quarta-feira, 26 de março de 2025

Batom na estátua

É possível que o governo Luiz Inácio Lula da Silva subestime o custo político de apoiar incondicionalmente a atuação do Supremo Tribunal Federal nos processos contra os acusados de 8 de janeiro de 2023. Não é tão difícil entender o potencial dano eleitoral do contraste entre a liberdade proporcionada a tantos envolvidos em comprovados crimes graves e a dureza granítica das atuais punições aos manifestantes que depredaram as sedes dos três poderes, uma ação obviamente condenável.

Na guerra de narrativas, o 8/1 foi para uns grave atentado contra a democracia. Mas para uma fração significativa do eleitorado, ainda minoritária, foi só um ato de depredação de edifícios públicos. Não é preciso tanta inteligência ou capacidade preditiva para saber que o primeiro grupo tende a diminuir e o segundo a crescer. Ainda por cima se a segunda narrativa vem embalada em exemplos que o homem comum pode facilmente interpretar como flagrante injustiça.

Uma dúvida razoável é por que o governo não influi para expurgar da onda inquisitorial as aberrações mais aberrantes. Talvez porque, na ausência de base parlamentar mais sólida, tema enfraquecer o “presidencialismo de coalizão com o Judiciário”. Talvez porque tenha se tornado, ele próprio, prisioneiro da sua narrativa. É uma dessas situações em que o sujeito, para manter de pé uma versão, passa a agir contra seus próprios interesses.

Para o sistema punitivo, é vital manter uma conexão entre o 8/1 e as comprovadas movimentações do então presidente, derrotado nas urnas, para invalidar o desfecho da eleição. O 8/1 permite à acusação dizer que a ruptura não foi apenas desejada, mas efetivamente tentaram colocá-la em prática. As evidências materiais dessa conexão são frágeis até o momento. Mas, como se diz, “é o que temos para hoje”. 

Daí a dificuldade política de expurgar da marcha penal situações como o batom na estátua. Sem o “batom na cueca”, resta o batom na estátua.

Não fosse por isso, a separação entre os participantes de delitos menores e os demais acusados já teria sido feita há tempos, evitando que o governo perdesse o timing, o que permitiu à oposição fincar pé na acusação de injustiça. Lutar contra injustiças sempre permite ao lutador alguma iniciativa, mesmo em situações desfavoráveis.

É verdade que, com isso, a oposição deixa para o governo a oportunidade de ocupar-se sozinho do que interessa mais ao povão: o preço das coisas. E o governo ganha tempo. está à espera de que, enquanto fala mal do Banco Central (BC), o BC faça o serviço para o situacionismo e derrube a inflação.

Além do mais, o Planalto conta com a docilidade dos mecanismos de formação da opinião, eles próprios encaixotados no temor de não parecerem suficientemente alinhados na defesa da democracia.

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Pela nova regra do consignado, o trabalhador pega um empréstimo no banco, para pagar juros e o principal, dando como garantia 10% do seu FGTS.

Fica uma dúvida: por que não simplesmente deixar o trabalhador sacar 10% do seu FGTS?

Até para o trabalhador não passar pela estranha situação de ter de pagar ao banco juros por tomar emprestado um dinheiro que é dele mesmo.

terça-feira, 4 de março de 2025

Esquerda em apuros. E a conversa fiada sobre a guerra

É visível e mensurável a ascensão de forças políticas nacionalistas em escala global. A base material foi desencadeada pela crise financeira de 2008-09, quando a chamada globalização apresentou suas primeiras graves rachaduras. Como tudo na História, o andamento não é linear, tem idas e vindas, mas parece caminhar bem, sem que tendências contrárias mostrem energia suficiente para reverter.

A maioria da esquerda, aparentada da social-democracia, é a principal perdedora neste round.

Aos fatos. Em certo momento ela abandonou a luta 1) pela soberania nacional, 2) pelo desenvolvimento, 3) pela igualdade e 4) pela liberdade. Trocou seus melhores episódios desde a Revolução Francesa por uma mistura mal ajambrada de kautskysmo (teoria do “ultraimperialismo”), malthusianismo, tribalismo identitário e ânsia repressora.

Como essa mixórdia de pontos desconexos não é capaz de proporcionar às massas trabalhadoras um horizonte de elevação consistente do seu padrão de vida, estas se voltam para a direita em busca de luz. Direita que recolhe as bandeiras acima de 1 a 4 para capturar uma base social antes hostil, ampliar sua potência eleitoral e abrir caminho para chegar ao poder.

