sábado, 28 de maio de 2022

O enigma brasileiro

A dissolução e o desmembramento da União Soviética abriram um período de hegemonia da globalização. Não apenas no terreno econômico, mas também na geopolítica e na ideologia. Mesmo a esquerda, que nos anos 1990 e na virada do século ainda se batia contra a tendência, transitou em anos recentes, em sua maioria, para a defesa de uma “globalização benigna”, fundada nas causas ambientais, identitárias e numa justiça social sem rupturas.

Esse período vai, pouco a pouco, mostrando seu esgotamento. Num planeta interconectado em que os países busquem cada um livremente desenvolver-se, será irreversível que o eixo da hegemonia econômica se desloque rumo à Ásia. A razão deve ser buscada na aritmética. Sem contar os demais países asiáticos, China e Índia, juntas, têm população que corresponde a quase quatro vezes a soma dos habitantes dos Estados Unidos e da União Europeia.

O otimismo ocidental com a globalização impulsionada a partir dos anos 90 do século passado supunha que a absorção das grandes economias asiáticas pelo mercado global comercial e financeiro, China e Índia à frente, acabaria por consolidar a hegemonia do Ocidente político. Aconteceu o contrário, e hoje este sabe que o desenvolvimento pacífico do planeta projeta um mundo em que norte-americanos e europeus não mais darão as cartas sozinhos.

Essa conclusão óbvia está na base das tensões e conflitos planetários mais relevantes e acaba de ser abertamente manifestada num pronunciamento oficial do Departamento de Estado dos EUA, a que a política exterior da UE aparentemente decidiu acoplar-se acriticamente, talvez com alguma resistência, como é tradicional, da França. A nova política do Ocidente é desglobalizante, buscando enfraquecer polos potencialmente ameaçadores à hegemonia.

Toda essa introdução é para informar que o Brasil está diante de um enigma, um problema, na acepção matemática. Somos um país do Ocidente geográfico e político (agora que o conceito de Terceiro Mundo parece algo enfraquecido), mas na esfera da economia a inércia nos empurra a estreitar relações com o Oriente geográfico e político, este definido pelos países que EUA e UE consideram ameaçadores a sua liderança.

Não é à toa que, por enquanto, as manifestações sobre a guerra na Ucrânia vindas dos aspirantes à Presidência com expectativa real de poder a partir de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro, tragam alguma superposição. Restou aos demais a “photo-op”, alinhar-se à narrativa dominante para aproveitar a janela de oportunidade. Mas o problema colocado pela vida real é mais complexo. Como equilibrar-se no arame sem cair ou ser derrubado?

O crescimento econômico do Brasil está ligado às exportações de commodities e aos investimentos em infraestrutura. No momento, nossos mercados mais ativos não estão nos EUA e na UE, mas no Oriente, especialmente na China. E não há sinal de que isso vá mudar no curto prazo. Mas está nítido que o Ocidente político pretende tratar como adversários todos aqueles que não se alinharem a sua Guerra Fria 2.0.

sábado, 21 de maio de 2022

Ninguém pode perder. Como faz então?

Qual o principal nó político no conflito russo-ucraniano? É a consequência mais imediata de ter deixado de ser uma disputa entre Moscou e Kiev e evoluído para uma confrontação militar entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos, que por sua vez estão numa guerra não declarada com os russos por meio da Ucrânia. O nó? Nem Washington nem Moscou podem ser derrotados.

Certo desfecho que atenda de alguma maneira às demandas russas de antes de 24 de fevereiro corre o risco de ser recebido pelos eleitores americanos como um fracasso de Joe Biden, que no final deste ano enfrenta eleições de meio de mandato para renovar a Câmara dos Representantes (deputados) e boa parte do Senado. As midterm do primeiro quadriênio costumam ser complicadas para o ocupante da Casa Branca, e os índices de Biden estão ruins.

No outro lado, algo que cheire a derrota empurrará Vladimir Putin para a zona de alto risco político, também pelos custos humanos, materiais e econômicos da operação militar. E a maior ameaça não viria de eventuais movimentos pró-Ocidente, mas de lideranças patrióticas que buscariam responder às frustrações desencadeadas, entre outros fatores, pela incapacidade de defender as populações russas nas áreas desgarradas após o fim da União Soviética.

