Alon Feuerwerker
jornalista e analista político
bio -> https://pt.wikipedia.org/wiki/alon_feuerwerker
sábado, 28 de maio de 2022
O enigma brasileiro
Esse período vai, pouco a pouco, mostrando seu esgotamento. Num planeta interconectado em que os países busquem cada um livremente desenvolver-se, será irreversível que o eixo da hegemonia econômica se desloque rumo à Ásia. A razão deve ser buscada na aritmética. Sem contar os demais países asiáticos, China e Índia, juntas, têm população que corresponde a quase quatro vezes a soma dos habitantes dos Estados Unidos e da União Europeia.
O otimismo ocidental com a globalização impulsionada a partir dos anos 90 do século passado supunha que a absorção das grandes economias asiáticas pelo mercado global comercial e financeiro, China e Índia à frente, acabaria por consolidar a hegemonia do Ocidente político. Aconteceu o contrário, e hoje este sabe que o desenvolvimento pacífico do planeta projeta um mundo em que norte-americanos e europeus não mais darão as cartas sozinhos.
Essa conclusão óbvia está na base das tensões e conflitos planetários mais relevantes e acaba de ser abertamente manifestada num pronunciamento oficial do Departamento de Estado dos EUA, a que a política exterior da UE aparentemente decidiu acoplar-se acriticamente, talvez com alguma resistência, como é tradicional, da França. A nova política do Ocidente é desglobalizante, buscando enfraquecer polos potencialmente ameaçadores à hegemonia.
Toda essa introdução é para informar que o Brasil está diante de um enigma, um problema, na acepção matemática. Somos um país do Ocidente geográfico e político (agora que o conceito de Terceiro Mundo parece algo enfraquecido), mas na esfera da economia a inércia nos empurra a estreitar relações com o Oriente geográfico e político, este definido pelos países que EUA e UE consideram ameaçadores a sua liderança.
Não é à toa que, por enquanto, as manifestações sobre a guerra na Ucrânia vindas dos aspirantes à Presidência com expectativa real de poder a partir de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro, tragam alguma superposição. Restou aos demais a “photo-op”, alinhar-se à narrativa dominante para aproveitar a janela de oportunidade. Mas o problema colocado pela vida real é mais complexo. Como equilibrar-se no arame sem cair ou ser derrubado?
O crescimento econômico do Brasil está ligado às exportações de commodities e aos investimentos em infraestrutura. No momento, nossos mercados mais ativos não estão nos EUA e na UE, mas no Oriente, especialmente na China. E não há sinal de que isso vá mudar no curto prazo. Mas está nítido que o Ocidente político pretende tratar como adversários todos aqueles que não se alinharem a sua Guerra Fria 2.0.
sábado, 21 de maio de 2022
Ninguém pode perder. Como faz então?
Qual o principal nó político no conflito russo-ucraniano? É
a consequência mais imediata de ter deixado de ser uma disputa entre Moscou e
Kiev e evoluído para uma confrontação militar entre a Rússia e a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos, que por sua vez estão
numa guerra não declarada com os russos por meio da Ucrânia. O nó? Nem
Washington nem Moscou podem ser derrotados.
Certo desfecho que atenda de alguma maneira às demandas
russas de antes de 24 de fevereiro corre o risco de ser recebido pelos
eleitores americanos como um fracasso de Joe Biden, que no final deste ano
enfrenta eleições de meio de mandato para renovar a Câmara dos Representantes
(deputados) e boa parte do Senado. As midterm do primeiro
quadriênio costumam ser complicadas para o ocupante da Casa Branca, e os
índices de Biden estão ruins.
No outro lado, algo que cheire a derrota empurrará Vladimir Putin para a
zona de alto risco político, também pelos custos humanos, materiais e
econômicos da operação militar. E a maior ameaça não viria de eventuais
movimentos pró-Ocidente, mas de lideranças patrióticas que buscariam responder
às frustrações desencadeadas, entre outros fatores, pela incapacidade de
defender as populações russas nas áreas desgarradas após o fim da União
Soviética.
Uma rápida passada de olhos pela história russa e
soviética dos últimos dois séculos faz qualquer um entender a sensibilidade ali
diante de potenciais ameaças ao território e à população.
