segunda-feira, 21 de maio de 2018

As muitas mortes de Osvaldo Aranha

O brasileiro que comandava a ONU em 1947 morre de novo a cada vez que um representante brasileiro vota ali contra Israel

A Praça Vermelha em Moscou ainda tem o mausoléu com o corpo embalsamado de Lenin, o líder da revolução bolchevique. Fora do edifício tudo mudou. O socialismo e a União Soviética acabaram. A Rússia aposentou a foice e o martelo e reabilitou os símbolos do império. O Tratado de Varsóvia é história e a OTAN chega cada vez mais perto de Moscou. A antiga superpotência foi rebaixada a “país emergente” e ocupa modestamente uma cadeira nos Brics.

Mas o Lenin mumificado continua lá no mausoléu, ainda que de vez em quando alguém proponha enterrar o cadáver do revolucionário morto em 1924. A idéia costuma ser rapidamente abandonada, pelo temor da confusão política que a remoção e o sepultamento provocariam. A União Soviética e o socialismo estão em fase de reabilitação na alma russa, até por evocarem um período de glória nacional. Os russos, como se sabe, são muito sensíveis a essas coisas.

Osvaldo Aranha morreu de ataque cardíaco em 1960 após uma vida dedicada à turbulenta política brasileira do período. No ápice da sua projeção internacional comandou a Assembleia Geral da ONU que em novembro de 1947 aprovou a partilha entre dois países, um judeu e um árabe, das terras que vão do Jordão ao Mediterrâneo. Aranha presidiu a sessão e apoiou a resolução. Não se deve subestimar o papel dele, nem superestimar. Ele teve importância.

Assim como Lenin na Moscou pós-URSS, aqui no Brasil exibe-se a memória embalsamada de Aranha quando é conveniente evocar o passado glorioso. No nosso caso, a benigna participação brasileira na votação que ofereceu a base legal para a declaração de independência de Israel. A ONU não criou Israel, o país teria sido fundado de toda maneira, mas a existência de um fundamento jurídico vem tendo peso no reconhecimento internacional do estado judeu, apesar da maciça rejeição árabe e muçulmana.

A favor do Brasil, pode-se argumentar que aqui, ao menos, a memória persiste, mesmo que reduzida a um ritual. Na URSS dos últimos anos de Stalin, com a tardia inclinação dele pelo antissemitismo, e depois da sua morte, o poder procurou insistentemente esconder que 1) os soviéticos votaram a favor da partilha da Palestina, 2) foram os primeiros a reconhecer Israel de jure e 3) armaram o estado judeu para travar e vencer a Guerra de Independência contra os árabes em 1948-49 (1).

A guinada antissionista da União Soviética veio quando os movimentos antimonárquicos e anticoloniais tragaram o mundo árabe e islâmico nos anos 50 do século passado. Na teoria, convinha mais à URSS apoiá-los e ligar-se a eles do que manter boas relações com Israel. O prêmio de ocupar o lugar dos britânicos como potência hegemônica na região era tentador demais. E até os anos 80 o investimento parecia ter retornado com sobras.

No Brasil, numa lógica algo paralela, a virada veio pelas mãos do regime militar, quando cristalizou-se a visão do destino do Brasil-potência vocacionado a disputar espaços com os Estados Unidos. Essa linha percorre todos os governos desde então. Com o estímulo decisivo dos dois choques do petróleo, o filo-arabismo e o filo-islamismo antissionistas consolidaram-se como nossa política de estado. E resistem bravamente a toda alternância de governo.

Resistem inclusive a toda mudança na geopolítica do Oriente Médio. O pan-arabismo deu lugar a uma disputa feroz entre os eixos sunita e xiita. A chamada “Primavera Árabe” atestou que o conflito entre Israel e os palestinos não é o único e nem de longe o principal ali. Mas o Brasil continua aprisionado em seus próprios preconceitos e ortodoxias. Para abusar da metáfora, a política externa brasileira para o Oriente Médio é outra que foi embalsamada.

A segunda das muitas mortes daquele Oswaldo Aranha de 1947 veio quando o Brasil de Ernesto Geisel apoiou em 1975 nas Nações Unidas a resolução que colou no sionismo o rótulo de "racista". Não faz sentido o não-racista apoiar a existência de um estado de maioria judaica e ao mesmo tempo dizer que a tese da libertação nacional dos judeus é uma doutrina racista. A coisa simplesmente não fica em pé. Ainda que política e coerência não costumem andar juntas.

Anos depois a ONU revogou a infâmia, mas a mancha ficou. Até porque a lógica daquele ato persiste até hoje. Algum país árabe ou islâmico apresenta uma proposta qualquer contra Israel e lá corre o Brasil a apoiar. É uma área da política externa brasileira que anda no piloto automático. Um exemplo é o endosso aos textos na Unesco negando, na essência, direitos de Israel à soberania sobre Jerusalém e demais lugares sagrados para os judeus na Terra Santa.

Aqui vale uma constatação. O antissemitismo tradicional diz que os judeus merecem ser castigados porque mataram Jesus Cristo. O fato de Roma ser a potência dominante na Judeia na época não sensibiliza os antissemitas clássicos, mas a acusação tem ao menos o mérito macabro de embutir uma constatação: admite que os judeus estavam ali dois mil anos atrás, antes portanto de Muhammad e da religião que ele criou, o Islã. Isso deveria ser irrefutável.

