quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A divisão entre herbívoros e carnívoros mudou de lado

Tempos atrás havia um debate sobre hábitos alimentares da esquerda latino-americana. Tinha a carnívora, liderada pelo venezuelano Hugo Chávez e inspirada em Fidel Castro. E tinha a herbívora, comandada por Luiz Inácio Lula da Silva e mais ideologicamente alinhada com o socialismo europeu ocidental. A separar as duas, o grau de aceitação do capitalismo e da democracia que os clássicos do marxismo chamavam de "burguesa".

Depois que, pelo menos no Brasil, a preferência por uma alimentação puramente vegetal foi insuficiente para evitar o cerco e a tentativa de aniquilamento, a distinção perdeu muito da utilidade prática. Quem ainda tiver dúvidas, faça a experiência: compareça a um encontro qualquer do PT para defender que o PSDB continua, como na origem, uma força política de centro-esquerda. Disponível portanto para alianças progressistas.

Se a classificação pelo tipo de dieta vai perdendo substância na esquerda, ela reaparece agora com esplendor do outro lado, neste prefácio de sucessão presidencial. As engrenagens de modelagem ideológica vão construindo a tese de haver uma direita carnívora, bem retratada por Jair Bolsonaro, em oposição a uma herbívora. Diante da clássica dificuldade de a direita pátria assumir-se como tal, ela sobe ao palco da política com a novíssima narrativa do “centro”.

O que seria esse centro? Talvez uma política econômica de direita com concessões à esquerda nos campos comportamental e ambiental. A combinação da “racionalidade" econômica com a luta "contra todo tipo de preconceito” e “em defesa do meio ambiente". Essa construção avança na disputa pela hegemonia, facilitada desde que a esquerda, pragmaticamente, trocou a velha luta de classes por disputas em que o capitalismo, até o mais voraz, pode adotar o "lado do bem” a um custo baixíssimo (1).

As consequências são nítidas no debate e no noticiário, políticos e econômicos. O nacionalismo era marca registrada da esquerda, mas foi quase abandonado, depois de ter sido carimbado pela direita como sintoma de “atraso”, por recusar a inevitável marcha da história. O curioso é que acreditar em uma “inevitável marcha da história” era até outro dia ridicularizado como sintoma de fossilização intelectual... da esquerda! Quem se beneficia desse abandono da questão nacional? A direita nacionalista, claro.

A esquerda vem sendo tangida para o cercadinho da luta por uma globalização mais humana, mais justa e mais ambientalmente responsável. Longe vão os dias em que o “outro mundo possível” saía no braço nas reuniões do G-8, contra o Fundo Monetário Internacional, contra o Banco Mundial e outros menos votados. Agora estão todos de mãos dadas, sempre diligentes para cuidar que a exploração do homem pelo homem aconteça de um jeito “sustentável”.

Os ideólogos teriam mais trabalho para vender a miragem centrista se nossa esquerda estivesse atenta a temas como: o altíssimo spread bancário (um recorde mundial), os juros escorchantes, a concentração da terra, a necessidade de uma reforma urbana. Qual foi a última vez em que você viu uma liderança expressiva da esquerda hegemônica falando dessas coisas?

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(1) O melhor que li disso, quando já matutava sobre o tema, foi “From Progressive Neoliberalism to Trump - and Beyond”, de acadêmica Nancy Fraser (New School for Social Research, de Nova York). Vale a leitura. O link -> https://americanaffairsjournal.org/2017/11/progressive-neoliberalism-trump-beyond/.

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Publicado originalmente no poder.com.br

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