E no Brasil, qual é o nó? A exemplo da pendenga europeia,
o fato de nem o Supremo Tribunal Federal (STF) nem o presidente da República
darem até agora sinal de aceitar ser derrotados na refrega em torno do sistema
de votação. O STF (do qual o Tribunal Superior Eleitoral é, na prática, uma
subseção) é o certificador do processo; e o presidente, na polarização, carrega
com ele hoje quatro de cada dez votos num eventual segundo turno.
É briga grande.
Curiosamente, a situação não chega a ser 100% original.
Quatro anos atrás, quando Luiz Inácio Lula da Silva ficou inelegível pela
condenação em segunda instância agora anulada, o Partido dos Trabalhadores lançou o “Eleição
sem Lula é Fraude”. E esticou a corda até a véspera do segundo turno.
Ali o impasse resolveu-se pacificamente, também por dois motivos: 1) o PT não
estava no poder e 2) o PT acreditava que tinha chances, mesmo sem Lula na urna.
Tanto tinha que Fernando Haddad disputou um segundo
turno bem competitivo.
Os personagens da trama de agora já deixaram passar algumas ocasiões
propícias à desejável redução da temperatura. Elio Gaspari, que viu alguns filmes parecidos, abordou o
assunto por um ângulo histórico cerca de um mês atrás. A corda está
esticada, mas não se deve desistir de o país chegar à eleição
com todo mundo deixando claro que aceitará o resultado. Por razões que dariam
outro artigo, talvez estejam faltando atores dispostos a assumir os papéis
capazes de levar a trama a esse feliz desfecho.
A exemplo do que se passa agora no leste europeu. Sim, o indivíduo tem um papel na História.
sábado, 14 de maio de 2022
Desbalcanização ou semipresidencialismo?
A evidência de persistir, e crescer, entre nós um desarranjo institucional vem sendo confrontada com a esperança de que o “banho de urna” represente um reset, um Ctrl+Alt+Del. O sonho nutre-se, entre outras fontes, de um certo traço sebastianista, de raízes bem conhecidas na história luso-brasileira. Nosso surto sebastianista mais atual canta a saudade dos “bons tempos da fundação da Nova República”. É o mais novo mito a operar como promessa de tábua de salvação.
O sebastianismo da ocasião omite que, quando o eleitor foi
chamado pela primeira vez a opinar sobre a Nova República, em 1989 (o
estelionato eleitoral de três anos antes não conta), varreu da cena todos os
avalistas dela. Restaram apenas três personagens: 1) Fernando Collor, de
origem na Arena/PDS; 2) Luiz Inácio Lula da Silva, cujo partido recusara apoiar
Tancredo Neves contra Paulo Maluf em 1985; e 3) Leonel Brizola, que, derrotadas
as Diretas Já em 1984, preferia dar mais um ano a João Figueiredo e eleições
gerais em em 1986.
Esquece ainda que o produto da Nova República e de seu
filho mais célebre, a Constituição de 1988, não é propriamente bom. Dos quatro
presidentes eleitos que precederam o atual, metade sofreu impeachment, e há mais
de trinta anos o país alterna voos de galinha e mediocridade econômica. Mais
que tudo, é visível e aparentemente irreversível o citado desarranjo
institucional, com diversos núcleos de poder retalhando com os dentes o que deveria
ser um espaço de comando do Executivo, um poder moderador na prática.
Mas Paulo Pontes tinha mesmo razão, a profissão preferida do
brasileiro é a esperança, e neste ciclo ninguém soube até agora interpretar isso
melhor que Lula. Por fortuna ou virtù, ou ambas, calhou de na
caminhada de agora encontrar um Geraldo Alckmin perambulando pela estrada da
política depois de colher um mau resultado em 2018 e de ver-se abandonado pelo
partido no qual um dia foi prócer. E tudo se encaixou perfeitamente para
revigorar a narrativa sebastianista do “como teria sido melhor de PT e
PSDB não tivessem brigado” em 1994.
E lá vamos nós a mais um “banho de urna”, do qual emergirá
um vitorioso eleitoral apenas para, em seguida, bater de frente com o fato cruel
de ter chegado tarde na festa. Notará que, fruto das estruturas e das crises
legadas pela Nova República, o poder real em Brasília já vem previamente
distribuído. O orçamento está na prática sob o comando do Congresso Nacional, e o Supremo Tribunal Federal instituiu-se como uma versão para o século 21 do Poder
Moderador (com maiúsculas) formalmente abolido junto com a Monarquia ainda no
século 19.
