A revolta contra a corrupção tem servido de combustível para as macroalternâncias de poder no Brasil do último mais de meio século. Em 1964 a intervenção militar anunciava-se com o objetivo de eliminar a subversão e a corrupção. Em 1985 repudiou-se a corrupção ligada à falta de democracia. Agora rejeita-se a corrupção associada à reprodução da política.
Mas é preciso algum cuidado na análise porque a troca de guarda, que atingiu especialmente o lado direito do espectro político, não teve como característica alavancar personagens que fizeram da luta anticorrupção o vetor principal de sua trajetória recente. A onda de degolas e esmagamentos, ao contrário, pegou muitos nomes das hostes anticorrupção.
Um detalhe curioso deste segundo turno é o ainda pouco impacto que acusações e revelações de irregularidades têm tido sobre o desempenho de alguns candidatos-surpresa, lançados ao palco pelo tsunami bolsonarista do final do primeiro turno. Há algum desgaste aqui e ali, mas nada que, por enquanto, tenha produzido onda em sentido contrário.
2018 é diferente de 1964 na metodologia: em vez de um golpe, eleições. Mas na essência ambas as situações são antagônicas a 1985: busca-se a ordem imposta pela autoridade, em vez de enxergar no modorrento jogo político democrático a saída para os impasses da economia e da vida cotidiana. A Nova República colapsa não apenas nos atores, mas na ideia em si.
Daí que o tsunami tenha trazido à praia não principalmente uma leva de combatentes da corrupção, mas uma onda de personagens simbólicos e de currículo ligado à imposição de autoridade, inclusive com o uso da violência. O próprio Bolsonaro é o exemplo mais nítido: o que em eleições anteriores seria visto como defeito hoje é louvado, ou ao menos tolerado.
Ainda falta uma semana para o segundo turno, mas se não vier outra surpresa fechar-se-á o ciclo da alternância. Não com o PT, e aliás o governo nem é mais do PT, mas com o sistema (re)inaugurado em 1985, onze anos depois de a Aliança Renovadora Nacional, a governista Arena, ter sido esmagada na urna pelo oposicionista Movimento Democrático Brasileiro.
Aliás o então regime só sobreviveu mais uma década a 1974 por causa de mudanças legislativas impostas para evitar alternância no poder. O casuísmo mais exuberante foi o Pacote de Abril de 1977. De um certo ângulo, a derrota eleitoral de 1974 foi o início do fim do ciclo. E, a rigor, a eleição deste ano é a primeira grande onda contra aquela de quase meio século atrás.
Na aritmética a Câmara tem três dezenas de siglas e o Senado duas dezenas. Na política os agrupamentos que tranquilamente fariam parte de uma “Arena” conquistaram de longe maiorias nas duas casas. O que corresponderia ao velho MDB (não o de agora) foi absorvido pela “rearenização". E a oposição a essa maioria está circunscrita à esquerda.
Em 1974 o maremoto antigovernista foi provocado principalmente pela decepção com a economia. O milagre econômico passara, a inflação estava de volta. E a população, claro, castigou o governo. Mas o governo tinha recursos para não cair, e com o tempo o eleitorado acabou trocando o regime. Com as acusações de corrupção de sempre turbinando a coisa.
Agora, depois de uma recessão de tempos de guerra nos governos Dilma e Temer em 2015/16, o eleitor foi à urna pela mudança. Varreu o autodenominado centro, talvez a representação mais paradigmática da Nova República. E circunscreveu a esquerda a um cercadinho. Para a alternância “da ordem”, escolheu o produto que estava disponível. Uma Arena do século 21.
Qual é o problema? Os governos que a Arena apoiava tinham à disposição forças praticamente ilimitadas para impor seu diktat. Em 2019 a ordem eleita deverá ser imposta por meio dos mecanismos constitucionais democráticos da Constituição de 1988, a que já cansou. Um eventual novo governo de direita, que parece provável, estará circunscrito a isso.
Pelo menos num primeiro momento, ou até a coisa ameaçar atolar. Uma característica da alternância de agora é a emergência de múltiplos entes estatais empoderados pelas ações contra a corrupção. Já escrevi aqui que o próximo movimento do novo Executivo deverá ser a (re)imposição do seu Poder Moderador. Tem número no Congresso para isso. Mas não basta.
Reescrevendo o Garrincha, vai ter de combinar com alguns russos.
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