quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A cor do gato

O governo do Distrito Federal de Ibaneis Rocha (MDB) entabula conversas com a embaixada russa para trazer a vacina Sputnik 5 e aplicar nos habitantes da capital do país (leia). 

E o governo de São Paulo de João Doria (PSDB) recorre ao Ministério da Saúde de Jair Bolsonaro (ex e talvez futuro PSL) para ter recursos e assim conseguir mais rapidamente aplicar a vacina chinesa Coronavac na população residente em seu estado (leia).

Parece que pelo menos neste assunto da vacina o pragmatismo e a objetividade têm boa chance de prevalecer entre nós. Lembrando sempre o ditado do então líder chinês Deng Xiaoping, de que não importa a cor do gato, desde que ele cace ratos.

No caso específico, não importa o partido do governante ou a bandeira, ou ideologia, da vacina, desde que ela esteja disponível e imunize as pessoas contra o SARS-CoV-2.

A obrigação de nossos governos, federal e estaduais, é aproveitar o fato de termos boas relações com todos os países empenhados na corrida da vacina e trazer para cá o produto que esteja à disposição. 

E um detalhe: deixando para lá as cotoveladas rumo a 2022.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A mão que afaga...

E o governo notou que ainda não descobriram como juntar numa única equação 1) o teto de gastos, 2) a manutenção de um auxílio emergencial, 3) os programas sociais, 4) uma projeção declinante para a dívida pública e 5) a preservação do ritmo ascendente da popularidade do presidente da República. 

Que, dotado de faro político, sentiu o cheiro de queimado (leia).

Talvez Jair Bolsonaro não queira repetir o experimento Dilma Rousseff. A então presidente alinhou sua política econômica no início do segundo mandato ao que lhe pedia o chamado mercado. Fez um ajuste daqueles. Mas, infelizmente para ela, em vez de colher o apoio do mercado e dos políticos e atores da chamada sociedade civil que louvam o mercado 24 x 7, colheu o impeachment.

Mesmo se Bolsonaro não fosse politicamente esperto, o recente infortúnio da antecessora talvez já servisse para acender-lhe a luz amarela. Como dizem os versos clássicos, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Sem base orgânica no Congresso ou no establishment, Bolsonaro sabe que não pode ver a popularidade desabar. 

A não ser que queira ter a cabeça servida na bandeja.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Insustentável

Olha aí o auxílio emergencial: diz a FGV que o Brasil tem hoje 13,1 milhões de pobres a menos do que em 2019 (leia). E surfando a onda dos novos programas sociais do bolsonarismo, o governo manda ao arquivo o Minha Casa Minha Vida de Dilma Rousseff e lança o Casa Verde e Amarela (leia). 

O foco são regiões na última eleição resistentes a Bolsonaro, Nordeste e Norte.

Sai governo, entra governo, cada um procura passar uma borracha no que fizeram os anteriores -- especialmente se foram de desafetos -- e abrir capítulos completamente novos na missão de atrair os mais pobres para a base social de apoio. 

Algo que naturalmente ajuda a ampliar e consolidar a base parlamentar.

Mas a vida real é mais complexa, e além de pensar em como engordar a coluna das despesas o governo precisará cuidar das receitas, pois do contrário a coisa fica insustentável. 

O crescimento saudável da receita governamental é quando a robustez da atividade é o motor. 

Entretanto, o mar não está para peixe. Só no segundo trimestre um em cada dez estabelecimentos comerciais fechou definitivamente as portas (leia).

Como resolver a equação?


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Cansaço

Esta semana tem a convenção do Partido Republicano nos Estados Unidos, e pelo jeito Donald Trump vai falar todos os dias. Normalmente o candidato a presidente fala só no último dia. Veremos o efeito. 

Um possível problema de Trump nestas eleições talvez seja o cansaço com a rebelião antissistema (ouça). Porque o "antissistemismo" já não é tão novidade e porque a Covid-19 quem sabe tenha feito as pessoas lembrar que de vez em quando governantes experientes podem fazer uma diferença no resultado final.

O efeito "anti-antissistema" foi bem abordado por Celso Barros na coluna dele hoje na Folha de S.Paulo (leia). E uma consolidação de pesquisas do jornal digital Poder360 mostra que a direita não bolsonarista aparece bem neste momento nos levantamentos das capitais (leia). 

Ainda falta muita estrada para a eleição, mas as pesquisas são sempre uma fonte de informação a ser levada em conta. Se a tendência de um certo "conservadorismo administrativo" confirmar-se, será o caso depois de pensar como isso rebaterá em 2022.

domingo, 23 de agosto de 2020

A cadeira no terceiro andar do Planalto

Algo muito perigoso em análises de conjuntura é partir de premissas equivocadas. É como um trem que entra no trilho errado: não dá para fazer o retorno no momento em que se deseja. Tem de esperar pelo próximo trecho onde a operação de mudança de trilho seja mecanicamente viável. Bem, depois de um ano e meio, já é possível listar premissas sobre o governo Jair Bolsonaro que não se realizaram.

1. O governo seria politicamente instável.

Essa premissa talvez se baseasse na personalidade do ex-capitão, ou no fato de ele nunca ter tido preocupação orgânica na política, ou na constatação de que as posições dele são consideradas extremistas pelo establishment, ou na ausência de uma base parlamentar própria, ou no desprezo dele pelo mainstream da chamada sociedade civil.

Ou em todas essas variáveis combinadas.

O fato, entretanto, é que um ano e meio depois o governo, no que interessa, tem com ele três quintos da Câmara dos Deputados, retém nas pesquisas a fatia de mercado eleitoral que o elegeu e resiste bem ao bombardeio que vem principalmente do setor que liderou o impeachment de 2016 mas depois perdeu a eleição. E ainda está tendo uma recessão e uma pandemia no meio do caminho. Sem pelo jeito sofrer politicamente com isso.

2. O governo faria uma política econômica de ruptura.

Se Bolsonaro se desviasse desse caminho, o ministro da Economia pediria o chapéu e o governo acabaria. Tampouco aconteceu. Bolsonaro, Paulo Guedes e todo o entorno estão no momento empenhados em criar impostos para ajudar a financiar programas de renda mínima mais amplos que os do PT.

Outra ideia é desonerar a folha de pagamentos para empregos de baixa renda (e portanto de baixa qualidade). Haverá alguma privatização, mas não do “trio de ferro” — Petrobras, Banco do Brasil e Caixa. E aprofundar as concessões será o caminho para tentar alavancar a taxa de investimento.

Não há maiores novidades aí. O que talvez seja bom. Pois nem tudo que é bom é novo, e tampouco tudo que é novo é bom.

3. O viés dito autoritário do presidente estimularia formar uma ampla frente de oposição.

Por enquanto, a frente mais ampla em vigor é a que sempre se apresenta para apoiar as iniciativas econômicas do governo e portanto impedir qualquer desestabilização. Do outro lado, a oposição caminha para as eleições municipais mais fragmentada que nunca.

Verdade que o fim das coligações na eleição de vereador tem efeito centrífugo, mas isso não explica tudo.

Os movimentos para formar a frente ampla de oposição não resistiram a um ajuste mínimo na atitude presidencial. Foi Bolsonaro amenizar o discurso e ela se desmanchou antes de existir.

Um bom termômetro do alinhamento de forças será observável no segundo turno municipal. Veremos, por exemplo, qual será a porcentagem de situações de reta final em que o autonomeado centro apoiará candidatos da esquerda contra o bolsonarismo. E vice-versa.

4. Bolsonaro seria tutelado por Paulo Guedes, Sérgio Moro e pelos generais palacianos.

A premissa que mais espetacularmente virou fumaça.

Moro saiu do governo arrastando com ele maciçamente o que Roberto Campos chamava de “a opinião publicada". Ao final, a montanha pariu um rato.

Guedes no momento luta para arrumar dinheiro para programas sociais bolsonaristas que vitaminem as possibilidades reeleitorais do presidente. Talvez embalado pela promessa de que num segundo mandato, aí sim, as coisas serão como foi sonhado.

E os fardados palacianos da reserva influem, mas longe de deter qualquer poder de veto.

Hoje em dia no Planalto, como sempre, quem manda é quem está sentado naquela cadeira do terceiro andar.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Transição longa

Num hipotético torneio de chavões trazidos pela pandemia da Covid-19, um que brilharia é "novo normal". Ninguém sabe exatamente como será, mas todo mundo fala nele. E talvez faça sentido mesmo, pois vai ficando claro a cada dia que é apenas ilusão esperar pelo momento em que o SARS-CoV-2 vai ser repentinamente neutralizado.

Manter o isolamento social até a chegada da vacinação em massa com uma vacina que ainda nem existe é sonho. Simplesmente não vai acontecer. Uma torcida é para a tal "imunidade de rebanho" estar mesmo bem abaixo do inicialmente previsto (leia). No mínimo, a desaceleração da curva de casos em certas situações mostra que medidas de distanciamento (e não só isolamento) têm um papel para reduzi-la.

Será preciso ver também como irá mudando o comportamento do vírus conforme a pandemia avança. Tratou-se disso aqui ontem (leia). Apenas uma coisa é certa: é melhor todo mundo se preparar para uma transição sem data de término. Máscaras, distância, higiene redobrada. Negacionismos à parte, todas essas coisas vieram para ficar. 

E depois de dezembro?

Há uma explicação fácil para a resiliência de Jair Bolsonaro: ele estaria sobrevivendo às más notícias porque a boa vontade do povão vem sendo comprada por meio do auxílio emergencial. Diz o ditado que para toda questão complexa há sempre pelo menos uma explicação simples, e errada. Parece ser o caso aqui.

A aprovação a Bolsonaro é sim maior entre os beneficiários do auxílio, mas isso não explica por que o presidente resiste em torno de um terço de bom e ótimo e uns 40% de aprovação. Talvez seja mais útil inverter a pergunta: por que exatamente o eleitor de Bolsonaro deveria ter desistido dele após um ano e meio de governo?

Sim, porque a fatia dos que o consideram ótimo ou bom corresponde grosso modo ao eleitorado que votou no presidente no primeiro turno, e o percentual de “aprova” cobre o apoio no segundo turno. Houve alguma troca, de alguns "ricos" por pobres, de alguns mais escolarizados por outros menos, mas nenhum terremoto político-eleitoral.

Verdade que um pedaço se agastou na demissão de Sérgio Moro. Mas as pesquisas, todas elas, são cristalinas: o sofrimento político de Bolsonaro com a cisão morista não esvaziou a base social de apoio ao presidente da República. A principal dificuldade de um eventual candidato Moro não estaria no segundo turno, mas no primeiro.

O bolsonarismo é hoje um exército de ocupação desde o centro até os confins da direita. Mas ainda faltam dois anos e tanto para a eleição, e tem água para correr sob a ponte. O desafio mais imediato do governo é encontrar um jeito de pousar o avião do auxílio emergencial de um jeito suave. O contrário provavelmente terá, aí sim, efeito negativo, e não apenas no universo de quem hoje recebe o dinheiro.

A explicação simples, e errada, diz que o governo comprou a simpatia do eleitor por 600 reais ao mês. Talvez a explicação certa seja mais sofisticada. O auxílio ajudou a evitar um colapso econômico e social com repercussões muito além da população que recebe o benefício. Pois a economia continuou rodando e a recuperação parece mais rápida que o esperado.

O desafio do governo é ir retirando o auxílio sincronizadamente com a retomada da atividade e, principalmente, do emprego. Este, aliás, já vinha capengando mesmo antes da Covid-19. Como o governo vai fazer, só ele sabe, se é que sabe. Mas é uma operação estratégica, a não ser que o Planalto queira repetir as experiências de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.

Ambos surfaram em planos econômicos que melhoraram o poder aquisitivo da massa, e foram esticados para influir em eleições. Fizeram a colheita eleitoral, mas precisaram dar um choque de realidade na sequência. A popularidade deles foi ao buraco e só resistiram na cadeira por terem amplíssima base política e simpatia irrestrita no establishment. Coisas que Jair Bolsonaro não tem.

E talvez o mais importante: eram tempos em que ou não tinha internet (Sarney) ou ela era tão incipiente que nem fazia cosquinha nos políticos e nos governos (FHC). Definitivamente, não é o caso agora.

====================

Publicado originalmente na revista Veja 2.701, de 26 de agosto de 2020

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Darwin

Paralelamente à propagação da Covid-19, propaga-se também a ansiedade sobre quando, e como, a pandemia será contida. Um front é a guerra das vacinas (leia), na qual interesses econômicos e operações de comunicação embricam-se numa confrontação tão feroz quanto qualquer refrega travada em campos de batalha propriamente ditos.

Mas precisar esperar pela vacina para atingir a imunidade coletiva não chega a ser notícia animadora, especialmente porque a coisa não é instantânea. Entre confirmar que uma vacina funciona mesmo, produzir em massa, distribuir e aplicar irá um tempo. E nada indica que o ponto final da linha esteja tão próximo assim.

De todo modo, a ciência vai estudando este avião em pleno voo. Aparentemente, uma certa mutação do SARS-CoV-2 é mais infecciosa, mas menos letal (leia). Vírus precisam de seres vivos para se reproduzirem. Então, a seleção natural acaba selecionando os microorganismos que, digamos, assim, matam menos as galinhas dos ovos de ouro.

Viva Charles Darwin. E segue o jogo.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Uma boa notícia

O achado do Imperial College de que a taxa de transmissão (R) da Covid-19 no Brasil está ligeiramente abaixo de 1 (leia) é consistente com  a estabilização dos novos casos diários (veja no gráfico do Financial Times). 

Mas o quadro nacional varia muito de estado para estado. Há acelerações, declínios e estabilidades, tudo distribuído pelo território nacional. Não dá para relaxar.

O R abaixo de 1 é claro produto de uma combinação de fatores. Em parte por causa do isolamento e do afastamento social, em parte provavelmente por uma parte já ponderável da população ter sido imunizada pelo contato com o SARS-CoV-2.

Ainda sobre a pandemia, o Distrito Federal alterou a metodologia de divulgação dos óbitos. Vai informar também quantas mortes aconteceram efetivamente a cada dia (leia).

Para o distinto público, a única coisa que interessa é saber de tudo. Até porque os números reais sempre acabam aparecendo.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Desafio

O governo tem um desafio complexo: como fazer a transição do auxílio emergencial para uma modalidade de renda mínima preservando alguma coerência fiscal e evitando o solavanco político. Não será trivial, e daí o bate-cabeça nas hostes do Palácio do Planalto (leia).

O que seria ideal, claro que do ângulo governista? Se a interrupção ou a drástica redução do auxílio viessem sincronizadas com a retomada do emprego. Mas essa última variável não parece assim tão animadora, e inclusive a última pesquisa XP/Ipespe traz uma percepção de que a economia não vai bem, apesar de a percepção melhorar (leia).

A eleição presidencial ainda vai longe, dois anos e alguma coisa, mas a dinâmica política começa a entrar naquela fase em que o governante desejoso de permanecer precisa mostrar serviço. E é visível que o governismo está se esforçando para tanto. 

Mas também é a hora em que a paciência popular ameaça encurtar se houver contratempos.



segunda-feira, 17 de agosto de 2020

E na Europa...

O gráfico abaixo é cristalino. Países europeus que tiveram bons e rápidos resultados após a adoção do isolamento social para combater a pandemia da Covid-19 enfrentam uma segunda onda de casos. 

A torcida é para que a letalidade da doença tenha caído desde a primeira onda. Também porque a ciência já não está mais tratando com um inimigo completamente desconhecido.

Até que se consiga uma imunização de rebanho, natural ou induzida pela vacina, é razoável supor que novas acelerações de casos sejam desencadeadas pelas medidas de flexibilização do isolamento. 

Afinal, o vírus é paciente, ele não vai simplesmente desistir de esperar porque as pessoas estão trancadas em casa ou tomando os cuidados de higiene recomendados.

A alternativa seria um rigoroso lockdown até a chegada da vacina, mas parece que quase um semestre após o início do isolamento social não há disposição do público nem adaptabilidade da economia para tanto.


domingo, 16 de agosto de 2020

Números capturados pela polarização

Já faz algum tempo as pesquisas mostram a tendência de retorno ao padrão de um país dividido em três pedaços aproximadamente equivalentes na avaliação do governo. O movimento anterior tinha sido um leve sofrimento do “bom e ótimo”, e deslocamento do “regular” em direção ao “ruim e péssimo”. Aparentemente, dizem todas as pesquisas, Jair Bolsonaro volta a mostrar resiliência, a propriedade de reassumir a forma original após uma deformação elástica.

Os números mais recentes do Datafolha trouxeram alguma surpresa, pois vieram logo após a blitz sofrida pelo presidente da República quando as mortes pela Covid-19 bateram na trágica casa dos 100 mil. Mas a própria pesquisa explicou a razão: quase metade da população não responsabiliza nem remotamente Jair Bolsonaro pela contabilidade fatal da pandemia por aqui. E os que o consideram o principal culpado não passam de 11%.

Para compreender melhor o Datafolha, será útil recorrer a um número de outra entidade de pesquisas, o PoderData, do jornal digital Poder360. O último levantamento quinzenal dele mostrou empate entre aprovação e reprovação do presidente. Na margem de erro, uma divisão ao meio entre quem aprova e quem reprova. Aliás é a pergunta certa a fazer para saber a aprovação, pois sempre uma parte do “regular” aprova a administração quando é perguntada sobre isso.

O que está acontecendo? Uma hipótese: quando certo assunto é capturado pela polarização político-partidária, o público tende a distribuir-se, grosso modo, conforme a distribuição das convicções partidárias e eleitorais. Os efeitos da agitação e da propaganda, a favor ou contra, tendem a ficar confinados dentro da respectiva “bolha”.

A política não é principalmente uma disputa de argumentos. É esgrima de interesses e fidelidades em que os argumentos e a propaganda são armas para manter íntegro o próprio exército e tentar dividir o do adversário. Até agora, decorrido um ano e meio de governo, as forças bolsonaristas e antibolsonaristas preservam o tamanho exibido nas eleições. O “bom e ótimo” reproduz o market share do candidato Bolsonaro no primeiro turno, e o “aprova” oscila em torno do desempenho do presidente eleito no segundo turno.

O que seria capaz de alterar substancialmente o quadro? A radical degradação do quadro econômico? Foi evitada pelo auxílio emergencial de 600 reais. Um colapso dos serviços de saúde na pandemia e que pudesse ser debitado na conta do governo federal? Simplesmente não aconteceu. Tudo indica que estados e municípios estão fazendo seu trabalho e, notavelmente, não há queixas significativas de governadores e prefeitos quanto à atuação do Ministério da Saúde.

No mais, o eleitorado possivelmente encara com naturalidade os críticos culparem o presidente pelas mortes e dizerem que a atuação dele é um desastre na pandemia. Estranho seria os críticos não o culparem. O “Caso Queiroz”? É anterior ao mandato. Traz algum prejuízo, mas não atinge o cerne do discurso presidencial sobre a corrupção. Pois não há, por enquanto, acusações relevantes de corrupção ao governo propriamente dito.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Antivacinismo

Segue a polêmica sobre quanto da população precisa estar imunizada para que se atinja a chamada "imunidade de rebanho", aquela porcentagem de gente já com anticorpos que faz a curva de casos e mortes de determinada epidemia estabilizar e uma hora entrar em declínio.

A estimativa inicial na Covid-19 para esse número estaria em torno de 60%, mas há sinais de ser menos. E é bom que seja assim, porque do jeito que vai a polarização sobre tomar ou não vacinas é bastante possível que parte significativa da população decida não se vacinar.

Foi a conclusão, por exemplo, de uma pesquisa nos Estados Unidos (NPR-PBS NewsHour-Marist). Mais de um terço dos entrevistados disseram que não vão tomar a vacina contra o SARS-CoV-2. Um indicador da forte penetração do "antivacinismo" na população daquele país.

E o problema fica potencialmente ainda mais grave em países como o Brasil, onde o alinhamento com tal ou qual vacina passou a ser parte indissociável da guerra política. Isso fará com que haja ainda maior resistência na hora em que vierem as vacinas A, B ou C. Um quadro preocupante.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Mortes em NYC

Gente boa do ramo da epidemiologia defende uma tese: o excesso de mortes, na comparação com períodos semelhantes antes da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, é um parâmetro válido para medir o impacto real da Covid-19 no número de óbitos.

Porque o dado pega não só os que faleceram por causa do novo coronavírus, mas também quem perdeu a vida por culpa de um sistema de saúde sobrecarregado. Pega também gente cuja morte teria sido evitada se procurasse um serviço de saúde. E não procurou de medo de pegar a Covid-19.

Sobre isso, a publicação oficial da Associação Médica Americana (JAMA) publicou uma interessante comparação entre o excesso de mortes em Nova York durante a Gripe Espanhola em 1918 e o mesmo parâmetro agora na pandemia da Covid-19. Vale a pena dar uma olhada (leia).

Como era esperado, o debate sobre a Covid-19 nos diversos países, aqui inclusive, vem sendo capturado pela polarização política, em escala nacional e global. Mas se você quiser entender mesmo o que se passa, um bom caminho é tentar olhar os números da pandemia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

No mudo

O governo tem uma equação desafiadora na economia. A seguir, como garante, a cartilha, ele precisa combinar: 1) austeridade para frear o crescimento da dívida, 2) dinheiro para os programas sociais e 3) dinheiro para os investimentos. Juntar essas três variáveis numa equação que faça sentido não é trivial.

A tese governamental é que a disciplina fiscal atrairá capitais privados que vão relançar a economia. Esqueçam do declaratório: se os capitais privados aparecerem para criar negócios e empregos, a chamada ala liberal do governo vai levar a taça; se não, abrir-se-á espaço para o neodesenvolvimentismo.

E dificilmente o presidente da República vai deixar de querer ter dinheiro para as marcas sociais do bolsonarismo. Não consta que Bolsonaro, acossado pela opinião pública, queira oferecer-se em sacrifício para aplainar o terreno a um desafeto em 2022.

Ou seja, nesta corrida que divide os intestinos do poder, vai levar a melhor quem aparecer com dinheiro para investimentos. Não será dificil portanto monitorar a coisa. E será conveniente de vez em quando colocar o teatro da política econômica no "mudo".

Prestar mais atenção no que é feito e menos no que é dito.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Sputnik 5

E chegou a primeira vacina contra o SARS-CoV-2, a russa Sputnik 5. Com ela veio o ceticismo, real ou forçado, por ela ter pulado etapas. Mas as dúvidas têm prazo de validade. A vacina começa a ser aplicada em massa a partir de janeiro, e aí se saberá quanto ela vale. Não só em termos monetários, em capacidade de imunização.

A onda de ceticismo explica-se também por a corrida da vacina ter se tornado uma bateria da disputa entre o Ocidente (conceito geopolítico), liderado pelos Estados Unidos, e a aliança de fato entre China e Rússia. Mas neste caso específico da vacina o cavalo ocidental favorito é britânico, de Oxford.

Sua excelência, o cidadão comum, não está obviamente nem aí para a política, ou para a politicagem: quer uma vacina que funcione. A seguir todas as etapas religiosamente, só teríamos vacina daqui a anos. E esperar alguns anos não é o cenário mais confortável. Bem longe disso.

Então é razoável supor que todas as vacinas acabarão tomando algum atalho. De que adiantará, inclusive comercialmente, alguém aparecer com "a melhor vacina" daqui a quatro ou cinco anos? Nada, ou muito pouco, se as anteriores tiverem conseguido imunizar, digamos, pelo menos uns 50% dos vacinados.

Até porque, convenhamos, a "imunidade de rebanho" da Covid-19 leva jeito de andar bem abaixo disso. Como vimos ontem (leia).

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Rebanho

Mais um dado aparece para juntar-se ao debate sobre a "imunização de rebanho" na Covid-19, aquele tanto da população que precisa estar imunizado, por contágio ou vacina, para as curvas de casos e, portanto, de mortes começarem a cair. Na cidade de São Paulo, a porcentagem dos portadores de anticorpo contra o SARS-CoV-2 anda estável (leia), assim como o número de novos óbitos registrados diariamente.

Bem, se a velocidade de evolução da curva diminuiu, é provável que cada infectado esteja infectando em média apenas mais um indivíduo. Mas um detalhe chama a atenção: as projeções iniciais calculavam que pelos menos 50% da população precisariam estar imunizados para chegarmos a esta situação. E chegamos nela, segundo o estudo paulistano, com o número em torno de 18%.

Caberá aos cientistas decifrar o enigma. Haverá gente imune ao novo coronavírus mesmo sem portar anticorpos? Ou gente que já teve anticorpos detectáveis e não tem mais? Especulações à parte, é um alívio notar que taxas de imunidade mais baixas que as inicialmente previstas conseguiram, pelo menos, segurar a escalada da curva de casos e mortes entre nós. Não é tudo, mas já é alguma coisa.

domingo, 9 de agosto de 2020

A dúvida municipal

O que vai decidir a eleição para prefeito e vereador em novembro? O quadro local ou o nacional? Ou vai ser uma coisa em alguns lugares e a outra em outros? E quais serão os requisitos para alguém alcançar a maioria absoluta dos votos, indispensável a quem deseja a vitória já no primeiro turno? E o perfil mais encaixado nos desejos do eleitor médio em meio a esta pandemia? Assuntos para daqui até novembro.

Começando pelo final, há quem aposte numa onda de candidatos médicos ou das demais carreiras da saúde. A economia preocupa, mas a principal angústia das pessoas neste momento concentra-se em escapar da perseguição do SARS-CoV-2 e sobreviver à onda da Covid-19. Analistas já intuem: assim como em 2018 tivemos a onda de candidatos ligados à segurança, talvez 2020 seja a hora dos identificados com a saúde.

Mas os nomes anticrime de 2018 surfaram a insatisfação popular diante dos índices de violência e da ameaça potencial à vida e ao patrimônio. O intrigante neste momento da Covid-19 é não existir uma maré montante de insatisfação ou revolta popular contra as autoridades. Ao contrário, o eleitor médio parece considerar que os governos estão de algum modo agindo.

Contribui para isso o sistema hospitalar não ter entrado em colapso. Mérito do Sistema Único de Saúde (SUS) e das medidas de isolamento e afastamento social, que segundo a epidemiologia produziram achatamento das curvas de casos e mortes. As curvas estão num patamar alto, mas relativamente estáveis. Pressiona para um lado a tragédia dos números fatais. Para o outro, os números não estarem em escalada aguda.

Outra curiosidade é se virá uma “nova onda” política e qual seria. O PMDB sucedeu a Arena, o PSDB sucedeu o PMDB e o PT sucedeu o PSDB. Daí veio Bolsonaro, mas já está rompido com o partido da eleição, o PSL. Assim, se a onda bolsonarista tiver continuidade municipal, virá pulverizada em múltiplos partidos. Neste fim de semana o presidente disse que vai ficar fora do primeiro turno. Ou seja, vai entrar firme no jogo quando vier a polarização.

Aí a trágica contabilidade de mortes da Covid-19 será um trunfo do antibolsonarismo. A narrativa já vem sendo bem trabalhada, uma semeadura que talvez permita boa colheita em novembro. Do outro lado, o governo tem um trunfo na economia. Os números aqui tampouco são bons, mas o dinheiro distribuído como auxílio emergencial vai ter seu papel. Principalmente no até agora grande reduto da oposição, o Nordeste.

São os fatores da nacionalização. Mas não será prudente subestimar o localismo. O melhor palpite por enquanto é apostar fichas na racionália de que prefeitos e candidatos serão julgados pelo que fizeram ou deixaram de fazer, em particular neste último período pandêmico. Enquanto políticos e analistas gastam o miolo em torno do “fator nacional”, o eleitor talvez queira saber o que pode melhorar a vida dele no local onde mora.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A dura vida do marisco

 A volta ou não às aulas é a bola da vez no braço de ferro entre os adeptos da retomada e os militantes do #ficaemcasa. Brasília é um exemplo (leia). Já São Paulo jogou a coisa para outubro (leia). A verdade: ninguém parece saber direito o que fazer, como decidir com base em critérios racionais. 

Prevalece o medo. O cidadão tem medo de ficar doente, e de ver o filho adoecer. E o político tem medo de ser responsabilizado por uma eventual escalada, bem na antessala das eleições municipais adiadas para novembro. 

E assim segue a vida num país, o Brasil, onde a descoordenação entre as autoridades e a interferência aleatória do Judiciário são a marca registrada nesta pandemia. A falta de coordenação e o terreno fértil para arbitrariedades têm consequências óbvias, especialmente nas atividades econômicas. 

Uma delas são as escolas particulares, que ficam como o marisco, sofrendo por causa dos choques entre o mar e o rochedo.

Como isso se resolverá? Talvez, a exemplo das coisas que já abriram, certo dia, esgotadas, as autoridades nos diversos níveis deixem a vida seguir seu passo. Ou decidam finalmente manter todos os alunos em casa à espera da hora em que será aplicada em massa uma vacina que ainda não existe.


A pax bolsonariana: até quando?

As críticas à Lava-Jato vão sendo novamente matizadas, apesar dos percalços. A aliança da operação com os vetores dominantes da opinião pública volta a mostrar vigor, e agora vitamina-se de um novo alinhamento: num lado, o Palácio do Planalto e a Procuradoria Geral da República; no outro, a Lava-Jato e quem flerta com amputar o mandato de Jair Bolsonaro antes do prazo, evitando assim preventivamente também a possibilidade de reeleição.

Quem levará a melhor? A aliança encabeçada pela Lava-Jato vem de vitórias históricas, a começar do impeachment de Dilma Rousseff e da condenação, e inelegibilidade, de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas enfrenta uma atribulação no plano tático: as pressões e manobras do Executivo para retomar o poder moderador, o que em linguagem mais delicada ganha o nome de “governabilidade”. E esta passa pela contenção dos polos que floresceram na Brasília do declínio de Dilma Rousseff e Michel Temer.

Num desses polos, o Congresso Nacional, as coisas para o oficialismo bolsonarista parecem ir razoavelmente bem. Ainda há chacoalhadas e rusgas, mas o sentido geral é de pacificação. O impeachment hiberna, e a reforma tributária é o novo brinquedo posto a entreter o Legislativo. E os parlamentares estão às voltas com outros dois assuntos apetitosos: as eleições municipais e a renovação das mesas da Câmara e do Senado.

Nisso, a única coisa que o governo precisa evitar é perder. O ideal para o Planalto serão presidentes alinhados 100% com Bolsonaro, mas Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre continuarem nas cadeiras seria, para o governo, o “problema já conhecido”. Diz a sabedoria: nunca se apresse a eliminar um problema já conhecido, pois o risco é aparecer um novo, e potencialmente mais complicado. Como por exemplo o comando do Congresso nas mãos de personagens inteiramente originais e com apetite por protagonismo.

