hipóteses. Uma é a possibilidade de a população mais fragilizada ter sido mais vitimada na primeira onda. Outra é a possibilidade de o vírus sofrer uma mutação adaptativa que o torna menos letal, preservando o hospedeiro sem o qual o vírus não consegue se reproduzir. 

Outra ainda é a hipótese de cargas virais menores, atenuadas por exemplo pelo uso de máscaras, produzirem alguma imunidade.

O certo é que a ciência está aprendendo a pilotar o avião em pleno voo, algo aliás absolutamente razoável no caso de um vírus novo. Nem seria justo esperar algo diferente. 

Resta torcer para que o conhecimento avance numa velocidade superior ao estrago provocado pelo novo coronavírus.

Um adversário de cada vez

O movimento do presidente Jair Bolsonaro no sentido de uma composição com o chamado centrão parlamentar tem algo sim de moderação. Mas já foi bem diagnosticado como guinada para a preservação do poder. Ele soube detectar de onde vêm as maiores ameaças. Dos que o ajudaram na eleição, mas a contragosto.

A flexão tática bolsonarista ao dito centro trouxe um efeito colateral interessante, um fenômeno ainda por medir e observar. Um "novo centro" que, paradoxalmente, radicaliza pela direita. Uma reação de parte do bolsonarismo puro e deixado para trás, agora já um quase ex-bolsonarismo, e que tem tudo para se agrupar em torno do ex-ministro Sergio Moro.

Aliás, como era previsível, e foi previsto, ele desponta firme para se viabilizar no arco-íris do autodeclarado centrismo.

Aconteceu algo semelhante com Luiz Inácio Lula da Silva quando precisou se dobrar à realidade da política. Mas com uma diferença. O que espirrou para fora do barco (o PSOL) não tinha então musculatura nem lideranças capazes de fazer o PT sofrer de verdade no curto prazo.

Se juntar Luciano Huck, Sergio Moro e João Doria, algum jogo pode dar. Há a natural dificuldade de fazer dois dos três abrirem mão. Até porque o prêmio parece apetitoso: assumir a Presidência da República com apoio maciço do establishment e do que Roberto Campos chamava de “a opinião publicada”. Algum do trio aceitará ser vice? Vai saber…

Um desafio? O Brasil não chegará a 2022 em situação econômica brilhante. Haverá provavelmente, e inclusive graças à Covid-19, mais pobres e quase tantos desempregados quanto havia quando Dilma Rousseff foi removida do Planalto. Se não mais.

Por que a referência é o ocaso de Dilma? Porque ao final de 2022 já terão se passado longos mais de seis anos desde que foi apeada. E de lá para cá as políticas econômicas vêm seguindo uma linha de continuidade. E sempre com o apoio do antibolsonarismo dito de centro. É razoável portanto que o debate em 2022 volte a girar em torno da economia. O resultado das escolhas feitas. Isso se a oposição for esperta.

Um debate político centrado na economia não será muito confortável para o chamado centro, em seus diversos matizes, pois terá de explicar por que depois de mais de seis anos as coisas continuam, na essência, do jeito que estavam antes. E como encarnar o anseio de mudança propondo mais do mesmo? Não será trivial.

E tem também aquele outro problema, já detectado em 2018. A insistência em querer combater ao mesmo tempo a esquerda e a direita que se assume como tal. É a história do gato que persegue dois ratos ao mesmo tempo. O mais provável, quase certo, é não capturar nenhum. Aliás, a experiência de 2018 já deveria ter servido para alguma coisa.

Poderiam aprender também com Joe Biden. Não dá para antever que o democrata vai ganhar, mas por enquanto ele mostrou ter absorvido uma lição fundamental na política. Procure sempre acertar na definição do adversário principal, que a cada momento é apenas um. O custo de errar nisso costuma ser muito alto.

====================

Publicado originalmente na revista Veja número 2709, de 21 de outubro de 2020

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Limites da políticagem

E mais esta. Agora corre-se o risco de abrir-se um período de disputa entre entes federados sobre qual vacina vai ter dinheiro e qual não vai (leia). Há um único critério razoável: a primeira vacina que se mostrar eficaz e disponível deverá ser colocada à disposição do público.

Mas no Brasil é tudo mais complicado. 

Especialmente num período em que todo e qualquer assunto é capturado pela disputa político-eleitoral. Seria ingenuidade imaginar que um tema tão delicado pudesse escapar da natural polarização. Mas seria também desejável que os políticos procurassem ao menos disfarçar.

O tema da vacina é complexo. Não se sabe ainda com certeza qual a efetividade de cada uma das inúmeras em desenvolvimento. Não se sabe ainda quantas estarão disponíveis, e quando. E a volta a alguma normalidade depende, infelizmente, de haver uma vacina eficaz.

O Brasil já paga alto preço pela descoordenação observada de março para cá no enfrentamento da pandemia. Os números estão aí. Será lamentável se o problema se repetir num ponto tão vital e estratégico quando a vacinação contra o SARS-CoV-2.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Pelo mundo

A Europa aperta as normas de isolamento e distanciamento social diante da emergência forte de uma nova onda casos de Covid-19 (leia). Aparentemente, a população jovem funciona agora como forte propagadora. O "aparentemente" fica por conta de que a ciência está aprendendo a pilotar o avião em pleno voo.

A Rússia, onde o repique é forte, acaba registrar uma segunda vacina (leia). Mas lá, como em todo lugar, uma coisa é ter a vacina, outra coisa é produzi-la, distribuí-la e aplicá-la em massa. Noticias sobre vacina aliviam o espírito, mas não têm efeito imunizante.

Já os Estados Unidos seguem na sua marcha aparentemente irrefreável rumo à tentativa de resolver o problema com a chamada imunidade de rebanho. O custo em casos e mortes parece estar sendo alto, dizem as pesquisas, para a campanha reeleitoral de Donald Trump.

E o Brasil? Enquanto espera pelas vacinas produzidas pelos outros, reza (nestas horas até os ateus rezam) para a tendência das curvas de casos e de mortes continuar declinante. E os políticos ajustam o ritmo da reabertura aos princípios da ciência. A ciência eleitoral.


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Margem de erro de 36%

O FMI deu uma ajustada na sua previsão de junho para a contração da economia mundial. 5,2% para 4,5%. 0,7 pontos percentuais. Um ajuste de 13,5% na taxa anterior. Significativo, mas não um portento. 

Já no caso da economia brasileira a coisa foi bem além. O FMI atenuou a previsão de recessão de 9,1% para 5,8%. Uma diferença de 3,3 pontos percentuais. Uma variação de 36,3% (leia).

Bem, o FMI que se explique. Aliás, vamos combinar: fazer previsão em meados de outubro para qualquer taxa do ano corrente, para qual vai ser o resultado final em dezembro, não chega a ser algo muito heroico. 

O fato é que a economia brasileira desandou bem menos que o previsto. Graças principalmente ao auxílio emergencial, entre outras medidas adotadas pelo governo e pelo Congresso Nacional.

A dúvida agora é sobre 2021. No momento, todas as previsões são de que a retomada vai acontecer, já está em algum grau acontecendo, mas não será suficiente nem para compensar o recuo deste ano.

Talvez o país devesse estar dando prioridade para essa discussão. Mas aí já não seria, felizmente, o Brasil de 2020.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Façam suas apostas

A média móvel das mortes por Covid-19 entre nós está consistentemente declinante. Idem os casos. Se as previsões dos especialistas lá no início da pandemia continuam valendo, devemos ter atingido algum grau de imunidade coletiva combinada com o que ainda resta de distanciamento social.

Máscaras parecem funcionar sim.

