A cautela do governo Jair Bolsonaro e da principal corrente de oposição (PT) é reflexo da complexidade dos impactos da crise russo-ucraniana sobre o Brasil.
O Brasil é parte do hemisfério ocidental,
tem um alinhamento quase estrutural com
os Estados Unidos e a Europa devido a fatores
geográficos, históricos e políticos. Mas é
também um membro dos Brics com ambição
global, o que impõe não apenas cuidados
comerciais, mas também geopolíticos.Um exemplo na recente visita de Bolsonaro
à Rússia foi o apoio à pretensão de o Brasil
se tornar membro permanente do Conselho
de Segurança.
Após um período marcado pela introdução
de fortes elementos ideológicos na política
exterior brasileira, a atitude até o momento
do Itamaraty diante da crise no leste europeu
retoma a linha desenvolvida desde pelo
menos meados da década de 1970, ainda
nos governos militares: equilibrar-se entre
um pró-americanismo estrutural e os novos
interesses de um grande país, o Brasil, desejoso
de manter certa independência nos assuntos
mundiais.
O “até o momento” se deve às crescentes
pressões pelo alinhamento pró-ocidental.
O elemento novo dessa guinada: os componentes
mais ideológicos do governo e da sua
base de sustentação parecem seguir a atitude,
também até o momento, de Jair Bolsonaro,
voltada a não confrontar a Rússia. Há dois
componentes circunstanciais aí:
1) o fato de o governo Joe Biden não ser visto
aqui nos círculos do poder como um aliado
firme e
2) as boas relações estabelecidas entre Bolsonaro
e o presidente russo, Vladimir Putin.
Relações que se consolidam quanto mais
Bolsonaro se convence de que Putin não é
propriamente de esquerda, mas um nacionalista
russo que se apoia no tradicionalismo
e no conservadorismo para consolidar
seu projeto e seu poder. E o detalhe curioso:
até outro dia, se o referencial político era
Donald Trump, o ideológico era a Ucrânia
pós-Maidan. Basta lembrar das faixas pela
“ucranização” nas manifestações da base
pró-Bolsonaro.
Há também um componente, não desprezível,
de política regional. Não conviria ao Brasil
uma consolidação da cooperação militar entre
Rússia e Venezuela, o que introduziria um
componente de instabilização na fronteira
norte. Por implicar um fortalecimento relativo
das capacidades militares de Nicolas Maduro
em relação a nós, e também por ter, como
consequência, um aumento da pressão americana
sobre nossa fronteira amazônica.
Ainda sobre as relações com os Estados Unidos
e a Europa, não é preciso gastar muito raciocínio
para concluir que americanos e europeus
apoiariam sem nenhum sofrimento uma
alternativa “não-trumpista” a Jair Bolsonaro
na sucessão. O PT já identificou bem esse
potencial, e hoje busca repaginar-se como um
partido social-democrata nos moldes europeus.
Os ajustes em sua linha de política exterior
falam por si.
Ainda em relação ao PT, a crise russo-ucraniana
é um complicador no cenário em que o
partido persegue não apenas alianças políticas
ao chamado centro, mas também apresentar-
se programaticamente mais distante
de um perfil que poder ser descrito pelos adversários
como “radical”.
Em tese, a velha tática da equidistância, do
equilíbrio e do apelo a princípios gerais poderia
servir de boia contra a enxurrada de pressões
para um alinhamento antirusso. Mas
apenas em tese, pois o equilíbrio e a equidistância
hoje correm o risco real de serem caracterizados
como alinhamento pró-Moscou.
O esforço dos aparatos de construção
da opinião pública por estes dias chega a ser
inédito. Uma observação: os mesmos que criticavam
as tendências antichinesas da fase
anterior de nossa política externa, e pediam
pragmatismo, hoje exigem o sacrifício das relações
do Brasil com a Rússia.
O que não deve espantar, pois é apenas política.
Será necessário observar agora os desdobramentos
das múltiplas pressões sobre a
posição brasileira. Cinco pontos de atenção:
• O desfecho da crise russo-ucraniana será
puramente militar ou em algum momento
haverá um cessar-fogo, com as partes
entrando em negociações? Há movimentos
do governo ucraniano em favor
de aceitar a neutralidade militar exigida
pela Rússia, mas no momento o presidente
Vladimir Zelensky não parece ter
apoio interno suficiente para fazer esse
movimento sem risco.
• As eventuais pressões internas desencadeadas
pelas duríssimas sanções vao minar
a posição de Vladimir Putin?
• Qual será o impacto imediato sobre a economia
brasileira? Até que ponto as sanções
à Rússia terão consequência sobre os negócios
desta com o Brasil?
• Qual será o comportamento do maior parceiro
comercial do Brasil, a China, diante
das sanções à Rússia? Que impacto isso
terá sobre os negócios com o Brasil?
• Como reagirá o mercado global de energia,
do qual a Rússia é um jogador-chave?
Nenhum comentário:
Postar um comentário