quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Chegou a hora do pensamento mágico

É ilusão achar que as eleições trarão paz política
Desejos não produzem necessariamente realidades


Esta hora ia mesmo chegar. Em meio ao emaranhado da confusão política, começam a aparecer não só apelos à conciliação, mas até previsões de que 2019 tem mesmo chance de inaugurar um novo período de concórdia nacional, de união nacional, deixando para trás os tristes tempos de divisão e desentendimento. Atenção: não coloquei as aspas relativizantes, mas o leitor notará que estou apenas estruturando uma narrativa alheia.

E quanto mais aumenta a confusão, mais fértil fica o terreno para vicejar uma certa modalidade de pensamento mágico. Adotem-se ou preservem-se determinados ritos e isso fará alcançar a meta desejada. Proceda-se à eleição, e o rito mandará ao arquivo morto a divisão e a discórdia que infelicitam o corpo e a alma nacionais. Restará então retribuir a graça alcançada, ajudando-se o novo governo a cumprir sua missão de buscar o bem comum.

Simplesmente não vai acontecer. Também porque “bem comum”, como “reforma política", “reforma tributária” e outras generalidades e platitudes, quer dizer ao mesmo tempo tudo e nada. Para uns, o bem comum está expresso na projeção futura de um passado no qual o governo Lula trouxe prosperidade. Para outros, o bem comum será mais facilmente alcançável enquanto Lula estiver preso e inelegível, exatamente para evitar a volta a esse passado.

Mas a prisão e a inelegibilidade de Lula são apenas a ponta do iceberg da discórdia nacional, que divide o país em campos dificilmente conciliáveis, e hoje inconciliáveis. A raiz do problema é mais profunda. A base da estabilidade política na democracia é a percepção consensual, ou amplamente majoritária, de que as regras para chegar ao poder são razoáveis e equilibradas. E acessíveis a todos. Não necessariamente precisa ser verdade. Importante é a percepção.

Estamos muito longe disso, e acho que não é necessário elaborar. Estamos muito longe também de algum consenso sobre quem tem razão na economia. Provavelmente todos farão mais ou menos a mesma coisa se chegarem lá, mas quem perder cavará trincheiras contra o que será feito, mesmo que provavelmente fizesse o mesmo. Governos sempre têm força, mas desta vez, como em 2015, teremos também uma oposição muito forte.

Aqui e ali ouve-se o lamento neosebastianista a recordar nossa Alcácer-Quibir, a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral em 1984. Achava-se que tinha sido uma vitória, mas conforme o tempo passa aumentam as dúvidas a respeito. É prudente esperar antes de avaliar os acontecimentos históricos, mas aquela celebrada transição que nos prometeu liberdade, democracia e prosperidade justa vai tendo seus fundamentos corroídos a cada dia.

Tancredo talvez seja mesmo nosso Dom Sebastião. Foi-se cedo demais, apesar da muita idade, e é cultuado menos pelo que fez e mais pelo que provavelmente teria feito. Entrou de um jeito bonito na História e será sempre evocado quando uma alma piedosa precisar de um exemplo de líder capaz de conciliar e unir gente e grupos distantes. Mas como não chegou a governar, o passivo da Nova República, cujos escombros são a paisagem da hora, ficou para José Sarney.

#FicaaDica.

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Publicado originalmente no www.poder360.com.br #FicaaDica.

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