sexta-feira, 30 de abril de 2021

O "argumento Anvisa"

Comissões parlamentares de inquérito atraem muita atenção na largada, pela novidade, mas precisam ser abastecidas por fatos novos para manter a audiência conforme o tempo passa e o público vai tendendo a se desinteressar. E é natural que cada lado busque achados para alimentar sua própria narrativa. A CPI da Covid não chega a ser original nesse aspecto.

O que a oposição quer? A digital de Jair Bolsonaro em alguma medida oficial que tenha, sem justificativa plausível, atrasado o início da vacinação no país. Num degrau abaixo, imagina também poder responsabilizá-lo pelo estímulo ao uso de medicamentos cuja eficácia para o tratamento da Covid-19 ainda não foi cientificamente comprovada, ou já foi descartada.

Este último ponto não seria assim tão difícil de operar. O problema é que aqui o presidente está em companhia. Largas porções da comunidade médica navegam com ele no mesmo barco. E há uma divisão nas entidades de medicina. Algumas relevantes mantêm a orientação de que o médico pode receitar o que quiser, desde que de acordo com um paciente devidamente esclarecido sobre a situação.

Nas vacinas, a coisa talvez complique um pouco mais para os acusadores. Inclusive porque a Anvisa têm oferecido argumentos para a defesa de Bolsonaro. Por exemplo ao bloquear a indiana Covaxin e a russa Sputnik V. O governo tem, neste caso, base para dizer "viu como eu fui prudente ao dizer que só compraria vacinas que fossem aprovadas pela Anvisa?".

Aliás é um argumento já em circulação no governismo da CPI.

Vai ser curioso ver na CPI senadores dizendo que a Anvisa acertou ao embarreirar certas vacinas mas que Bolsonaro errou ao decidir só comprar os imunizantes depois de terem sido aprovados pela agência. Será preciso alguma ginástica. Mas nada que não possa ser resolvido pelos experientes parlamentares da comissão de inquérito. 

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Terreno de combate

Governos que perdem a maioria em casas do Congresso passam a ser alvo de uma "caça à raposa". E a situação fica pior quando sofrem a ofensiva coordenada entre a oposição e os mecanismos de formação da opinião pública. Parece ser o caso agora das relações entre a administração Jair Bolsonaro e o Senado, como se está vendo nesta etapa inicial dos trabalhos da CPI da Covid-19.

Uma interpretação é o governo ter bobeado, pois em tese teria maioria no Senado, mas permitiu que a carruagem corresse solta até as bancadas indicarem, para compor a CPI, gente que faz oposição. Outra interpretação, talvez mais realista, deduz que o governo cuidou de não perder a Câmara, onde começam os processos de impeachment, e descuidou da outra casa. Onde, na real, já estaria hoje em minoria.

Que siga o debate, mas agora o teatro está instalado e a CPI opera numa correlação de forças extremamente desfavorável a Bolsonaro. Bem num momento em que a média móvel de casos e mortes começa a descer a ladeira (continuará?), a vacinação anda e os números que saem todo dia da economia não são tão ruins quanto eram as previsões. Inclusive porque EUA e China aceleram. 

E isso em algum grau nos puxa. Mesmo que não seja muito, já é um refresco.

Um efeito político já contratado na CPI é garantir que se prolongue no tempo o abastecimento de noticiário negativo, sempre um problema para o candidato à reeleição. Mas esse será um transtorno administrável se o governismo se mantiver protegido na Câmara, que tem o botão capaz de implodir a edificação. 

E talvez não seja de todo ruim para o oficialismo que o relator da CPI e o presidente da Câmara sejam do mesmo estado e ferozes adversários. Pois toda política é em boa medida local.

Mas, em última instância, é sempre o próprio governo que precisa lutar. E CPIs são mesmo terrenos de combate. E em CPIs de poucos membros, qualquer voto pode virar o placar.



quarta-feira, 28 de abril de 2021

Retrocesso educacional

A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo traz um retrato dramático do retrocesso sofrido pelos estudantes por causa da interrupção das atividades escolares, decidida pelos governantes na epidemia de Covid-19 (leia). E além da natural desvantagem das aulas remotas em relação às presenciais há o fato de que talvez a maioria das escolas não estivessem preparadas para a mudança.

E tem também a distância crescente entre os estudantes das escolas particulares e das públicas. O que sempre foi um problema grave no Brasil tende a se agravar muito mais, condenando uma leva inteira de crianças e jovens a ficar para trás. Mas certamente haverá exceções que, com justiça, brilharão na imprensa como "exemplos de superação". 

Aos demais estará reservado o papel de colaborar para as más estatísticas. O que sempre dá ibope. Aliás, o número de estatísticas produzidas no Brasil sobre a educação é inversamente proporcional à qualidade da mesma. Todo ano, às vezes mais de uma vez por ano, somos informados do problema. Aí reúnem-se os especialistas de sempre para os lamentos de sempre.

terça-feira, 27 de abril de 2021

A largada da CPI

E a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado instalou-se com uma missão definida pela maioria de seus participantes: apontar a culpa do governo federal pelo alto volume de mortes na pandemia. Na inauguração, ouviram-se declarações de princípio sobre a isenção nos trabalhos. Mas é apenas retórica. Conclusões de CPIs são modeladas não tanto pelos fatos, mas pela correlação de forças.

O Brasil vive uma situação política curiosa, porém habitual. Uma certa bipolaridade espiritual. No Senado, o foco é apontar os canhões da CPI para o Palácio do Planalto. Na Câmara, o presidente da casa legislativa engata a marcha das reformas administrativa e tributária. O que vai prevalecer? A agenda negativa ou a positiva? Naturalmente, cada um mira 2022.

Bem, a correlação de forças na largada da CPI é desfavorável ao Planalto. Mas o desenho que vale mesmo é o a ser observado nas hora das conclusões. Ou seja, um governo que aparentemente perdeu a maioria política no Senado, apesar de manter certa maioria programática, especialmente quando se trata de assuntos relacionados à economia, vai ter de encontrar uma saída do labirinto. 

