Toda tentativa de justificar política exterior com base em princípios tão bonitos quanto absolutos costuma terminar em impasse, quando não em comédia; ou tragédia. Pois os interesses frios sempre acabam prevalecendo, restando aos ideólogos dar aquela maquiada básica para salvar a face. Um exemplo recente é o conflito da Ucrânia.
Dois princípios nas relações internacionais são o direito à autodeterminação e o direito à integridade territorial. No conflito da hora, Kiev esgrime com o segundo, mas Moscou argumenta com o primeiro para as repúblicas do Donbass e as regiões sulistas do vizinho, Crimeia inclusive, que decidiram se desligar.
Na dissolução e fragmentação da Iugoslávia, duas décadas atrás, os Estados Unidos e a OTAN invocaram o direito à autodeterminação, enquanto uma enfraquecida Rússia argumentava, impotentemente, em defesa da integridade territorial da Iugoslávia. No final, quem pôde mais chorou menos.
O observador razoavelmente atento notará que os EUA e a União Europeia retiraram dos arquivos o playbook da Guerra Fria 1.0 para conter a ascensão da China. Impor crescentes constrangimentos econômicos, deflagrar uma corrida armamentista e dar o golpe final por meio das tensões étnico-nacionais e do separatismo.
Entre as dificuldades na tentativa de repetir o roteiro, uma frequenta mais amiúde os pesadelos do Ocidente. Quando a URSS declinou e finalmente desapareceu, havia tempo que não era mais aliada da China, que na geopolítica estava até mais próxima dos EUA. Hoje, a ameaça existencial comum empurra chineses e russos a aliar-se estrategicamente.
Na economia e na esfera militar são nações que se complementam num encaixe quase perfeito.
Eis por que o Ocidente não pode nem pensar em conter a China, o objetivo central na Guerra Fria 2.0, sem atrair a Rússia para sua esfera de influência ou desmembrá-la, a exemplo do que foi feito com a URSS.
Ou as duas coisas.
A Federação Russa permanece um dos poucos estados de fato plurinacionais no planeta, com potenciais tensões separatistas permanentes. Enquanto o Ocidente argumenta com o direito à integridade territorial da Ucrânia, usa a Ucrânia para desestabilizar a integridade territorial russa.
O que, aliás, somado à crescente simpatia ocidental pela tese de Taiwan independente e pelas pressões separatistas em Hong Kong e Xinjiang, ajuda a amalgamar a aliança entre Moscou e Beijing.
E o Brasil com isso? O cenário internacional para nós, também pelos motivos expostos, é incomparavelmente mais complexo do que quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto pela primeira vez, em 2003.
Naqueles tempos, 1) os EUA tinham o foco na guerra ao terror; 2) uma enfraquecida Rússia estava saindo do catastrófico governo de Boris Ieltsin; e 3) ainda prevalecia a esperança ocidental de que o desenvolvimento econômico chinês, orientado ao mercado e à globalização, faria entrar em colapso o poder comunista.
Assim, Lula pôde implodir o projeto norte-americano da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) sem maior consequência, teve espaço para projetar poder econômico-financeiro regional e o Brasil ajudou alegremente a construir os Brics.
Mas os ventos começaram a mudar lá pelo final da década, acelerados pela crise de 2008/09, e quem acabou pagando o pato da insatisfação de Washington com o expansionismo e o independentismo brasileiros foi Dilma Rousseff.
Os EUA estão crescentemente nervosos diante da ameaça de um ocaso em seu reinado de única superpotência. E bem quando a história parecia ter chegado ao fim, dando razão a Francis Fukuyama, e quando o breve século XX, na definição de Eric Hobsbawm, tinha ficado para trás.
Mas as duas teses balançam. Fukuyama e Hobsbawn estão em xeque. O século XXI está cada vez mais parecido com o anterior.
Como Lula vai descascar o abacaxi? Até agora, recorreu aos velhos truques, de eficácia comprovada. Foi a Washington e disse coisas agradáveis aos anfitriões, depois dirigiu-se a Beijing para falar coisas que fizeram bem aos ouvidos dos chineses. Nas duas viagens, procurou extrair o melhor da relação.
Não deixa de ser inteligente como aposta para não queimar pontes.
Só é preciso saber até quando isso será suficiente. Pois de vez em quando chega uma hora em que os princípios, como tratado no início deste texto, e as declarações genéricas de intenções não dão mais para o gasto.
E 2023 não é 2003.
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