domingo, 12 de novembro de 2017

Um Congresso de Viena no século 21

A passagem dos 100 anos da Revolução Bolchevique enseja, também no Brasil, um desfile de pseudoanálises marcadas pela a-historicidade. Um divórcio absoluto entre o fato histórico e suas circunstâncias, seu contexto. Ignoram-se, principalmente, os constrangimentos que as limitações da realidade impunham aos personagens.

É a “história de supermercado”. E supermercado chique. Os protagonistas disporiam de múltiplas opções, como os produtos finos numa bem abastecida gôndola, e devem ser julgados conforme suas escolhas tenham sido “certas” ou “erradas”.

A Revolução Russa é a única sobre a qual se debatem “erros” e “acertos”. Não há uma polêmica real, por exemplo, sobre supostos “erros” da Revolução Americana, ou da Francesa. Os Estados Unidos tornaram-se independentes sem abolir a escravidão. Tirando o “lunatic fringe” multiculturalista, ninguém propõe renegar Washington e Jefferson por causa disso.

A bizarrice pseudoanalítica sobre Lenin e os seus tem duas razões principais: uma é o envolvimento pessoal pretérito de analistas e comentaristas de hoje com movimentos que de algum modo beberam dos fatos de outubro/novembro de 1917. Há uma necessidade psíquica patológica de “estar certo” ou “ter estado certo”, por exemplo, na escolha de lados entre Trotsky e Stalin.

A segunda razão é mais sofisticada: debater a sério a Revolução de Outubro é abrir o cérebro para a possibilidade de o capitalismo talvez não ser eterno. Caricaturar o socialismo russo é como trancar Napoleão Bonaparte em Santa Helena e tocar adiante um Congresso de Viena sem hora para acabar, e em pleno século 21. Oferece a sensação de ter travado a perigosa marcha dos acontecimentos.

Um exemplo prático de a-historicidade são as lamúrias sobre a “oportunidade democrática perdida” quando o poder bolchevique instituído insurrecionalmente fechou a Assembleia Constituinte, eleita antes da insurreição. “Ah, como teria sido bom se os mencheviques tivessem ganhado!”.

Mas não se costuma perguntar por que a Constituinte não conseguiu oferecer qualquer resistência ao seu fechamento. Ou por que os bolcheviques venceram a guerra civil contra a ampla coalizão de potências estrangeiras e adversários internos. Ou por que, um quarto de século depois, a União Soviética foi o único país europeu a oferecer resistência militar real contra o nazismo, derrotando-o afinal.

Essas perguntas têm uma resposta óbvia, habitual e convenientemente ignorada: a revolução e o socialismo russos dispuseram, durante longas décadas, de esmagador apoio social. Porque foram ao encontro das demandas históricas da multidão de oprimidos pelo czarismo.

Porque tiraram a Rússia da desastrosa Primeira Guerra Mundial. Porque fizeram finalmente a reforma agrária sempre barrada pelos czares. Porque socializaram as grandes empresas e deram cidadania aos operários e camponeses. Porque em pouco mais de duas décadas realizaram, nas novas condições, o sonho de Pedro, o Grande: arrancaram o país do feudalismo e transformaram numa superpotência industrial.

Porque evitaram o colapso nacional definitivo e a escravização do povo eslavo que decorreria de uma derrota para Adolf Hitler.

Os russos e o conjunto da humanidade têm um débito com os povos e líderes da então União Soviética.

Essa constatação não é nem deve ser salvo-conduto para a adulação, ou para a cegueira. Mas deveria funcionar, até por pudor, como freio à ignorância propositalmente induzida e ao consumo indiscriminado de falsificações históricas. Elas fazem mal à saúde intelectual. E ideologia demais emburrece.

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Artigo publicado originalmente no site poder360.com.br

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