Não é irrefutável para o antissemitismo contemporâneo, que disfarçado de antissionismo nega qualquer vínculo nacional, histórico, religioso ou espiritual dos judeus com a Terra Santa, Hebron, Belém, e, principalmente, Jerusalém. Essa “interpretação” seria apenas uma aberração, não fosse pela ainda mais aberrante insistência da Unesco de “apagar” a presença judaica na Terra Prometida. E com o igualmente insistente voto favorável do Brasil.

O humor judaico é conhecido pelos traços cáusticos e por fazer graça das situações mais terríveis. Está bem retratado por Roberto Benini em La Vita è Bella, o premiado filme sobre pai e filho judeus italianos num campo de extermínio alemão. Talvez fosse o caso então de pedir aos novos antissemitas: “por favor, acusem-nos de termos matado Cristo; ele morreu em Jerusalém, então pelo menos assim vocês admitem que há dois mil anos nós já estávamos lá”.

Oswaldo Aranha despede-se de novo deste mundo sempre que o representante brasileiro vota na ONU em assuntos relacionados ao estado judeu. A morte mais recente foi quando o Brasil ajudou a condenar a decisão dos EUA de reconhecer Jerusalém como capital de Israel. Possuída por um antissionismo fanático, nossa política externa não notou que o voto agredia os fundamentos dela própria, e também as sistemáticas manifestações brasileiras sobre o conflito.

Na teoria, o Brasil defende o princípio da não-ingerência. E o que exatamente temos a ver com onde os Estados Unidos colocam sua embaixada em Israel? Se o Brasil seguisse neste caso sua própria doutrina, deveria considerar o assunto relativo apenas àqueles dois países. E votar contra a condenação. Como votaria nas situações similares, desde que não envolvessem Israel. Quando o estado judeu entra em pauta, nossos governos mandam às favas todos os alardeados princípios.

O contra-argumento a esse argumento é óbvio. O Brasil não reconhece Jerusalém como a capital de Israel porque se trata de região em litígio. E aí entra o aspecto mais pernicioso da atitude brasileira. Pois se há uma posição consolidada entre nós a respeito das eventuais fronteiras entre Israel e um possível estado palestino, ela defende respeitar a linha de armistício que vigorou entre 1949 e a Guerra dos Seis Dias, de junho de 1967.

Se o Brasil exigisse a implementação da resolução de 1947 defenderia a volta às fronteiras da partilha e a manutenção do status internacional de Jerusalém. Os mapas provam que só lunáticos veem viabilidade nisso. O racional é propor as fronteiras vigentes entre 1949 e 1967. Mas as escolhas têm consequências: durante a Guerra de Independência de 1948-49 Israel conquistou Jerusalém Ocidental, e até 1967 os muros da Cidade Velha eram parte da fronteira com a Jordânia.

Todas as instituições do governo e do estado israelenses ficam em Jerusalém Ocidental, dentro portanto dos limites reconhecidos pelo Brasil como de soberania israelense antes mesmo de 1967. Na Guerra dos Seis Dias Israel conquistou Jerusalém Oriental e a Cidade Velha, onde fica o Muro das Lamentações. Se o Brasil levasse a sério suas próprias declarações, deveria aceitar como legítima a total autoridade de Israel sobre o pedaço de Jerusalém que na prática vem sendo sua capital desde a Independência.

Ao recusar isso, a política externa brasileira envereda pelo curioso e talvez original “princípio da soberania relativa”: está de acordo que os israelenses exerçam a autodeterminação no território que o Brasil reconhece como sendo de Israel, mas desde que os palestinos também estejam de acordo. Dá poder de veto aos palestinos em decisões que deveriam ser soberanas do estado judeu. Ou seja, relativiza a posição brasileira de 1947.

Essa “autocrítica” de 1947 é uma marca registrada. Procurem-se as notas brasileiras de condenação quando líderes muçulmanos e árabes manifestam a intenção de riscar Israel do mapa e aniquilar os judeus dali. É muito difícil e raro ver algo pelo menos parecido com o repúdio que seria natural. Nas relações do Brasil com o Irã, por exemplo, esse é um não assunto. O Brasil exige que Israel aceite a Palestina, mas não exige que o Irã aceite Israel.

A regra tem sido o Brasil valorizar a relação com Israel nos aspectos em que o Brasil é beneficiado. E manter-se insensível ao interesse israelense em todas as outras situações, até nas mais delicadas. Enquanto isso, a memória de Osvaldo Aranha é evocada ritualmente sempre que é preciso cumprir o protocolo e as formalidades para mostrar que algo sobrevive daquele espírito que conduziu o voto brasileiro na ONU no já distante novembro de 1947.

Entretanto, assim como Lenin em seu mausoléu, as reverências e referências a Osvaldo Aranha são apenas o registro daquele mundo que não existe mais.

—————

(1) "Who Saved Israel in 1947?.” Artigo de Martin Kramer na revista eletrônica Mosaic Magazine. Link-> https://mosaicmagazine.com/essay/2017/11/who-saved-israel-in-1947/

==========

Publicado originalmente na edição de maio de 2018 dos Cadernos da Confederação Israelita do Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário