segunda-feira, 19 de março de 2018

Caso Marielle: Em eleições, o primeiro elemento decisivo é a capacidade de reunir a própria tropa.

A precondição de competitividade nas eleições, como em qualquer tipo de batalha, é o exército. Se não tiver outro jeito, recrutem-se mercenários. Mas isso não é o preferível. A tropa luta melhor quando pode exibir uma causa, quando está munida da -olha aí a palavra da moda- narrativa. Ainda que o objetivo último seja o butim, causas trazem o indispensável glamour.

Uma coisa é dizer que se apoia tal candidato porque ele vai arrumar um emprego, ou uma casa, ou uma cirurgia, ou um empréstimo camarada no BNDES. Outra coisa é dizer que o Brasil precisa ser salvo do PT, ou de Bolsonaro, ou dos populistas, ou dos fascistas, ou dos bolivarianos, ou dos racistas, ou dos gastadores, ou dos neoliberais. Essa lista é infinita.

Narrativa eleitoral precisa ter 1) fácil compreensão e 2) aderência à realidade, ser verossímil. O argumento que o militante vai desenvolver na mesa do bar a favor do candidato tem de ser simples de manejar e encaixar no conjunto de fatos. Vale aqui a velha máxima do debate: tudo o que precisa ser muito explicado não é bom.

Quando um acontecimento encaixa na narrativa, ele tem a capacidade de potencializar a rearrumação das forças. Algumas vezes decisivamente. A morte de João Pessoa ajudou a deflagrar a insurreição de 1930. Quando se conheceram melhor os detalhes do assassinato, a revolução política que levou Getúlio Vargas ao poder já era um fato.

O fuzilamento de Marielle Franco trouxe à narrativa da esquerda um ingrediente poderoso de verossimilhança, e isso terá efeito. A ideia de que Dilma Rousseff foi removida do poder fraudulentamente, por forças cujo objetivo é aprofundar as desigualdades e injustiças que marcam a sociedade brasileira, ganhou um ponto de agregação visível e facilmente compreensível.

Enquanto Marielle estava viva, a batalha das narrativas vinha algo equilibrada. Segundo a direita, o impeachment de Dilma foi constitucional e tirou do Planalto um governo que afundou a economia e quebrou a Petrobras. E as reformas agora estão ajudando a recuperar os empregos, e precisam continuar com o novo presidente a partir de 1o. de janeiro de 2019.

Já para a esquerda, foi um golpe antinacional e antipopular, que instalou ilegalmente um governo programado para entregar nossas riquezas ao imperialismo e reverter a ascensão social dos pobres. E a intervenção federal na segurança do Rio é uma face desse componente demofóbico, bem exibido na ideia de que mais repressão é a melhor receita contra o crime.

Enquanto o jogo de narrativas estava parelho, vinha também equilibrada a coesão ideológica de ambos os campos. A morte de Marielle mudou essa conta. A direita não bolsonarista agora procura mais distância do líder nas pesquisas sem Lula. E a brutalidade do assassinato da vereadora deu cores vivas à explicação de mundo que vem dos porta-vozes da esquerda.

Hoje está mais fácil a esquerda ser ouvida com atenção na mesa do boteco. Isso não é pouco. Se, ou quando, Lula for preso, um partidário terá mais plateia para explicar que ele não está condenado por causa da corrupção, pois todos os acusados de partidos da direita estão soltos, mas por ter governado para os pobres. "Viu o que aconteceu com a Marielle?”

É mais provável que as eleições presidenciais sejam decididas no segundo turno. Dois fatores serão fundamentais, e estão interligados: 1) a capacidade de levar seu eleitor para votar e 2) a capacidade de construir uma narrativa eficaz para demonizar o outro lado. A centralidade do tema da corrupção facilitava a vida da direita. Agora a coisa se complicou.

Inclusive pelas circunstâncias do jornalismo. Abrir espaço para causas de minorias ou maiorias socialmente massacradas tem sido válvula de escape para neutralizar acusações de reacionarismo. Isso acabou reforçando um jornalismo de causas e narrativas, marcado pelo efeito-manada. Mas quando a onda vira, quem até ontem ria passa a não achar tanta graça assim.

Então o jogo está jogado? Não. Melhor é ter cautela. Uma característica do efeito-manada, como naqueles filmes de faroeste com búfalos, é que a correria pode inesperadamente mudar a direção. E fazer vítimas entre quem desencadeou a coisa. O equilíbrio político no Brasil é instável. E as eleições ainda estão longe. Mas que a esquerda ganhou um fôlego, isso é inegável.

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