sexta-feira, 1 de maio de 2020

Parecidos e diferentes

Durante alguns dias, dias atrás, o registro diário de mortes por Covid-19 no Brasil ensaiou ter estabilizado em duas centenas. Depois subiu dois degraus e agora parece desacelerar, quando gira em torno de quatro centenas.

É o que diz o gráfico (abaixo) da média móvel de sete dias, melhor para amenizar flutuações. Esperamos que o infundado otimismo de então se converta num otimismo fundado agora.

Claro que tem a subnotificação. Mas é um dado da realidade. Então vamos trabalhar com os números disponíveis.

A dúvida é falar em “Brasil” quando se analisam os números da ação do SARS-CoV-2. País continental, somos mais parecidos neste caso com os Estados Unidos.

Cá como lá temos epicentros (São Paulo, Nova York), mas a epidemia parece disseminada pelo território, com abrangência e letalidade desiguais.

A diferença, não tão pequena, é que lá são dez vezes mais mortos. Será só a diferença de testagem? Difícil.

Esperamos continuar bem longe deles nessa estatística.



O abacaxi para descascar

Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai.

Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar mas só de vez em quando têm os votos para tal.

Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como estava quase todo mundo meio encrencado com a Lava Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelos menos um punhado de bois atravessarem.

Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.

O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.

Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.

Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores da reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.

Um abacaxi não trivial de descascar.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.685, de 6 de maio de 2020

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Objetivos e subjetivos

O ambiente de radical dissenso político no Brasil vai empurrando os políticos em cargos eletivos para um jogo que tende a acabar mal para todo mundo, ou quase. Em primeiro lugar - e mais gravemente - para os doentes, mas não só. Para os políticos também.

O jogo de empurra entre a União e os estados, com a potencial tentação de o Judiciário querer tomar as rédeas, pode ser responsabilizado pela perigosa situação agora: a volta às atividades quando as curvas logarítmicas de casos e mortes ainda estão subindo.

Na falta de consenso, o cidadão vai cuidar da vida.

A lógica diz que estados e municípios vão querer endurecer o isolamento, mas a mesma lógica informa que: 1) o povão não tem como continuar parado e 2) os governantes temem a ira do eleitor pela ruína econômica, talvez tanto ou mais que a contabilidade de mortes.

Ou seja, há uma contradição crescente entre os aspectos subjetivos e objetivos da crise Covid-19. Nessas situações, a vida costuma seguir seu curso quase espontaneamente. E a conta irá para quem tem a caneta.

O ovo e o cacarejo

Artigo publicado na Folha de S.Paulo no dia de hoje.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

E São Paulo?

Talvez não seja coincidência que as curvas de casos e mortes tenham acentuado o aclive cerca de três semanas depois do começo da flexibilização mais intensa do isolamento social.

A sociedade brasileira parece ter precificado o custo de voltar agora, ainda que parcialmente. E é possível que a fatura esteja sendo apresentada. Outra constatação é que São Paulo leva cada vez mais jeito de ter a vocação para regiões como Nova York e Lombardia. Esperemos que não replique os números fatais. Vamos rezar e torcer.

Mas é visível, e mensurável, a desproporção com o resto do país. Uns dirão que em São Paulo as estatísticas são mais fiéis. Uma explicação que demandará demonstrações. Mesmo considerando a autoestima dos paulistas.

Enquanto isso segue o baile entre o presidente e o governador, para ver quem ganha nos talking points. Não é exclusividade brasileira. A briga nos Estados Unidos entre Trump e os governadores está no noticiário.

Mas isso não chega a ser consolo.

terça-feira, 28 de abril de 2020

O limite da resiliência

As pesquisas mostram que vai mal a avaliação de como Jair Bolsonaro enfrenta o SARS-CoV-2, o novo coronavírus. Mostram também que isso não impacta por enquanto a visão mais geral sobre o governo dele. O ótimo/bom está em um terço, o ruim/péssimo um pouco acima e o regular um pouco abaixo.

O presidente tem resiliência, sabe-se. É a propriedade de voltar à forma original após uma deformação elástica. Mas talvez a estabilidade dos números esconda uma troca. A saída de um certo contingente de classe média e a entrada de segmentos de baixa renda beneficiados pelas medidas de apoio financeiro na crise.

A dúvida é como, e se, a popularidade presidencial vai sofrer com a curva ascendente de mortes e o prolongamento das dificuldades econômicas. Na Covid-19, talvez a primeira corrosão aconteça no capital político dos governadores. Mas há um flanco aberto na imagem presidencial, pelo estímulo insistente à volta às atividades.

Vamos ver como a sociedade reage aos cada vez mais tristes números. Nas duas frentes.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Dificuldades combinadas

Na maioria dos países a coisa tem funcionado assim: as curvas de infectados e mortos pelo SARS-Cov-2 sobem rápido, o crescimento estabiliza-se e a queda é bem mais lenta que a subida.

Por isso, as medidas de flexibilização do isolamento social não têm esperado o fim da pandemia. Até por não se saber quando, e se, virá o “the end”.

No Brasil acontece um pouco diferente. A reabertura mesmo que gradual das atividades dá-se quando as curvas de infectados e mortos teimam na trajetória ascendente. A subida não parece brusca, mas depois de um platozinho voltou a ser subida.

Talvez seja porque fechamos cedo demais e não tem como não abrir agora, mesmo com números ruins. Ou é porque o isolamento aqui foi bagunçado pela guerra política rumo a 2022. Ou tem a ver com a subonitificação.

Independentemente do viés da análise, parece hoje (é preciso atualizar todo dia) que devamos ser menos otimistas sobre a possibilidade de combinar graves dificuldades econômicas e sanitárias durante um bom tempo.

Os riscos e a prudência

Tentar decifrar o que vai no pensamento alheio é sempre meio estrambótico. Tipo aquelas especulações “o presidente pensou em nomear fulano, mas acabou nomeando sicrano”. Um exemplo de afirmação indesmentível. Quem poderá mesmo garantir que o sujeito pensou em algo, ou deixou de pensar? E assim segue a vida.

Outra excentricidade é imaginar que todas as ações de governos e governantes são previamente pensadas e planejadas para atingir determinados objetivos, e sempre obedecendo a um bem elaborado e pré-estabelecido cenário. Parte do pressuposto, em geral, de que o governante é um gênio.

Esses dois mecanismos mentais derivam em parte da necessidade compulsiva de que tudo tenha uma explicação lógica, necessidade que é irmã siamesa do desejo de acreditar que as decisões de quem nos lidera têm sempre um fundo racional. O paralelismo mais comum, usado à exaustão, é com piloto de avião e comandante de embarcação.

Pululam as teorias sobre a razão da saída de Sérgio Moro. Todas merecem ser jornalisticamente investigadas. Então eu vou participar também com algum “especulol”. E se Jair Bolsonaro forçou a demissão para evitar que um potencial adversário em 2022 continuasse se criando e ganhando musculatura política de dentro do governo?

Perguntei aqui em janeiro: “E se Moro virar o candidato do ‘centro’?”. Sabe-se que 1) a principal oposição ao presidente desde o início do mandato é a busca de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”; e 2) até agora os candidatos a liderar esse bloco potencial não demonstram musculatura suficiente, pelo menos nas pesquisas.

A demissão de Moro abre-lhe a possibilidade de disputar o posto agora sem amarras. Mas depende de ele conseguir provocar a amputação do mandato presidencial. Por meio do Congresso ou da Justiça. E depende de um segundo fator: caso Bolsonaro saia, impedir que o vice se consolide na cadeira rumo a 2022.

É um jogo em que tudo tem de dar muito certo. Nada pode dar errado. Uma jogada de alto risco.

Talvez por raciocínio, talvez por intuição, Bolsonaro leva jeito de ter forçado mesmo a demissão de Moro. Poderia eventualmente ter seguido a dança e não feito publicar logo pela manhã no Diário Oficial a exoneração do chefe da Polícia Federal. Imagino que soubesse: ficar nesta circunstância seria humilhante demais para o ex-juiz da celebrada Lava-Jato.

E já que estamos falando em risco, o de Bolsonaro é o impeachment ou alguma outra modalidade legal de afastamento. Neste momento, são bem minoritárias as forças políticas que desejam isso de coração. Exatamente porque não são elas que comerão o bolo se organizarem a festa. Ou vai ser Moro, ou vai ser (Hamilton) Mourão.

A resistência dos políticos nunca é garantia, mais ainda quando a chamada opinião pública entra em modo de campanha para supostamente salvar o Brasil, algo que se dá de tempos em tempos. Entretanto, pensando bem, é um processo que já vinha sendo ensaiado. Então é possível que Bolsonaro tenha decidido limpar a área, mesmo que à beque de fazenda.

Ainda falando em risco, um adicional para Moro é sua onda ser surfada por quem deseja tirar o presidente e depois o ex-ministro ser simplesmente abandonado em favor de quem estará na cadeira com a caneta na mão e isento de culpa na confusão. Sobre isso, cumpre notar que o retrospecto do destino dos heróis dos recentes impeachments recomenda alguma prudência.

domingo, 26 de abril de 2020

Pontinhos políticos

O patamar por aqui do registro diário de óbitos (não confundir com óbitos diários) vinha ao redor de 200, subiu duas centenas e hoje voltou a cair. Será que é o domingo? Uma dúvida é se estava morrendo mais gente mesmo de Covid-19 ou se os falecidos vinham sendo testados mais rapidamente.

Ou as duas coisas.

A importância não é só estatística. Precisamos saber se andamos na ascendente ou no platô. Na descendente é que não estamos mesmo ainda. Saber por onde caminhamos seria importante para a decisão oficial de amainar o isolamento partir do chamado “critério técnico”.

Que aliás é uma impossibilidade na vida real. Políticos têm cada um seu “critério técnico” para tomar decisões políticas. Vale para “critério técnico” e também para “ciência”. Ambos existem sim, mas quando absorvidos pela narrativa política a coisa complica.

O fato? Todos os governos organizam a volta ao trabalho e às atividades. O isolamento total está no fim. Na boa? Quem jogou no ponto futuro, sabendo que a parada não poderia mesmo durar muito, fatura agora uns pontinhos. Desde que a tragédia não ganhe dimensões bíblicas. Os números não indicam. De novo, vamos torcer.

sábado, 25 de abril de 2020

Teatro do absurdo

No filme O Show de Truman, de 1998, o personagem de Jim Carrey tem, sem saber, sua vida transmitida para o mundo todo. Interessa para esta análise o final: uma hora o público se cansa e muda de canal.

Noutro filme, de cinco anos antes, O Feitiço do Tempo, que deveria chamar O Dia da Marmota, o personagem de Bill Murray fica preso numa repetição diária do dia anterior.

Aparentemente, o público está se cansando na rotina macabra da Covid-19. Aqui e lá fora. As mortes incorporaram-se ao cenário e deixaram de ser notícia, a não ser quando o recorde de números é a novidade, ou talvez quando algum famoso infelizmente vem a falecer. No mais, são dias da marmota.

Cansado, o público é atraído para outro show: o divórcio Moro-Bolsonaro. O problema é que, mais infelizmente ainda, as UTIs dos hospitais públicos por aqui parecem perigosamente no limite. E a nova queda de braço não eliminou a anterior: os políticos continuam brigando enquanto o povão dá de ombros e simplesmente tenta voltar a alguma normalidade.

Em pleno drama, o país parece apreciar mesmo o teatro. Do absurdo.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

O que deveria preocupar o poder

O governo estava organizado para tempos de bonança política e disposição empresarial de investir. Mas o vento virou 180 graus e agora ele precisa sobreviver em meio à tempestade política e à brutal retração da confiança.

É hora de recorrer à tão mal falada política, e isso vinha sendo construído. Só que o avião entrou em zona de forte turbulência e vai exigir habilidade do piloto. Que depende de duas coisas.

No mundo da política não existe disposição de trocar Bolsonaro pelo vice, visto como bem mais capaz de construir um poder estável sem os políticos. E portanto uma ameaça aos que ambicionam as cadeiras premiadas. Em 2022 inclusive.

Mas se o ex-ministro da Justiça tiver reunido provas de delitos presidenciais a correnteza política ganhará vida própria. Sua excelência o fato. E será preciso também avaliar o grau de corrosão na imagem do presidente.

Provas e impopularidade. Eis a combinação que deveria preocupar o poder e ocupar seu tempo. Um tempo precioso que poderia estar sendo usado a favor da economia e contra o SARS-Cov-2.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Números, números

O número recorde de óbitos despertou uma dúvida sobre se é aumento efetivo dos falecimentos ou efeito retardado de checagem retroativa. De todo modo, conforme a fila de testes dos falecidos for sendo zerada a subnotificação será reduzida.

Não se sabe até quanto. Mas o sabido crescimento das mortes por quadro respiratório sem especificidade carrega uma justa suspeita.

Outro dado relevante que anda meio obscuro é a taxa de ocupação de UTIs nos estados, especialmente nos hospitais públicos. Os índices gerais continuam razoáveis, mas sem saber qual a ocupação por categoria (público, privado) fica difícil diagnosticar se estamos com folga, quanta folga e onde.

O trabalho dos governos vai ser organizar a volta das atividades concomitantemente a números que flutuam, e pelo visto de maneira algo selvagem. Não será trivial.

Ilusão será achar que uma vez deflagrada a volta qualquer governo conseguirá facilmente dar a marcha-a-ré.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O fim do começo

Há uma certa ansiedade pela volta ao normal. É consequência de os casos e óbitos não terem explodido, apesar de quaisquer números serem preocupantes e lamentáveis. Mas a tendência é a Covid-19 passar a ser vista pelo público aqui como um dado da realidade.

Existe, é claro, a subnotificação, de casos e falecimentos, mas parece um fenômeno global, como relataram reportagens da The Economist e do The New York Times. Há também o problema da sobrecarga nos serviços de saúde.

Mas se não houver um colapso a opinião pública infelizmente tende a absorver em algum grau. Todo problema que estende no tempo, repetindo, tem a tendência de deixar de ser notícia, ou de ser notícia menos aguda.

Por isso, há um certo ambiente de transição. Não que estejamos perto do início do fim. Sem uma vacina, as medidas de proteção e algum afastamento social tendem a incorporar-se ao panorama. Vide a disseminação do uso das máscaras.

Talvez estejamos chegando ao fim do começo.

terça-feira, 21 de abril de 2020

A tristeza do galo

O fim do isolamento absoluto é um fato por aqui, no curto (já) ou médio (15 dias) prazo. Está sendo aqui e no resto do mundo. E não é porque os políticos dizem para fazer isto ou aquilo.

Quem acredita que o povo vai atrás cegamente dos políticos pode se decepcionar como na velha história do galo que cacarejava todo dia à passagem do trem. E estava convicto de que o trem só passava porque ele cacarejava.

Um dia o trem quebrou, o galo cacarejou, o trem não passou e a decepção matou o galo de desgosto.

As pessoas estão, como se diz, “votando com os pés” pela flexibilização do isolamento exatamente porque o isolamento está, aparentemente, achatando a curva.

E porque a necessidade bate à porta. Jair Bolsonaro jogou com essa carta, que era óbvia.

O SARS-CoV-2 vai para o contra-ataque no novo cenário de afrouxamento? Vamos aguardar. Dependerá também de quantos já foram infectados, imunizados e atravessaram o rio.

Coisa que, na boa, ninguém sabe. Nem aqui nem em lugar nenhum.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Sejamos otimistas uma vez

A subnotificação é um fato em escala planetária. Se é verdade que a ampla maioria dos infectados pelo SARS-CoV-2 são assintomáticos ou com sintomas leves, a subnotificação de casos é esperada mesmo.

Mais precisas são três quantidades: internações, pacientes em UTI e óbitos. E mesmo aqui pode haver subnotificação quando a medida é em tempo real. Temos visto pelo mundo o número de óbitos ser ajustado a posteriori.

Meu olhar otimista enxerga os últimos dados brasileiros de mortes pela Covid-19 mais parecidos com uma progressão aritmética e menos parecidos com uma geométrica. Vai ver estamos achatando a curva.

As próximas duas semanas vão dizer. Se sim, a retomada progressiva da economia pelos estados virá em condições sanitárias menos ruins. Ainda numa hipótese otimista, quem sabe as medidas de distanciamento social não resolvam daqui para adiante.

Se meu otimismo não for abalroado pelos fatos, todos poderão dizer que ganharam. Os governadores por terem tomado medidas bem cedo. O presidente por insistir na volta ao trabalho.

Seria um debate até o final dos tempos. Um preço bem razoável a pagar.

Direto para a fase dois

Por que Jair Bolsonaro decidiu acusar o presidente da Câmara dos Deputados de tramar a deposição dele? Talvez o único consenso em Brasília seja que ninguém quer nem ouvir falar em impeachment. A resposta é simples: Bolsonaro decidiu que precisa guinar para uma aliança com a “velha política”. Para tanto, está obrigado a apresentar ao seu público fiel uma razão de força maior. “Ou me alio a uma parte deles ou vão se juntar todos contra mim e me derrubar.”

A clássica cortina de fumaça.

A flexão faz muito sentido. Aliás já fazia sentido havia tempo. Foi escrito aqui em outubro. Era uma aposta pouco arriscada do analista, quase de risco zero. Todo entusiasta da dita nova política que chega ao poder alguma hora percebe ter sido colocado numa armadilha. Pois as mesmas vozes que exigem do governante romper com “tudo que está aí” são as primeiras a refazer a amizade com tudo que aí está quando o dono da cadeira entra na linha de tiro.

O noticiário diz que o presidente anda em tratativas com o chamado centrão. Desde que passou a criar problemas para o governo o centrão deixou de ser chamado de centrão. Foram repaginados para “partidos de centro”. É provável que a denominação anterior volte agora, quando se instala a mesa de negociações para essas legendas esvaziarem o poder do presidente da Câmara e aderirem ao Planalto.

Dilma Rousseff tomou duas decisões que tiveram grande peso para o desfecho prematuro do mandato dela: 1) acreditou que bateria o então líder do então PMDB, Eduardo Cunha, na corrida pela presidência da Câmara e 2) recusou-se a ajudar um Cunha emparedado no Conselho de Ética. Bolsonaro tem sobre Dilma a vantagem de que quando ela escalou o conflito com Cunha a base social da presidente já tinha esfarelado. Não é o caso agora.

Mas, atenção: se o governo vai se meter numa guerra para lipoaspirar Maia e depois fazer o sucessor dele, é bom que entre para ganhar. E aí começam a aparecer os obstáculos. Eles não são intransponíveis, mas trata-se de percurso que exige certo talento. E expertise. É o tipo de negociação que todo mundo sabe como começa mas poucos têm quilometragem para ter noção de como vai terminar. Não é coisa para amadores.

Antes de tudo, os ainda “partidos de centro” não são um só. Há ali múltiplos líderes. Talvez seja pouco realista supor que serão atraídos apenas por um punhadinho de cargos de segundo escalão. Até podem aceitar em primeiro momento. Quando acomodados na embarcação, é provável abrir-se nova fase de disputas. O governo evitará isso se passar diretamente à fase dois, se promover uma reforma ministerial para formar uma base parlamentar.

Bolsonaro tem também a opção de recosturar sua aliança com Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Talvez não queira porque vê neles aliados potenciais do atual inimigo de estimação, João Doria. Ou algum outro motivo qualquer. Ou então acredita não precisar deles para retomar um poder moderador que murchou nas crises de Dilma e do sucessor dela, Michel Temer.

De novo. Qualquer que seja a motivação íntima, qualquer que seja o cálculo, o aconselhável nestas situações é o Planalto entrar na briga para ganhar. O custo de perder é altíssimo.

domingo, 19 de abril de 2020

Vamos torcer

O presidente da República está convencido de que o isolamento radical é inútil para conter o SARSCoV-2. E terá efeitos desastrosos para a economia, a troco de nada ou quase nada. Vê nisso séria ameaça a sua reeleição. Sem poder mandar nos governadores, estimula correligionários a sair às ruas para exigir o fim dos diversos graus de quarentena. 

É no Brasil? Sim, mas também nos Estados Unidos. O efeito ali da descoordenação, da subestimação e do conflito político é o país ser recordista mundial, de longe, em casos e mortes. O recorde de casos pode ser lançado na conta da testagem maciça. O de mortes, não. Vai para a contabilidade mesmo do vácuo de liderança. 

Entrementes, a Alemanha deu um show na entrada da crise e arruma-se internamente para dar um show na saída. Também porque os políticos se entenderam.

Resta torcer para que nossos paralelos com os Estados Unidos nesta crise da Covid-19 se limitem à política. Torçamos para ficarmos bem atrás deles nos números. Porque, aparentemente, só resta torcer.

sábado, 18 de abril de 2020

Guerra prolongada

Esquenta o debate sobre a volta ao trabalho. Se fôssemos um país menos conflituoso na política, talvez pudéssemos fazê-lo organizadamente. Mas paciência. O ótimo é inimigo do bom. Que cada estado, município etc programe sua volta para acelerar a retomada da atividade e ao mesmo tempo minimizar os riscos à saúde.

Aliás, melhor que escrever “a” volta seria aceitar que serão algumas voltas. Ninguém sabe ainda direito quanto tempo dura a imunização, muito menos quanto vai demorar a vacina. É possível, provável, que as autoridades tenham de administrar rebotes mesmo depois da primeira volta. E não dá para afirmar que serão localizados.

Por isso, é razoável trabalhar com um cenário de guerra política prolongada entre os atuais protagonistas engalfinhados no ringue. Dependendo, o conflito pode arrastar-se até perto de 2022. Também por isso, um presidente candidato à reeleição seria o maior interessado na paz política, para machucar menos a economia.

Vai entender

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Eis uma novidade

O notável nas polarizações políticas mesmo antes da Covid-19 era elas darem-se quase sempre dentro da base original do regime político estabelecido pelas urnas de 2018. Entre o bolsonarismo raiz e o bolsonarismo tático de quem apoiou o candidato do PSL para promover a troca de guarda, fosse qual fosse.

A crise provocada pelo SARS-Cov-2 aprofundou esse fosso, por responsabilidade talvez única do presidente da República. Que abriu mão da receita clássica nas crises deste tipo: a união nacional. Tivesse ido por aí, o PT e a esquerda estariam pregando no deserto, vendo tristes os governadores progressistas indo aderir, ao menos momentaneamente.

Mas não. Nunca o fosso foi tão largo. Basta olhar 1) as críticas de tradicionais defensores da austeridade ao ministro da Economia, 2) a defesa que parte da direita faz de todo tipo de intervenção estatal na vida dos cidadãos, 3) a declaração de amor do recente ministro da Saúde ao Sistema Único (SUS).

Tirando alguns resmungos contra a China, o dito centro anda indistinguível da esquerda.

Eis uma novidade. Para os dois.

Ela vem aí

Neste planeta infestado pelo SARS-CoV-2, o Brasil deve ser o país mais mergulhado em guerras políticas com jeito de insolúveis. O país em que as diversas facções estão mais longe de alguma espécie de trégua. Talvez atrás do Iêmen. Um armistício aqui ajudaria não apenas contra a Covid-19, mas também a achar um caminho para retomar a economia de modo coordenado e combinado entre os entes federados. Sem isso, pagaremos todos um preço ainda maior.

O Brasil é mesmo uma federação, fato bem estabelecido no papel pela Constituição de 1988. O recente federalismo foi a diástole depois da sístole vivida nos anos do regime militar (1964-1985). E a redemocratização trouxe outro componente: a possibilidade de o Congresso ter voz na elaboração do orçamento, algo que vem sendo progressivamente hipertrofiado, tanto no volume dos recursos alocados às emendas quanto na crescente obrigatoriedade delas.

A crise da Nova República, cujos primeiros três atos foram junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, é uma crise em progresso. A Covid-19 apenas catalisou a etapa atual da reação química. A chamada nova política, que em última instância supõe concentrar no presidente da República poderes quase absolutos para derrotar a velha, precisa agora, para sobreviver, neutralizar o federalismo e o poder do Parlamento.

Fosse Bolsonaro mais convencional, estaria aproveitando melhor a oportunidade de avançar sobre os demais poderes da República em nome da união nacional e da necessidade de somar esforços para enfrentar as crises da saúde e da economia. Seria uma fagocitose pacífica. Mas o presidente criado e cultivado no conflito prefere fazer as coisas ao modo dele. Tornando permanente e elevando a um novo patamar a pressão pela retomada do poder moderador.

Claro que isso iria produzir uma reação, bem de acordo com aquela Lei de Newton. Os governadores e o Congresso reagem a Bolsonaro emparedando-o. E a única certeza sobre essa queda de braço é que as coisas não ficarão como estão agora. Ou bem o presidente consegue neutralizar as forças centrífugas, ou, como temem seus eleitores mais fiéis, terá definitivamente amputada parte vital do poder a ele atribuído pelas urnas.

E como será o desfecho? Mas a pergunta que interessa é um pressuposto desta. Desfecho do quê? O que caracteriza nosso tempo? Se abrirmos os olhos notaremos já estar em pleno processo constituinte, resultado da caducidade daquele texto de 1988. A vida real já o ultrapassou. A dúvida agora é se a corda vai arrebentar para um lado ou para o outro. Por enquanto, quem avança são as tropas centrífugas. Mas convém não subestimar as centrípetas.

No Brasil já tivemos processos, e desfechos, constituintes de várias modalidades. Eles podem grosso modo ser agrupados em dois grandes tipos: os mais e os menos democráticos. Num extremo, 1988. No outro, 1937. E o que vai definir o grau de democracia embutido na próxima ruptura? As características do poder político encarregado pela sociedade de convocar e garantir os trabalhos da Constituinte que vem aí.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.683, de 22 de abril de 2020

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Relações federativas

O governo precisa cuidar para a resistência dele ao pacote de ajuda a estados e municípios não parecer um “quanto pior, melhor”. O Planalto, segundo essa versão maldosa, quer tirar o oxigênio dos governadores e prefeitos para forçá-los a afrouxar o isolamento horizontal.

Pode não ser o fato, mas na política prevalece a versão. E a situação do governo no Congresso merece cuidados. Se vier uma convergência decisiva entre governadores e Legislativo, algo sempre difícil mas possível, o Planalto pode ficar na situação de ver seus vetos ao afrouxamento fiscal derrubados pelas duas Casas.

O novo ministro da Saúde entrou em cena com um discurso de equilíbrio e busca de ações baseadas em dados. O desafio: em meio à tempestade, será preciso decidir antes de ter os dados completos que permitam decisões 100% seguras. Outro desafio: ver suas diretrizes seguidas pelos estados.

Em resumo: a chave política está nas relações federativas. Que andam meio desarrumadas.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A notícia do dia

O STF foi unânime ao referendar a liminar do ministro Marco Aurélio que preservava a autoridade de estados e municípios para tomar medidas contra a Covid-19.

Os votos e as falas apontaram que o governo federal enfrentará a chamada batalha morro acima, como dizem os americanos, se quiser revogar só com base no poder da caneta as restrições impostas por governadores e prefeitos.

Jair Bolsonaro considera que tem um problema no ministério da Saúde. Ao resolvê-lo, pode acabar atolando seus exércitos no pântano da judicialização de eventuais atos do eventual substituto. E em vez de ganhar corre o risco de perder.

Corre o risco de uma vitória de Pirro.

Decisões unânimes do STF em assuntos polêmicos deixaram de ser habituais de alguns anos para cá. O tribunal nestes tempos vive sua era de protagonismo individual.

Por isso, talvez o Palácio do Planalto devesse olhar com atenção a exceção passada hoje do lado de lá da Praça dos Três Poderes.

terça-feira, 14 de abril de 2020

A boa e a má notícia

Sempre é bom ter um pé atrás com projeções otimistas e previsões pessimistas. Hoje tivemos um pouco das duas.

Parece que estamos assistindo em alguns locais a certo achatamento da curva de infecções pelo SARS-CoV-2, o que aparenta ser a colheita de uma semeadura feita semanas atrás com o isolamento social.

Já o Fundo Monetário Internacional trouxe uma notícia não tão boa. Segundo o FMI, vamos crescer em 2021 (2,9%) bem menos do que vamos cair em 2020 (-5,3%).

Se a visão sobre a economia confirmar-se, o impacto da pandemia terá sido potencializado pelos nossos resilientes gargalos estruturais. Não somos nem um mercado nacional poderoso nem uma poderosa plataforma de exportação para além das commodities.

Previsões não são dogmas, mas podem ser uma referência. E as duas variáveis estão interligadas. Quanto menor o impacto por aqui da epidemia de Covid-19, mais cedo deve reanimar-se a confiança da sociedade de que a vida e a economia voltarão a algum normal.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Até quando?

A disputa entre os dois campos político-sanitários na guerra da Covid-19 está bem definida, com lados nítidos e cada personagem no seu quadrado. Neste assunto o centrismo não se criou. Ainda. Daqui a pouco vai ver ele aparece.

É sintomático que ninguém se arrisque a abrir a batalha final. Nem o governador de São Paulo cumpriu a promessa de ir com tudo para cima de quem desrespeitasse as medidas coercitivas, nem o presidente demitiu o ministro da Saúde, nem este pediu demissão.

As torcidas gritam enlouquecidas na arquibancada das redes sociais, mas em campo os principais jogadores tocam de lado, apesar de uma ou outra entrada mais dura. Já saíram alguns cartões amarelos. O vermelho? Está bem guardado.

Talvez porque, no bottom line, ninguém tenha 100% de certeza sobre o desenvolvimento da versão aqui da pandemia. Ou quando vai ser possível voltar a girar para valer a roda da economia. Ou como fazer sem ter um repique do SARS-CoV-2.

Enquanto isso, os times tocam a bola. Até quando?

A inércia opera a favor de quem?

O presidente da República vive uma situação contraditória. Nunca o apoio a ele foi tão sólido na sua base fiel. Todas as pesquisas mostram entre 25% e 35% do eleitorado acompanhando-o mesmo nas polêmicas em que está sozinho contra o resto da política e a opinião pública. Mas a faca tem dois gumes, e nunca como nesta crise da Covid-19 Jair Bolsonaro esteve tão próximo do isolamento. Na sociedade, nas instituições e mesmo dentro do próprio governo.

As falas e ações de Bolsonaro deixam claro que os movimentos dele com acenos à conciliação são apenas manobras táticas para ganhar tempo e reagrupar forças com o objetivo de retomar a ofensiva. Ele joga com a atitude dos que confiam plenamente na vitória final, ou dependem excessivamente dela para sobreviver. E também por isso não têm maior interesse num acordo de paz. Ou mesmo num armistício mais duradouro, que possibilite a estabilização do front.

Em política, é sempre importante levar em conta a inércia. Responder à pergunta “se não acontecer nada, acontece o quê?”. É a outra forma de perguntar a favor de quem joga o tempo. E a análise desse fator deve ser sempre pontual, pois o vento pode mudar de sentido de uma hora para outra. Então cabe perguntar: se persistir à esquerda e ao dito centro a rejeição a enveredar pelo caminho do confronto final contra o presidente, qual será o desfecho?

Para recuperar a expressão popularizada pelo técnico da Seleção na Copa de 1978 (faz tempo...), Cláudio Coutinho, Bolsonaro mostra jogar de olho no ponto futuro. Na crise provocada pelo SARS-CoV-2, apesar de ajustes táticos aqui e ali, parece confiar que a fortaleza dos adversários, particularmente os governos estaduais, vai cair diante da inevitabilidade de alguma hora as pessoas precisarem voltar ao trabalho para garantir a subsistência.

Não chega a ser uma aposta tão arriscada. O tema começa a ganhar espaço em todo o mundo mesmo sem o vírus da Covid-19 estar neutralizado. Até porque fica cada vez mais evidente que isso talvez demore. E bastante. Então trata-se de planejar a executar a volta à atividade mais dia menos dia, tomando as providências necessárias, ou possíveis, para reduzir a transmissão do patógeno quando as pessoas voltam de algum modo à vida social.

Um governo convencional teria assumido cedo a liderança do lockdown, e agora estaria liderando o planejamento da operação para sair dele. E saborearia os píncaros da popularidade. E a completa imobilização da oposição. É o que acontece, por exemplo, na Argentina. Onde está a diferença? Talvez ela esteja em Alberto Fernández ter um partido institucional hegemônico e vertebrado, enquanto Bolsonaro não tem nenhum.

Talvez essa diferença leve o presidente brasileiro a acreditar que se decidir enveredar pelo caminho da conciliação com o establishment acabará imobilizado, se não terminar derrubado. Na ausência de um partido institucional para chamar de seu, Bolsonaro precisa manter em movimento o partido bolsonarista extra-institucional, exatamente para bloquear o movimento de adversários políticos, especialmente dos que se apresentam como possíveis aliados.

Entrementes, disputa espaço nas manchetes com a contabilidade de mortes.

E fica a pergunta: “Se não acontecer nada, acontece o quê?”

domingo, 12 de abril de 2020

O blame game

Você percebe que a política de um país está contaminada, e doente, quando os principais políticos parecem mais ocupados em apontar responsáveis pelos problemas do que em resolver. É o caso brasileiro na crise desencadeada pela Covid-19.

Enfrentar o SARS-CoV-2 leva todo o jeito de ter sido delegado aos técnicos, enquanto os supostos líderes andam mais entretidos em jogar o blame game. Mais interessados em quem vai levar a culpa pelas mortes e pelo desemprego.

O “parecem” do primeiro parágrafo é importante. Políticos preocupam-se antes de tudo com a política. Querer diferente é ingenuidade. Mas o pulo do gato está exatamente em não deixar transparecer, em dar a impressão de que não, de que o bem-estar do povo vem antes de tudo.

Vai prevalecer quem ajustar sua imagem pública nesse sentido. E também conseguir alcançar metas. E a guerra será de longa duração.

Pois se ainda não temos uma projeção realista de número de vítimas, já sabemos que na economia o ano será muito ruim. Mesmo que não chegue a recuar os 5% previstos pelo Banco Mundial.

sábado, 11 de abril de 2020

Quem se candidata?

Está em xeque o sucesso da contenção da Covid-19 em certos lugares da Ásia que não se inclinaram inicialmente por isolamentos radicais. Coreia do Sul, Japão e Singapura, entre outros.

As autoridades são agora obrigadas a algum endurecimento. Porque a ameaça volta a rondar. É a pergunta da moda: quando se poderá dizer, finalmente, “acabou!”?

Segundo os entendidos, quando a Covid-19 tiver reduzido um certo tanto o número de hospedeiros amigáveis do vírus, por morte ou imunização.

Em resumo, depende de quanto tempo demora a vacina.

Também porque as sociedades não parecem dispostas a arcar com mortes em massa para acelerar a volta à “normalidade”. Tampouco dá para parar tudo à espera de pelo menos 60% estarem imunes.

Dizer que o determinante de toda matriz nula é zero pode ser uma verdade matemática, mas não é uma solução aceitável para a economia.

Melhor que esperar pelo “acabou” será buscar formas eficazes de conviver com a ameaça, minimizando os danos e maximizando a atividade social produtiva possível.

Quem se candidata?

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Em vantagem para a volta

A retração da atividade econômica na pandemia não se dá só por governos imporem a parada de atividades. Dá-se também porque o elemento fundamental da economia, o ser humano, retrai-se. Isso é sabido, e já foi dito.

Qualquer governo que queira acelerar a retomada precisará cuidar de refazer rapidamente a confiança do cidadão. Aliás duas confianças: a de que não perderá o ganha-pão e não perderá a saúde e a vida.

Esse feito depende bastante da precocidade e velocidade da queda da curva epidêmica. Enquanto ela está subindo a jato ou num platô lá em cima, é difícil convencer as pessoas de que tudo voltará a ficar bem.

Estão em vantagem para a volta a alguma normalidade países e governos que conseguem impor melhor, e precocemente, o congelamento da vida social por meios coercitivos e/ou administram populações cultural e politicamente mais habituadas à disciplina social voluntária.

Se você duvida, olhe para qualquer um desses gráficos de curvas logarítmicas que infelizmente estão na moda.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Redivisão internacional do trabalho

A pandemia da Covid-19 é um míssil no já trôpego equilíbrio dos fluxos econômicos planetários. Cresce dentro de cada país a pressão para reduzir dependências externas. Não é simples resolver. Não vai dar para cada nação ser autossuficiente em tudo.

Projeta-se portanto uma nova rodada de disputas sobre a divisão internacional do trabalho. Que nunca são pacíficas. Do início até a metade do século 20 resultaram em duas guerras mundiais. Não significa que vai se repetir. Mas é bom ficar de olho.

No bottom line, todos estão desconfortáveis por depender de todos. Infelizmente, não é um rearranjo que possa ser acertado na mesa de negociações antes de definir quem serão os vencedores e os perdedores. Ou quais serão as novas esferas de influência.

E isso costuma ser decidido no braço.

No nosso caso, a hegemonia política está no momento com quem propõe uma acomodação na órbita dos Estados Unidos. Considerando que o polo dinâmico da nossa economia é o agronegócio, o pessoal precisa, entre outras coisas, explicar para quem vamos vender nossas supersafras.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Pouca margem para o erro

Pesquisa do Instituto Paraná mostra que neste momento 66,9% dos entrevistados estão preocupados em primeiro lugar com a saúde deles e famílias, e 27,2% com a própria situação financeira e dos familiares.

Dos que responderam, 58,9% disseram também que o presidente da República está mais preocupado com a crise econômica que com o coronavírus. Só 31,3% disseram que Jair Bolsonaro se preocupa mais com o agente causador da Covid19.

Eis a raiz da turbulência política. Por causa dessa dissonância, diversos atores estão, como se diz, usando o presidente de escada para subir nas pesquisas. Seria antinatural se políticos não o fizessem. Bolsonaro também fez lá atrás e deu certo para ele.

E será lógico que essa tendência do humor popular se acentue no curto prazo, à medida que as estatísticas, infelizmente, trouxerem mais más notícias sobre a contabilidade das vítimas do patógeno.

A política admite bem menos margem de erro que as pesquisas (leia a íntegra dela).

terça-feira, 7 de abril de 2020

O tamanho do radicalismo

Donald Trump ameaça segurar os fundos americanos aportados para a Organização Mundial da Saúde porque, segundo ele, a OMS seria sinocêntrica. É um trailer do que virá nos próximos tempos. Em vez de cooperação global, radicalização na disputa da hegemonia.

Por falar em radicalização, Thomas Friedman fez uma observação lógica na live de hoje da revista Exame. Se a crise de 2008-09, pequena perto desta, resultou no Tea Party à direita e no Occupy Wall Street à esquerda, qual é o tamanho do radicalismo que vem aí?

Façam suas apostas.

Eu aposto que será inversamente proporcional em cada país à capacidade de as instituições nacionais oferecerem saídas consistentes para as crises da saúde e da economia. E isso depende, muito, de a política em movimento produzir mais luz que calor. Bem mais, aliás.

Países que agora preferem dissipar energia em vez de usá-la para algo útil são certamente os candidatos a liderar o ranking da radicalização lá na frente. Os problemas das pessoas são concretos, e se elas não encontram a solução num lugar vão buscar no outro.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Ortega y Gasset

O poder é ele mesmo e sua circunstância, diria o jornalista espanhol cujo nome dá o título a este texto. O poder absoluto é uma fantasia. Nunca o detentor de poder deve, nem pode, deixar de considerar a correlação de forças.

Aliás, discutir política à margem da correlação de forças é devaneio. Coisa de amador.

Enquanto este texto estava sendo escrito, era possível que o ministro da Saúde permanecesse na cadeira ou não. O que decidirá sempre o destino dele? A correlação de forças. O presidente pode usar a caneta para demitir e nomear. Mas não necessariamente para mudar a dita cuja.

O presidente talvez tenha jogado mal. Se o ministro ficasse, como ficou, ficaria muito forte. Nunca é bom. Se saísse, a responsabilidade última da conta das vítimas da Covid-19 no Brasil passaria a ser exclusiva do presidente. Arriscado.

Era o tipo de situação desnecessária. Parabéns a todos os envolvidos, como se diz nas redes sociais.

O samba de uma nota só

Neste curso coletivo de dimensões planetárias sobre epidemias, aprendemos que a curva epidêmica tem um trecho exponencial ascendente, logo no começo. Depois a subida inverte a curvatura, conforme algumas pessoas se imunizam e outras, infelizmente, vão a óbito. Uma hora chega o pico. E quando o fator “R”, o número de indivíduos que cada indivíduo contaminado contamina, cai abaixo de um, a curva começa a trajetória descendente. Numa imagem que é quase o espelho de quando subiu.

O enigma para o analista político é tentar decifrar se haverá correlação entre as idas e vindas da curva epidêmica e uma parente dela: a curva de aprovação/desaprovação dos políticos que lidam com a epidemia em cada país. Ou em cada estado. Ou em cada cidade. Quem disser que tem certeza provavelmente falta com a verdade. Ao final deste pesadelo (haverá um “final”?) poderemos ter certeza. Mas aí será trabalho para historiadores, os privilegiados que podem se dar ao luxo de fazer previsões só depois que tudo já aconteceu.

Políticos agem por instinto, e movidos principalmente (unicamente?) pelo humor do eleitorado do qual dependem. Donald Trump decidiu proibir exportações de produtos médicos necessários para ajudar pacientes da Covid-19 e profissionais da saúde. E mandou comprar/pegar tudo que fosse necessário comprar/pegar mundo afora. Para tristeza dos fãs da “globalização”, cada um só vota nas eleições de seu próprio país. E a contabilidade de mortos que interessa a Trump no ano eleitoral é a dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Por isso, ele combina bem o “blame game” (o esforço, por enquanto pouco produtivo apesar da propaganda, de emplacar a expressão “vírus chinês”) com uma versão mais tosca do “big stick”, versão que dispensa aquela parte de “fale macio”. E os índices mostram o presidente candidato à reeleição navegando em meio à curva crescente da epidemia nos Estados Unidos. No momento, o povo americano parece mais preocupado em sobreviver, e menos em discutir se lá atrás Trump subestimou o problema.

Por aqui, Jair Bolsonaro sofre algum desgaste por ser talvez mais teimoso. O ocupante da Casa Branca mudou o discurso e a linha de ação quando foi necessário, sem se preocupar em explicar por que alterou a rota. Assim funcionam os líderes. Bolsonaro já teve inúmeras oportunidades de ajustar o leme para indicar que se preocupa sim com o impacto da epidemia para a saúde e a vida, mas não aproveitou. Continua no samba de uma nota só, de que os efeitos econômicos da paradeira podem ser tão ou mais daninhos que os da Covid-19.

As pesquisas mostram por enquanto um desgaste para ele apenas na margem. Não está bem avaliado no combate à epidemia, mas mantém perto dele o eleitorado fiel desde a reta final do primeiro turno em 2018. Por cálculo, ou por instinto, ou por convicção, tanto faz, ele parece achar que isso será suficiente para concluir o mandato e brigar para continuar em 2022. Pode ser. Mas também pode estar subestimando o papel que o cansaço com o belicismo presidencial pode desempenhar para juntar gente contra ele até lá.

domingo, 5 de abril de 2020

A solidez da ponte

Duas são as dúvidas centrais, em cada país e globalmente, sobre a Covid-19: 1) O sistema de Saúde vai aguentar o tranco? e 2) Quando a vida (a economia) volta ao normal?

Sobre a epidemia aqui, quero ser otimista, prefiro correr o risco de errar por esse lado. As curvas brasileiras levam jeito de que vão achatar. A principal dúvida é São Paulo, mas vamos torcer que sim.

As autoridades nos diversos níveis estão trabalhando, e vamos pensar no melhor: que a rede privada e, principalmente, o SUS aguentarão o baque.

Certamente os governantes serão avaliados por isso. Nos estados e em nível federal. E, conforme o tempo ande, serão medidos também, e com força, pelo item 2.

Na economia, por incrível que pareça, ser otimista é mais arriscado. Também porque nenhum conhecedor do assunto acredita em alívio real e definitivo antes de vir a vacina.

Cada líder será julgado pela solidez da ponte que construiu para seus liderados atravessarem o abismo enquanto ela não chega. E vai demorar.

sábado, 4 de abril de 2020

Cada um por si

A promessa da globalização benigna era abrir um tempo em que a cooperação internacional encontraria caminho menos obstruído para prevalecer sobre as disputas entre países. Ajudaria isso haver, depois de muitas décadas, uma única superpotência.

Mas a emergência desta pandemia, de rápida propagação e letalidade suficientemente alta para ter a capacidade de colapsar os serviços de saúde, faz o planeta cair na real. As nações continuam sendo a primeira defesa das populações contra inimigos potencialmente mortais.

É o que se vê no “cada um por si”, liderado pelos Estados Unidos, quando se trata de buscar materiais médicos. Aliás, é estupefaciente que os americanos do norte careçam de capacidade industrial para conseguir defender seu interesse nacional sem recorrer a técnicas de pirataria.

E o Brasil? Aquele país onde há um quarto de século intelectuais orgânicos cantam em prosa e verso “a modernidade da desindustrialização”? E que agora paga a conta disso.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A política e os amigos

Todas as pesquisas mostram alguma corrosão da imagem do presidente da República, mas na margem. O público mais fiel continua firme. Mostram também que os governadores estão em alta. Isso é consistente com a preocupação central das pessoas neste momento: a saúde.

O risco imediato para o governo federal não está na popularidade, mas numa certa propensão ao isolamento político. Alimentar permanentemente a base numa guerra eterna contra os inimigos, reais ou virtuais, junta gente mas também ajuda a formar uma frente anti.

Até semanas atrás eram impensáveis gestos mútuos de respeito entre João Doria e Luiz Inácio Lula da Silva. Houve alguma reação agora quando aconteceu, mas nada perto do que seria se tivesse acontecido antes da pandemia da Covid-19.

É por isso que convém nunca esquecer do valioso conselho. Nunca rompa com seu amigo por causa de política. Depois os políticos se entendem e só quem ficou no prejuízo foi você, que perdeu um amigo.

Não é porque o governo mandou

A economia não é o conjunto das “coisas”. É preciso acrescentar as pessoas. Não é a reunião apenas das máquinas, matérias-primas, mercadorias e do dinheiro, nas suas variadas formas. É a reunião disso e, mais importante, dos seres humanos que estabelecem relações materiais de produção e troca no mercado.

Impor uma contradição definitiva entre “a saúde” e “a economia” tem utilidade para fins propagandísticos, é útil para criar mistificações políticas, mas traz um problema: supõe que a segunda pode ser analisada abstraindo aspectos subjetivos e até objetivos da força de trabalho.

Não à toa as modernas abordagens econômicas levam cada vez mais em conta os vetores subjetivos, que pedem equações mais complexas.

Qual será então o melhor caminho para evitar que a retração econômica trazida aqui, como em todo lugar, pela chegada da pandemia da Covid-19 vire um “L”, sem retomada vigorosa visível? O ideal seria o “V”, mas até um “U” vai ser aceitável. É melhor dar prioridade ao combate da pandemia ou deixar ela cobrar maior custo em vidas em troca de menos queda na atividade?

Quem defende esta segunda visão poderá argumentar que se toda a população britânica tivesse passado a Segunda Guerra Mundial escondida em bunkers era certo que teriam tido grande dificuldade para prevalecer contra o inimigo ao final. E o outro lado poderá contrapor que se todos tivessem morrido, também. Onde estará o ponto ótimo de equilíbrio na Covid-19?

Parece variar em cada país.

É bom observar o que acontece em Wuhan, o epicentro da epidemia na China. Aprender com os erros e acertos alheios é sinal de inteligência. Ali, após hesitações iniciais, as autoridades impuseram medidas duríssimas de isolamento social para conter o avanço da doença. Mas não esperaram a completa eliminação da circulação do vírus para tentar voltar a alguma normalidade.

Se é que algum dia se poderá, lá como aqui, falar ainda em “normalidade”.

O mais importante? A economia só reagirá mesmo quando as pessoas se sentirem novamente algo confiantes para retomar o papel de produtores e consumidores. Na Itália, fábricas que tentaram voltar prematuramente enfrentaram greves. E adianta pouco reabrir o comércio e os shoppings se a confiança do consumidor continua no chão.

Ele simplesmente não comparecerá, ou não comprará.

Fica uma dica: as pessoas não estão em casa principalmente porque algum governo mandou. Estão em casa porque têm medo.

A volta da confiança será função direta de acreditar que as autoridades reduziram bem os riscos à saúde, e são capazes de dar conta das tarefas que restam. Por isso, o maior entrave à retomada da nossa economia são a irracionalidade e a continuidade da guerra política. Que já deu o que tinha de dar.

Só observar: os danos à saúde e à economia provocados pela Covid-19 em cada país são função direta da desorganização política interna.

Deveria ser um alerta para nós.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.681, de 08 de abril de 2020

quinta-feira, 2 de abril de 2020

No meio do nevoeiro

O que mostram as curvas logarítmicas da Covid-19 entre nós? Que ainda não entramos na fase de acelerar a propagação da doença. Na hipótese otimista, a antecipação por aqui do isolamento social terá contribuído decisivamente para o achatamento da curva. Na hipótese otimista.

Mas é sempre possível que estejamos ainda no início da trágica contagem. De todo modo, nossa curva parece mais com a do Reino Unido que com a da Espanha e da Itália. Vamos aguardar.

Independente de que hipótese acabe prevalecendo, talvez o Brasil seja o único país, das nações com mais massa crítica, a debater ferozmente a volta à normalidade quando ainda nem entramos direito na “anormalidade”.

Faz parte do nosso desarranjo. Em vez de discutir como entrar organizadamente na curva ascendente e como sair organizadamente quando ela mergulhar, estamos de novo nos digladiando. Algo desorientados e com dificuldade de enxergar em meio ao nevoeiro.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Encontro marcado

A atitude do distinto público diante da pandemia da Covid-19 parece ser uma função em que duas variáveis predominam. O x é o medo de ficar doente e o y é o medo das dificuldades econômicas.

As pesquisas mostram que nesta etapa inicial o x prevalece sobre o y. É possível que a tendência até se acentue no curto prazo, conforme avançam os tristes números da doença e de suas vítimas aqui no Brasil.

Mas em algum momento o y vai começar a prevalecer sobre o x. Quando a convivência com a pandemia e suas consequências se transformar no novo normal, as pessoas vão querer saber o que fazer, e o que os governos vão fazer, para destravar a roda da vida material.

Pois uma hora as pessoas vão querer voltar, se não ao antigo normal, pois um mundo está se despedindo de nós, a algo parecido com o que tinham antes.

E perceberão que isso muito provavelmente terá se tornado algo simplesmente impossível. O encontro com esse momento já está marcado, mesmo que não esteja, ainda, agendado.

E os políticos que perceberam isso antes vão estar em vantagem.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Transitório ou definitivo?

Formou-se o consenso de que na atual conjuntura a única saída é... gastar. Costuma ser assim nas crises que levam sociedades ao limite. Foi assim na quebra de 1929 (sem querer comparar).

E até hoje persiste entre os economistas a polêmica: Quem salvou a economia americana, o New Deal ou Pearl Harbor? Leva jeito de ser um debate que persistirá até o fim dos tempos.

Se o estica-e-puxa já superou a etapa de gastar ou não gastar, agora outro arranca-rabo vem aí. O gasto deve ser fluxo ou estoque? Os ortodoxos lutarão pela segunda opção, o gasto emergencial. Os nem tanto flertarão com o Estado gastar mais de modo estrutural.

Se a política, nas famosas palavras de Magalhães Pinto, é como nuvem, agora a economia foi quem tomou o ditado para si. Até a Lei de Responsabilidade Fiscal parece balançar, a querida dos que precisam explicar para que serviu mesmo o segundo mandato de FHC.

Ah, sim. O Brasil talvez seja o único país em que uma lei de responsabilidade fiscal é sempre cantada em prosa e verso como “grande avanço”, enquanto cidades, estados e a União estão quebrados.

Mas importante mesmo é existir a lei.

O tranco vem aí. E ninguém poderá alegar surpresa

A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (@FGVDAPP) detectou uma novidade esta semana nas redes sociais: certa agregação de perfis que ela considera de esquerda e de centro. Vamos então aceitar para efeitos didáticos a classificação, pois aponta um movimento de razoável importância no público.

As ações do presidente da República para reagrupar e anabolizar a base mais próxima dele na guerra de opiniões da Covid-19 tiveram um custo: juntaram contra ele, pelo menos nas redes sociais, quem não se juntava há tempos para nada. Não existe mesmo almoço grátis, apesar de esse rearranjo na internet não ter até o momento maior implicação política.

O custo em imagem ainda precisa ser medido nas pesquisas, mas os dados digitais fazem deduzir que a base bolsonarista fiel continua preservada na essência. E duas coisas jogam a favor do presidente na correlação de forças: não há condições objetivas para protestos de rua em massa e tampouco o Congresso Nacional parece propenso a enveredar por um confronto aberto contra o Planalto.

Tirando os pontos fora da curva, por exemplo a suspensão dos contratos de trabalho sem contrapartida, a disposição no Legislativo é aprovar as medidas governamentais de combate às crises sanitária e econômica, aqui especialmente as de caráter anticíclico. Até porque de repente todos viraram keynesianos: economistas, empresários e jornalistas especializados.

E um Congresso que só pode reunir por teleconferência não chega a ser propriamente ameaça. Nesta condição, é pouco provável deputados e senadores colocarem para rodar qualquer coisa afastada do consenso. E se há um consenso nas duas Casas é não bater de frente com Jair Bolsonaro. Em vez de esticar a corda, dar corda para o presidente.

Nas últimas horas a sensação é de um movimento centrípeto governamental. Os ministros da Saúde e da Fazenda falaram à vontade no sábado para garantir que planos para a defesa contra o coronavírus estão aí e irão funcionar. Mostraram estar confiantes nas cadeiras. É pouco provável terem feito a aparição pública sem combinar com o chefe.

Mas nada servirá de escudo se duas coisas não funcionarem bem: se o dinheiro para empresas e trabalhadores não chegar na ponta e se o sistema de saúde não aguentar o tranco que vem aí nas próximas semanas. Os ministros responsáveis pelas duas áreas pareceram neste sábado confiantes de que os dois desafios serão equacionados.

Ninguém se engane. Ainda não saímos da etapa dos bate-bocas. Que têm hora para dividir o palco com os fatos duros. O tsunami vem aí. E o governo será julgado pelos resultados. Inclusive porque teve tempo de se preparar. O lockdown em Wuhan tem mais de dois meses, e a agudização na crise na Europa já vem há várias semanas. Ninguém poderá alegar surpresa.

Deu tempo suficiente para aprender com os erros dos outros. Vamos aguardar, e rezar, para termos aprendido.

*

Depois desta epidemia vai ficar muito difícil a vida de quem deseja enfraquecer o Sistema Único de Saúde. Se ele funcionar como prometem, e nada indica que não vá (tem um pouco de torcida nisso), estará aberta a estrada para atacar de vez o problema do subfinanciamento.

domingo, 29 de março de 2020

O valor dos números absolutos

O gráfico dos casos em Nova York parece que vai superar a Lombardia, Madri e a Catalunha. E os Estados Unidos desenvolvem um cenário original da Covid-19: país de dimensões continentais com propagação disseminada e vários hotspots, ainda que o foco de maior gravidade pareça estar em NY mesmo.

Talvez por aqui a coisa se desenvolva de modo similar, espacialmente distribuída e com diversos focos graves. Os números mais exatos virão quando vierem os testes em maior escala. Até agora a flutuação das estatísticas é típica de situações que ainda não atingiram massa crítica.

Por isso, falar em números com razoável margem de segurança talvez seja prematuro. Alguns cálculos afirmam que o número de infectados é muito maior, ou por subnotificação ou por serem assintomáticos ou pouco sintomáticos. Se for assim, a letalidade também será muito menor do que as contas feitas agora.

Talvez certos cálculos políticos baseiem-se nisso. Arriscado. Em certas situações os números absolutos costumam pesar mais que as porcentagens.

sábado, 28 de março de 2020

Governos podem quase tudo...

O debate do momento sobre a Covid-19 e a economia tem um detalhe pouco discutido. Ou discutido de maneira enviesada.

Colocar as pessoas para andar na rua não será suficiente para reanimar a economia. Elas precisarão sair de casa com a disposição de gastar dinheiro.

O problema é mais complexo que lockdown ou no lockdown: é como fazer para evitar que a crise em torno da Covid-19 deprima por muito tempo a confiança do consumidor, e portanto a propensão deste a consumir.

Governos podem muito. Mas uma coisa que governos não podem, em condições normais, obrigar o cidadão a fazer é... comprar.

Para reduzir o prazo de vigência das medidas emergenciais de socorro econômico -e portanto o volume de recursos públicos investidos nisso, decisivo mesmo é acender a luz da esperança no fim do túnel da incerteza e do medo.

Pois por enquanto, infelizmente, as duas variáveis principais da função “estado de espírito” são o medo de adoecer e o medo de perder o negócio ou o emprego.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Sem paz à vista

O Brasil deve ser um caso particular entre as nações quando se trata de conflito político misturado com o combate à Covid-19. Parecida, talvez, só a Itália de algumas semanas atrás.

O presidente da República adotou como bandeira “a economia não pode parar”, o custo em vidas seria o preço a pagar para evitar o que ele considera um mal maior.

Já a maioria dos governadores sabem que serão cobrados em primeiro lugar pela capacidade de enfrentar o problema sanitário em seus estados. Mas também não estão imunes às vicissitudes na economia.

Se houvesse alguma liderança interessada no entendimento, seria fácil de resolver. Gastar-se-ia o suficiente para atravessar de 60 a 90 dias de parada e depois a vida voltaria progressivamente ao normal.

É o que fazem outros países. Aliás, dívida pública existe também para situações assim. Isso dizem os economistas.

Mas o Brasil parece irremediavelmente dividido. Ainda que advérbios de modo sejam sempre arriscados.

Quem vai levar o troféu, ao final? Depende do delicado balanço entre a perda de vidas e a perda de empregos e renda.

Cada lado do cabo guerra parece disposto a esticar a corda ao máximo.

quinta-feira, 26 de março de 2020

O tempo passa...

Os grandes treinadores conseguem mudar, a favor, um jogo ainda no intervalo. Ou até com a partida em andamento. Ajuda muito se tiverem antes treinado as alternativas. Se não treinaram, o jeito é tentar resolver na raça mesmo e -por que não?- apelar aos céus por ajuda.

Todo o plano econômico estava montado na premissa de que se o governo economizasse levaria o capital privado a investir e assim relançar a economia. Poderia dar certo? Talvez, se fosse dado tempo suficiente. Infelizmente não saberemos. Pois a realidade guinou 180 graus.

Até os mais ortodoxos dizem ser hora de os governos colocarem dinheiro para circular sem dó nem piedade, para manter vivo o organismo. Cumprida essa etapa, e tendo o paciente sobrevivido, cuidar-se-á de corrigir as deformações e danos colaterais causados pela terapia.

Quando mais cedo a equipe econômica se convencer de que o cenário mudou, mais confiança despertará de que é capaz de virar o jogo. Na hora da dificuldade extrema é que um dream team faz acontecer. E não dizem que confiança é chave para a economia?

É como narrava um famoso locutor das antigas: “O tempo passa, torcida brasileira...”

Aliás, a ciência já demonstrou: o tempo é uma medida que não anda para trás.

quarta-feira, 25 de março de 2020

O risco da descoordenação

O Brasil talvez seja o país que enfrenta a covid-19 mais dividido na sua cúpula dirigente. A pandemia não foi capaz de quebrar a inércia de conflito que vem em ondas há anos.

O risco decorrente? Medidas baseadas menos na ciência que em elementos subjetivos, temores eleitorais ou para reagir a pressões de lobbies setoriais.

Entre os riscos embutidos na tentação de responder à ameaça de caos sanitário e econômico com caos político está o prolongamento do problema.

A ansiedade para saber “quem tem razão” ou quem vai ser vitorioso na guerra de projetos de poder pode impedir uma saída organizada no momento certo, pode impedir a minimização das perdas.

É ilusão imaginar que a uma ordem das autoridades as pessoas vão voltar instantaneamente à vida normal. Isso vai acontecer não só quando declinar a curva da pandemia, mas a curva do medo dela. E a curva do trauma decorrente.

E isso virá tão mais rápido quanto mais cedo o distinto público perceber que os capitães do barco sabem o que fazem.

terça-feira, 24 de março de 2020

As duas curvas

Mundo afora eclode o debate sobre a contradição entre garantir, de um lado, a vida por meio do amplo distanciamento social e, do outro, garantir a vida por meio da manutenção da atividade econômica.

No curto prazo, as autoridades serão cobradas pela quantidade de vítimas da Covid-19, mas lá adiante elas serão cobradas pelo número de desempregados e empresas quebradas em consequência do draconiano congelamento da atividade social.

Como o curto prazo costuma vir antes do longo, é inútil pedir aos governantes que invertam essa cronologia. A maioria dos que tentaram tiveram de recuar.

Vai prevalecer a psicologia social: as coisas vão começar a voltar ao normal não principalmente quando as autoridades mandarem, mas quando o medo da ruína superar o medo do coronavírus.

Será preciso acompanhar essa duas curvas para ver quando elas vão se cruzar. E, como diz a velha máxima, é provável que estejamos mais perto do fim do começo que do começo do fim.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Dia começa mal, mas termina melhor

Se no mundo a OMS alerta para a aceleração do contágio pelo coronavírus, no Brasil parece que a reação das autoridades começa a entrar nos eixos.

O melhor sinal foi a reunião do presidente da República com os governadores do Norte e do Nordeste e o anúncio da liberação de R$ 85 bilhões para as várias frentes financeiras de estados e municípios.

Com isso, acabou melhor um dia que começara confuso por causa da trapalhada da equipe econômica na medida provisória que, entre outras coisas, autorizava suspender por quatro meses os contratos de trabalho sem, entretanto, prever mecanismos compensatórios para os trabalhadores.

Era evidentemente um contrassenso. Corrigido depois da previsível grita.

Políticos preocupam-se com a política. O superávit de imagem do ministro da Saúde dá espaço para o presidente da República concentrar-se mais na economia.

Já os governadores, por enquanto, principalmente os do Sudeste, estão às voltas com a curva ascendente dos casos.

Infelizmente, parece que vai ser um cenário nacional nas próximas semanas.

Para saber se o sujeito é mesmo ateu, certifique-se de que ele não apela a Deus nas horas extremas. E uma conta sobre a “imunidade de rebanho"

Dos grandes países afetados pela pandemia da Covid-19 o Brasil parece ser o mais atolado na guerra política. É um grave fator de risco no enfrentamento do problema. Outra variável fundamental é a rapidez da reação ou, ao contrário, o atraso para cair a ficha. Está matematicamente comprovado que tomar providências ontem em vez de hoje, ou anteontem em vez de ontem, produz efeitos benéficos para lá de significativos.

O atraso nas ações contra o novo coronavírus tem duas raízes principais: a subestimação do problema e o receio de ferir de morte a economia com medidas excessivamente drásticas. A primeira raiz mistura legítimas curvas de aprendizado e wishful thinkings. O pensamento mágico supõe a prevalência da vontade sobre a razão. É humano tender a acreditar nas explicações que minimizam os sacrifícios necessários e projetam o futuro menos doloroso.

Aliás esta é uma crise inanalisável, inclusive no aspecto político, sem alguma dissecção da natureza humana.

Nos últimos dias a ficha parece finalmente ter caído. As ruas das cidades brasileiras esvaziaram-se e o país entrou em forte desaceleração. Na falta de um sistema coerente e centralizado capaz de impor rapidamente a necessária disciplina social, tivemos de esperar pela decantação da consciência coletiva. E adianta pouco reclamar. Assim como as pessoas, países também têm suas naturezas, que precisam enfrentar situações extremas para finalmente mudar.

Uma pergunta ainda não respondida, talvez por não ser mesmo prioritária, é “como vai ser o Brasil quando a Covid-19 passar?”. Os otimistas dirão um país mais solidário, menos tolerante às desigualdades, mais exigente quanto ao padrão dos governantes e mais atento à qualidade dos serviços que o Estado precisa prover para atender às necessidades da sociedade que o financia.