Não será fácil.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Índia

A Índia virou o centro das preocupações globais sobre a pandemia da Covid-19, com a forte aceleração de casos (leia). A curva da média móvel de mortes também sobe, mas numa velocidade por enquanto menor. De todo modo, a combinação entre superpopulação e baixo grau de disciplina social diante do risco sanitário comprova-se um cenário complicado. E trágico.

Países com grandes populações, ou mesmo com populações menores mas com elevada densidade demográfica, são naturalmente zonas de risco amplificado em epidemias. É neles que se mostra mais aguda a necessidade de as pessoas seguirem as indispensáveis regras de distanciamento social. Até porque normas mais radicais de isolamento são limitadas no tempo.

Na Índia, como no Brasil e outros lugares fortemente afetados por novas cepas mais contagiosas do SARS-CoV-2, nota se uma curva ascendente bem mais íngreme do que na primeira onda. Resta saber se os dados vão confirmar uma descida também tão aguda. É o que parece estar acontecendo no Brasil (leia), ainda que numa etapa embrionária.

A Índia é terceiro país que mais vacinou até o momento, em números absolutos. São quase 140 milhões de doses aplicadas. Mas menos de 2% da população já receberam a segunda dose e podem considerar-se definitivamente vacinados. O que apenas reforça a precaução a se manter até que a cobertura vacinal seja suficientemente ampla para proporcional um grau razoável de segurança.

sábado, 24 de abril de 2021

A caça à raposa. E o contra-ataque das “instituições que estão funcionando”

O governo Jair Bolsonaro e o próprio presidente entraram num período de defensiva, pois os tropeços na condução da epidemia da Covid-19 acabaram dando aos adversários a oportunidade de retomar a iniciativa. E o ambiente tornou-se mais favorável ao desarranjo político quando a segunda onda de casos e mortes pelo SARS-CoV-2, turbinada pela cepa de Manaus, antecipou-se violentamente ao cronograma da vacinação e criou um caldo de cultura propício para o contra-ataque dos aparelhos alvo do bonapartismo presidencial.

Já foi descrito nas análises dos últimos quase três anos: o colapso operacional e de imagem da Nova República, catalisado na última etapa pela Operação Lava-Jato, acabou transformando o bonapartismo (um governo concentrado no líder, que exerce o poder em conexão direta com as massas) em objeto de desejo. O problema? Não há um único candidato a Bonaparte, o sobrinho e não o tio: concorrem o presidente da República, os próceres do Judiciário e do Congresso, além de outros menos apetrechados, mas nem por isso menos ambiciosos.

A eleição de Jair Bolsonaro foi, na essência, a outorga de um mandato bonapartista, algo exigido por décadas no processo de formação da opinião pública entre nós. E o presidente até que tentou. Desprezou os partidos na montagem da Esplanada e saiu a aplicar, por decretos e medidas provisórias, o programa vitorioso nas urnas. E vinha naturalmente produzindo conflitos, especialmente com os núcleos empoderados pelo lavajatismo, que provocou um dos maiores efeitos centrífugos no poder político em toda a história nacional.

Aí vieram a pandemia, a dispersão operacional do combate a ela, a captura do debate científico e sanitário pela guerra de facções, os números trágicos de casos e, principalmente, mortes. E a polarização política nesse ambiente acabou por estimular na sociedade a convergência do antibolsonarismo, hoje algo majoritário. Se vai sedimentar, se vai sobreviver até a eleição, se vai ser fragmentado, aí é outra história. Mas a situação do momento é esta. E é tal ambiente que facilita o contra-ataque dos demais candidatos a Bonaparte.

Contra-ataque que na versão poliânica do analismo político costuma ser descrito como “as instituições estão funcionando”. Até demais, diria-se. O Legislativo tenta tomar para ele praticamente toda a execução orçamentária disponível. E o Judiciário ensaia concentrar em si os poderes do Executivo e do Legislativo. E os aos quais isso convém, no momento, por fazerem oposição, aplaudem. Amanhã, quando chegarem ao Planalto, serão eles as vítimas. Mas cada hora com seu problema, cada dia com sua agonia específica.

Antes da criação da CPI da Covid, o desafio do governo era atravessar uns dois ou três meses de borrasca sanitária e econômica, à espera de a segunda onda mergulhar e a economia tirar a cabeça da água para respirar. O quadro agora é outro, o ecossistema propício à instabilidade vai estender-se no tempo, alimentado pelo habitual espetáculo da CPI. Veremos como se dá a caça à raposa, se ela consegue ou não escapar. E isso vai depender não só dos fatos concretos trazidos à CPI, mas também terão grande peso os números da epidemia e da economia.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Descendente?

As curvas de casos e mortes da segunda onda da Covid-19 entre nós parecem ter começado o declive. O quadro se mostra algo homogêneo nacionalmente (leia), ou no mínimo menos heterogêneo que na primeira onda, cujo ápice foi em meados ano passado. Uma hipótese é a variante de Manaus ter sido rapidamente disseminada por todo o país. A ciência, tão falada, que explique.

Outra característica desta segunda onda parece ser a ausência de platô. A subida foi mais rápida e a descida ensaia-se sem maior achatamento da curva. Uma explicação possível é a redução do distanciamento e do isolamento sociais em comparação com o ano passado. Mas ainda é tudo inicial. Veremos qual é o piso de casos e, infelizmente, mortes. E ainda não se sabe se teremos terceira onda.

Na Gripe Espanhola tivemos. Porém a mais mortífera foi mesmo a segunda.

Bem, espero que essas minhas contatações derivadas dos números de dias recentes se confirmem no que têm de bons augúrios. Mas a previsão dos especialistas era essa mesma, de que o ápice seria atingido em algum momento entre março e abril. Vamos ver agora se o ritmo da vacinação consegue fazer com que esta antecipe, ou pelo menos suavize, eventuais novas ondas.