Uma rápida passada de olhos pela história russa e soviética dos últimos dois séculos faz qualquer um entender a sensibilidade ali diante de potenciais ameaças ao território e à população.

E no Brasil, qual é o nó? A exemplo da pendenga europeia, o fato de nem o Supremo Tribunal Federal (STF) nem o presidente da República darem até agora sinal de aceitar ser derrotados na refrega em torno do sistema de votação. O STF (do qual o Tribunal Superior Eleitoral é, na prática, uma subseção) é o certificador do processo; e o presidente, na polarização, carrega com ele hoje quatro de cada dez votos num eventual segundo turno.

É briga grande.

Curiosamente, a situação não chega a ser 100% original. Quatro anos atrás, quando Luiz Inácio Lula da Silva ficou inelegível pela condenação em segunda instância agora anulada, o Partido dos Trabalhadores lançou o “Eleição sem Lula é Fraude”. E esticou a corda até a véspera do segundo turno. Ali o impasse resolveu-se pacificamente, também por dois motivos: 1) o PT não estava no poder e 2) o PT acreditava que tinha chances, mesmo sem Lula na urna.

Tanto tinha que Fernando Haddad disputou um segundo turno bem competitivo.

Os personagens da trama de agora já deixaram passar algumas ocasiões propícias à desejável redução da temperatura. Elio Gaspari, que viu alguns filmes parecidos, abordou o assunto por um ângulo histórico cerca de um mês atrás. A corda está esticada, mas não se deve desistir de o país chegar à eleição com todo mundo deixando claro que aceitará o resultado. Por razões que dariam outro artigo, talvez estejam faltando atores dispostos a assumir os papéis capazes de levar a trama a esse feliz desfecho.

A exemplo do que se passa agora no leste europeu. Sim, o indivíduo tem um papel na História.

sábado, 14 de maio de 2022

Desbalcanização ou semipresidencialismo?

A evidência de persistir, e crescer, entre nós um desarranjo institucional vem sendo confrontada com a esperança de que o “banho de urna” represente um reset, um Ctrl+Alt+Del. O sonho nutre-se, entre outras fontes, de um certo traço sebastianista, de raízes bem conhecidas na história luso-brasileira. Nosso surto sebastianista mais atual canta a saudade dos “bons tempos da fundação da Nova República”. É o mais novo mito a operar como promessa de tábua de salvação.

O sebastianismo da ocasião omite que, quando o eleitor foi chamado pela primeira vez a opinar sobre a Nova República, em 1989 (o estelionato eleitoral de três anos antes não conta), varreu da cena todos os avalistas dela. Restaram apenas três personagens: 1) Fernando Collor, de origem na Arena/PDS; 2) Luiz Inácio Lula da Silva, cujo partido recusara apoiar Tancredo Neves contra Paulo Maluf em 1985; e 3) Leonel Brizola, que, derrotadas as Diretas Já em 1984, preferia dar mais um ano a João Figueiredo e eleições gerais em em 1986.

Esquece ainda que o produto da Nova República e de seu filho mais célebre, a Constituição de 1988, não é propriamente bom. Dos quatro presidentes eleitos que precederam o atual, metade sofreu impeachment, e há mais de trinta anos o país alterna voos de galinha e mediocridade econômica. Mais que tudo, é visível e aparentemente irreversível o citado desarranjo institucional, com diversos núcleos de poder retalhando com os dentes o que deveria ser um espaço de comando do Executivo, um poder moderador na prática.

Mas Paulo Pontes tinha mesmo razão, a profissão preferida do brasileiro é a esperança, e neste ciclo ninguém soube até agora interpretar isso melhor que Lula. Por fortuna ou virtù, ou ambas, calhou de na caminhada de agora encontrar um Geraldo Alckmin perambulando pela estrada da política depois de colher um mau resultado em 2018 e de ver-se abandonado pelo partido no qual um dia foi prócer. E tudo se encaixou perfeitamente para revigorar a narrativa sebastianista do “como teria sido melhor de PT e PSDB não tivessem brigado” em 1994.

