sábado, 17 de agosto de 2019

Só o príncipe pode criar a tempestade perfeita para ele mesmo

Era previsível que as principais turbulências políticas em 2019 viessem dos movimentos do Executivo para retomar o poder moderador, presente no Brasil desde que D. Pedro I deu seu golpe contra a Constituinte de 1823 mas esvaziado no período recente. Escrevi sobre o assunto há exatamente dois anos, em “A calmaria de hoje e a tempestade que vem…". Um motivo estrutural: vacinados pela experiência com a ditadura, os constituintes de 1988 fizeram de tudo para esvaziar o Executivo. Ainda que tenham cedido em aspectos pontuais, por exemplo quando mantiveram o decreto-lei sob o nome de medida provisória.

Assim, a atual Constituição trouxe as bases objetivas para órgãos de Estado dotados de poder de investigação e polícia passarem a operar sem estar subordinados ao governo civil eleito na urna. Mas condições objetivas não bastam para desencadear turbulências políticas, as subjetivas são indispensáveis. E elas amadureceram nos últimos anos, com o enfraquecimento extremo dos ocupantes do Palácio do Planalto. E com o apoio da opinião publica a toda violação de normas legais, desde que para alcançar alvos políticos por meio do combate à corrupção.

A Brasília que Jair Bolsonaro assumiu em janeiro não era uma terra arada à espera da semeadura bolsonarista. É um território ocupado por núcleos de poder anabolizados, musculosos depois de intensa malhação. Afinal, derrubaram uma presidente, prenderam e tornaram inelegível um outro e transformaram o último em pato manco. Em meio aos embates com a Constituinte, o então presidente José Sarney previu que, por múltiplas razões, a nova Constituição tornaria o Brasil ingovernável. O eleito em outubro de 2018 apenas constatou o previsto três décadas antes.

É razoável opor a esse meu raciocínio a objeção de os três últimos presidentes terem sido alvejados por cometerem erros -ou crimes. Mas é razoável também eu objetar que outros praticaram erros e crimes parecidos, sem consequências parecidas. Argumenta-se ainda que a sociedade reduziu a tolerância a malfeitos. Isso fica em xeque quando se nota a elevada complacência de cada segmento social e político específico diante de malfeitos praticados pelos seus líderes e personagens prediletos. A frase “não tenho bandido de estimação” anda órfã, coitada.

Este último aspecto, aliás, faz a política brasileira ficar cada vez mais com cara de faroeste, onde a única lei em vigor é a “quem pode mais chora menos”. E é razoável que nesse bangue-bangue o presidente da República esteja ocupado em se proteger das balas, e em ter o revólver sempre carregado para atirar, metaforicamente falando, óbvio. Vale para Bolsonaro, e valeria para Fernando Haddad ou outro eleito. Atenção: isso independe de você curtir ou não o Bolsonaro, o PT, o Lula, o Sergio Moro, o Deltan Dallagnol ou o The Intercept.

Então todo chefe de governo é um ditador? Não necessariamente, desde que o sistema formal de freios e contrapesos esteja lastreado em normas suficientemente rígidas. Agora nos Estados Unidos, por exemplo, não houve como a investigação sobre o suposto conluio dos russos com Donald Trump na eleição de 2016 acusar o presidente de qualquer coisa. Ali eles ainda não chegaram no nosso patamar, onde procuradores e juízes fazem o que lhes dá na telha desde que o fim justifique o meio. Inclusive com saborosos prêmios pecuniários.

Claro que a política não pode se orientar pela coerência. É humano os defensores da criminalização da homofobia exultarem quando o STF se mete a constituinte, e revoltarem-se quando os ministros se põem a legislar contra as pressões do setor mais à esquerda na sociedade. A mesma coisa vale para o outro lado. Tirar o Coaf do ministério da Justiça antes era inaceitável. Quando o Congresso fez isso teve passeata de protesto. Agora aplaudem que o Coaf vá para o BC. Afinal, é preciso evitar a politização e o uso com objetivos políticos.

É lógico que o presidente da República manobre para controlar ou neutralizar as instituições de Estado que podem vir a trabalhar para manietar ou eventualmente até derrubar o governo. Ainda mais numa conjuntura econômica complicada, quando ameaçam virar fumaça as promessas de um crescimento econômico menos medíocre. E note-se que Bolsonaro costuma reclamar do Congresso, mas nunca bate de frente com ele. Se fizer isso na Lei de Abuso de Autoridade será uma surpresa. Afinal, só quem pode criar a tempestade perfeita para o príncipe é ele mesmo.

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