O cachorro do Pavlov

Na culinária e na política, nem sempre quem faz o bolo come o bolo. Em 1992, o PT ofereceu a base popular para depor o presidente Fernando Collor de Mello. Certa hora, achou-se que Luiz Inácio Lula da Silva emergiria do processo imbatível em 1994. Mas Fernando Henrique Cardoso reagrupou as tropas dispersas do collorismo, pegou o trem do Plano Real e matou o sonho do PT de surfar a onda do impeachment rumo ao poder.

Deu-se o mesmo na queda de Dilma Rousseff. PSDB e PMDB (hoje MDB) decretaram o fim do quarto governo petista, reuniram-se em torno de Michel Temer e projetaram poder adiante no tempo. Mas a entropia trazida pela Lava Jato foi além da conta e acabaram ambos tragados pelo tornado bolsonarista. O antipetismo trouxe junto a antipolítica e o antitudo, e tucanos e peemedebistas viram o bolo escapar na undécima hora.

Esse fenômeno não se dá só em situações contaminadas por derrubadas de governos. Acontece também em transições normais, decorrentes de eleições convencionais. Quantas vezes se viu a polarização eleitoral, antes resiliente, ser atropelada por um azarão de última hora? Aí o oposicionista que fez de tudo e consumiu as melhores energias para minar o incumbente fica na poeira. Pois se tem algo difícil de combinar antecipadamente com o eleitor é o resultado de uma eleição.

Assiste-se agora à ofensiva da esquerda e da ex-direita, rebranded como centro, contra Jair Bolsonaro. No momento, o objetivo de ambas é enfraquecê-lo para derrotá-lo na urna. Até porque Hamilton Mourão não tem sido, por enquanto, um replay de Itamar Franco ou Michel Temer. Não dá esperanças aos políticos hoje excluídos do poder. Nem estes andam dispostos a cozinhar o bolo e, de novo, ficar a ver navios. E Bolsonaro vai navegando...

Mas os mares andam cada vez mais turbulentos. Inclusive por certos incômodos que a condução governamental desencadeou e fez crescer na pandemia. Um deles, importante: pela primeira vez, a elite sente algo parecido com as gentes do povão quando ficam doentes e não têm certeza de que vão encontrar um leito vazio de hospital ou UTI.

Atenção, eu disse “algo parecido”. Mesmo hoje, continuam situações no limite incomparáveis.

Na tempestade da pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente. Mas sempre com um olho no peixe, Bolsonaro, e outro no gato, o aliado de momento e já garantido adversário de amanhã. E, ao contrário de situações históricas anteriores, desta vez nem tentam disfarçar. Não é mais um jogo de dois, bolsonarismo e antibolsonarismo, ou petismo e antipetismo, mas de três.

Jogo de três é sempre mais complicado de operar. Se até o cachorro do Pavlov aprendeu, desenvolveu reflexos condicionados, não é difícil supor que os políticos também tenham aprendido. De viver, estudar ou ouvir falar, tanto faz. Entrar de gaiato numa “frente ampla” para confeitar o bolo e correr o risco de ficar sem nenhum pedacinho dele na hora de comer talvez não atraia mais tantos incautos como no passado.

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Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.735

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Desafio ambiental

A participação do Brasil no evento convocado pelos Estados Unidos para debater o meio ambiente expôs algumas fragilidades da situação brasileira. Elas têm raízes estruturais, fixadas na tensão entre desenvolvimentismo, sempre um vetor em países como o nosso, e ambientalismo, uma pauta global cada vez mais importante. Porém as raízes também residem no cerco a que o governo se permitiu submeter, numa consequência tardia do alinhamento à administração Donald Trump.

Ao longo dos últimos trinta anos, o Brasil vinha conseguindo um equilíbrio cuidadoso, mas sempre com algum grau de conflito, entre as pressões internas para aumentar a produção agrícola e as externas (e em algum grau internas) para congelar a fronteira agrícola e manter essencialmente intocado o bioma amazônico. Com o alinhamento a Trump, conhecido cético do clima, o Brasil imaginou-se de mãos livres para reduzir o risco de uma política mais desenvolvimentista (no campo) que ambientalista.

Mas Trump perdeu a eleição para Joe Biden, e além do mais o Brasil meio que se intrometeu na confusão pós-eleitoral dali, e do lado perdedor. O que, com o tempo, vem criando as condições ideais para uma aproximação entre as várias oposições brasileiras e o novo establishment político norte-americano. E agora a administração Bolsonaro precisa operar uma espécio de retirada sob cerco e fogo inimigos, sempre uma manobra que exige grande perícia e, por que não?, sorte.

O grande empresariado brasileiro quer do governo que a política ambiental não atrapalhe os negócios com os Estados Unidos e a Europa, num momento em que o real fraco é o passaporte da prosperidade para o setor exportador da economia. Mas Jair Bolsonaro precisará equilibrar-se entre isso e os afagos à base eleitoral dele, nutrida no discurso anterior. Não é impossível, mas vai exigir perícia e boa condução. Um desafio operacional. 

Desperdício

Um gargalo na marcha mundial da vacinação contra a Covid-19 é a brutal concentração dos imunizantes nos países primeiromundistas mais fortes e fabricantes de vacinas. Na contramão disso, nações como Rússia, Índia e China vacinam-se mas ao mesmo tempo fornecem o produto para outros países. Há aqui, claro, o interesse geopolítico, mas o resultado último é que a vacinação caminha em escala global.

Mas com problemas. Um deles é o erro de fazer contas muito ajustadas de quantidade de vacinas disponíveis para aplicação x vacinas efetivamente aplicáveis. Há o desperdício natural, e aguardam-se análises definitivas para saber em que porcentagem deve ser estimado. E há o desperdício causado pelas deficiências em infraestrutura, como por exemplo a falta de condições ideais para conservar vacinas.