E lá vamos nós a mais um “banho de urna”, do qual emergirá um vitorioso eleitoral apenas para, em seguida, bater de frente com o fato cruel de ter chegado tarde na festa. Notará que, fruto das estruturas e das crises legadas pela Nova República, o poder real em Brasília já vem previamente distribuído. O orçamento está na prática sob o comando do Congresso Nacional, e o Supremo Tribunal Federal instituiu-se como uma versão para o século 21 do Poder Moderador (com maiúsculas) formalmente abolido junto com a Monarquia ainda no século 19.

E vem aí a onda pelo semipresidencialismo, um parlamentarismo repaginado com a missão de colocar no papel e dar base legal à realidade que se vem impondo na prática. Palpite: é mais fácil esse expediente ser absorvido por um eventualmente reeleito Jair Bolsonaro ou por um nome da terceira via raiz do que por um Lula renascido das cinzas da Lava Jato ou por um Ciro Gomes que insiste em ter ideias próprias a respeito do que fazer com o Brasil depois de três décadas e meia de Nova República.

Ou seja, está garantida uma segunda dúvida. A primeira, naturalmente, é a respeito de quem ganhará a eleição presidencial. Mas talvez a segunda venha a ser mais relevante para os desdobramentos a partir de 2023: como o eleito fará para “desbalcanizar” o Estado brasileiro? Ou terá de se conformar com o aspecto hoje quase ornamental do cargo e dançar conforme a música, com pouca ou nenhuma margem de manobra para transformar o apoio popular em ações de governo?

sábado, 7 de maio de 2022

Cabeça a cabeça? (*)

No início de maio do ano eleitoral de 2014, a então candidata à reeleição Dilma Rousseff tinha cerca de um terço de ótimo + bom, e a avaliação dela vinha piorando levemente. Bateu no piso em meados de julho. Depois começou a melhorar, também por uma razão: incumbentes têm na campanha eleitoral uma oportunidade especial de rebater as notícias negativas. O que se mostra ainda mais valioso quando o ambiente de imprensa é desfavorável.

Jair Bolsonaro vai chegando à largada da corrida com cerca de um terço de aprovação (não confundir com o bom + ótimo). Bem, a análise deve sempre fugir da tentação de tirar conclusões definitivas, ou quase, a partir de números de diferentes levantamentos e que oscilam dentro das margens de erro. Uma diferença importante entre os dois incumbentes, fora das margens de erro: naquele julho, Dilma tinha metade do ruim + péssimo que Bolsonaro tem hoje, por todos os levantamentos.

No caso de Dilma, diferente de Bolsonaro, uma maioria simples do eleitorado acomodava-se no regular.

Como a história registra, Dilma reelegeu-se, mesmo com índices de popularidade na zona de risco. Contribuiu decisivamente uma campanha duríssima para elevar a rejeição dos adversários. O resultado final veio de uma chegada cabeça a cabeça. Três milhões e meio de votos sobre Aécio Neves, num eleitorado de mais de 140 milhões de potenciais votantes. E os reflexos daquela disputa de rejeições para a política brasileira estão bem registrados, sentem-se até hoje.

Já mostrei antes aqui os números de um levantamento da Ipsos, a partir de 300 eleições em que incumbentes tentaram se reeleger mundo afora nos últimos trinta anos. Com 35% de aprovação (não confundir com ótimo + bom) a seis meses da eleição, a chance de vitória é 36%. Se a aprovação sobe cinco pontos, a probabilidade de ganhar vai a 58%. Se a aprovação vai a 45%, são 78% de chance de continuar na cadeira.

Ora, se o incumbente pode reeleger-se mesmo com uma aprovação abaixo de 50%, a conclusão é inescapável, ao menos nos sistemas em que se exige a maioria absoluta dos votos: o caminho para a vitória está em fazer os concorrentes terem uma rejeição maior ainda que a própria. Pois, se um pedaço dos que o rejeitam tampouco desejar o desafiante, ele pode perfeitamente levar a taça ainda que enfrente a oposição da maioria.