No Ministério Público e no Legislativo, o cenário para Jair Bolsonaro parece o menos pior desde a posse, inclusive por as disputas da hora serem internas em ambos. E isso enquanto o Executivo vive uma inédita pax bolsonariana, após alguns “expurgos brancos” e a ocupação de espaços estratégicos pelos quadros provenientes das Forças Armadas, da reserva e da ativa. E que estão ali por outra regra da vida política: quando há vácuo, este suga alguém para consertar a anomalia. É o que se passa com os fardados.

O momento de calmaria para o presidente da República decorre também de um fator relativamente inesperado, e de outro previsível. Era pouco esperado que a popularidade do presidente resistisse à dramática contabilidade das mortes da Covid-19. Por alguma razão está resistindo. O previsível era a dispersão das esquerdas, que sintomaticamente voltaram a ser nomeadas no plural. Aqui, um paradoxo: quanto mais na oposição se fala em frente, mais avança a fragmentação dela própria. Por exemplo na disputa das prefeituras.

O que pode interromper a paz? Afinal, estamos no sempre potencialmente complicado agosto.

====================
Publicado originalmente na revista Veja 2.699, de 12 de agosto de 2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Duas variáveis cruzadas

O site de notícias G1, entre outros, mantém um levantamento estado por estado da média móvel de óbitos pela Covid-19 (veja). É atualizado diariamente. Vale a pena acompanhar. Pelos dados de hoje no meio da tarde, parece haver uma correlação geográfica, relacionada à latitude. Nos estados mais ao sul a tendência é de alta na curva. Nos mais ao norte, de baixa.

Duas variáveis embaralham-se aqui. É preciso saber, por exemplo, se os estados mais ao sul estão subindo agora a ladeira fatal por causa do inverno ou porque foram os últimos a engatar a subida. Idem para os mais ao norte. Estão caindo por causa da localização geográfica ou porque foram os primeiros a escalar o trágico morro?

Entrementes, segue a disputa política. Em cada nível da federação, o oposicionismo acusa o governismo de principal responsável pela trágica contabilidade de mortes. E vai ser assim na disputa eleitoral das prefeituras, até a decisão. A política é como ela é. Resta aguardar que os cientistas, pelo menos os que não foram tragados pelas guerras partidárias, resolvam esta e as demais charadas trazidas pelo SARS-CoV-2.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Campanhas remotas

O candidato democrata, Joe Biden, participará remotamente da convenção que o nomeará candidato à presidência dos EUA. O republicano Donald Trump parece que também (leia). As convenções partidárias norte-americanas sempre foram um ícone da política daquele país. No assim chamado, e já batido, "novo normal", são mais uma tradição que vai ficando na poeira.

Tive a oportunidade de escrever um capítulo sobre os partidos políticos no livro "O Mundo Pós-Pandemia", organizado por José Roberto de Castro Neves (veja). Vai se tornando cada vez mais evidente que parte significativa das atividades político-partidárias após a chegada do SARS-CoV-2 acontecerá pela internet. Filiações, debates, escolha de candidaturas, campanhas. Quem ficar para trás, um abraço.

Vai ser melhor ou pior? Certamente será diferente. Um aspecto positivo: transgredir ficará mais arriscado. A vigilância eletrônica é onipresente em nosso novo mundo, mas pela rede ela é ainda mais fácil. Um negativo: não há o que possa substituir o contato entre as pessoas. E "fabricar" candidatos de acordo com o mercado eleitoral e pouco vulneráveis à crítica será uma tentação.

Mas não adianta reclamar. Melhor sempre acender uma luz do que lamentar a escuridão. 


terça-feira, 4 de agosto de 2020

E se não for a economia?

Os norte-americanos continuam achando que Donald Trump tem méritos na condução da economia. Mas as previsões são de que ele enfrenta uma batalha morro acima na busca pela reeleição em novembro (leia). Sempre restará aos inconformados dizer que as pesquisas têm errado muito. É um fato. Mas não existe metodologia melhor para medir o humor do eleitorado.

A ideia de que a economia é sempre o elemento-chave para decidir uma eleição para a chefia do governo ficou popular depois da vitória de Bill Clinton ali em 1992. Foi quando James Carville cunhou o "A economia, estúpido". Mas alguns detalhes ficaram esquecidos. Um deles: o independente Ross Perot teve então quase 20% dos votos (leia). Um estoque que fez muita falta a George Bush, pai.

Os levantamentos agora informam que dois assuntos passaram a contar muito, até o momento, para a decisão do eleitor nos EUA: a Covid-19 e a fratura racial cada vez mais exposta da sociedade americana. Talvez Trump consiga ganhar uns pontos no primeiro ponto, especialmente se a vacina vier a tempo. O desafio maior dele está em neutralizar a desvantagem no segundo.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Duas guerras

Duas perguntas da hora, respectivamente no mundo e no Brasil: "quando o público em geral terá acesso a uma vacina confiável que imunize contra o SARS-CoV-2?" e "quando o governo brasileiro vai conseguir interromper o pagamento do auxílio emergencial de 600 reais?".

Sobre a vacina, as coisas andam bem ciclotímicas. Num dia vem a notícia de que ela está quase para chegar. No outro, a OMS diz que ela talvez nunca chegue (leia). Quem tem razão? Eis uma dúvida que só será dirimida pelos fatos da vida. Até lá será o diz-que-diz-que.

E o auxílio? Ele custa 50 bilhões de reais a cada parcela. Mesmo se for cortado pela metade vai sair pela bagatela de 300 bilhões de reais por ano. O governo quebra a cabeça sobre o assunto, e a pressão da política é sentida em seu esplendor no ano eleitoral (leia).

São duas guerras, contra a Covid-19 e contra as consequências econômicas. A luz ainda não apareceu no fim do túnel em nenhuma delas. E numa guerra vale sempre a velha máxima: é bem mais fácil entrar nela do que sair bem.

domingo, 2 de agosto de 2020

Trump, Biden e Bolsonaro

Qual será ao fim e ao cabo o efeito de uma eventual vitória do democrata Joe Biden nas relações entre os Estados Unidos e o Brasil? Nesta semana o assunto ganhou alguma tração quando um deputado do partido de Biden criticou o apoio aberto de familiares de Jair Bolsonaro ao incumbent Donald Trump.

O Brasil é ponto focal dos Estados Unidos na América do Sul. Um momento explícito foi quando o então presidente Richard Nixon disse que para onde pendesse o Brasil penderia a América Latina. É razoável portanto partir da premissa: a preocupação americana pelo que se passa aqui sobreviveria bastante bem à troca de guarda ali.

Amizades e inimizades pessoais jogam seu papel, mas seria um erro superestimar. A chave decisiva para a análise é outra: de que maneira as relações entre ambas as nações ajudam ou atrapalham o projeto de poder do segmento líder em cada um dos dois países. E projetos de poder invariavelmente vêm conectados a projetos nacionais.

Nos tempos da primeira Guerra Fria a relação de troca sempre foi cristalina: os Estados Unidos ajudavam por aqui a manter uma arquitetura social e política enquanto o Brasil somava forças com o Ocidente no trabalho de contenção da influência da União Soviética. As exceções, quando essa lógica deixava de prevalecer em termos absolutos, apenas confirmavam a regra.

Uma exceção foi no governo Ernesto Geisel. O rápido reconhecimento da Angola soberana e o acordo nuclear Brasil-Alemanha, no âmbito da ideia de “Brasil potência”, são fatos da história. Assim como o rompimento do acordo militar com os EUA em represália, segundo Geisel, às pressões do então presidente Jimmy Carter em torno do tema dos direitos humanos.

O momento hoje parece bem distinto daquele interregno geiselista. Não se nota nas elites brasileiras, lato sensu, maior desconforto com o alinhamento aos Estados Unidos. A divisão é outra: uns preferem acoplar-se a Trump e suas políticas, outros gostariam de engatar-se a Biden e à agenda do Partido Democrata, gostariam que a hegemonia norte-americana se desse apoiando outros atores e contemplando uma pauta mais antenada.

Não se nota por aqui hoje em dia maior ambição de protagonismo independente. Que implicaria jogar um jogo mais inteligente diante da “nova Guerra Fria”, entre os Estados Unidos e uma China em ascensão. Só o que se vê, no máximo, são lamentos diante da possibilidade de o alinhamento com o trumpismo atrapalhar os negócios do agronegócio.

E neste ponto é preciso admitir que se o Brasil precisa da China a China também se beneficia das boas relações com Brasil. Não à toa o atual momento comercial entre os dois países é o mais expressivo desde sempre. Nunca a China teve tanta participação nas exportações brasileiras. Manter as coisas pelo menos como estão interessa muito a Brasília mas também a Beijing.

Mas até quando?

O alarido diante dos factoides não deve enganar: há muito tempo não se via no Brasil tanta disponibilidade para uma acomodação ao jogo que é jogado pela Casa Branca. Pouca razão haveria para um possível presidente Biden arrumar encrenca com o Brasil por causa de Bolsonaro. Ainda mais se o horizonte para 2022 continuar como está.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

A política em rede e das redes

As redes sociais pouco a pouco vão ocupando o centro do noticiário nas disputas geopolíticas globais e nas pendengas jurídico-políticas nacionais. Na queda de braço entre Estados Unidos e China a bola da vez é o chinês TikTok, que parece estar em tratativas para ser vendido para a Microsoft (leia). No Brasil, o estranhamento da hora é entre o Facebook e o Supremo Tribunal Federal (leia).

Não é certo que operações tópicas contenham o ímpeto antichinês de um Donald Trump cada vez mais pressionado por pesquisas desfavoráveis na corrida reeleitoral. E vamos ver como o ministro Alexandre de Moraes desenrola o novelo do arranca-rabo com o gigante das redes, que diz seguir a lei em cada país onde atua mas também que o STF não pode determinar o que o Facebook vai fazer em outros países.

Quando a moderna Internet nasceu já se falava de que a política do futuro se organizaria em rede. Mas a coisa evoluiu bem além. As lutas pelo poder sempre tiveram na disputa pela informação, e pela capacidade de informar, um foco estratégico. É ao que estamos assistindo agora, em escala global e local. E só uma coisa é certa. Lá e cá, no final vai chorar menos quem puder mais.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Com a outra mão

São muitos números, então é melhor ir direto para a explicação completa (leia). O fato é que o déficit primário explodiu e as previsões para este ano são astronômicas (leia). O que era para ser uma consistente política de austeridade sustentada foi abalroado pela pandemia da Covid-19. 

