O poder militar depende também da força não propriamente armada. Precisa, antes de tudo, de algum consenso interno. Os pais devem estar convencidos da justeza de mandar os filhos arriscarem a vida. E precisa de justificativas morais. Pode ser levar a “civilização” para subjugar a “barbárie”, como foi o caso na expansão colonial. É um exemplo. Há muitos.
Todo país que guerreia procura fundamentar a ação em valores
morais, de preferência universais. Chamou a atenção no discurso inaugural do
presidente aritmeticamente eleito Joseph Biden ele lembrar que os Estados
Unidos devem liderar pela força do exemplo, não pelo exemplo da força. O
problema é que a primeira costuma precisar do segundo.
Enquanto o imbróglio jurídico-político agita os EUA, sobra nas
nossas paragens um tempinho para o Brasil ver como vai navegar nos novos ventos
da geopolítica global. E aqui aparece um ponto imediato, diretamente
relacionado ao esforço de reconstrução da “superioridade moral”
norte-americana, necessário para tentar retomar sua contestada hegemonia.
Biden tem assuntos difíceis para cuidar. O mais visível é a Covid-19.
O mais difícil é como impedir a China de continuar abrindo vantagem econômica e
tecnológica. O primeiro desafio uma vacina deve resolver, e a dúvida não é
“se”, mas “quando”. Já o segundo é bem mais complicado. E Donald Trump terminou
ajudando a complicar mais.
A guerra comercial trumpista contra os chineses acabou dando
a Beijing um argumento definitivo para buscar o que ainda não possui de
autossuficiência tecnológica e científica. E não esqueçamos que a China dispõe
de um mercado interno suficiente para resistir ao fechamento de mercados
externos. É um adversário cada vez mais duro de roer.
E tem também as guerras eternas, frias ou quentes, no
Oriente Médio. Um mérito de Trump, até o momento em que esta coluna estava
sendo escrita, foi não ter começado nenhuma. Haverá na sociedade americana
disposição para reenveredar por uma política à George W. Bush? Mesmo sem um
novo World Trade Center? Difícil.
Tudo muito complexo. Entretanto, há uma frente mais fácil,
na qual Biden enfrentará menos resistência para avançar. Depois que ele arrebatou
a decisiva Pensilvânia mesmo com os republicanos acusando-o de querer acabar
com os combustíveis fósseis, o caminho está aberto para centrar fogo na
política ambiental.
E neste ponto o Brasil arrisca deixar-se encaixotar no papel
de sparring. O quadro internacional para nós é ruim. E basta ver a crescente de
políticos locais, da esquerda à direita, oferecendo-se a Biden em troca de um
eventual apoio, ou simpatia, em 2022, para notar que agora o bolsonarismo
precisará travar a guerra em duas frentes. Sempre complicado.
Mas o Brasil tem trunfos. Se precisa dos Estados Unidos, estes
também precisam do Brasil. E se há uma disputa geopolítica global, os
não-protagonistas podem e devem usar a inteligência para equilibrar-se e buscar
ganhos. Já fizemos isso em outras épocas. Não precisamos inventar. Competição e
cooperação não são antagônicos. O Itamaraty tem o know-how. Só tirar do arquivo
morto e usar.
Publicado originalmente na revista Veja edição 2.713 de 18 de novembro de 2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário