segunda-feira, 23 de março de 2020

Para saber se o sujeito é mesmo ateu, certifique-se de que ele não apela a Deus nas horas extremas. E uma conta sobre a “imunidade de rebanho"

Dos grandes países afetados pela pandemia da Covid-19 o Brasil parece ser o mais atolado na guerra política. É um grave fator de risco no enfrentamento do problema. Outra variável fundamental é a rapidez da reação ou, ao contrário, o atraso para cair a ficha. Está matematicamente comprovado que tomar providências ontem em vez de hoje, ou anteontem em vez de ontem, produz efeitos benéficos para lá de significativos.

O atraso nas ações contra o novo coronavírus tem duas raízes principais: a subestimação do problema e o receio de ferir de morte a economia com medidas excessivamente drásticas. A primeira raiz mistura legítimas curvas de aprendizado e wishful thinkings. O pensamento mágico supõe a prevalência da vontade sobre a razão. É humano tender a acreditar nas explicações que minimizam os sacrifícios necessários e projetam o futuro menos doloroso.

Aliás esta é uma crise inanalisável, inclusive no aspecto político, sem alguma dissecção da natureza humana.

Nos últimos dias a ficha parece finalmente ter caído. As ruas das cidades brasileiras esvaziaram-se e o país entrou em forte desaceleração. Na falta de um sistema coerente e centralizado capaz de impor rapidamente a necessária disciplina social, tivemos de esperar pela decantação da consciência coletiva. E adianta pouco reclamar. Assim como as pessoas, países também têm suas naturezas, que precisam enfrentar situações extremas para finalmente mudar.

Uma pergunta ainda não respondida, talvez por não ser mesmo prioritária, é “como vai ser o Brasil quando a Covid-19 passar?”. Os otimistas dirão um país mais solidário, menos tolerante às desigualdades, mais exigente quanto ao padrão dos governantes e mais atento à qualidade dos serviços que o Estado precisa prover para atender às necessidades da sociedade que o financia.

Um aspecto em que talvez os otimistas estejam certos: a valorização do Sistema Único de Saúde parece ter enveredado por um caminho sem volta. Os governos, em primeiro lugar o federal, precisarão enfrentar para valer a equação do financiamento do SUS. Quando até um governo em que a área econômica é fortemente liberal apresenta, principalmente pelas palavras do ministro da Saúde, o SUS como nosso grande trunfo, fica claro que uma página foi virada.

Mesmo que os otimistas sejam lá na frente frustrados, sempre a maior probabilidade, outra coisa parece que veio para ficar: a reabilitação do papel do Estado. Na hora da dificuldade extrema, o setor privado aparece bem quando se coloca à disposição para ajudar, mas a sociedade volta-se mesmo, e unanimemente, para os governos. É aquela história: para saber se o sujeito é mesmo ateu, procure verificar se ele não apela a Deus nas horas extremas.

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O Reino Unido desistiu de deixar o pessoal se infectar para o coletivo adquirir a “imunidade de rebanho”. Mudou de ideia quando lhe contaram que morreriam pelo menos uns 250 mil súditos da rainha. Qual seria a conta a pagar aqui se essa opção fosse adotada?

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