E vem aí a onda pelo semipresidencialismo, um
parlamentarismo repaginado com a missão de colocar no papel e dar base legal à
realidade que se vem impondo na prática. Palpite: é mais fácil esse expediente
ser absorvido por um eventualmente reeleito Jair Bolsonaro ou por um nome da
terceira via raiz do que por um Lula renascido das cinzas da Lava Jato ou por um
Ciro Gomes que insiste em ter ideias próprias a respeito do que fazer com o
Brasil depois de três décadas e meia de Nova República.
Ou seja, está garantida uma segunda dúvida. A
primeira, naturalmente, é a respeito de quem ganhará a eleição presidencial.
Mas talvez a segunda venha a ser mais relevante para os desdobramentos a partir
de 2023: como o eleito fará para “desbalcanizar” o Estado brasileiro? Ou terá de se conformar com o aspecto hoje quase ornamental do cargo e dançar
conforme a música, com pouca ou nenhuma margem de manobra para transformar o
apoio popular em ações de governo?
sábado, 7 de maio de 2022
Cabeça a cabeça? (*)
Jair Bolsonaro vai chegando à largada da corrida com cerca de um terço de aprovação (não confundir com o bom + ótimo). Bem, a análise deve sempre fugir da tentação de tirar conclusões definitivas, ou quase, a partir de números de diferentes levantamentos e que oscilam dentro das margens de erro. Uma diferença importante entre os dois incumbentes, fora das margens de erro: naquele julho, Dilma tinha metade do ruim + péssimo que Bolsonaro tem hoje, por todos os levantamentos.
No caso de Dilma, diferente de Bolsonaro, uma maioria simples do eleitorado acomodava-se no regular.
Como a história registra, Dilma reelegeu-se, mesmo com índices de popularidade na zona de risco. Contribuiu decisivamente uma campanha duríssima para elevar a rejeição dos adversários. O resultado final veio de uma chegada cabeça a cabeça. Três milhões e meio de votos sobre Aécio Neves, num eleitorado de mais de 140 milhões de potenciais votantes. E os reflexos daquela disputa de rejeições para a política brasileira estão bem registrados, sentem-se até hoje.
Já mostrei antes aqui os números de um levantamento da Ipsos, a partir de 300 eleições em que incumbentes tentaram se reeleger mundo afora nos últimos trinta anos. Com 35% de aprovação (não confundir com ótimo + bom) a seis meses da eleição, a chance de vitória é 36%. Se a aprovação sobe cinco pontos, a probabilidade de ganhar vai a 58%. Se a aprovação vai a 45%, são 78% de chance de continuar na cadeira.
Ora, se o incumbente pode reeleger-se mesmo com uma aprovação abaixo de 50%, a conclusão é inescapável, ao menos nos sistemas em que se exige a maioria absoluta dos votos: o caminho para a vitória está em fazer os concorrentes terem uma rejeição maior ainda que a própria. Pois, se um pedaço dos que o rejeitam tampouco desejar o desafiante, ele pode perfeitamente levar a taça ainda que enfrente a oposição da maioria.
O eleitor que está no ruim + péssimo não costuma migrar direto para o bom + ótimo, em geral faz uma escala no regular. E pode muito bem ficar por ali até o dia da urna, quando será tentado a escolher não quem deseja mais, mas quem rejeita menos. Qual é o desafio de Jair Bolsonaro, que mantém em grandes números seu apoio do primeiro turno de 2018? Fazer quem votou nele no segundo turno e hoje está no ruim + péssimo migrar para o regular e ter mais aversão à vitória de Lula que à reeleição dele.
E qual o caminho de Lula, ou de alguma eventual surpresa, hoje improvável? Impedir isso. Pode parecer acaciano, mas é por aí.
Se Bolsonaro tiver sucesso em fazer migrar uma quantidade razoável de eleitores do ruim + péssimo para o regular, teremos uma eleição cabeça a cabeça em outubro. Como foi em 2014. É prudente preparar-se para esse cenário.
(*) Esta análise complementa a da semana passada (Sem barreiras intransponíveis)
sexta-feira, 6 de maio de 2022
Bandeiras pelo chão
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Publicado na revista Veja de 11 de maio de 2022, edição nº 2.788