No caso do Brasil, um estudo informa que 4 em cada dez cidades do país têm falhas nas condições para conservação das vacinas (leia). O principal problema é a falta de geladeiras equipadas com os instrumentos adequados para um rigoroso monitoramento das condições ótimas, para as vacinas não estragarem. Um assunto que deveria chamar mais a atenção.

Especialmente de quem não tem vacina sobrando.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Articulação empresarial

O governo Jair Bolsonaro encara desafios imediatos em três frentes. Precisa equacionar suas relações com a nova administração norte-americana, neutralizar - ou tentar - o desgaste na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a pandemia e evitar a corrosão do apoio na elite empresarial, de olho em 2022. Neste último ponto, enfrenta as alternativas da volta de Luiz Inácio Lula da Silva e da busca de uma alternativa a ambos.

A aproximação do presidente com os empresários esta semana foi tática, para buscar apoio na dura negociação com Joe Biden sobre o clima, mas também estratégica, de olho nos movimentos de Lula e do assim chamado centro, que busca romper a inércia e a debilidade eleitoral de seus possíveis nomes, como apontado nas pesquisas. Até o momento, nenhum deles ultrapassa a barreira entre um e dois dígitos, quando confrontado com os dois líderes.

O governo resolveu esta semana a encrenca do orçamento para 2021, mesmo que à custa de furar o teto de gastos nas despesas não recorrentes. Mas a solução foi aceitável para o ministro da Economia, encerrando mais um miniciclo de rumores sobre a saída dele do governo. A variável a acompanhar agora é o desempenho da economia. E da inflação. Esta última deve ser uma fonte de notícias negativas nos próximos meses.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Cone Sul

O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).

Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).

Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.


segunda-feira, 19 de abril de 2021

Por que não mais horas, em vez de menos?

Um problema adicional de viver, e governar, numa pandemia em ambiente politicamente contaminado pela luta sem princípios entre facções é a dificuldade de encontrar espaço para debater os assuntos com alguma racionalidade.

Um caso bastente concreto são as restrições à abertura do comércio. A rotina tem sido autorizar o comércio a reabrir, mas em horários mais limitados. Na teoria, isso deveria reduzir o acúmulo de pessoas e portanto as aglomerações, inclusive no transporte.

Na prática, parece estar acontecendo o contrário (leia). E uma hipótese razoável para isso é matemática. Dada uma certa população e uma certa oferta de serviços comerciais, quando menos horas houver de comércio aberto, mais gente buscará os estabelecimentos ao mesmo tempo.

E mais gente precisará acessar o transporte coletivo ao mesmo tempo.

Não seria melhor estender, em vez de restringir, o horário de funcionamento de lojas, mercados e supermercados? O que também eventualmente poderia ajudar a expandir a oferta de empregos no setor.

sábado, 17 de abril de 2021

Chegou a CPI. E aqui é Brasil

Vem sendo observado, e escrito, desde as eleições de 2018: o então candidato do PSL e hoje presidente da República enfrenta dois agrupamentos, a esquerda e a autointitulada centro-direita. Como ensina a história, guerrear em duas frentes é complicado. Ainda mais se alguma hora os adversários resolvem juntar-se, entendem-se sobre o dia seguinte a uma eventual saída do governante.

A esquerda é liderada pelo PT, mesmo que os liderados dele busquem o tempo todo desvencilhar-se do líder. A oposição à direita é a que construiu o impeachment de Dilma Rousseff, foi o esqueleto e a musculatura do governo Michel Temer e imaginava consolidar-se no poder em 2018. Mas acabou ultrapassada, de passagem, por Bolsonaro ainda no primeiro turno.

E ficou sem opção a não ser sustentá-lo no segundo. E hoje apoia o programa econômico dele mas faz oposição a ele. O Brasil, como se sabe, não é mesmo para amadores.

A esquerda traz no momento o risco eleitoral concreto para o presidente. Não que a direita alternativa ao bolsonarismo deixe de representar perigo nesse terreno. O problema dela são as relativamente menores, por enquanto, chances de passar ao segundo turno. E com Luiz Inácio Lula da Silva elegível o desafio tornou-se ainda mais complicado. É improvável que esse autonomeado “centro” penetre na base lulista. 

Sobra então tentar tirar Bolsonaro. Na eleição ou se possível antes. O problema da segunda hipótese: e se o hoje vice senta na cadeira e ganha musculatura para 2022?

Nenhum presidente brasileiro perdeu a reeleição desde que o instituto foi aprovado, na sucessão de 1998. Ou seja, nenhum ficou fora do segundo turno quando não venceu no primeiro. Daí o grau de dificuldade que o teatro de operações eleitoral coloca na caminhada do centrismo. A primeira escalada da parede é tentar convergir em torno de um candidato competitivo. A segunda é dar um jeito de fazer Bolsonaro baixar decisivamente de seus 25% a 30% de apoio e intenção de voto.

A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as ações federais na pandemia é, antes de tudo, instrumento para avançar nessa missão. Inviabilizar Bolsonaro eleitoralmente. Em 2005, imaginava-se que a CPI dos Correios pudesse fazer isso com Lula. Não funcionou então. Funcionará agora? Na comparação, o quadro é muito mais complicado hoje para o governo. São centenas de milhares de mortos pela Covid-19 para lançar na contabilidade política.

E o petista tinha uma base congressual mais consolidada. Em comum com Bolsonaro agora, enfrentava uma barragem unânime de imprensa.

Como Lula ultrapassou a cancela naqueles anos? Em primeiro lugar, as assim chamadas “investigações” da CPI não chegaram nele. Os motivos ficam para análise dos historiadores. Mas não chegaram. E na passagem de 2005 para 2006 a economia acelerou, tanto que o crescimento do PIB no último ano do primeiro mandato lulista bateu em 4,0%. Na época, foi recebido como algo bom. Hoje, um número assim seria saudado com espoucar de rolhas.

O presidente atual enfrenta uma conjuntura bem mais complexa. Os números da economia para o resto do ano ainda são uma incógnita, mas é razoável supor que no início do próximo estarão melhor. Pelo menos é a aposta empresarial. Resta esperar para ver se a CPI conseguirá, na visão do grande público, cravar na figura presidencial a responsabilidade pelas mortes na pandemia. Hoje, as pesquisas apontam uma culpa ainda algo distribuída.

E será que mesmo isso conseguiria lipoaspirar a base bolsonarista raiz?

E tem um detalhe final. É sempre bom deixar a porta aberta, na análise, para alguma heterodoxia jurídico-política. Aqui é Brasil.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Big data

Conforme avança a vacinação, os cientistas vão dispondo de grandes massas de dados (big data) para avaliar com mais certeza a eficácia das vacinas contra a Covid-19. Pois nos testes clínicos o universo observado está na casa dos milhares. Na vida real, a ordem de grandeza é de milhões.

Nesta sexta, o governo chileno anunciou que a CoronaVac tem 67% de efetividade para prevenir infecção sintomática, 85% para prevenir hospitalização e 80% na prevenção de óbitos. Os achados baseiam-se na maciça campanha de vacinação implementada no país. 

As conclusões foram obtidas num universo de 10,5 milhões de pessoas, entre vacinados e não vacinados (leia). Como já era sabido, a vacina torna-se efetiva 14 dias a partir da segunda dose, e com um intervalo de 28 dias entre as duas aplicações.

Observa-se nos grandes dados da vida real no Chile um pouco mais de efetividade (que nos testes clínicos) na prevenção de infecção sintomática e um pouco menos para prevenir formas graves. Uma possível explicação é a irrupção de novas variantes, não testadas anteriormente nos experimentos controlados.

De todo modo, em meio à guerra comercial entre os imunizantes (leia), só mesmo a vida real vai revelar os números definitivos. Enquanto isso, o melhor mesmo é vacinar-se o mais rapidamente possível.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Segunda dose

Mais um problema: vacinados com a primeira dose contra a Covid-19 estão deixando de ir tomar a segunda (leia). As razões são diversas (ouça), mas o fato é que deixar de tomar a segunda dose prejudica não apenas o próprio indivíduo, mas também a coletividade.

Há certos assuntos que deveriam estar pacificados. Um deles é a vacinação. Sabe-se que o combate ao vírus depende essencialmente de bloquear a transmissão dele. Isso acontece quando certa porcentagem (alta) da população deixa de agir como transmissor, e com o isolamento social.

Mas o isolamento social não pode ser feito de forma absoluta, nem estender-se no tempo. Para que cada um dos hoje recolhidos possa estar em home-office, um exército precisa ir às ruas todos os dias e prover as mercadorias e serviços necessários. O "fique em casa" nunca é mesmo para todos.

Por isso a essencialidade da vacinação maciça. E mesmo ela não é absoluta, as vacinas têm um certo percentual de eficácia. Daí que o objetivo seja vacinar todo mundo, ou quase. Esse é o esforço das autoridades de saúde pública mundo afora.

Façamos a nossa parte.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A CPI

E ao final a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 foi lida em plenário no Senado e tornou-se um dado da realidade. A reunião do pleno do Supremo Tribunal Federal para decidir sobre o antes decidido monocráticamente acabou sendo quase protocolar. 

Mas teve pelo menos uma função. Doravante os presidentes do Congresso Nacional estarão de mãos amarradas. Juntadas as assinaturas necessárias, instala-se automaticamente a comissão inqusidora. Ou seja, qualquer governo precisará doravante ter dois terços (mais um) de ultrafiéis na Câmara e no Senado.

Mas já era meio que assim.

A medição preliminar da correlação de forças na CPI da Covid-19 aponta o governo em desvantagem. Na teoria, o fiel da balança serão os senadores chamados de "independentes". Ocorre que na política, e especialmente no Legislativo, independência rima bem mais com oposição do que com situação.

A operação política do Planalto precisará funcionar muito bem para evitar que a CPI se transforme numa máquina de moer, num foco apenas de desgaste para o governo federal. Mesmo a inclusão das verbas a estados e municípios não é garantia de nada.

Porque é perfeitamente possível senadores e governadores articularem-se para colocar o foco no presidente e proteger o resto.




terça-feira, 13 de abril de 2021

Mais estudos

Dois estudos publicados na Lancet informam que a variante B.1.1.7 do SARS-CoV-2, identificada em primeiro lugar no Reino Unido, é mais contagiosa que o vírus originalmente conhecido, mas não é mais fatal (leia). Trata-se de uma boa notícia. Se fosse o contrário, se fosse mais fatal, mesmo um maior controle da transmissão teria efeito apenas relativo na taxa de mortalidade.

Se a cepa aparentemente nascida em Manaus tiver o mesmo comportamento (aguardemos os estudos definitivos) será o caso de valorizar ainda mais as medidas de distanciamento social. Considerando que é impossível manter indefinidamente o isolamento, crescerá exponencialmente a importância de providências como o uso de máscaras e todas as demais destinadas a reduzir o contato entre as pessoas.

Seria bom se em meio à guerra política as autoridades se entendessem pelo menos para estabelecer protocolos razoáveis e factíveis de distanciamento, o que inclusive permitiria uma volta mais segura às atividades. Um caminho ponderado e certamente eficaz. Talvez seja uma utopia, mas não custa imaginar que alguma hora essa ficha vai cair.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Eficácia

O correspondente do Globo na China traz uma atualização sobre a polêmica da eficácia das vacinas criadas naquele país (leia). Os resultados obtidos onde a CoronaVac vem sendo aplicada têm sido semelhantes. Em torno de 50% para eliminação dos sintomas. E entre 80% e 100% para casos que requerem assistência médica. E a vacina atua melhor se a segunda dose demorar um pouco mais (leia).

