sexta-feira, 15 de março de 2024

Propósito e pertencimento, os dois pês

Os últimos levantamentos recolocam na roda o debate sobre o peso da economia nas decisões do eleitorado. A primazia do vetor econômico é quase um dogma desde que Bill Clinton derrotou George H W Bush em 1992, com o “é a economia, estúpido”, o lema interno da equipe da campanha vitoriosa.

Tal dogmática, entretanto, não explica os cenários quando a economia vai bem, mas mesmo assim o governo sofre perdas estatísticas no apoio. Como parece ser o caso agora aqui no Brasil, situação que ainda não se sabe se é pontual ou tendência.

Uma explicação envereda pela tese de que a polarização acaba secundarizando os efeitos políticos da economia.

A tese ainda espera comprovação, e há dados político-eleitorais recentes que lançam pontos de dúvida sobre ela. Um deles é a boa avaliação dos prefeitos em geral, situação que em certa medida se repete com os governadores, ressalvada uma ou outra exceção. A avaliação dos governadores e prefeitos parece menos contaminada pela polarização.

Sobre a economia, uma hipótese a analisar é sua importância crescer na eleição quando 1) a economia vai mal ou quando 2) vai bem e há a ameaça real de piorar se o governo mudar de mãos. Quando políticas econômicas propostas por governo e oposição apontam para rumos parecidos, diminui a letalidade eleitoral provocada pelo medo da mudança.

Outro cuidado a tomar é sobre o que se quer dizer com “a economia”. Ela pode estar indo bem nos números macro que abastecem as manchetes, mas é sempre prudente olhar para o microcosmo das pessoas e das famílias, se se quer fazer um diagnóstico mais preciso. E nunca se deve perder de vista a equação “resultado - expectativa = satisfação”.

Quando um governo só olha para suas entregas, e se esquece de comparar com as expectativas que criou, pode ser surpreendido pela queda na satisfação do eleitorado.

Debater a economia é fundamental, ela sempre tem grande peso na decisão do voto. Mas talvez valha a pena olhar também para outras variáveis. Especialmente quando, como agora, não se vislumbra que as possíveis trocas de guarda no Brasil trariam mudanças radicais na condução econômica.

Também por a área econômica deste governo e sua orientação continuarem recebendo sustentação maciça em meios informativos tradicionais. Os mesmos que no passado ofereciam sua rede de segurança para autoridades às quais o PT se opunha na época. Excetuadas as turbulências trazidas por declarações e decisões presidenciais pontuais, reina na área boa dose de paz.

Sem subestimar a economia, tampouco é demais olhar para aspectos mais subjetivos dos mecanismos de produção de opiniões políticas. O capital político dos governos sempre se beneficia de dois pês: propósito e pertencimento. Quando está claro a que veio o governo, e quando ele passa a sensação de querer o bem de todo mundo, e não só de sua turma.

Acirrar as contradições e estimular a guerra de todos contra todos pode ser útil para reforçar o poder momentâneo, mas um efeito colateral é produzir sensação de exclusão em áreas que o andamento da economia pode até, eventualmente, estar beneficiando.

Por isso se diz que a política tem de andar de mãos dadas com a economia, para que a safra eleitoral não decepcione.

sábado, 9 de março de 2024

Qualquer gordurinha pode fazer falta

As pesquisas recentes deram visibilidade ao fim do período de graça deste terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, graça cuja extensão foi diretamente proporcional à durabilidade e ao brilho dos percalços jurídicos do antecessor. Não que o fim da graça a Lula faça descer as cortinas para o contraponto a Jair Bolsonaro, ao contrário, mas doravante a atual administração estará cada vez mais pressionada a dizer a que veio.

Seria precipitado creditar o brusco fim da graça a um único vetor. Como na surrada comparação com acidentes aéreos, é mais prudente olhar para uma cesta de variáveis que foram, e estão, amadurecendo devagar, até um dia o acúmulo quantitativo produzir a alteração qualitativa.

Elementos que contribuem para incrementar dificuldades do governo:

1) Algum grau de desaceleração da economia, combinada com a pressão dos preços da comida. Os bons números do PIB de 2023 foram carregados principalmente pela largada do ano e pelo agronegócio. Todas as previsões, ou ao menos a maioria, são algo otimistas para o desempenho da economia em 2024, mas, ao contrário do ano passado, a previsão é que os números só ficarão mais lustrosos na medida em que o ano avançar.

2) O mercado de trabalho melhorou em 2023, mas persiste o velho problema da baixa qualidade dos empregos. Os setores intensivos em mão de obra não lideram a recuperação da economia.