Quais são as dúvidas que persistem? Uma é se haverá novas ondas. Mas a principal delas é sobre a vacina. Nesse tema, juntam-se a difusão cada vez mais agressiva de teorias e militâncias antivacinais e o natural cuidado que a ciência deve adotar em terrenos ainda desconhecidos ou pouco conhecidos.

Quando haverá vacina disponível em massa e quanto ela funcionará? A rigor, ninguém tem certeza.

E o quadro fica mais complexo quando a necessária colaboração planetária no assunto anda dificultada pelo acirramento das fraturas e disputas geopolíticas. Quem propiciar antes dos demais em massa um imunizante que funcione vai ganhar um soft power e tanto.

Façam suas apostas.

sábado, 10 de outubro de 2020

Duas eleições. E as dúvidas entre o "se" e o "quando"

Não haverá debates, ou haverá poucos. A propaganda compulsória no rádio e na TV, dizem, atrairá bem menos interesse. O eleitor está tomado de preocupações relacionadas à pandemia da Covid-19 e à situação da (própria) economia. Há candidatos demais a prefeito, uma grande dispersão, o que provoca certo cansaço antecipado. E a campanha de rua e o corpo a corpo estão bastante limitados. 

Bem, se tudo isso for mesmo verdade estas serão as eleições da inércia. E a inércia beneficia os mais conhecidos, quem está na frente nas pesquisas. E a grande dúvida: o que pode romper a inércia?

Um forte propulsor da tendência inercial são a homogeneização e pasteurização das candidaturas. O desfile dos nomes e suas propostas transmite certa sensação de "fim da história". Todo mundo propõe alguma modalidade de renda básica, mais dinheiro para as escolas, mais atenção para a saúde, subsídio ou gratuidade para o transporte, e por aí vai.

Eleições locais têm mesmo a tendência de serem essencialmente paroquiais, mas o grau previsto de paroquialidade destas apresenta uma contradição flagrante com o ambiente de polarização em que a sociedade brasileira já vem mergulhada há anos. Outra dúvida: a chegada da polarização nestas eleições municipais é uma questão de "se" ou de "quando"?

Bem, aqui cada um tem seu palpite, então lá vai mais um. Talvez estejamos diante do cenário não de uma eleição, mas de duas. Uma nos primeiros turnos repletos de candidatos, na maioria inexpressivos, com o eleitor desatento e desinteressado. Outra nos segundos turnos, quando o mano a mano irá, quem sabe?, impor automaticamente alguma polarização.

Joga contra a polarização, mesmo na eventual segunda rodada, o fato de a esquerda exibir muita fraqueza, numa escala inédita pelo menos nos últimos trinta e poucos anos. Até agora, a presença de candidatos competitivos da esquerda tem sido exceção. A praxe é a disputa mais provável estar entre as diversas correntes que se autonomeiam do centro para a direita que se declara como tal.

Claro que sempre é possível uma reviravolta, mas talvez seja sinal de que a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 tenha sido mais estratégica que circunstancial. A dispersão das candidaturas de esquerda explica apenas parte do quadro. Tirando as exceções, mesmo a soma das intenções de voto do chamado campo progressista está abaixo de desempenhos anteriores.

Outra variável a checar será a influência dos padrinhos nacionais. Outro palpite: ela tende a ser bem menor na eleição municipal que na presidencial.

Vamos então olhar o desenrolar dos acontecimentos. E vamos olhar também para o pós-eleição. Quando o eleitor finalmente se deparar com o provável cenário combinando 1) o fim do auxílio emergencial (mesmo os programas cogitados para substituir não parecem tão apetitosos assim), 2) o possível aumento de impostos, 3) a inelasticidade do desemprego.

Aguardam-se as consequências. Também aí a dúvida está entre o "se" e o "quando".


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Preços em alta

O índice de preços acelerou em setembro, especialmente na comida e nos combustíveis (leia). As causas? Mais dinheiro no bolso do povão (auxílio emergencial) e também alguma retomada da economia. Para os próximos meses, resta saber o quanto o segundo fator vai compensar o enfraquecimento do primeiro.