E parece que funciona contra as novas cepas. O que é uma notícia e tanto. Aliás, já era esperado que vacinas criadas a partir do vírus inteiro funcionassem bem contra as variantes, pois o vírus não se transforma completamente quando entra em mutação.

Vacinas têm dois papéis: servem para proteger as pessoas individualmente e a coletividade. No caso dos indivíduos, se a vacina reduz de modo radical a possibilidade de adquirir a forma grave da doença, ela está valendo a pena. Já na esfera das sociedades, o desafio é diminuir a um mínimo, se possível interromper, a circulação viral. O que acontece quando se atinge uma certa taxa (alta) de imunizados. 

Pelo vírus ou pela vacina.

A aplicação das vacinas mundo afora ainda está no começo. Números definitivos só estarão garantidos mais na frente. Por enquanto, o melhor é se vacinar o mais rapidamente possível, com a primeira vacina que estiver disponível. Pode ser a diferença entre estar vivo ou não quando esse debate, sobre que vacina protege mais, finalmente puder ser feito com dados mais consolidados.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Flexibilização

Em meio à guerra política e à determinação do STF para que o Senado abra a CPI das ações federais na Covid (leia), estados e municípios vão pouco a pouco flexibilizando o isolamento social, mesmo com o alto número de mortes. Saem-se melhor junto à opinião pública os que se cercam de técnicos que expliquem tecnicamente, e assim ajudem a legitimar as decisões.

Mas, independente da legitimação técnica, a tendência parece ser para flexibilizações. No Maranhão, que tem um dos mais baixos índice de mortes por milhão de habitantes no Brasil, estão permitidos por exemplo os cultos religiosos, objeto da grande polêmica nos últimos dias. Ali, o governador Flávio Dino (PCdoB) seguiu a decisão do ministro do STF Nunes Marques (leia).

Também registraram-se aberturas no estado de São Paulo (leia) e no município do Rio (leia). Há outros casos Brasil afora. O que seria desejável? Que houvesse regras padronizadas para implantação de medidas de afastamento social quando é preciso começar a flexibilizar o isolamento. E que essas regras fossem baseadas nos resultados da experiência real.

Desnecessário dizer o quanto estamos distantes de algo assim.

Bolsonaro enfrenta a maldição do terceiro ano

E Jair Bolsonaro acaba de topar com o primeiro obstáculo realmente relevante no caminho para concluir seu mandato e tentar um novo: a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19. Ou melhor, a CPI sobre as ações federais na Covid-19. Tem sido rotina nos terceiros anos dos quadriênios presidenciais. É quando invariavelmente aparece alguma barreira que vai demandar esforço e concentração redobrados, se o mandatário não quiser ficar pelo caminho.

Em 1992, Fernando Collor topou com as acusações do irmão. Elas desencadearam a CPI que acabou levando ao impeachment. Fernando Henrique Cardoso teve esse tipo de problema nos dois terceiros anos de seus dois mandatos. Acusação de compra de votos para a reeleição em 1997 e ameaça de uma CPI da Corrupção em 2001. Luiz Inácio Lula da Silva recebeu pela proa os torpedos de Roberto Jefferson em 2005. E Dilma viu em 2013 a emergência das “jornadas de junho”.

Que deram a largada para a deposição dela em 2016. Nem a reeleição em 2014 interrompeu o processo.

Deve ter algo de coincidência, mas é prudente não desprezar a possibilidade de o ano imediatamente anterior às eleições presidenciais despertar os instintos mais primitivos dos políticos. No caso atual, Bolsonaro cuidou bastante bem de estreitar a porteira para acusações de corrupção, habitualmente usadas nessas ocasiões. Mas não teve o mesmo cuidado para reduzir a margem de manobra dos adversários no assunto da pandemia.

Na Covid-19, o presidente foi dobrando a aposta a cada rodada. Poderia ter ficado contra o isolamento social, mas a favor do afastamento. Ou contra o afastamento e compensar isso apresentando-se como radical defensor das vacinas. Mas preferiu a crítica a tudo, com exceção do tratamento medicamentoso já aos primeiros sintomas. Que está sob fogo cerrado da maioria da comunidade médica. Ainda que uma parte relevante apoie a linha de Bolsonaro.

Recentemente, reposicionou-se no assunto vacinal, mas continua carregando com ele um evidente déficit de imagem no tema.

A aposta de Bolsonaro parece ter se baseado na premissa de que teríamos uma onda da epidemia aqui no Brasil, e quando ela entrasse na descendente a preocupação das pessoas com a própria situação econômica prevaleceria, e aí o presidente colheria os frutos de ter desde o começo advertido sobre o risco de ruína material dos indivíduos, das famílias e das empresas. Por causa do que sempre atacou como radicalismo no isolamento social.

Essa linha de ação e comunicação pagou-se em algum grau, tanto que Bolsonaro mantém um núcleo resistente de apoiadores em torno de 30%. Mas, na medida em que a primeira onda não foi a única, e quando a segunda apresenta picos de mortalidade várias vezes a da anterior, o medo e a angústia com a doença continuam dominantes. E agravaram-se. E o presidente está evidentemente ilhado no núcleo fiel. Este é forte, mas minoritário.

É a situação clássica propícia para a ofensiva adversária. Uns escaparam (FHC, Lula), outros naufragaram (Collor, Dilma). O tucano safou-se na primeira vez porque o povão achava que a economia ia bem, e na segunda porque tinha base parlamentar, e ninguém queria a sério interromper seu mandato. O petista sobreviveu porque era popular e porque os inimigos ficaram com receio de uma guerra aberta de rua contra ele.

Veremos nas próximas semanas e meses que variáveis dessas vão prevalecer agora para Jair Bolsonaro.

A política no mudo

Apesar de tudo, o universo da política continua achando mais provável Jair Bolsonaro ficar no Planalto pelo menos até 2022. E tem outra. Depois de Luiz Inácio Lula da Silva voltar à elegibilidade, diminuiu naturalmente o número de quem vê o atual presidente na cadeira até 2026. Diminuiu, mas está longe de ter virado fumaça.