3) O aspecto mais visível da orientação econômica é o desejo de aumentar a arrecadação de impostos. Mesmo que o governo repise o mantra de taxar os ricos para dar aos pobres, nunca se deve esquecer que o Brasil é um país de classe média numerosa. E todo mundo sabe que para efeito de aumentar imposto governos costumam extremamente flexíveis na definição de “rico”.

4) O governo talvez esteja transmitindo a impressão de ocupar-se muito com assuntos a que a população dá menos importância. E pouco com os temas mais sensíveis ao eleitorado. A população, segundo as pesquisas, parece não ver maiores entregas reais nas áreas que tradicionalmente se revezam no topo da preocupação popular, com destaque para a saúde e a segurança pública.

5) A posição do governo basileiro em relação a Israel ajuda a repaginar a oposição. O noticiário sobre Bolsonaro e os dele vinha girando só em torno da agenda judicial. A importação, por Lula, da ultrapolaridade na guerra Israel x Hamas, temperada por outras abordagens igualmente “fora da caixa” sobre política exterior, oferece à oposição temas mais nobres, que ela naturalmente agarra. O ato de 25/2 em São Paulo foi um bom termômetro.

Entretanto, até o momento, o que Lula perdeu principalmente foi apoio numa camada de gente que não votou nele em 2022, mas vinha dando seu voto de confiança ao presidente e ao governo. Por enquanto, o governo e o presidente só queimaram gordura.

O problema é que num cenário de divisão eleitoral acirrada qualquer gordurinha pode fazer falta lá adiante. Sem contar que, quando a gordura acaba, o organismo acaba tendo de consumir tecidos mais nobres.

domingo, 3 de março de 2024

Sai a dialética, entra a aritmética

O tamanho, a coesão política e a dirigibilidade da manifestação liderada por Jair Bolsonaro em 25/2 na cidade de São Paulo deixaram mais visível uma inversão de papéis. No passado não tão distante era a esquerda quem trabalhava para ocupar as ruas e mostrar poder de mobilização, restando à direita depreciar a contabilidade adversária e ameaçar com a polícia.

O observador algo atento nota, faz anos, que a esquerda vem frequentando mais as antessalas do Ministério Público e dos tribunais, e menos os locais de trabalho onde poderia estabelecer contato com quem declara representar. A fraqueza dos sindicatos e entidades associativas dos trabalhadores fala por si.

Não que não haja na mesma esquerda inquietação e perplexidade a respeito. Algumas explicações apontam para as mudanças estruturais no mercado de trabalho. Elas têm seu papel, mas também ajudam a dar imerecido protagonismo a um confortável fatalismo determinista.

Outro viés é o circular. “Estamos desconectados das bases porque não damos suficiente atenção ao contato com as bases.” Verdade, mas não ajuda. É um sistema possível e indeterminado. Admite infinitas soluções. O que não resolve o problema de quem persegue “a” solução.

O terceiro viés é a fuga para adiante. Acreditar que falta à massa de trabalhadores a iluminação de compreender a necessidade do autogoverno. O pensamento talvez reflita um estágio superior de desconexão entre intelectuais e povo. Deve haver assunto mais ausente dos desejos da massa, mas encontrá-lo seria desafio e tanto.

Uma dificuldade que atrapalha muito é o abandono da saudável tradição polemista-argumentativa. Ela saiu de cena e deu lugar à ditadura das narrativas, uma variante do terraplanismo aplicado à política.

“Fazer a disputa” ultimamente resume-se a reunir mais apoio para martelar teses de laboratório até colher o relatório que mostra você em vantagem sobre o oponente nas redes sociais. A aritmética substituiu a dialética.

Por que terraplanismo? Porque a Terra não se tornaria plana nem se toda a humanidade comparecesse ao ex-Twitter (hoje “X”) para afirmar que o planeta é, na verdade, um disco bem achatado.

Talvez não haja assunto mais instigante, e inquietante, nos meios ditos progressistas do que o avanço da direita sobre os grupos sociais que a esquerda julgava historicamente reservados para si. E, quando o problema entra em pauta, vem junto a circularidade entre o “falta trabalho de base” e o “falta consciência”.

É possível que o desvendar da incômoda equação esteja mais à mão do que parece. Depende, entretanto, de a esquerda aceitar que a realidade talvez não ande bem encaixada nos desejos. Ajuda, também, procurar aprender com a experiência, olhar para o que já aconteceu e tentar, se possível, dar crédito ao que dá certo e desconfiar do que costuma dar errado.