Qual o risco de a alta nos preços da comida e dos combustíveis propagar para o resto da economia e gerar um problema inflacionário real? Pelo lado dos preços livres, o risco não parece ser alto, pois a atividade ainda está longe de ser brilhante e o desemprego nem começou a ser arranhado pela dita recuperação.

Mas será necessário olhar com atenção os preços administrados, um grupo de baixa elasticidade em relação à demanda. Com frequência, eles são o núcleo mais resistente a políticas anti-inflacionárias, até por estarem em setores que, apesar de teoricamente regulados, operam em mercados monopolizados.

O certo é que se o repique dos preços se mantiver o governo estará com um abacaxi para descascar. Terá de dar duas más notícias logo após a eleição: o auxílio emergencial acabou e os juros vão subir para conter a demanda. Um abacaxi e tanto.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Boa ideia

A boa ideia vem de São Paulo. Tratar 2020 e 2021 como um único ciclo de ensino. Os alunos que apresentassem o mínimo de desempenho este ano seriam depois avaliados pelo que fizeram nos dois anos, tomados conjuntamente (leia).

Vamos ver como funciona na prática, e é possível que haja outras ideias, até melhores. O fato, irrecusável, é que é preciso dar um jeito de fazer os estudantes retomarem as atividades motivados e equipados material e intelectualmente para recuperar o tempo perdido.

Ou seja, as soluções para o drama da (falta da) educação na pandemia não podem ser apenas burocrático-administrativas, planilhescas. O problema principal a resolver não é o dos administradores da educação. É o dos estudantes e de suas famílias.

O Brasil não é propriamente um exemplo de qualidade na educação. Cenário agravado pela pandemia da Covid-19 e a paradeira trazida. O foco agora precisa ser como evitar a produção de uma geração de estudantes ainda mais desaparelhados para progredir e fazer o país progredir.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Debates e pesquisas

A novidade nos debates eleitorais para prefeito é a profusão de candidatos de primeiro turno com presença nos eventos. Mais um caso de como o engessamento legal impede que se discuta a sério qualquer coisa. Vira um torneio de frases espertinhas e sacadas previamente preparadas. 

Presença de espírito é certamente uma qualidade esperada nos governantes. Mas, também com certeza, não será a principal.

Já nos Estados Unidos uma dúvida é se Donald Trump vai mesmo participar dos dois debates que restam contra Joe Biden antes da eleição. Também ali faz algum tempo que caíram as máscaras de cavalheirismo e cortesia (leia). 

Outra dúvida, se Trump seria ajudado por ter ficado doente, vem sendo dirimida pelas pesquisas. Parece que não (leia). Inclusive porque a maioria dos pesquisados considera que o presidente poderia ter evitado a Covid-19 se tivesse levado a coisa mais a sério.

É certamente uma diferença e tanto em relação à facada sofrida por Jair Bolsonaro.

sábado, 3 de outubro de 2020

E se Bolsonaro estiver sendo subestimado?

Quase dois anos depois da inauguração de Jair Bolsonaro na presidência, já é possível esboçar algumas linhas de seu processo decisório. Uma delas, talvez a principal: ele navega sempre de olho nos objetivos programáticos mas nunca descuida de se garantir na variável-chave da sustentação política.

No limite, abre mão sempre que isso é indispensável para não perder base que o sustenta, e não apenas no Congresso.

Eis uma complexidade na vida dos que fazem oposição ou têm a missão de criticá-lo. Como no esquema do teatro grego, o bolsonarismo tem uma máscara, a da antipolítica. Acontece que no fritar dos ovos a política acaba sempre dando as cartas.

Vem daí certa frustração notada entre os apoiadores mais da ponta do espectro.