O ambiente anda chacoalhado. Esqueça porém os discursos: os principais atores só estão de olho mesmo é em 2022. Isso seria apenas o óbvio, não comparecessem dia sim outro também diante do público para dizer que estamos mergulhados numa tragédia (e estamos mesmo), e que isso exige medidas radicais imediatas.

De vez em quando, faça como numa dessas reuniões no Zoom, ou no Teams: coloque a política no mudo. Preste atenção no que os políticos fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis. Na forma, um libelo pela democracia. Na alma, apenas um posicionamento para a eleição. Contra Bolsonaro, Lula e possíveis aliados de cada um dos dois.

Se a prioridade fosse fazer um gesto antibolsonarista, Lula teria sido convidado. Mas suponhamos que as atribulações jurídicas dele constrangeram os autores. Então por que não chamaram o Guilherme Boulos? Ele é pré-candidato. Ou seja, se tirarmos o som, conclui-se que no manifesto a dita fé democrática apenas encobriu mais uma tentativa de alavancagem eleitoral “contra os extremos”.

Teria sido melhor dizer “olha, somos pré-candidatos, mas estamos dispostos a juntar-nos em torno de um único nome”. Esta é, aliás, uma vantagem do atual ocupante do Planalto: as falas dele trazem o que pretendem dizer, não encobrem intenções e não exigem do povo grande esforço de interpretação.

Querem saber uma razão da estabilidade vivida pelo governo Bolsonaro, mesmo com a tragédia sanitária e suas consequências econômicas? Não há consenso entre os adversários de que qualquer coisa é preferível a ele na presidência.

E o capitão vai tocando o barco, protegendo e mantendo organizadas suas fileiras, para resistir e preservar uma musculatura político-eleitoral que o coloque pelo menos no segundo turno em 2022.

Não que a vida do presidente esteja resolvida. Vamos ver o que sai da caixinha de surpresas do Supremo Tribunal Federal dia 14, mas se Lula continuar candidatável espera-se a intensificação do bombardeio contra Bolsonaro vindo do “centro”, para tentar demoli-lo e oferecer-se ao eleitorado hoje bolsonarista como única opção contra “a ameaça da volta do PT”.

Sobre isso, espera-se também um esforço monumental do establishment para convergir o "centro" num único nome.

A política brasileira é cheia de sobressaltos, mas também tediosamente previsível.

Ah, e uma diferença definitiva entre a situação de agora e a das Diretas Já, citada no "manifesto dos seis". Em 1984/85, os liberais que hoje seriam chamados de centristas aceitaram juntar-se à esquerda. Não consta que alguma vez Ulysses Guimarães, Franco Montoro ou mesmo Tancredo Neves tenham colocado a coisa como uma luta “contra os extremos”.

Era outro tempo. E outro tipo de político.

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Publicado na revista Veja de 14 de abril de 2021, edição nº 2.733

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Fabricação nacional

Informa a presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade Lima, que a instituição planeja distribuir a partir de setembro vacinas contra a Covid-19 fabricadas com IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) nacional (leia). Será um avanço importante. 

Aliás, a corrida entre a Fiocruz e o Butantan para ver quem fabrica antes e oferece mais vacinas contra o SARS-CoV-2 aos brasileiros tem sido exemplo de concorrência benigna. Outro caso benigno é a luta de governadores para trazer a Sputnik V (leia). A população quer vacinas, venham de onde vierem.

Desde que sejam seguras e eficazes, claro. Mas o fato de uma vacina já estar certificada em dezenas de países deveria falar por si só. Estamos em situação emergencial. E situações emergenciais exigem atitudes não convencionais.

Infelizmente, a segunda onda da Covid-19 veio antes de estarmos plenamente preparados para vacinar a grande maioria da população. As razões são conhecidas. Houve fatores conjunturais, mas também estruturais. O principal é nossa deficiência científica e industrial.

Entre os países que não fabricam vacinas, o Brasil é o que até agora mais vacinou, em números absolutos. A afirmação diz algo sobre nossa capacidade de superação, mas também sobre nossas falhas. Estamos por enquanto nos superando, mas apenas para remediar falhas que vêm lá de trás.


quarta-feira, 7 de abril de 2021

A corrida

Funcionários do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo vacinados com a CoronaVac tiveram incidência de Covid-19 de até quase 75% abaixo da população em geral (leia). O estudo foi feito e divulgado pela própria instituição. É uma excelente notícia. E ficará melhor ainda se e quando for comprovado que a vacina funciona bem contra as novas cepas.

O mundo e naturalmente o Brasil assistem a uma corrida de vida ou morte entre o contágio e a imunização. Que se dá pelo efeito conjugado da vacina e do próprio vírus. Entre nós, a vantagem da vacinação diária sobre os novos casos registrados diariamente já é de 10 para 1. Mas esse número pode enganar, por causa da subnotificação de casos, muito especialmente os assintomáticos.

Saberemos que a vida vai começar a ganhar a corrida contra a morte quando a média móvel diária de novos casos registrados entrar em declínio. A de mortes deverá demorar um tanto a mais, mas seguirá depois a mesma tendência. É o que se verifica em países onde a vacinação já alcançou porcentagens substanciais da sociedade, especialmente nos grupos mais vulneráveis.    

terça-feira, 6 de abril de 2021

Que venha a Sputnik V

O presidente do Banco Central participou de um evento pela internet e opinou que o ritmo da reabertura econômica vai seguir o andar da vacinação (leia). Não chega a ser novidade. Mas oferece a chance para discutir, afinal, o que deveria ter sido feito de diferente para que tivéssemos hoje mais vacinas disponíveis.

A vacinação no Brasil vai razoavelmente (leia). Em valores absolutos, estamos entre os cinco que mais vacinam. Proporcionalmente à população, temos estado melhor que os colegas de Brics e outros grandes da América Latina. Um bom lugar para olhar os números é o serviço do britânico Financial Times (leia).