Paciência, dirão, o imprevisível é sempre muito difícil de prever.

É razoável supor que quando a pandemia passar (quando?) ficaremos sim com um problema de estoque de dívida, mas o fluxo vai talvez normalizar-se. Dirão os pessimistas que é muito otimismo, mas não custa ter algum. Qual é a dúvida, então? Como fazer para servir a dívida que cresceu esse tanto, mas de um jeito que não implique tirar o oxigênio da recuperação econômica.

Se o governo estiver de olho apenas em aumentar a arrecadação a todo custo, vai asfixiar a economia. O melhor seria subir a receita graças a um belo aumento da atividade. Mas isso não está no horizonte próximo, todas as pesquisas mostram um consumidor cabreiro. Quando a desconfiança do consumidor em relação ao futuro vai passar? Na boa, ninguém sabe.

O governo busca recursos para o Renda Brasil. Mas nenhum programa social terá efeito milagroso para 2022 se, com a outra mão, o governismo garrotear quem está um pouco acima na escala social.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Estão como gostam

"Reforma tributária" é uma das expressões genéricas feitas sob medida para todo mundo ficar a favor enquanto ninguém sabe exatamente o que significa. Nesse aspecto, é prima-irmã da "reforma política".

O Brasil, aliás, é uma espécie de santuário desse tipo de expressão, extremamente útil para fazer o distinto público acreditar que a solução para os males nacionais está na próxima reforma milagrosa.

Que quando for aprovada dará lugar, no imaginário coletivo, à reforma seguinte da fila.

Talvez poucos se lembrem, mas a reforma tributária originalmente aventada neste último período tinha por objetivo declarado simplificar os impostos, e havia também o compromisso de não aumentar a carga tributária. 

A pandemia da Covid-19 mudou tudo. A queda de arrecadação combinada com a explosão de gastos emergenciais transformou a reforma numa tentação arrecadatória.

E os políticos estão como gostam, como pediram. Com todo mundo implorando para eles gastarem mais, nem que se tenha de enfiar a faca com gosto no contribuinte.

Estão como pinto no lixo.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Cuidar da própria vida

A balança comercial (exportações menos importações) vai garantindo um bom resultado para o país nas contas externas (leia). E o motor está na exportação de produtos agropecuários. Além disso, como era de esperar, caiu drasticamente o gasto dos brasileiros no exterior.

Combinaram-se para este último ponto dois fatores: a desvalorização do real e, naturalmente, a paradeira geral provocada pela pandemia da Covid-19. O segundo aspecto é um cenário provisório, mas o dólar caro parece um dado da realidade que veio para ficar.

Ainda mais se os juros por aqui continuarem batendo recordes negativos.

O lado bom é que a demanda por alimentos só cresce, especialmente no mundo em desenvolvimento. É uma vantagem competitiva para países como o nosso. Desde que cuidemos principalmente dos nossos próprios interesses, e deixemos em segundo plano as brigas dos outros e que não nos dizem respeito.

É a receita de sucesso para quem ainda tem um longo caminho econômico a percorrer antes de tentar dar as cartas em escala planetária.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A política de olho no futuro

Em meio à pandemia e à análise diária das curvas de casos e óbitos a política já está de olho no ponto futuro. Não apenas nas eleições municipais mas mais adiante, na eleição do sucessor de Rodrigo Maia (DEM-RJ). E começam os movimentos (leia).

Nesse tipo de disputa, a derrota do governo costuma ter consequências complicadas. Mais complicadas ainda que derrotas governamentais em outras votações relevantes ali. Na disputa em torno do Fundeb, por exemplo, o governo foi inteligente ao fugir da contagem de votos.

A esperança do "rodriguismo", para reeleger o próprio ou eleger um aliado, é juntar os votos da esquerda lato sensu, um tanto mais que cem deputados, ao centrismo que se organizava historicamente em torno de PSDB, MDB e Democratas. Na aritmética, dá para tentar a formação de uma maioria.

Mas a aritmética e a política nem sempre andam de mão dada. Governos são governos, especialmente os que sabem operar o poder. Será preciso olhar também como o prestígio popular do presidente estará em fevereiro, quando da troca.

E se o governo, de novo, preferir fugir do confronto, sempre poderá compor com o sucessor. Ou com o reeleito.

domingo, 26 de julho de 2020

Agitação e espuma dentro da bolha

Esta primeira quase metade de gestão Jair Bolsonaro vem sendo marcada pelo sonho oposicionista de que o governo é uma construção frágil, pronta a desabar pela ação do próximo “fato novo”. Foi assim quando das manifestações em defesa da educação, logo no comecinho do mandato. Mais recentemente, as esperanças da oposição passaram a ser depositadas nos efeitos econômicos e sanitários da pandemia da Covid-19.

E de tempos em tempos os olhos brilham quando surge alguma novidade no “Caso Queiroz”.

A realidade, porém, é que Bolsonaro por enquanto defende com sucesso a fatia de mercado conquistada por ele em 2018. O Brasil tinha então 147 milhões de eleitores e o candidato do PSL recolheu no primeiro turno 33% desse eleitorado, 49 milhões de votos, tudo em números arredondados. A esta altura você já percebeu. Os fatos vêm e vão, mas o percentual de “ótimo” e “bom” do presidente oscila sempre em torno desse mesmo um terço.

A taxa de aprovação de Bolsonaro só pode ser medida se se pergunta “você aprova ou desaprova?”, e não deve ser confundida com o ótimo+bom. Ela também oscila pouco, em torno de 40%. Interessante notar que essa ordem de grandeza corresponde ao market share do capitão no segundo turno. Aliás é também o patamar da fatia que aposta que o governo será bom ou ótimo ao final do mandato em 2022.

Eis por que é furada a tese do “somos 70%”. Serve como propaganda, mas estrategistas políticos que acreditam cegamente na própria propaganda estão a caminho de ter problemas.

Há, é claro, as variações. Uma foi em meados do ano passado, quando o tema das queimadas na Amazônia ganhou visibilidade. Outra, agora mesmo, na decolagem da pandemia. Mas essas oscilações costumam deslocar mais do “regular” para o “ruim/péssimo” que qualquer outra coisa. E Bolsonaro tem mostrado resiliência. Quando a pressão afrouxa, as curvas de avaliação dele tendem a voltar para o padrão de “um terço, um terço, um terço”.

Sempre supondo que a conjuntura correrá pelos trilhos desse “normal”, fica claro portanto que a base social de sustentação de Jair Bolsonaro é consistente e ampla o suficiente para ele se segurar na cadeira e ser competitivo em 2022. Poderá ser derrotado? Sim, desde que se encontre um candidato capaz de aglutinar todo o restante do eleitorado e que além disso consiga ganhar alguma margem levando para votar uma parte dos que têm insistido no absenteísmo.

Não é simples. Implicaria costurar uma alternativa em que todas as facções do antibolsonarismo estejam contempladas. Como diz o ditado, seria o casamento do jacaré com a cobra d'água. Por enquanto, o que cada facção antibolsonarista vem pedindo às demais é a capitulação incondicional em nome do combate ao adversário comum. Na real, hoje ainda inexiste na oposição um sentimento autêntico de "qualquer um menos Bolsonaro". Aliás, é o contrário.

Outro problema: a cada gesto de distensão do presidente, os ensaios de coalizão são lipoaspirados. E Bolsonaro tem sido hábil (ou tido sorte) na política, como mostrou a votação do Fundeb.

Enquanto o novelo não desenrola, vem restando ao antibolsonarismo repetir o antipetismo praticado na maior parte do extenso período do PT no poder. Promover agitação e criar espuma dentro da própria bolha. Não deixa de ser uma maneira de passar o tempo fazendo algo útil.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Alguém explica?

Volta e meia retornamos aos gráficos do Financial Times. Especialmente ao Coronavirus tracked: has the epidemic peaked near you? (navegue). Ali você pode escolher os países a comparar (ou estados norte-americanos). Pode escolher óbitos ou casos, acumulados ou diários, neste caso a média móvel de sete dias.

Para olhar a última tendência da média móvel de sete dias selecionei alguns países que têm coisas em comum e bem diferentes. Estados Unidos, Brasil e México ou resistiram a implantar coordenadamente o isolamento social ou retardaram essa providência. Já Índia e Colômbia aplicaram as orientações da OMS "by the book".

O fato, sempre esse teimoso, é que Colômbia e Índia assistem agora a um crescimento importante dos índices de fatalidades. Já os Estados Unidos ensaiam uma nova onda, e Brasil e México parecem num planalto. E olha que o Brasil já vem assim há uns dois meses.

Alguém explica?
 

Agendas capturadas

Qual é a melhor receita para uma oposição? A que define objetivos simultaneamente ao alcance dela e impossíveis de capturar pelo governismo. Ou, pelo menos, objetivos que se o governismo ou o paragovernismo quiserem assumir pagarão um preço político alto. E a agenda da oposição precisa conectar-se também às metas históricas dela.

A oposição de esquerda ao governo Jair Bolsonaro é: 1) contra a austeridade econômica, 2) a favor de programas de complementação de renda, 3) contra a agenda dita anti-ambiental, 4) contra o conservadorismo nos costumes e contra o armamentismo e 5) contra o que considera ameaças autoritárias vindas do Executivo.

É fácil notar que após um ano e meio de bolsonarismo a maior parte da agenda da oposição de esquerda ou foi capturada pelo governo ou pelo paragovernismo. Mesmo que este último ande em luta para dar a Bolsonaro o mesmo destino de Dilma Rousseff e Fernando Collor. Ou, pelo menos, para construir uma alternativa competitiva rumo a 2022.

Alguma hora é possível que o discurso da austeridade volte, mas por enquanto o auxílio emergencial vai vitaminando a simpatia por Bolsonaro nos bolsões resistentes a ele em 2018. E isso tem poder de convencimento no Planalto. E a Covid-19 faz a renda básica brilhar em dez entre dez discursos e artigos de economistas liberais.