Uma avaliação honesta do processo decisório bolsonarista terá de admitir, verificada a realidade, que o capitão-deputado feito presidente não é tão tosco quanto alardeiam os detratores. E que há, ao contrário, algum grau de sofisticação na atual operação política.

Acontecia também com Luiz Inácio Lula da Silva, naturalmente que com sinal trocado. Os opositores e críticos viam-no como pior do que realmente era de jogo. O grave erro de, nos negócios e na política, subestimar o concorrente.

Vamos olhar aqui dois eventos. O primeiro é a política para o Nordeste. Claro que teve o acaso, que foram a Covid-19 e o consequente auxílio emergencial, que aliás nasceu magrinho e engordou pelos esforços da oposição. O segundo é a recente indicação do nome para o STF.

Sorte e azar fazem parte do jogo, e quando as decisões são tomadas é preciso levar isso em conta. Análises a posteriori sempre têm um pouco de engenharia de obra feira, mas talvez os governadores do Nordeste tenham tido azar na escolha que fizeram de aceitar uma certa polarização contra o Planalto.

Talvez trabalhassem com a premissa de que o governo ficaria inflexivelmente aferrado à austeridade econômica e isso lhes daria um terreno fértil para fazer oposição a Brasília nos seus estados, reconhecidamente os mais dependentes do dinheiro federal.

Simplesmente não aconteceu, e hoje o cenário é de um bolsonarismo que ganha terreno ali com base em política social, verba para obras e alianças com políticos de direita (mesmo quando ditos de centro) que aliás também já foram aliados do PT.

Talvez o jogo não se inverta completamente no Nordeste, mas Bolsonaro não precisa disso tudo. Basta a ele crescer na região e sustentar de algum modo a posição no Sudeste e no Sul.

As pesquisas mostram que esse objetivo está mais à mão no segundo do que no primeiro.

E tem a indicação para o STF, que claramente teve como vetores 1) não afrontar o próprio STF, 2) garantir o apoio no Senado Federal, com poder de veto neste caso e 3) sinalizar aos políticos com um nome não identificado com a caça a eles.

O fato é que nenhuma das especulações anteriores à indicação descrevia esses critérios como essenciais. Bolsonaro foi aqui claramente subestimado.

E talvez o erro tenha estado em ouvir demais o que se diz na política em vez de dar atenção ao que se faz. De vez em quando, já se disse aqui, o mais prudente é colocar a política no mudo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Trump

E Donald Trump é a enésima vítima do SARS-CoV-2. Na idade dele, e com o sobrepeso dele, o risco não é desprezível. A dúvida principal é sobre o efeito que isso possa vir a ter no desenlace da eleição presidencial de novembro, que até o momento apresenta cenário bem desfavorável ao republicano.

Outra dúvida é se o adversário, Joe Biden, foi contaminado no debate desta semana, o primeiro dos três previstos. Outra dúvida ainda é se haverá mesmo os dois debates que faltam. É muita dúvida junta numa eleição que parecia mais ou menos encaminhada. Parecia.

Vamos ver como o presidente norte-americano se sai dessa. Se escapar com alguma tranquilidade poderá saborear um certo "efeito Bolsonaro", bradar que venceu o que Trump chama de "vírus chinês" quando quer esculachar o concorrente asiático.

Cada um que faça sua aposta. Agora é olhar as pesquisas todo dia. Um bom lugar para isso é o FiveThirtyEight (leia). Vale a pena acompanhar a eleição norte-americana por ali. Especialmente se você é chegado em apostas e não gosta de perder.

Troca no STF

Não é novidade a hipertrofia no Judiciário, em particular no Supremo Tribunal Federal. Aliás, começar uma coluna com “não é novidade” talvez devesse ser evitado. Mas, infelizmente, é a pura verdade. No caso específico do STF, já faz algum tempo que ele se sente tentado a operar como uma espécie de assembleia constituinte não formalizada.