O nacionalismo têm papel central nessa disputa. Defender a nação como espaço de proteção, liberdade e prosperidade vem se mostrando mais eficaz para mobilizar os povos do que um universalismo até agora incapaz de deixar o terreno da utopia. As pessoas não são estúpidas. Qualquer um compreende perfeitamente a diferença entre os graus de liberdade do capital e do trabalho quanto tentam cruzar as fronteiras entre o primeiro e o terceiro mundos.

A resultante é a contradição grotesca entre o discurso da esquerda em defesa da democracia e sua inclinação à repressão pura e simples para manter-se no poder. Recorrendo a uma expressão cara a esse campo, é óbvio que não tem a mínima sustentabilidade.

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O governo dos Estados Unidos não parece disposto a continuar financiando a fundo perdido na Ucrânia uma guerra inganhável. A aposta europeia e do governo Joe Biden deu errado. As sanções não arruinaram a economia da Rússia, também por uma razão: a China jamais permitiria ao Ocidente subjugar os russos e impor-lhes o Versailles que se impôs à então União Soviética.

Resta, então, como caminho para uma vitória total sobre Moscou, o militar. Alguns problemas aqui. A Rússia é a maior potência nuclear do planeta. E, ao contrário dos últimos momentos da URSS, mostra coesão política interna para evitar a capitulação.

Mais ainda: numa guerra convencional, é impensável que os ucranianos derrotem os russos. Para melhorar a probabilidade desse desfecho, seria necessário europeus e americanos toparem ir morrer nos campos de batalha, além de empenhar todas as economias na empreitada. E mesmo assim o desfecho mais provável seria uma conflagração nuclear planetária.

Diante disso, a melhor saída é buscar um acordo, que naturalmente deverá levar em conta a realidade no terreno da guerra. “Ah, mas e a soberania? E o direito dos países à integridade territorial?”. É hora de retirar do baú uma velhíssima lição da História. Os países têm direito à soberania e à integridade territorial na exata medida da força que eles e suas alianças têm para garantir a soberania e a integridade territorial.

O resto é conversa fiada.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Guerra por procuração é mais fácil

A acusação dos europeus de que Donald Trump se inclina pelo “apaziguamento” da Rússia na guerra entre russos e ucranianos enfraquece-se por causa de um ponto preliminar: quem morre na guerra são ucranianos e russos. A Europa decidiu guerrear a Rússia por procuração. Por isso não fica tão doído assim, para os europeus, defender que a guerra precisa se estender “até a vitória final”.

A memória histórica sempre tem alguma utilidade, daí a conveniência de lembrar que oito décadas atrás a Europa caiu como uma fileira de peças de dominó diante dos exércitos de Adolf Hitler, sendo ao final salva de si mesma pelas dezenas de milhões de mortos soviéticos e pelas tropas provenientes do outro lado do Oceano Atlântico.

Se não se deve subestimar a importância das guerrilhas europeias que resistiram ao nazismo, seria irrealista imaginar que a Europa teria dado sozinha conta do problema.

É verdade também que europeus e norte-americanos são sócios-fundadores do desastre contemporâneo no Donbass e em Kursk. Basta recapitular. Finda a Guerra Fria, o bloco atlantista tinha duas opções: absorver a Rússia numa "Europa ampliada”, com as devidas garantias de segurança, ou garrotear o urso ferido para arrancar dele tudo que fosse possível e reduzi-lo a colônia. Ou continuar seu desmembramento.

Como se isso fosse realista.

A crise ucraniana é produto, antes de tudo, da falta de prudência do Ocidente. Em 2014, bastava esperar a eleição em Kiev, pois a derrota do bloco pró-russo era bola cantada, e a Ucrânia entraria na União Europeia sem maiores traumas. Mas os estrategistas da Casa Branca e do Departamento de Estado, secundados pelas potências europeias, decidiram insuflar o golpe contra o impopular presidente Viktor Yanukovitch.

O resultado foi a secessão da Crimeia, que caiu nas mãos de Vladimir Putin como uma fruta madura cai do galho, e os movimentos secessionistas no Donbass. Aí Kiev entrou em guerra contra Donetsk e Lugansk e passou a bombardear sistematicamente a população civil dali, majoritariamente de origem russa. E todas as tentativas de resolver a pendenga na mesa de negociações pararam no desejo europeu de impor à Rússia uma derrota militar e política estratégica.