A esquerda moderna, até como rótulo, nasceu na Revolução Francesa, com os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Mais adiante, a filosofia da práxis vinculou a terceira consigna à busca do desenvolvimento. Deixando para trás, num primeiro momento, o ludismo, e, muito depois, quando a China se livrou da Revolução Cultural, um igualitarismo a-histórico.

Não estivéssemos em plena era de terraplanismo político, deveria despertar curiosidade intelectual a direita ter tomado da esquerda as bandeiras da liberdade e do desenvolvimento, e até da igualdade. Já a esquerda defende restringir a primeira, adverte que o segundo vai destruir a vida no planeta e reinterpreta a terceira revestimdo de opressores boa parte dos que um dia disse serem oprimidos.

Uma certa repulsa à modernidade, que, sem surpresas, traz junto teratologias como o “socialismo dos tolos”, tão bem descrito por August Bebel.

Outra mudança, talvez até mais estrutural, é o abandono pela esquerda, e a captura pela direita, da ideia de emancipação nacional. Isso fica para uma próxima.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Na caixa de brita

O Oriente Médio e as redondezas são uma cumbuca daquelas de macaco velho evitar pôr a mão. Seguem abaixo cinco exemplos de agora mesmo:

1) O Irã talvez seja o principal aliado operacional da Rússia no conflito ucraniano. Só Belarus emparelha, em alguma medida. E a Rússia deve sediar esta semana em Moscou uma cúpula política das principais correntes palestinas. Ao mesmo tempo, Israel e Rússia mantêm um acordo que permite aos israelenses atacar alvos iranianos no aliado-chave de Vladimir Putin ali, a Síria, sem ser ameaçados pelo potente armamento antiaéreo russo.

2) O Azerbaijão, de maioria xiita e fronteira com o Irã, é aliado firme de Israel. As relações no terreno militar e de energia são fortíssimas. Um pouco disso ficou comprovado nos conflitos recentes com a Armênia pelo controle de Nagorno-Karabakh. E armênios acusam a Rússia de ajudar, mesmo que indiretamente, os azeris, apesar de Moscou ter um acordo militar com Yerevan, que por sua vez ameaça arrastar uma asa para a Otan.

3) Transcorridos quase cinco meses da guerra entre Israel e o Hamas, não se nota até o momento (atencao para o Ramadã na Esplanada das Mesquitas) quase nenhuma reação da “rua árabe”. Protestos anti-Israel concentram-se no Ocidente. Na Cisjordânia, frustraram-se por enquanto as expectativas de um levante popular a partir de 7/10. A explicação: a Fatah, rival do Hamas, espera que Israel complete a missão, total ou parcialmente, para, com apoio norte-americano, a Autoridade Palestina tentar retomar Gaza a custo quase zero.

4) Países árabes que estabeleceram relações com Israel nos Acordos de Abraão, na presidência de Donald Trump, não tomaram nenhuma decisão drástica contra Jerusalém até o momento.

5) Precisou haver uma guerra de verdade ali para se perceber que o bloqueio e as restrições à entrada e saída de material militar em Gaza são uma ação conjunta de Israel e do Egito.

A esta altura, a leitura atenta já detectou meu uso abusivo do “por enquanto”, do “até o momento” etc. A prudência obriga. Afinal, estamos tratando do Oriente Médio e arredores, onde as alianças e afastamentos são mais dinâmicos até do que no nosso Congresso Nacional.

Aquilo é material com que mesmo os profissionais se atrapalham, vide a catastrófica falha da inteligência israelense no 7/10, que muito provavelmente levará à aposentadoria de Benjamin Netanyahu (outro erro dos analistas é achar que a mudança de guarda ali trará mudança importante de políticas).

Se os profissionais enrolam-se, tanto mais os amadores. Ficará na história o também catastrófico erro de cálculo de Yahia Sinwar, que fez a leitura completamente errada do grau de desagregação política interna em Israel e do estado das alianças globais do país.

Erros e falhas que carregam na sua contabilidade a tragédia dos mortos, dos feridos, das vidas destroçadas.

O Oriente Médio é um lugar (vou recorrer aos lugares-comuns) onde o apressado come cru e para todo problema complexo alguém aparece com uma solução simples, e errada. Uma hora a pessoa se entusiasma, calcula mal a tomada da curva, derrapa, sai da pista e atola na caixa de brita. E daí acelera e acelera em busca do retorno salvador ao providencial asfalto, sem entretanto sair do lugar. E fazendo atolar junto um monte de gente que em nada contribuiu para a derrapada.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Encaixado na narrativa

O teatro da política brasileira tem vivido de recorrer à troca de máscaras. A cada ato, o desafio preliminar é saber se o personagem é bom ou mau, nas circunstâncias dadas do enredo. Um exemplo é o presidente da Câmara, Arthur Lira, afagado ou execrado dependendo do alinhamento ou não com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

É preciso acompanhar com acuidade o debate público para, em todo momento, saber quem está do lado certo e deve ser apoiado e não se desatualizar.

