Tem sido habitual exigir do interlocutor político que faça
autocrítica. Por falar nisso, o tema é sempre uma oportunidade de voltar ao livro
“Depoimento”, autobiografia de Carlos Lacerda. Ele explica por que tentara fazer a Frente Ampla com João Goulart e Juscelino Kubitschek,
adversários figadais dele poucos anos antes. Simples, diz, lá atrás o perigo
tinha sido um. Agora era outro.
O ex-governador da Guanabara talvez tenha sido propositalmente vago. Ou foi delicado no uso das palavras. Lá atrás o inimigo dele era um, Jango, e agora passara a ser outro, o regime militar. Alianças políticas são feitas por critérios de conveniência, e visando a derrotar o inimigo principal.
Mas sempre com um olho no peixe e outro no gato.
Daí a velha máxima: nunca esteja tão ligado a alguém que não
possa romper com ele, nem tão conflitado com alguém que não possa se aliar a
ele.
A exigência de que o outro faça autocrítica costuma carregar
a marca do amadorismo e da ingenuidade. Ou da esperteza. Vamos imaginar que
Luiz Inácio Lula da Silva e o PT aceitassem fazer autocrítica. Algo como
“erramos sim no governo, somos realmente culpados de muito do que nos acusam, mas
prometemos não errar mais”. A única consequência prática seria passarem a
campanha eleitoral não fazendo outra coisa além de tentar se explicar.
O mesmo se dá quando exigem de quem apoiou o impeachment de
Dilma Rousseff admitir a tese de ter sido um golpe. Até imagino o político “de
centro” reconhecendo: “foi mal, o impeachment não tinha base jurídica, erramos,
fomos gulosos, e se entrarmos agora de vice numa chapa prometemos não fazer isso de
novo”.
Na vida política, autocríticas são raras, a não ser quando o
objetivo é fazer a “autocrítica” dos erros dos outros. No mais, é melhor tocar
a vida e concentrar-se no objetivo. Agora, por exemplo, o candidato antiestablishment
de 2018, Jair Bolsonaro, tenta enlaçar a - ou ser enlaçado pela - velha
política, que oferece o escudo de proteção no momento mais perigoso do mandato
dele.
E pode proporcionar a barca para a dura travessia
reeleitoral do presidente.
A política é jogo de interesses, definido pela correlação de
forças. Lula e Bolsonaro disputam nos estados o apoio de políticos que até
outro dia falavam o diabo do PT e de quem o atual presidente e seu círculo
próximo falavam o diabo. E tem mais: os que entre esses políticos toparem outro
caminho, aderir ao centrismo, à chamada terceira via, terão garantido um refresco junto à opinião pública, ganharão de bônus uma bela repaginada na imagem.
Mas a opinião é livre e nada impede que vozes se levantem a exigir coerência, supostamente um valor absoluto.
Será? A coerência é muito perigosa na política. Pode conduzir a desastres. O líder que erra e, para ser coerente, se recusa a corrigir a rota está a caminho de levar os liderados à catástrofe. Não faltam exemplos, velhos e novos.
Bons líderes são os capazes de mudar a rota sem dizer que
estão mudando, e sem ter de explicar por que o hoje é diferente do ontem. Não é
para qualquer um.
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Publicado na revista Veja de 26 de maio de 2021, edição nº 2.739
Nunca se desculpe: seus inimigos não vão aceitar, e seus amigos não vão te perdoar. Justo.
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