O eleitor que está no ruim + péssimo não costuma migrar direto para o bom + ótimo, em geral faz uma escala no regular. E pode muito bem ficar por ali até o dia da urna, quando será tentado a escolher não quem deseja mais, mas quem rejeita menos. Qual é o desafio de Jair Bolsonaro, que mantém em grandes números seu apoio do primeiro turno de 2018? Fazer quem votou nele no segundo turno e hoje está no ruim + péssimo migrar para o regular e ter mais aversão à vitória de Lula que à reeleição dele.

E qual o caminho de Lula, ou de alguma eventual surpresa, hoje improvável? Impedir isso. Pode parecer acaciano, mas é por aí.

Se Bolsonaro tiver sucesso em fazer migrar uma quantidade razoável de eleitores do ruim + péssimo para o regular, teremos uma eleição cabeça a cabeça em outubro. Como foi em 2014. É prudente preparar-se para esse cenário.

(*) Esta análise complementa a da semana passada (Sem barreiras intransponíveis)

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Bandeiras pelo chão

Se os atos de rua no 1º de maio não chegaram a impressionar pelos números, notou-se a direita mobilizando mais gente que a esquerda. Tem sido recorrente, e a direita traz esse fato para lançar dúvidas sobre as pesquisas de intenção de voto que mostram a esquerda liderando a corrida pelo Palácio do Planalto. Argumento relativo, pois quem vai para a rua, nos dois lados do espectro político, é uma fração residual do eleitorado.

Mas é inquestionável que, desde meados da década passada, a direita vem superando a esquerda na capacidade de mobilização. O traço novo da conjuntura brasileira no período recente tem sido o surgimento de uma direita de massas. André Singer, em artigo na revista do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp, tratou da reativação desse fenômeno.
O passado registrou ensaios (o Integralismo) e sístoles pontuais (Marcha da Família com Deus pela Liberdade). Mas nada que se compare a agora.

Fica para os especialistas explicar o porquê, e não custa especular sobre a novidade. Ela deve ter raízes materiais, com destaque para a transformação de boa parte da antiga classe operária em uma nova “classe média”. Mas seria reducionista limitar a explicação às bases objetivas.

O estudo do Brasil do século 20 mostra que os momentos mais férteis da esquerda não foram impulsionados pela propaganda e agitação da luta de classes. Eles vieram embalados em duas consignas herdadas da Revolução Francesa, liberdade e igualdade, e outras duas nascidas de uma visão anticolonial de mundo, soberania e desenvolvimento.

Ciro Gomes (PDT) ainda procura fazer do desenvolvimento um ponto de apoio para tentar mover o mundo da eleição, e no chamado campo progressista é só. Num certo ponto da história por aqui, a luta contra o subdesenvolvimento e pelo desenvolvimento adicionou, com razão, o “sustentável”. Com o tempo, o lado desenvolvimentista foi desaparecendo. Hoje reina, absoluta, a sustentabilidade. “Desenvolvimentista” virou xingamento nos círculos ilustrados do progressismo.

Progressismo que hoje se debate na armadilha de precisar explicar como vai combater a pobreza sem colocar o desenvolvimento no centro das preocupações.

Desenvolvimento não é tampouco expressão frequentadora das narrativas da direita. Feita a ressalva, é obrigatório notar que esta agarrou, sem medo de ser feliz, os outros três estandartes. A liberdade, com o “gancho” óbvio da liberdade de expressão, a igualdade, em oposição ao culto das diferenças como critério de empoderamento, e a defesa da soberania nacional, contra o “globalismo”.

O surgimento de uma direita de massas por aqui, e não só por aqui, coincide com o esforço hercúleo da esquerda para se reinventar e remaquiar por critérios socialmente aceitáveis pelo pensamento hegemônico neste início de século 21. E, na guerra pelos símbolos e valores, a direita vai pegando as bandeiras que a esquerda deixa pelo chão. Será interessante acompanhar e ver onde isso vai dar.

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Publicado na revista Veja de 11 de maio de 2022, edição nº 2.788