quarta-feira, 10 de março de 2021

Fica uma dica

A Folha faz cem anos e vem trazendo um extenso, e às vezes intenso, material comemorativo. Não poderia faltar a merecida referência aos dois personagens-chave na ascensão deste jornal à liderança na passagem dos anos 80 para os 90 do século passado: Octavio Frias de Oliveira e Otavio Frias Filho. Às vezes, as atuais homenagens desenham retratos menos contraditórios de ambos do que foram de fato. Mas alguma redução é mesmo esperada em situações assim.

Ainda que as contradições de cada um deles tenham sido essenciais para permitir o sucesso da obra empresarial e editorial agora comemorada.

Por falar em contradições, uma de agora tem me incomodado especialmente, pois tive a sorte de trabalhar no jornal durante os anos mais agudos do período. Ali acentuou-se o esforço editorial, nascido na década anterior, de a Folha praticar certo grau de pluralismo. Junto com a crítica, o apartidarismo e a independência, o pluralismo compunha a estrutura que mantinha íntegra e nítida a imagem que o jornal fazia de si mesmo.

O pilar fundamental da sua autoestima. Ainda que a realidade nem sempre estivesse exatamente refletida nessa imagem. Coisa também normal.

Onde está a contradição? Num jornal que cresceu e venceu definindo-se, antes de tudo, pluralista, e agora comemora um século, a crescente invasão de vozes a exigir que sejam suprimidas outras vozes, as que cada autonomeado portador da “verdade” considera estarem fora do espectro das “ideias aceitáveis” no debate público. E essa invasão não escolhe lado. Tem de tudo, de gente que se enxerga “à esquerda” até supostos liberais.

Colocar limites em qualquer debate é sempre saudável, em tese. O problema começa quando se precisa definir quem vai dizer qual é o limite. Ele costuma ser flexível, conforme a época e a hegemonia de um ou outro pensamento. É um processo dinâmico, uma luta permanente de contrários. No caso atual, é só ingenuidade imaginar que vai ser fácil achar o equilíbrio entre o pluralismo e, vamos dizer assim, a civilização.

Até porque o próprio conceito de “civilização” está em permanente disputa.

A busca de tal equilíbrio exige bem mais arte que ciência, esta palavra tão banalizada nos nossos dias de pandemia. Como fugir do relativismo sem cair na armadilha do pensamento único? Bem, em primeiro lugar é preciso saber se a pessoa quer mesmo evitar essas duas coisas. Ou se, no frigir dos ovos, está apenas interessada em estabelecer-se como ditador das ideias dos outros a pretexto de defender “a verdade”.

Há certamente profissionais no jornal encarregados de administrar essa tensão no dia a dia, faz parte do seu "job description". Desejo-lhes boa sorte. É uma maneira prática de homenagear o "Seu Frias" e o "OFF".

Para os candidatos a pequeno censor da expressão alheia, arrisco aqui um palpite. Se abriram um espaço no jornal para você dar sua opinião, concentre-se nisso. A alternativa é arriscada. O ofício de censor é perigoso além da conta. No mais das vezes, quem está atrás de censurar os demais acaba ele próprio vitimado quando, por alguma razão, o vento muda.

Fica a dica.

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Alon Feuerwerker é jornalista, analista político na FSB Comunicação e foi secretário de Redação da Folha

Publicado na Folha de S.Paulo de 10/03/2021

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