No ponto 3, a aversão à política governamental para o meio-ambiente vai sendo não apenas encampada, mas quase comandada pela grande finança. A polarização neste quesito deixou de ser entre direita e esquerda, agora é entre nacionalismo e cosmopolitismo, e este encaixa quase naturalmente uma esquerda cada vez mais divorciada do anti-imperialismo.

Idem para o quarto ponto, que congrega talvez a frente antibolsonarista mais ampla, sob clara liderança liberal. Detalhe: aqui o bolsonarismo beneficia-se da boa (medida nas pesquisas) sustentação social da agenda conservadora.

Já no ponto 5 o assunto diluiu depois que o presidente da República conteve o verbo dos apoiadores dele, parou de produzir fatos conflitivos diários e entrou firme nas negociações com os demais poderes constituídos. Não se sabe se é estratégico ou apenas tático, mas alcançou-se o objetivo de dar uma acalmada.

Na maior parte dos anos de resistência ao regime militar persistiu um consenso vago sobre a redemocratização, mas só a esquerda defendia a anistia ampla geral e irrestrita e que a nova institucionalidade fosse construída por uma assembleia nacional constituinte livre, democrática e soberana. Qual é exatamente a bandeira que hoje só a esquerda defende? O que a distingue do resto?

No universo dito progressista, o debate predileto do momento é sobre a frente ampla versus a frente de esquerda. Na real, a dúvida de fundo é sobre a conveniência ou não de considerar desde agora o apoio a um “centro” em 2022. Mas a falta de clareza programática faz hoje a esquerda nem ter ideia do que reivindicar, de diferente, na eventualidade de ter de apoiar outra alternativa num possível segundo turno contra o bolsonarismo.

===================

Publicado originalmente na revista Veja 2.697, de 29 de julho de 2020

quinta-feira, 23 de julho de 2020

O que falta na equação

Conforme a volta às atividades segue sua marcha, novos desafios entram em pauta. O mais agudo agora é o retorno dos estudantes às aulas presenciais (ouça).

Se não por outras razões, extremamente importantes aliás, quanto mais tempo as crianças e jovens permanecem sem ir à escola mais se aprofunda o fosso entre os estudantes das boas instituições e os das não tão boas assim.

Porque é óbvia a assimetria entre o ensino a distância oferecido na escola pública e na particular.

Esta semana o Brasil debateu a educação, motivado pela votação da proposta de emenda constitucional do Fundeb (leia).

De tempos em tempos vota-se algum projeto para oferecer mais recursos ao ensino. É meritório.

Falta entretanto discutir um problema. Nos últimos (muitos) anos tivemos na maior parte do tempo ministros da Educação prestigiados, as verbas para o setor só crescem e talvez exibamos por aqui um dos mais detalhados sistemas de avaliação de desempenho.

Mas a qualidade avança pouco. Alguma coisa está faltando na equação.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Por enquanto

O terceiro teste do presidente Jair Bolsonaro ainda deu resultado positivo. Uma reportagem do UOL explica bem a relatividade da informação (leia). A verdade é que, como já dito muitas vezes, na pandemia da Covid-19 os especialistas aprendem em pleno voo como funciona o avião. Não chega a ser uma novidade em pandemias. Vai-se aprendendo com ela à medida que oferece mais material para estudo.

Ainda sobre os testes, os Estados Unidos são o país recordista em casos e mortes por SARS-CoV-2 e Donald Trump diz que é porque ninguém testa o mesmo tanto que os norte-americanos. Quem foi checar acha que não é bem assim (leia). De todo modo, uma coisa é inquestionável: onde se optou pela "imunidade de rebanho" (se ainda não sabe o que é isso clique aqui) está morrendo mais gente.

Por outro lado, e sempre tem um outro lado, é preciso ver como vai ficar a situação quando os países e localidades que optaram pelo isolamento social radical completarem a reabertura. Espera-se naturalmente um aumento de casos, e de mortes, já que o vírus não é o tipo de sujeito que se cansa de esperar e vai embora. Por enquanto, a contabilidade é amplamente favorável a quem decidiu fechar tudo. Por enquanto.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Disciplina lá, resiliência aqui

O G1 traz interessante reportagem sobre o sucesso do combate à Covid-19 na Mongólia, onde simplesmente não se registraram até agora transmissões locais do SARS-CoV-2 (leia). E nenhuma morte. Sim, zero mortes.

A receita? Medidas precoces, como fechamento radical de fronteiras, monitoramento estrito de possíveis casos e casos confirmados e, principalmente, alta disciplina social na implementação de providências de isolamento e afastamento.

Mas nem tudo são flores. Lá, como cá, cresce a pressão pelo afrouxamento das medidas draconianas. Lockdowns são como as guerras: relativamente fáceis de entrar, bem mais difíceis de sair.

E o efeito de longo prazo na popularidade dos governantes?

Por aqui, num país recordista em números complicados, as pesquisas mostram que Jair Bolsonaro começa a se recuperar do algum sofrimento que a popularidade dele viveu nos meses recentes (leia). O presidente da República parece manter a resiliência.

Aguardam-se os próximos capítulos.


domingo, 19 de julho de 2020

Dispersão municipal

Em 1988 os então partidos de esquerda elegeram dez dos vinte e cinco prefeitos nas capitais. Tocantins ainda não tinha se separado de Goiás, então eram só vinte e cinco mesmo. No interior, especialmente no Sul-Sudeste, a esquerda também fez boa colheita.

Era um prenúncio de que no ano seguinte a “onda vermelha” daria um gás a candidatos ditos progressistas na primeira sucessão presidencial direta da redemocratização. Não deu outra: Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Leonel de Moura Brizola (PDT) disputaram cabeça a cabeça uma vaga no segundo turno.

No fim Lula passou mas não levou, deu Fernando Collor de Mello e o resto da história é conhecido.

Esse prolegômeno teve a finalidade de lembrar que eleições municipais, se não têm a propriedade de embasar mecanicamente previsões para futuros embates eleitorais, de vez em quando servem de termômetro. Foi o que se passou em 1988.

O país está absorvido pelas disputas políticas em torno da pandemia da Covid-19, de seus efeitos na estatística sanitária e na estatística econômica. A esta altura, em outros anos, as pessoas estariam começando a prestar atenção na eleição de prefeito e vereador.

Não é o que acontece agora.

Teremos uma campanha curtíssima, e que vai se desenvolver principalmente por meios remotos. E num cenário no qual ações heterodoxas de propaganda pela internet serão certamente motivo para processos de cassação de quem se aventurar a ilícitos.

A relação benefício/custo desse tipo de gambiarra anda cada vez mais desfavorável.

Mas o que está se desenhando para a eleição deste ano? Em primeiro lugar a dispersão. Não há nenhum partido com jeito de apontar como o novo candidato a disputar a hegemonia eleitoral do centro para a direita.

A nova legenda de Jair Bolsonaro não se viabilizou a tempo e a antiga não poderá contar desta vez incondicionalmente com o combustível do bolsonarismo.

O mesmo acontece por enquanto na esquerda, onde o PT leva jeito de vir a encarar sua mais difícil eleição municipal desde a fundação do partido. E os concorrentes nesse campo tampouco sinalizam um desempenho brilhante.

E tem a novidade da proibição das coligações para vereador. O que, na teoria, levará à multiplicação de candidatos inexpressivos a prefeito, e portanto a mais pulverização. Só depois dos resultados é que virá, ou começará a vir, a consolidação.

O presidente da República está em situação razoavelmente confortável. Não se prevê uma tendência plebiscitária nesta eleição. E depois dela Jair Bolsonaro poderá fazer a tradicional colheita entre prefeitos recém-eleitos e já com a corda das finanças no pescoço.

Mais desafiadora é a situação dos governadores, que precisam consolidar a base municipal para tentar a reeleição ou eleger o sucessor.

Vão ser entretanto favorecidos pela campanha curtíssima e pela anemia da mobilização de rua. E serão cabos eleitorais ainda mais importantes que de hábito. Isso embute riscos: eventuais derrotas de seus candidatos serão em grande medida derrotas deles próprios.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Tempos diferentes

Cientistas, curiosos e jornalistas debruçam-se sobre a tal "imunidade de rebanho". É o ponto em que tanta gente já está imune ao patógeno que o infectado passa a infectar menos de uma pessoa em média. E daí a curva de novos infectados entra em declínio.

Há alguns dias discute-se a possibilidade de esse ponto estar num percentual abaixo do previsto inicialmente. Sobre o assunto, recomendo o sempre cuidadoso Helio Gurovitz (leia). Só a ciência, lá na frente, dará uma resposta final.

Mas agora apareceu outra novidade: a hipótese de a imunidade a outros vírus, por exemplo o da gripe, ajudar na resistência ao SARS-CoV-2 (leia). Será um achado e tanto, se for comprovado. Sempre é bom esperar pela comprovação nestes casos...

Há muita reclamação contra eventuais achados que ainda não passaram por plena comprovação científica. Mas é apenas um efeito colateral da maciça atenção dada à pandemia pelos canais de comunicação. O tempo do jornalismo é bem diferente do tempo da ciência.

E não adianta reclamar.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Segunda onda

Estados Unidos, Irã e Israel. Não, este não será um texto sobre conflitos bélicos nem sobre geopolítica. Como mostra o gráfico abaixo do Financial Times (média móvel diária de sete dias de mortes por Covid-19), são três países em que parece estar havendo uma assim chamada "segunda onda", mesmo depois de a primeira ter claramente entrado em declínio, nuns casos mais forte e noutros mais suave. Mas sempre declinante.

O Brasil segue no seu planalto de país relativamente estabilizado na complicada liderança mundial de óbitos diários. Hoje infelizmente batemos de novo o recorde de falecimentos, sempre na média móvel de sete dias. Chegamos a 1.072 mortes diárias (o recorde anterior era de 1.058 mortes, em 23 de junho). Qual será o caminho da nossa curva? Depois do planalto vamos descer a ladeira ou vai acontecer como nos três exemplos acima?

Teremos uma segunda onda, decorrente principalmente da dispersão territorial do SARS-CoV-2?


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Rumo à judicialização no pós-pandemia

O título poderia servir para o Brasil, mas tem a ver com o que se passa na Itália (leia). Parentes de vítimas da Covid-19 recorrem à Justiça para responsabilizar autoridades por possível omissão. 

Se for em frente e der certo, a iniciativa não trará, infelizmente, de volta os entes queridos, mas terá a capacidade de causar considerável dor de cabeça para governantes e orçamentos públicos.