Aí Putin errou grosseiramente na análise da correlação de forças, achou que suas tropas seriam recebidas na Ucrânia como libertadoras, quando o nacionalismo ucraniano vinha de ser sistematicamente anabolizado desde a dissolução da URSS. Subestimou também a quedinha da Europa do Leste pelo sonho europeu. Esqueceu-se ainda de que, quando a Alemanha invadiu a União Soviética em 1941, a Wehrmacht teve recepção de gala na Ucrânia ocidental, só vindo a enfrentar resistência quando se aproximou do leste ucraniano.

O resultado está à vista de todos. A Europa imagina ter força para evitar a absorção da Ucrânia pela Rússia, mas sabe faltarem-lhe recursos políticos, materiais e humanos para uma vitória decisiva. A Rússia, parece, já entendeu que o mesmo se dá do lado dela. Seria portanto uma hora boa para negociar a paz. O maior obstáculo é os políticos europeus terem prometido a seus povos que era possível impor uma derrota estratégica, sem aspas, a Moscou.

Outro obstáculo é que, na prática, a paz agora implica reconhecer conquistas territoriais de Putin e Zelensky na guerra. Mas não se faz omelete sem quebrar ovos.

domingo, 27 de outubro de 2024

O peso do centrismo

O segundo turno das eleições municipais obedeceu a uma regra, excluídas as exceções que a confirmam: ganhou quem conseguiu avançar sobre um certo centro político, da centro-direita à centro-esquerda. Apesar de alguns insucessos, nesta rodada, de candidatos “do coração” do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi o PT quem mais sofreu com a dificuldade de atrair votos centristas.

E o que esse peso do centrismo projeta para 2026? A mesma lógica: Os dois polos atraem a ampla maioria do eleitorado, mas, em situações de relativo equilíbrio, uma minoria de certa dimensão acaba tendo papel decisivo. Pois quem tem um piso eleitoral alto pode perfeitamente exibir um teto eleitoral insuficiente para atingir a maioria absoluta necessária para eleições majoritárias.

Em 2024, a direita exibe mais capacidade de atrair o contingente que pendula entre os campos ideológicos, diferentemente de 2022. Por algumas razões principais. Duas delas 1) não se pode alegar no cenário político maiores ameaças à institucionalidade; e 2) o governo federal não chega a cultivar a frente política que lhe deu a apertada vitória de dois anos atrás.

Algumas análises do primeiro turno creditaram a onda de vitórias do chamado centrão a um acesso privilegiado a recursos orçamentários provenientes das emendas parlamentares. Pode até ser uma explicação em municípios menores ou alguns médios em regiões mais dependentes de verba federal, mas é uma tese insuficiente na ampla maioria das cidades em que pode haver segundo turno.

Passada a eleição, as atenções voltam-se para o Congresso Nacional, em dois pontos: a pauta de votações e a sucessão nas mesas diretoras das duas casas. No primeiro, a curiosidade é se o governo vai ajustar a rota para algo mais centrista, ao olhar as derrotas eleitorais, ou se vai operar uma fuga para adiante, guinando à esquerda. Alguns sinais apontam na primeira direção.

Na troca de comando das mesas, o Senado parece momentaneamente pacificado em torno da recondução de Davi Alcolumbre (União-AP), mas a Câmara dos Deputados ainda apresenta algum grau de incerteza, mesmo que os ventos soprem a favor de Hugo Motta (Republicanos- PB). Resta saber qual será o desfecho das ambições dos demais pré-candidatos, se haverá consenso ou algum grau de disputa.

Parece improvável que, diante dos fracos resultados eleitorais, o governo deixe a eleição das mesas no Congresso enveredar para disputas que poderiam enfraquecê-lo e até, no limite, trazer para seu colo derrotas à semelhança da que o PT sofreu para Eduardo Cunha em 2015. Por mais que a ideologia possar falar alto, mais alto falará o instinto de sobrevivência de Luiz Inácio Lula da Silva e do partido.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Uma janela para Boulos

A semana trouxe novidades nas pesquisas públicas da eleição paulistana, tendências que já vinham detectadas nos trackings reservados. As principais mudanças não estão nos números, são políticas. Em resumo, o ensaio de guerra civil no bolsonarismo oferece ao campo petista-psolista a possibilidade de, por enquanto, jogar parado e concentrar-se em reduzir a rejeição de seu candidato à Prefeitura de São Paulo.