É raro, entretanto, que os ciclos escapem completamente ao sincronismo eleitoral. Em geral, a cada semiperíodo do pêndulo os personagens mantêm sua persona razoavelmente íntegra, a não ser que se metam, ou sejam metidos, em episódios com potencial para inverter radicalmente papéis. Foi o caso de Michel Temer, que, de timoneiro da salvação nacional, repentinamente passou a vilão.

Na política, além de ser bom, é preciso ter sorte. E talvez a maior sorte na política seja o alinhamento das frequências, que no popular é a pessoa certa estar no lugar certo na hora certa. É quando os elementos se conjugam para um pequeno empurrão fazer o balanço oscilar bem para cima. É a ressonância do tal “encaixar-se na narrativa”.

A estabilidade política deste governo Lula decorre de ele estar quase perfeitamente encaixado na narrativa do momento, de salvação da democracia. Uma situação radicalmente diferente do período 2013-2018, quando o eixo organizador da discussão política era a luta contra a corrupção, e ao PT impôs-se a máscara do malvado favorito da opinião pública.

Decorre principalmente daí o visível desconforto dos candidatos a críticos, que, com pouquíssimas exceções, precisam fazer mesuras e quase pedir desculpas quando apontam algo que acham desagradável nas ações do governo federal. No mais das vezes, apressam-se a pagar o pedágio básico de ressaltar que também criticam, e muito, o antecessor recém-removido de palácio.

Aqui e ali começam a surgir sinais esporádicos de desconforto com pontos de contato entre métodos de agora e o demonizado lavajatismo, mas nada que interrompa a tendência. E Lula, experiente, trabalha bem o encaixe entre as circunstâncias e a narrativa, trazendo junto ao peito, e bem protegidas, as cartas de personagem central do combate ao bolsonarismo.

Não chega a ser novidade, aliás é bem antigo, dizer que, na política, mais importante que escolher os aliados é escolher o adversário. Jair Bolsonaro agrega para Lula a vantagem decisiva de o presidente manter para si a sincronicidade com o Zeitgeist.

Lembrando que sempre há a possibilidade de uma hora o vento virar, como virou para Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Lula, além de tudo, tem-se reinventado em torno das pautas globais do momento. E mantém o discurso de não deixar o passado voltar, uma vaca que lhe deu tonéis de leite em três eleições contra os tucanos.

O risco potencial, para 2026? Além de algum desconforto provocado pela conjugação de mediocridade econômica, sanha arrecadatória e sinais exteriores de poder brasiliense usufruído em excesso, a ressurgência de um resiliente nacionalismo conservador, sempre potencialmente presente.

O exemplo norte-americano mostra que é uma variável crítica a monitorar. E nunca desconsiderar.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Mare (Paranoá) nostrum

É um desafio conseguir lembrar algum momento no passado em que a harmonia entre os poderes em Brasília tenha sido tão harmônica. Pode haver, e há, divergências, mas nada que esgarce o funcionamento ritmado e sincrônico das instituições. No momento, Executivo, Legislativo e Judiciário remam todos para o mesmo lado, com pouca ou nenhuma resistência ou crítica da imprensa ou do que se convencionou chamar de sociedade civil.

De vez em quando algum ator mostra-se desconfortável diante de algum detalhe e vem uma crítica, sempre pontual, que pipoca para logo ser engolfada pelas ondas de opinião situacionista sob a capa da defesa da democracia. Não há oposição política organizada com expressão e capacidade real de convocatória no establishment. Jair Bolsonaro continua popular, é bem recebido pelos apoiadores, tem a simpatia de uns 40%, mas perdeu poder de mobilização na elite, lato sensu.

E o autodenominado centro democrático, depois de perder a eleição, perdeu agora para o PT a bandeira da luta "contra o extremismo”.

Daí uma pax quase romana, o Lago Paranoá ter virado um mare nostrum.

Brasília vive a era dos consensos. O primeiro é sobre a necessidade e a justeza de aumentar a receita com impostos. A divergência que resta é uma, bastante administrável, entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional para ver quem comanda quanto da destinação da verba. O segundo consenso, conjugado ao primeiro, é em torno da desnecessidade de cortar ou controlar a expansão das despesas, mesmo as de custeio.