Outra coisa que não é novidade: ficaram para trás os tempos quando se sabia de cor a escalação dos onze da seleção brasileira mas não se tinha a menor ideia de quem eram os onze do STF. Hoje isso inverteu-se. Cada um que julgue se melhoramos ou pioramos.

Importa menos saber como chegamos a esta situação, o fato frio é que nas próximas semanas um nome deverá passar pelo trâmite no Senado Federal para ocupar a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta. Dadas as circunstâncias jurídicas e políticas, trata-se de um baita momento.

Vamos ao retrospecto. A experiência de governantes indicarem nomes por critérios identitários não foi propriamente um sucesso para quem indicou. E o histórico das decisões e opiniões de antes da ascensão à suprema corte não tem sido garantia de coerência no voto, uma vez o ministro instalado na cadeira.

E exposição aos holofotes tem trazido casos de mudança radical nas ideias.

Mesma coisa o “Q.I” (quem indica). Se pelo menos um ministro dos indicados por Dilma Rousseff tivesse votado para soltar Luiz Inácio Lula da Silva antes da eleição o ex-presidente teria sido solto e ficado disponível para subir nos palanques do PT e aliados. Não aconteceu.

O que explica isso? Independência? Cada um, novamente, que faça seu juízo.

Onde estará então a virtude? Um critério importante é o nome não enfrentar obstáculos intransponíveis no Senado, que é quem aprova. E o Senado é composto por políticos, mesmo quando fantasiados de “anti”. Sugerir alguém publicamente identificado com a caça a suas excelências seria oferecer muita sopa para o azar.

O que de melhor um presidente da República deve esperar do STF? Que não se meta, ou meta-se pouco, na atividade de exercer o Poder Executivo. Um presidente que ajude a fazer o STF retornar ao tamanho previsto na Constituição estará prestando um serviço inestimável ao que se convencionou chamar de democracia.

Mas não basta. O desejável, do ângulo do Executivo, e mesmo do Legislativo, seria um STF que praticasse a autocontenção como regra em relação ao mundo político, e que começasse a expurgar a tentação permanente de enveredar pelo ativismo judicial. E que propagasse isso pelo conjunto do sistema.

Seria uma revolução.

A conclusão é óbvia: espera-se que o novo nome a substituir o decano que sai consiga resistir à tentação do protagonismo, seja rigorosamente garantista e tenha alergia à judicialização da política.

E que seja um fanático do respeito à Carta. Coisa que anda deveras em falta entre nossos juízes.

Seria um favor que o ocupante do momento do Palácio do Planalto teria prestado a si mesmo, ao seu governo e ao país.

E um favor, antes de tudo, ao próprio Supremo Tribunal Federal.

====================

Publicado originalmente na revista Veja número 2707, de 07 de outubro de 2020

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A conta vai para o chefe

O emprego de presidente da República tem delícias, tanto que o ocupante da cadeira costuma fazer de tudo para continuar. Mas com os bônus vêm também os ônus. Um é ter de decidir nas situações mais complexas, quando o risco de errar é mais alto e as consequências, potencialmente mais sérias.

O governo vem atravessando a pandemia porque gastou. E gastou para valer. Agora precisa pousar o avião com o mínimo de solavancos. Não pode nem pensar em precisar de um pouso forçado. Se isso acontecer, o prestígio do piloto poderia ir para o beleléu bem quando ele está concentrado na renovação do contrato.

O problema? Não há por enquanto equação visível que combine 1) muito mais verba para "o social", 2) não aumentar a carga de impostos, 3) não cortar na carne do serviço público, 4) respeitar o draconiano teto de gastos e, last but not least, 5) proteger a saúde política do presidente.

O retrato disso está no noticiário (leia) (leia) (leia). Uma tentação: enrolar o eleitor até a eleição com promessas e palavras bonitas, e só dar a real depois da urna. Sempre muito arriscado. Os políticos elegem seus candidatos nos municípios e quem paga a conta depois é o chefe.