O principal problema de Guilherme Boulos (PSOL) não está no primeiro turno, pois é improvável que alguém roube dele fatia substancial dos votos de seu campo.

O desafio está nas simulações de segundo turno, em que invariavelmente aparece bem atrás do prefeito Ricardo Nunes (MDB). A ida de Pablo Marçal (PRTB) à decisão ofereceria ao psolista uma narrativa mais verossímil na tentativa de reeditar a “frente ampla” que fez Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad chegarem na frente, respectivamente, de Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas na capital paulista dois anos atrás.

Pois é óbvio ser bem mais viável carimbar Marçal como “bolsonarista” do que fazer isso com Nunes, até porque o prefeito não oferece características para classificá-lo com qualquer viés político-ideológico.

A conturbação no campo da direita paulistana tem algumas raízes no estilo de liderança de Bolsonaro, algo caótica e inclemente. Isso deixou nos últimos seis anos um rastro de ressentimentos e diversos quadros feridos pelo caminho, que agora veem a oportunidade de voltar a ocupar espaço no afeto político do capitão reformado, guerreando contra a turma hoje prestigiada. Mas a janela não se abriria sozinha sem povo, daí a importância de Marçal.

Até ontem, quem se recusava em algum momento a seguir fielmente alguma diretriz bolsonarista acabava sem oxigênio político, pois os votos eram do próprio Bolsonaro, e de mais ninguém. Veremos se Marçal consegue romper a maldição. E ele está se esforçando para fugir de ser caracterizado como traidor, carimbo que amputou promissoras carreiras políticas na direita pós-2018.

Marçal não teria ambiente para fazer o que faz, na escala em que faz, não fosse por dois outros elementos da conjuntura.

O primeiro é um crescente incômodo popular com o universo paralelo brasiliense, em que os atores se movimentam como se não devessem explicações a ninguém e como se não houvesse amanhã. Isso vai reavivando as brasas da antipolítica, que um dia já se chamou “nova política”, mas vai se convertendo em rejeição da política em geral, dado que esta parece estar, de ponta a ponta, 100% abduzida pelo establishment.

Esse vetor acaba potencializando outro, o maximalismo de uma base social de direita, que se parece em algum grau com a esquerda lá atrás, quando esta imaginava ter um bilhete sem escalas ao ponto final de seu projeto. As agruras da vida domesticaram a esquerda, que aprendeu a suportar as paradas, mesmo rangendo os dentes, mas sempre de olho no destino sonhado.

A massa de direita ainda vive num estágio espiritual anterior.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

As emendas da discórdia

O que a disputa em torno das emendas parlamentares, agudizada esta semana, não é? Não é uma pendenga 1) entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal; ou 2) entre a irracionalidade e a racionalidade nas decisões de investimento com recursos do Orçamento; ou 3) entre a pulverização improdutiva e o direcionamento estratégico dos investimentos; ou 4) entre o enfraquecimento e o fortalecimento da capacidade de investir do governo.

O que ela é, então? Basicamente, uma batalha da guerra entre o Executivo e o Legislativo em torno de apenas um objetivo: reduzir ou aumentar a independência dos parlamentares diante do presidente da República. O que toma maior importância quando a eleição produz, como agora, o claro desalinhamento de orientações político-ideológicas entre o chefe do Palácio do Planalto e as maiorias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Se o Brasil, o governo ou o STF estivessem mesmo preocupados com o engessamento orçamentário e a pouca racionalidade na destinação dos recursos públicos, notar-se-ia um movimento para reduzir as vinculações orçamentárias. Até porque as emendas parlamentares são uma fração menor do gasto público, apesar de se terem tornado parte cada vez mais significativa do que se pode investir discricionariamente.

O problema é outro: dado que o sistema eleitoral brasileiro está organizado para impedir o presidente eleito de levar com ele a Brasília uma maioria parlamentar própria, restam ao vencedor três mecanismos principais para disciplinar o Legislativo: 1) a Justiça/polícia; 2) a distribuição de cargos; e 3) as emendas parlamentares. O primeiro ativo serve para coerção, e, como ninguém governa só com base nisso, os outros dois ajudam a construir algum consenso.

