Qualquer um que erre pouco e portanto colha sucessos em série corre o risco crescente de alguma hora cometer um erro muito grave. Costuma ser um subproduto da autossuficiência. Será o caso de Jair Bolsonaro se continuar colocando dificuldades no caminho da produção e distribuição por aqui em massa de alguma vacina eficaz contra o SARS-CoV-2.
Imagine o leitor ou leitora uma situação em que a vacinação já
tenha começado em diversos lugares do planeta, mas esteja parada aqui devido a
questiúnculas políticas.
Um que errava pouco e quando errou decidiu caprichar foi
Donald Trump. Só olhar as pesquisas de março para cá. Se Joe Biden ganhar na
terça-feira, a maior parte da conta irá para o comportamento errático e
politicamente primário do incumbente. Que deixou de bandeja para o adversário a
defesa da saúde e do bem-estar coletivos.
Trump, a exemplo de Bolsonaro, apostou no ponto futuro.
Alguma hora as pessoas passariam a ter mais medo da ruína que do vírus. Não
deixa de fazer sentido. Onde estava o risco maior para Trump? No meio do
caminho tinha uma eleição, e era prudente saber como estaria a pandemia na hora
de os eleitores saírem para a urna.
Bolsonaro leva algumas vantagens sobre o colega. Duas são as
principais. Não enfrenta uma oposição unificada e o mandato dele só estará em
jogo daqui a dois anos. Por enquanto, o preço que paga pela imagem de certo
desdém diante da vida humana não compromete decisivamente sua musculatura
político-eleitoral.
E é altamente provável que em 2022 a Covid-19 já esteja bem
mais controlada.
Acontece que, ao contrário de Trump, o presidente brasileiro
não tem uma base parlamentar sólida e coesa. Foi o que salvou o norte-americano
no impeachment. O risco para Bolsonaro se mergulhar na impopularidade é bem
maior. Os animais selvagens no ecossistema de Brasília têm um faro
especialmente aguçado para sentir o cheio de patos mancos.
Todas as pesquisas mostram que quando existir uma vacina a
esmagadora maioria da população vai querer se vacinar. Há aqui e ali
preferências sobre a nacionalidade do imunizante, mas na hora do vamos ver o
cidadão e a cidadã comuns não ficarão indiferentes a um passaporte para a volta
à normalidade no transporte, na escola, no trabalho, no lazer.
Bolsonaro tem mostrado desconforto sobre a possibilidade de
a guerra da vacina acabar judicializada. Se raciocinar bem, talvez seja uma
solução para o presidente. Ele fica por aí adulando o núcleo mais duro da sua
base, enquanto outros resolvem o problema prático que se não for resolvido irá
causar grave dor de cabeça ao ocupante do Planalto.
Aconteceu assim com o auxílio emergencial. E, por falar
nele, Bolsonaro já tem bons desafios para abrir 2021. O fim do auxílio. A
necessidade declarada de cumprir draconianamente o teto de gastos. A sucessão
nas presidências do Congresso. O rescaldo de um resultado (até agora) não
brilhante da eleição municipal. A possível derrota de Trump.
Uma crise com a vacina da Covid-19 será um tempero e tanto
para essa salada já indigesta.
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Publicado originalmente na revista Veja número 2711, de 04 de novembro de 2020
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