O terceiro consenso sustenta a legitimidade de medidas excepcionais para defender a democracia e, com tal objetivo, algum grau, não tão bem definido, de judicialização da política. Alguns poucos observadores se incomodam por isso hoje ser vocalizado por quem ontem se opunha à dita judicialização, mas talvez valha lembrar que na ética da política realmente existente a coerência não é necessariamente uma virtude.

O quarto consenso é sobre a premência de restringir a liberdade de expressão, liberdade hoje amplificada pelas possibilidades explosivas do mundo digital e potencializada pela inteligência artificial. Este consenso é particular e especialmente possível pelo já descrito alinhamento de astros institucionais. A dúvida que precisará ser destrinchada são duas: como isso será feito e quem fará o tal controle.

Nesse cenário pacificado, a turbulência possível é sempre a mesma: na eleição, único momento em que a base da sociedade pode de fato expressar algum sentimento de oposição aos arranjos da cúpula. Nada indica até agora que a disputa municipal deste ano vá ser nacionalizada, à exceção de São Paulo, mas o PT deseja, legitimamente, recuperar espaço nas cidades, e resta ver como o partido e o governo administrarão as tensões com os aliados.

Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição por margem bem estreita. É natural que busque ao longo do primeiro mandato acumular musculatura adicional para depender menos de aliados em 2026, para o que 2024 é passo importante. A economia anda estável em torno de um desempenho médio, mas os exemplos aqui dentro e lá fora mostram que guerras culturais e em torno da oposição modernidade x antimodernidade têm potencial para produzir surpresas.

E o imprevisível? Já disse aqui, mais vezes do que seria suportável: é o mais difícil de prever.

sábado, 16 de dezembro de 2023

A política prevalece

Há uma tendência a afirmar que a sociedade brasileira está polarizada ideologicamente, e isso é verdade em certo grau. Mas a tese não ajuda a desvendar completamente os fenômenos políticos. Seria mais adequado dizer que, mesmo havendo polarização ideológica, a política prevalece. Enquanto a primeira se define por visões de mundo opostas, especialmente no plano das ideias, a segunda separa campos em plano mais terreno, material.

Não deixa de haver conexão entre as duas formas de determinação, mas seria um erro não compreender a autonomia relativa de cada uma.

Um exemplo claro foram as votações desta semana no Congresso Nacional. A oposição ligada ao ex-presidente Jair Bolsonaro apostou na polarização ideológica para tentar evitar que o Senado aprovasse Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal. Perdeu. Mas, logo depois, quem perdeu foi o governo petista, quando o Congresso derrubou os vetos presidenciais à lei do marco temporal e à prorrogação das desonerações sobre a folha de pagamento das empresas.

Sempre persiste a tentação de acreditar que, no limite, este Congresso Nacional faz o que desejam os personagens e grupos que comandam o Legislativo. Ou que aprova qualquer coisa, desde que o governo atenda o apetite dos parlamentares por verbas e cargos. Há uma dose de verdade nisso, mas é errado pensar em termos absolutos. No limite, mesmo tendo flexibilidade, costuma ser alto o custo de o parlamentar bater de frente com quem o elegeu.

Recente encontro de dirigentes petistas manifestou desconforto com o governo depender de uma maioria parlamentar inclinada à direita, até por, segundo o petismo, as eleições terem aprovado outra agenda. Há aí um acerto e um erro. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva depende mesmo de parlamentares eleitos em aliança com Bolsonaro, mas seria exagero afirmar que as eleições aprovaram uma agenda petista.

A eleição presidencial foi, em última instância, um plebiscito sobre a pessoa de Bolsonaro, e ele perdeu.

A aprovação de Dino e a derrubada dos vetos sobre o marco temporal e as desonerações mostram que, dentro de certos limites, o Congresso pode até absorver escolhas ideológicas de Lula e do PT, mas opõe e oporá resistência a uma agenda, para recorrer à terminologia “faria limer", anti-business. Pela simples razão de que a maioria do Poder Legislativo é francamente adepta de um ecossistema com mais liberdade para o capital buscar sua reprodução.

Pelo ângulo pragmático, talvez isso não chegue a ser problema para Lula. Pode constituir até uma solução. já que ali na frente, no fritar dos ovos, o povão vai querer saber principalmente se Lula 3 entregou crescimento e empregos. E para operar esse milagre da multiplicação dos pães o presidente precisa que os capitalistas invistam, pois não há como o Estado brasileiro substituí-los. Ainda que muitos fiéis acreditem nisso.

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Fechamos por aqui este ano de 2023. Boas Festas e um ótimo 2024 a todo mundo.