Talvez venha a ser uma novidade desta epidemia em relação às anteriores da história da humanidade. Quem sabe? E a coisa certamente acabará nas cortes superiores de cada país, no mínimo pelo volume de ações e pela abrangência do problema. 

Isso se não acabar no Tribunal Penal Internacional. Instituição que não costuma abrir mão de oportunidades de protagonismo.

Ou seja, o pós-pandemia (haverá um "pós"?) promete emoções fortes, com tribunais, juízes e governantes duelando.

A turbulência, nas diversas frentes, pode só estar começando. Mas tem um detalhe: problemas quando ficam grandes demais estão maduros para que sejam deixados simplesmente para lá.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Factoides

Donald Trump recuou da decisão meio estranha de extraditar alunos estrangeiros de instituições de ensino dos Estados Unidos que só estejam oferecendo nesta pandemia aulas remotas (leia). Deve ter se antecipado a uma muito provável decisão judicial contrária. Alguém deu um toque ali.

Parece que quis forçar a volta às aulas presenciais.

É comum governantes recorrerem a factoides, que de vez em quando podem até ser caracterizados como maluquices, para tentar atravessar corredeiras de crise. Mas a abordagem convencional do crítico também pode errar. De vez em quando o que parece que vai afundar o líder acaba ajudando-o.

Por aqui, falta algum método no debate sobre a Covid-19, sobre o que deveria ter sido feito e não foi, e que talvez tivesse poupado vidas. Isso poderia ser resolvido, por exemplo, comparando-se abordagens distintas no enfrentar da pandemia em nosso território e os diferentes resultados obtidos. Estamos longe disso aqui no Brasil.

País onde qualquer um que hoje em dia proponha debater racionalmente um assunto será provavelmente tratado como insano ou oportunista. No mínimo.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

E nos EUA...

Assolada pela crescente curva de casos, a Califórnia deu marcha-a-ré na reabertura da economia (leia). E um estudo de universidade norte-americana (Harvard) informa que pelo menos 110 mil pequenos negócios fecharam as portas entre o início de março e o início de maio naquele país. Aliás vale a pena ler a reportagem do NYT sobre o drama das pequenas empresas ali (leia).

No final do ano tem eleição nos Estados Unidos. Não é o caso de subestimar a preocupação sanitária, mas política é política. Donald Trump luta para reduzir o sofrimento eleitoral dele, pelo menos na parte atinente aos efeitos econômicos da Covid-19, Estão em alta no marketing dele as acusações contra a China. Com um problema: os EUA, diferente da China, tiveram tempo para se preparar.

Mas infelizmente levam todo o jeito de não ter se preparado para a pandemia. Hoje lideram em números ruins o grupo de países que em algum momento parecem ter optado pela chamada imunização de rebanho. E isso está tendo um custo. Em casos e, portanto, em mortes.

Qual será, afinal, o peso eleitoral dessa decisão?


domingo, 12 de julho de 2020

Segue o jogo entre o bolsonarismo e "o sistema"

Vai aqui uma linha do tempo político do governo Jair Bolsonaro.

Foi eleito numa onda de bonapartismo (governar com o que considera "o povo", por cima das instituições). Na largada, satisfez esse desejo do eleitorado e não teve problemas reais com o Congresso e o Judiciário em 2019. Seu único transtorno real era a ação da direita não bolsonarista, que removera Dilma Rousseff mas fora derrotada na eleição.

Aí este ano veio a Covid-19, com suas crises sanitária e econômica. Aí o sistema (doravante sem aspas) viu uma oportunidade para contra-atacar. Aí o presidente contra-contra-atacou radicalizando contra o sistema por meio de apoio tácito a apoiadores verborrágicos e desejosos de coisas como fechamento do Congresso, fechamento do STF e intervenção militar com Bolsonaro no poder.

Aí Bolsonaro viu danificado o argumento dele de defensor da liberdade (por ele mesmo definida) e o sistema contra-contra-contra-atacou. Aí reforçou-se o sonho de uma frente ampla antibolsonarista. Aí Fabrício Queiroz foi preso. Aí o presidente acelerou a aproximação com o dito centrão e enveredou por uma linha tática de moderação verbal. Aí a frente ampla começou a perder musculatura.

Mas o sistema continuou ganhando protagonismo, agora com a providencial ajuda do poder de polícia do STF, e é o estágio em que estamos. Uma etapa de equilíbrio entre o bolsonarismo e o sistema. Se perdurar, deslizaremos para a assim chamada guerra de posição. Que ainda não é um “empate catastrófico”.

Esse empate se dá quando o equilíbrio entre antagonistas paralisa o processo. Não é o caso. O bolsonarismo momentaneamente liderado pela fração dita realista e pragmática pode perfeitamente recompor-se com a maioria congressual e o establishment para fazer avançar a agenda, especialmente a econômica, mesmo que agora temperada com pitadas de social. O “Renda Brasil” vem aí.

Mas nem isso garantiria com certeza - atenção - uma estabilidade estável, pois o front judicial opera com algum grau de autonomia, pelas suas características heterogêneas. São muitos ali os postulantes a protagonista nas múltiplas frentes: o Supremo, o TSE, o TCU, o STJ etc. Sem falar do arranca-rabo no MP.

É muita variável operando simultaneamente. Precisaria de um maestro dos bons. Até o primeiro governo Dilma a ascendência do Executivo sobre os demais poderes vinha funcionando. O Executivo cumpria bem o papel. O bonapartismo de Bolsonaro veio como tentativa de restaurar isso depois que Dilma e Michel Temer deixaram o poder escorrer pelos dedos.

O governo vai indo meio aos trancos e barrancos, em algumas áreas melhor e noutras pior. O Congresso não mostra disposição real de confronto, no máximo alguns brilharecos em entrevistas coletivas e atos heterodoxos de alcance político limitado, mas sempre capazes de gerar manchetes. Onde está o problema? No Judiciário. Ali são vários os candidatos a herói.

E tem ela, a Covid-19. Que parece ter entrado num planalto de mortes. Quem pagará a conta política? O núcleo duro do eleitorado bolsonarista, cerca de um terço do estoque, parece firme, até agora. Os governadores vinham com alguma folga, mas é preciso ver como será a administração da popularidade deles na reabertura ainda com o SARS-CoV-2 forte por aqui.

E tem a economia... Sempre ela.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Dar vazão à represa

Num aparente platô de novos óbitos diários, São Paulo acelera a reabertura da economia (leia). É o paradoxo já relatado aqui: quando o tal achatamento da curva parece funcionar para valer, chega uma hora em que se tem de operar a volta às atividades mesmo antes de a linha dos falecimentos diários começar a cair.

Era uma conta feita desde o começo. O achatamento da curva sempre teve por objetivo impedir o colapso dos hospitais e UTIs. Mas impunha um preço: estender o período de paradeira econômica. Até que ponto a sociedade estaria disposta a pagar esse preço para preservar a integridade dos serviços de saúde?

Isso está sendo respondido na prática. Quando chega a hora de os políticos decidirem, a “ciência” dá lugar ao cálculo. Em todos os cálculos dos políticos encarregados de tomar decisões Brasil afora, parece ter chegado a hora de dar vazão às águas da represa antes que ela transborde e leve a barragem de roldão.

Quando vamos acordar?

O país onde a doutrina liberal deu mais certo quando levada à prática foram os Estados Unidos da América. Do outro lado do mundo, um caso em que os mecanismos de mercado tiveram resultado expressivo é a República Popular da China. Convém olhar o que funcionou nesses dois exemplos, para copiar acertos. De erros, temos portfólio próprio.

Esse é um exemplo de narrativa. Verdade que existem sempre hiatos, gaps, entre narrativas e fatos. De vez em quando, ou quase sempre, narrativas são instrumento útil para simplificar e embelezar uma realidade, com o propósito de construir argumentos para a disputa ideológica. Assim foi e continuará sendo a humanidade. Para todo o sempre.

Mas narrativas são importantes sim. Elas ajudam a forjar coesão social e política, sem o que nenhum agrupamento humano alcança objetivos. Disputas sobre valores e rumos não são jogos retóricos vazios. Constituem armas, especialmente quando as ideias nascidas da reflexão sobre os fatos conseguem elas próprias transformar-se em força material.

Dois pilares são estruturantes na ideia que a sociedade norte-americana faz dela própria: 1) não aceitar passivamente o apetite crescente do Estado por impostos. E 2) dar grande importância ao império da lei, que ali chamam de “rule of law”. E o grande programa social da China, responsável por tirar mais de um bilhão de seres humanos da pobreza, é o emprego.

Emprego criado especialmente na, e pela, iniciativa privada.

Por aqui, talvez nunca as ideias liberais tenham enfrentado tão pouca resistência quando neste Brasil de Jair Bolsonaro. E nunca houve entre nós tanto consenso majoritário de que cabe aos capitalistas ser o motor principal da retomada da prosperidade. Há debates em torno disso, mas nenhuma visão realista consegue apresentar alternativa com o mínimo de viabilidade.

Mas o discurso fica diferente quando se passa à fase de tirar as ideias do papel. Não sei se há algum outro lugar em que economistas liberais estejam propondo aumento de impostos em meio à recessão econômica provocada pela Covid-19. E num aspecto, reconheço, não somos originais: no apoio a episódios de manipulação da Justiça com objetivos político-eleitorais.

Por aqui a “rule of law”, como dizem, ainda está devendo. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.

E o emprego, o esquecido? Qual é a iniciativa real para fazer avançar a indústria, única capaz de produzir bons postos de trabalho em quantidade para absorver o estoque excedente de mão de obra, especialmente a mais jovem? O que estamos fazendo para aproveitar, neste ponto, o real desvalorizado e dar um grande salto também na exportação de manufaturados?

Os Estados Unidos chegaram onde chegaram com a “rule of law” e a poupança privada. Há alguma mitologia nisso? Sim, mas a narrativa reflete algo da realidade. A China construiu o maior programa social do mundo, e se apresenta como a nova superpotência do século 21, gerando empregos principalmente pela exportação de bens manufaturados.

E nós, vamos acordar quando?

====================

Publicado originalmente na revista Veja 2.695, de 15 de julho de 2020

quinta-feira, 9 de julho de 2020

O problema é a bagunça

Brasília vive o vaivém das decisões judiciais e do Executivo sobre abrir ou não abrir (leia). Pode até ser um caso relativamente pouco frequente em âmbito nacional, mas é sintomático de um dos nossos principais problemas no enfrentamento da Covid-19.