O governo brasileiro apostou inicialmente tudo numa única vacina: a Oxford/AstraZeneca. O fato é que se não fosse o acordo do Butantan com a chinesa Sinovac ainda estaríamos engatinhando. Melhor teria sido apostar em todas, para reduzir o risco. 

Mas vamos lembrar também que, quando a Rússia divulgou ter registrado a pioneira Sputnik V, aqui o coro foi de desconfiança. Em vez de exigir do governo que buscasse um acordo com os russos, muitos dos hoje críticos do ritmo da vacinação preferiram engrossar o #mimimi contra o imunizante do Gamaleya.

Ontem deu-se um passo importante para superar os obstáculos que ainda impedem o uso da Sputnik V aqui no Brasil. Os presidentes do Brasil e da Rússia conversaram sobre o tema (leia). Que a solução venha rápido.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Fora da pauta

Enquanto segue a polêmica em torno do funcionamento ou não de cultos em templos religiosos durante a pandemia, os dados matemáticos mostram um problema adicional: parece haver um teto para a queda de mobilidade obtida com as medidas de isolamento social. Pelo menos é que vem mostrando a prática.

O último feriado prolongado implementado pelas autoridades na cidade de São Paulo, de 26 de março a 4 de abril, parece não ter reduzido significativamente a circulação, na comparação com o período imediatamente anterior (leia). O resultado ficou bem abaixo da expectativa.

Parte da dificuldade para implementar isolamentos sociais eficazes vem da indisciplina individual e coletiva, espontânea ou induzida. Mas há outras duas variáveis, tão importantes quanto. Uma é a circulação de pessoas cujo trabalho não pode parar e não pode ser feito remotamente.

A outra é o tanto de gente que precisa sair à rua para que a turma do home office possa ficar recolhida em casa. Por exemplo, toda a cadeia de produção e distribuição de alimentos, e também a de medicamentos. Isso só para começar. 

Enquanto segue o MMA político, problemas práticos como esse simplesmente ficam fora da pauta.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Ofensiva ou defensiva? E uma lembrança sobre 1964

As movimentações do poder nos últimos dias permitem pelo menos duas leituras. Uma diz que a troca dos comandantes das Forças Armadas faz parte de certo rearranjo numa ofensiva política do presidente da República. Expressão desse raciocínio é a palavra “golpe” ter dado as caras com assiduidade durante algumas horas.

Em especial no intervalo entre a demissão da antiga cúpula militar e o anúncio da nova.

Cada um tem sua própria opinião, mas a minha é que talvez tenha sido o contrário. Talvez o movimento presidencial tenha sido essencialmente defensivo, parte da construção de barreiras protetivas num período em que a ofensiva é dos adversários ferrenhos, circunstância que sempre embute o risco de provocar desequilíbrios em aliados não tão orgânicos assim.

O cenário das últimas semanas combina números trágicos e explosivos da Covid-19, dúvidas disseminadas sobre o ritmo da vacinação, desconforto sobre o valor do novo auxílio emergencial, temores de perda de fôlego da atividade econômica, conflito aberto do presidente com a maioria dos governadores em torno das medidas de isolamento social.

E até dias atrás juntava-se a isso a encrenca do então chanceler com o Senado Federal.

Em certo momento da confusão, o presidente da Câmara, último muro que separa a oposição de entrar no terreno do impeachment, ligou o sinal amarelo. Quem avisa, aliado é. A partir dali, ficar parado não era mais opção para Jair Bolsonaro. Ele entrava na situação corriqueira dos presidentes brasileiros: ter de oferecer os anéis antes de perder os dedos.

Mas só recuar provocaria efeitos colaterais indesejados. Preservaria forças e recursos do poder. Mas também transmitiria sinal de fraqueza. Que sempre tem uma resultante perigosa: acender ainda mais apetites. Na última linha, a política não se define pelo sentimento de gratidão, define-se pela correlação de forças. Quem quer sobreviver precisa ter força, ou ao menos dar a impressão.

É fácil constatar. Se Bolsonaro tivesse apenas trocado o chanceler e aberto espaço no núcleo do Planalto para uma aliada do presidente da Câmara, o noticiário giraria em torno do recuo do presidente sob pressão. Como ele, ao mesmo tempo, deu certo sinal de “manda quem pode”, trazendo as Forças Armadas para dançar, o jogo simbólico ficou algo equilibrado.

Sim, apenas equilibrado, porque restou claro que os novos comandantes foram indicados em consenso com o escalão mais alto de cada força. Assim, ao final, todo mundo mostrou um pouco de dentes: a Câmara dos Deputados, o Senado, o Presidente da República e a turma das quatro estrelas na Marinha, no Exército e na Aeronáutica.

E segue o jogo. E qual é esse jogo? Há a necessidade de combater a pandemia e retomar a economia, claro, mas a bússola política está apontada mesmo é para 2022. Aliás, esse talvez seja o principal saldo semiótico das últimas semanas. Tem projeto? Então foco. Prepara-te para outubro do ano que vem. As outras opções são bem menos prováveis.

Pois, a rigor, ninguém relevante está, tirando a retórica, interessado numa ruptura. Entre os vários motivos: ao contrário de Fernando Collor e Dilma Rousseff, o vice agora não é uma ponte potencial dos políticos para a ocupação do governo. E outro detalhe: numa ruptura digna do nome, não tem seguro que proteja 100% de ser tragado pelo tsunami.

Sobre tsunamis, esta semana registrou-se mais um aniversário de 31 de março de 1964. Como habitual, reacendeu-se a discussão sobre o que teria acontecido se Jango não tivesse sido derrubado. Debate que persistirá para a eternidade. Uma coisa, porém, é certeza. Nem Juscelino Kubitschek, nem Jânio Quadros e muito menos Carlos Lacerda eram comunistas.

Todos apoiaram a deposição de João Goulart. E quem não souber o que aconteceu depois com eles, é só procurar no Google.