Na história brasileira, brandir o argumento da legalidade tem-se mostrado ativo político relevante nos momentos de potencial ruptura. Em situações de clara afronta ao arcabouço legal, é vantajoso buscar cores legalistas. Um exemplo foi a Revolução de 30, quando o rompimento da ordem constitucional legitimou-se também pelas acusações, nunca comprovadas, de fraude na eleição em que o paulista Júlio Prestes derrotara o gaúcho Getúlio Vargas.
Não foi à toa, portanto, que ao longo dos quatro anos de conflito latente ou aberto com o Judiciário o então presidente Jair Bolsonaro tenha batido sistematicamente no argumento de estar “jogando dentro das quatro linhas”. A esta altura, e os últimos acontecimentos ajudam a lançar luz sobre o passado, fica claro que o ex-presidente não tinha apoio militar para manobras continuístas construídas fora do campo regulamentar de jogo e contra o juiz.
Outro complicador para Bolsonaro, e talvez lhe tenha faltado a percepção, é as “quatro linhas” exibirem flexibilidade juridica inédita no Brasil. E, principalmente, o hoje ex-presidente nunca ter estado nem perto de conhecer, ou ao menos vislumbrar, uma coexistência pacífica com as instâncias judiciárias encarregadas de dizer o que a Constituição permite ou não fazer.
Coexistência difícil também por ambos terem disputado com ferocidade o poder moderador, formalmente abolido na República, mas muito vivo.
Sobre aquela flexibilidade, há poucas coisas mais ingênuas em política do que exigir coerência. Na política, os argumentos servem unicamente para reforçar ou alterar a correlação de forças, e quem não tiver estômago para tanto deve buscar outra atividade. Dito isso, é digno de nota que em quatro décadas o Brasil tenha transitado da legalização de partidos cujo programa propõe a abolição da democracia liberal para a criminalização de uma conduta conexa, apenas vinda do lado oposto.
Um tema para os historiadores.
Os lamentáveis acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, ao afrontar material e simbolicamente a legalidade numa escala inédita em anos recentes, deixaram o exército (atenção para a minúscula) bolsonarista exposto ao cerco das tropas inimigas, num saliente indefensável. Infelizmente para a tropa, o comandante não percebeu que era hora de retirada para preservar forças, ou avaliou mal a situação.
A boa tática está sempre a serviço da estratégia. O contrário é um erro.
Quando Napoleão Bonaparte mandou executar Louis Antoine Henri de Bourbon, o Duque de Enghien, e com isso desencadeou contra si a ira das casas reais europeias, deu a Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord a oportunidade de acrescentar uma das frases que marcariam a biografia do célebre político francês: “Aquilo foi pior que um crime; foi um erro".
Os sinais estão aí.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que largara meio enredado em contradições, passou à ofensiva e só será freado ou bloqueado quando, e se, aparecer uma força capaz de lhe fazer frente. No momento, não há sinal. Onde estão os riscos? 1) Numa eventual deterioração econômica; e 2) errar na identificação do inimigo principal na nova etapa.
Pois, se Jair Bolsonaro for neutralizado como alternativa imediata real, e depois de 8 de janeiro há acordo entre as demais correntes para isso, como administrar as contradições que naturalmente vão aflorar entre os hoje aliados anti-Bolsonaro e certamente futuros inimigos?
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