Seria porém complicado demais para qualquer governante lotear o grosso dos cargos entre seus adversários político-ideológicos, até pelo risco de eles o engolirem lá na frente. Resta, como arma disponível mais eficaz, a distribuição de dinheiro às bases dos parlamentares. Em resumo, se você vota comigo, você tem mais recursos para distribuir aos seus prefeitos. Se preferir fazer oposição, infelizmente terei de prestigiar seus adversários na base eleitoral.

Só que o fio dessa espada do Planalto anda cada vez mais cego, pelo avanço dos mecanismos impositivos no pagamento das emendas parlamentares. Traduzindo, uma parcela cada vez mais expressiva das emendas é de execução obrigatória. Aí o parlamentar eleito em oposição a Luiz Inácio Lula da Silva fica mais livre para não acompanhar o governo nas votações. E corre menos risco de desgaste na base e de ver surgir concorrência à direita quando tentar se reeleger.

E um detalhe curioso: dependendo do governo de turno, o leitor poderá observar interessantes pendulações na opinião pública. Os que num dia criticam o uso das emendas parlamentares por “comprar” deputados e senadores no outro criticam o Congresso Nacional por ampliar a execução obrigatória, e assim “retirar do presidente da República a capacidade de governar”. E vice-versa.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

“Cleaners” de Tarantino no teatro da política

Para candidatos a posar de mediador, o enrosco venezuelano apresenta alto grau de dificuldade no momento, pois a barreira entre as posições ainda é intransponível. A divergência central é sobre quem fica no poder. De um lado, a oposição tem até agora todos os elementos para informar que venceu na urna por larga margem. Do outro, o governo mantém o controle da autoridade eleitoral e, aparentemente, da força armada.

O objetivo de organizar uma transição pacífica em Caracas não é, por enquanto, uma meta intermediária entre os desejos das partes. O governo declara-se vencedor e busca musculatura militar para impor os números anunciados por sua fiel entidade eleitoral. Há também o complicador de a situação atual já ter sido fruto de uma negociação, e seu desfecho pouco ou nada acrescenta à credibilidade de uma nova rodada de entendimento.

Enquanto isso, segue o pingue-pongue sobre legitimidades. Chama atenção o argumento de respeitar a soberania da Venezuela, os países reconhecerem o governo de fato sem se imiscuir nos assuntos internos dali. Seria um argumento, não fosse pelo detalhe incômodo de ter sido ignorado lá atrás quando um dia o então governo petista usou contra o Paraguai a mesma lógica dos hoje adversários do petismo no imbroglio venezuelano.

Em 2012, o presidente paraguaio, Fernando Lugo, alinhado à esquerda, sofreu um impeachment-relâmpago heterodoxo, ainda que sustentado na letra da Constituição. A oposição aqui ao então governo petista exigiu respeitar a soberania do vizinho, mas a administração Dilma Rousseff enxergou a janela de oportunidade para incorporar a Venezuela ao Mercosul, o que vinha sendo bloqueado pelo Congresso em Assunção, de viés conservador. 

A soberania paraguaia foi deixada de lado pelo Mercosul, o Paraguai foi suspenso e os demais introduziram Caracas no bloco, num “gol de mão". Depois os paraguaios voltaram ao grupo, mas o objetivo já fora atingido. 

Os ovos já tinham virado omelete.

Aí chegou o ano da graça de 2016, e um momentâneo consenso subcontinental de governos à direita suspendeu a Venezuela, situação que persiste.

Fica a lição sobre a ingenuidade de levar excessivamente a sério as argumentações baseadas em doutrinas e princípios. Nas relações entre países, e em outras esferas da política, o argumento que costuma prevalecer é a força. Resta aos ideólogos e propagandistas tentar copiar o inesquecível Winston Wolfe, “The Cleaner” (limpador, ou faxineiro) no Pulp Fiction (1994) de Quentin Tarantino.

Harvey Keitel interpreta o sujeito que chega para limpar e dar sumiço na sujeira sanguinolenta produto de um homicídio cometido dentro de um carro. A frieza, objetividade e competência do “The Wolf” entraram para a história do cinema.

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Por falar em teatro na política, e só para retomar um assunto inconcluso, segue o mistério. Luiz Inácio Lula da Silva e o PT descem a ripa em Roberto Campos Neto, mas os diretores do Banco Central nomeados pelo atual governo, incluído o suposto favorito para assumir a presidência do BC, votam alinhados com o presidente do banco.