O problema é a bagunça. Ninguém sabe exatamente quem manda e qual será a decisão que estará valendo amanhã. Troca-se o planejamento, nos limites do que é possível planejar num quadro como o da pandemia, pela canetada conforme o humor do momento.

E tudo sempre abrigado na casamata de uma hipotética “ciência”.

Não deve ser coincidência que os dois países mais afetados, em valores absolutos, sejam as duas nações no momento mais mergulhadas em guerras políticas intermináveis, duas federações em que “federação” parece ter virado sinônimo de fragmentação.

Uma parte da responsabilidade pela desorganização cai na conta da liderança. No fim das contas, o líder sempre é o responsável em última instância. Mas é inegável que certos sistemas políticos têm sido piores que outros para enfrentar esta emergência.


quarta-feira, 8 de julho de 2020

Focalização?

Os números de hoje da Covid-19 não são bons. Estão neste boletim para você conferir. Se não há uma explosão, os óbitos continuam num platô elevado, e pressionam para cima. O outro lado (literalmente) da moeda? O comércio varejista cresceu forte em maio em relação a abril (leia), apesar de ainda correr atrás dos números registrados ano passado.

Uma parte deve-se certamente ao chamado auxílio emergencial (leia), que não só manteve algum poder de compra nos mais pobres, mas inclusive aumentou. A dúvida? Como vai ser quando alguma hora isso tiver de parar, ao menos no volume em que é feito hoje. De todo modo, a experiência já oferece um argumento e tanto aos defensores da dita focalização.

Estes defendem que o Estado não precisa necessariamente investir mais em programas sociais, precisa investir melhor. Não deixam de ter alguma razão. Como já demonstrado em estudos, o Brasil consegue a façanha de ter gastos sociais que concentram renda.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Queijo suíço

As últimas horas não foram só de boas notícias no front científico da luta contra o SARS-CoV-2. Cientistas agora suspeitam que o vírus pode se propagar “pendurado” em partículas suspensas no ar (leia).

E em Israel constatou-se que alguns recuperados da Covid-19 simplesmente não apresentam traço de anticorpos para o novo coronavírus (leia). Não é que apresentem baixa quantidade de anticorpos: a taxa é zero.

Tudo ainda precisa ser confirmado, ou definitivamente afastado, mas uma coisa, para usar o chavão, salta aos olhos. A ciência está aprendendo a pilotar o avião da pandemia em pleno voo.

E não seria mesmo diferente, pois é um vírus novo. Mas talvez a situação devesse fazer trocar a arrogância pela humildade, admitir que não se sabe muita coisa sobre o vírus e sua ação. Deixar isso claro.

Só que não combina com a necessidade patológica que os políticos têm de estar sempre certos. E desta vez usando a “ciência” como escudo. E isso quando a mesma dá a impressão de queijo suíço.

Cheia de buracos.


segunda-feira, 6 de julho de 2020

Achatamento longo?

Sempre é possível a surpresa, e elas têm acontecido, mas o Brasil parece mesmo ter achatado a curva de mortes. Ainda que num patamar altamente desconfortável.

É o que mostra o gráfico do Financial Times (veja abaixo) com a escala logarítmica da média móvel de óbitos dos sete dias mais recentes.

O gráfico mostra a comparação entre países de certa dimensão que estão agora no olho do furacão. Já os Estados Unidos, que vinham pior, parecem ter fletido para baixo a curva. Ainda que de modo suave.

Resta torcer para que embiquemos logo para baixo, graças inclusive a não ter havido entre nós até agora - que continue assim - colapso hospitalar, inclusive nos cuidados intensivos.

O mais realista, porém, será adotar planejamentos para um achatamento longo. Já saímos do trecho exponencial, mas não levamos jeito de sair tão cedo do trecho com cara de progressão aritmética. 



sábado, 4 de julho de 2020

Um desfecho pouco glorioso

Outro dia num bate-papo informal e algo provocativo propus uma solução meio piadista e meio séria para a polêmica que divide a oposição: se a aliança contra Jair Bolsonaro deve ser uma frente ampla democrática ou uma frente de esquerda. “Façam como no Uruguai: criem uma frente de esquerda e chamem de Frente Ampla.”

Claro que não solucionaria o cisma, hoje distante de solução, mas seria um truque do tipo que Tancredo Neves e Magalhães Pinto operaram na passagem dos anos 1970 para os 80. Criaram um partido de centro-direita e chamaram do nome que na época era cogitado para rotular uma eventual frente de esquerda: Partido Popular. Roubaram a marca. Acontece.

A história conta que depois o presidente João Figueiredo e seu PDS, sucessor da Arena, impuseram o voto vinculado, e na urna de 1982 o eleitor seria obrigado a votar de vereador a governador em candidatos do mesmo partido. Aí os liberais sentiram-se traídos e a maioria deles reagruparam-se no PMDB, que sucedera o MDB do bipartidarismo.

Essas histórias hoje já antigas ajudam a compreender que o dito centro tem esse nome exatamente porque pendula conforme a circunstância, mas sem nunca perder a identidade, que aponta mais para a direita que para a esquerda. Aliás esse locus político tem como vocação principal não exatamente apoiar outros, mas recolher apoio.

A frente ampla até vinha razoavelmente bem, daí Bolsonaro resolveu jogar mais o jogo da política. Como se pode notar a partir dos fatos, esses teimosos, as defecções nela agora têm sido mais frequentes. Vão desde os que caíram fora da live do “Direitos Já” até quem de repente mudou de ideia e passou a defender que não, não é hora de pensar em impeachment.

Mas a prova de fogo vai ser mesmo nas eleições. O que vai prevalecer, em especial onde terá segundo turno? A frente contra a esquerda ou a frente contra a direita? Ou não vai ter uma regra, uma tendência? Ou vai predominar, dentro de cada campo, a guerra fratricida de olho na necessidade de atrapalhar o fortalecimento excessivo de algum “aliado”?

Na real, não existe frente sem programa político. Frentes “de resistência” são frágeis, também porque são óbvias. Uma ampla frente político-social opõe-se, por exemplo, aos movimentos que pedem o fechamento do Congresso Nacional e do STF. E do mesmo modo que facilmente se agrupa, desmancha-se quando o “que fazer?” é colocado na mesa.

O MDB e depois o PMDB dos idos do regime militar tinham objetivos programáticos claros. O principal era, no caso do primeiro, a revogação da legislação excepcional. Do segundo, a volta das eleições diretas em todos os níveis. Ambos foram vitoriosos, o AI-5 acabou em 1978 e as diretas voltaram em duas etapas: 1982 e 1989.

Depois o PMDB teve um momento brilhante, no Plano Cruzado que lhe deu safra gorda na eleição de 1986. Daí produziu uma Constituição, que hoje agoniza, e entrou em declínio.

No momento, seus diversos spin-offs misturam-se aos derivados da velha Arena para formar a constelação que a imprensa chama de centrão, quando não aceita que negociem com o governo de turno. E que chama de “partidos de centro” quando um governo que ela apoia precisa negociar para obter apoio no Congresso.

Não chega a ser um desfecho glorioso.


sexta-feira, 3 de julho de 2020

O que falta resolver no MEC

E lá vamos nós para a terceira troca no Ministério da Educação, do qual tiraram a Cultura mas continua sendo chamado de MEC.

Até porque ME (dito assim: “eme é”) sempre foi o jeito de chamar o movimento estudantil. Que nem sempre esteve de boas com o ministro e o ministério da área.

Nunca é tarde para tentar acertar, e a regra vale também para o MEC. O problema fundamental da educação brasileira, e que mereceria atenção total das autoridades da área, é conhecido: as escolas não são boas. 

Nossos estudantes, na média, costumam ranquear atrás dos de muitos outros países. E o defeito fundamental está no ensino do mesmo nome.

Já se tentou de tudo. Já se culpou quase todo mundo. O que ninguém disse até agora foi como fazer nossas crianças pobres saírem da escola sabendo Português, Matemática, Ciências e História. 

O ministro brasileiro da Educação que desatar esse nó poderá, quem sabe?, até aspirar ao Nobel. Ou, quem sabe?, virar candidato a presidente da República.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Velho companheiro?

Amostras de esgoto da capital catarinense, Florianópolis, de novembro do ano passado apresentaram presença do SARS-CoV-2 (leia).

É um achado importante, mas não chega a ser páreo para Barcelona, onde foi detectada presença do novo coronavírus em amostras de esgoto de março de 2019 (leia).

Com a palavra os especialistas. Que mais credibilidade têm quando mais facilmente admitem muita coisa ainda não sabida sobre a Covid-19. Já entre os leigos a moda parecem ser as certezas absolutas. 

Fariam melhor se seguissem a máxima de Sócrates (o ateniense): “Só sei que nada sei.”

Entrementes, o debate mundo afora divide-se entre a “segunda onda” (leia) e a organização da volta (leia). Ou da passagem ao "novo normal". 

A respeito disso, Beatriz Kira, brasileira em Oxford, produziu um relatório interessante sobre a situação aqui: “Is Brazil ready to relax COVID-19 response policies?” (leia).

A saída é informar-se e raciocinar. E praticar algum ceticismo. E não descolar da realidade. 


quarta-feira, 1 de julho de 2020

Sucesso e fracasso

Certo dia no agora longínquo março de 2020 a chanceler alemã, Angela Merkel, disse que 70% da população do país dela seriam contaminados pelo SARS-CoV-2 (leia). Chocou. Mas era um consenso já naquela época, o índice necessário para o vírus não encontrar gente a quem contaminar no período em que ainda é capaz de causar dano.

As porcentagens podem mudar conforme o tempo passa e a pandemia é mais bem estudada, mas o que não mudou foi a constatação do óbvio: as políticas de afastamento e isolamento social têm só o objetivo de desacelerar o contágio, para evitar o colapso da rede hospitalar, especialmente das unidades de tratamento intensivo.

Para saber se afinal as coisas estão ou não funcionando, se as políticas são um sucesso ou um fracasso, olhar o número de casos é inútil. Eles vão crescer até se chegar a alguma porcentagem crítica de imunizados, naturalmente ou pela vacina. Mais útil será tentar enxergar se o achatamento das curvas está protegendo mesmo a rede hospitalar.

A taxa de ocupação de UTIs, a esta altura, é o que interessa acompanhar.