Um aspecto em que talvez os otimistas estejam certos: a valorização do Sistema Único de Saúde parece ter enveredado por um caminho sem volta. Os governos, em primeiro lugar o federal, precisarão enfrentar para valer a equação do financiamento do SUS. Quando até um governo em que a área econômica é fortemente liberal apresenta, principalmente pelas palavras do ministro da Saúde, o SUS como nosso grande trunfo, fica claro que uma página foi virada.

Mesmo que os otimistas sejam lá na frente frustrados, sempre a maior probabilidade, outra coisa parece que veio para ficar: a reabilitação do papel do Estado. Na hora da dificuldade extrema, o setor privado aparece bem quando se coloca à disposição para ajudar, mas a sociedade volta-se mesmo, e unanimemente, para os governos. É aquela história: para saber se o sujeito é mesmo ateu, procure verificar se ele não apela a Deus nas horas extremas.

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O Reino Unido desistiu de deixar o pessoal se infectar para o coletivo adquirir a “imunidade de rebanho”. Mudou de ideia quando lhe contaram que morreriam pelo menos uns 250 mil súditos da rainha. Qual seria a conta a pagar aqui se essa opção fosse adotada?

domingo, 22 de março de 2020

Nova York e São Paulo. E o oportunismo

Nova York tem um terço dos casos da Covid-19 nos Estados Unidos. A cidade. E o estado do mesmo nome tem dois terços. São Paulo, o estado, tem quatro de cada dez casos confirmados no Brasil e 22 das 25 mortes até agora.

Resta saber se o fluxo de gente vinda da Itália tem algo a ver com essas concentrações.

Trata-se apenas de especulação minha. São Paulo e Nova York são duas cidades de grande população de descendentes italianos.

Outro assunto. Em meio à guerra contra o vírus, especula-se aqui com o cancelamento das eleições e a prorrogação dos mandatos de prefeitos e vereadores, É como diz a frase célebre: Para cada problema complexo existe uma solução simples, e errada.

E, neste caso, oportunista. Em primeiro lugar, a Constituição proíbe. Verdade que seguir a Carta anda meio demodé, mas também não precisam exagerar.

É da política os políticos defenderem em primeiro lugar seu próprio interesse. Mas a arte está em fazer parecer que defendem o interesse dos demais. Do povão. Dar bandeira é coisa de amador.

sábado, 21 de março de 2020

Atenção para os números

São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal são até agora os principais hotspots da Covid-19 no Brasil. Em São Paulo, os números já são algo significativos para começar a acompanhar a taxa de letalidade da doença, em torno de 3,5%. Dez vezes a da gripe comum.

Vamos aguardar os números que, infelizmente, virão de outras regiões do país. E veremos se os números paulistas sobem ou descem. De qualquer jeito, a cidade de São Paulo tem o perfil de Wuhan e da Lombardia. Áreas industrializadas e com populações da mesma ordem de grandeza.

Dá a impressão de estarmos atrasados nas medidas draconianas. Coisa de país mais ocupado com a disputa política que com a saúde da população. Pedir paz na política é ingenuidade, mas os grupos em guerra poderiam raciocinar e perceber que o jogo é de alto risco para todos.

As regiões brasileiras mais afetadas parecem finalmente a caminho de parar tudo. Agir cedo deu certo em Wuhan. O atraso na Lombardia /Itália vem cobrando seu preço.

Hoje, Benjamin Netanyahu fez previsões sombrias para o mundo. Ele pode estar só pressionando a oposição a apoiá-lo. Mas e se não?

sexta-feira, 20 de março de 2020

A inércia do conflito

Não parece inteligente governos das diversas esferas viverem às turras em meio a um problema das dimensões da Covid-19. Nem racional.

Mas um erro bastante frequente na análise política é supor que os atores adotarão sempre decisões inteligentes e racionais.

É imprudente desprezar o peso da inércia na política. Alguns estados e o Palácio do Planalto andavam às cotoveladas antes de o país finalmente tomar consciência (já tomou?) do tamanho da encrenca provocada pelo novo coronavírus. Por inércia, seguem na mesma toada.

A boa técnica gerencial ensina que antes de procurar os culpados vale concentrar os esforços na busca de soluções. Seria uma saída, aí sim, inteligente e racional para políticos que em primeiro lugar desejam sobreviver politicamente, ou já estão de olho num upgrade.

Sem falar que a descoordenação entre os níveis da federação tende a agravar os efeitos econômicos do avanço da Covid-19.

E é devaneio acreditar que algum governante hoje no cargo vai faturar sobre o colapso da atividade, do emprego e da renda.

A tempestade quase perfeita

A equação política e econômica do governo Jair Bolsonaro estava bem desenhada no plano inicial. O Congresso aprovaria as reformas liberais, no ritmo que fosse. A economia reagiria, mesmo num passo não espetacular. O ministro da Justiça colocaria seu capital popular a serviço do projeto bolsonarista. O presidente nesse meio tempo alimentaria politicamente sua base dia após dia rumo a 2022. E a esquerda continuaria ilhada, pelo menos no curto e médio prazos.

E a coisa vinha vindo.

Mesmo os percalços -todo governo tem- pareciam insuficientes para um desarranjo. O PIB de 2019 decepcionou? Nada que não pudesse ser deixado para trás com uma dose de esperança no futuro e advertências sobre o risco de repetir fracassos recentes. O presidente romper com seu próprio partido e ficar sem nenhum para chamar de seu era pouco, perto da simpatia de um Legislativo amplamente liberal-conservador pelo programa econômico.

Aí veio a pandemia do coronavírus. O imprevisível é mesmo muito difícil de prever.

Em janeiro/fevereiro já era possível antever a onda da crise sanitária. Foi avisado, mas talvez não sensibilizou. E transbordou em março. E somou-se à pendenga do Executivo com o Legislativo por causa do orçamento impositivo. E juntou-se à guerra do governo contra a imprensa. É notável, aliás, como o governo consegue brigar com dois atores, Congresso e imprensa, amplamente dispostos a apoiar as principais agendas do Planalto na política econômica.

Aí o presidente da República decidiu dar mais importância à ameaça de recessão que às preocupações do cidadão e da cidadã com a própria saúde.

Na crise de 2008/2009 Luiz Inácio Lula da Silva disse que ela chegaria aqui como uma marolinha. Não foi bem assim. O crescimento em 2009 foi menos zero vírgula qualquer coisa. Mas 2010 foi robusto e Lula conseguiu eleger a sucessora. Naquela crise o tema era economia. Lula podia pedir ao eleitor um tempo. Aguentem aí que vai melhorar. E tinha capital político para tanto. A conta veio depois, deu em junho de 2013, mas isso já é outra história.

Agora o assunto é a saúde. Não adianta dizer “outras doenças matam mais que o coronavírus”, a notícia do momento é a Covid-19. E as pessoas estão muito preocupadas com a ameaça à própria vida e à dos entes queridos. E só se fala nisso. E a aparente falta de cuidado do governo em sintonizar-se com a preocupação do distinto público potencializou as fragilidades que vinham latentes e juntou-se tudo numa tempestade quase perfeita.

Só não é a tempestade perfeita contra o governo Bolsonaro porque não há desejo relevante no mundo político de trocar o capitão pelo general que é seu vice. Nas várias franjas da política, prefere-se enfrentar um Bolsonaro manco em 2022 que entronizar agora Hamilton Mourão e dar a ele o passaporte para um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, de viés racional e equilibrado. Mas tudo tem um limite, e na tempestade alguém tem de assumir o leme do barco.

Não existe espaço vazio na política. E isso não chega a ser uma novidade.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.679, de 25 de março de 2020

quinta-feira, 19 de março de 2020

Mar em Fúria

No final do filme com esse título o barco comandado pelo personagem de George Clooney tenta escalar uma onda gigantesca para chegar a águas mais seguras. Segundo as autoridades, estamos no início de uma escalada parecida, só que sobre a onda de infectados pelo novo coronavírus. Qual a chance de, diferente do filme (desculpa o spoiler), termos uma boa travessia?

Na comparação com o mundo lá fora vemos algumas vantagens. A maior talvez seja o SUS. Vamos olhar como ele absorve o choque. E dinheiro parece que também não vai faltar. E algumas desvantagens. Os países orientais estão mostrando que em situações-limite um Estado eficiente, hierarquizado e com autoridade faz diferença. Parece não depender tanto do sistema político de cada um. Vide China, Singapura, Coreia do Sul e Japão.

O Brasil leva jeito de que começa a escalar a onda ainda sem muita coordenação, também por causa da guerra política. E há deficiências materiais. Testar, testar e testar para o novo coronavírus tem sido essencial onde as coisas vão melhor. E aqui? Que o SUS e o recolhimento das pessoas a suas casas, muito necessário, essencial até, compensem.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Avaliados pela estatística

A Itália registrou em um dia mais mortes que o maior número registrado em um dia na China. Já a Coreia do Sul, a própria China, Singapura e Japão parecem ter desacelerado com força a curva de novos casos, e também contido a estatística de vítimas fatais.

Ao final da pandemia, cada governo será avaliado por duas porcentagens. Quanto por cento da população ficou doente e quantos por cento dos doentes se recuperaram.

O governo brasileiro começa a transmitir a sensação de urgência diante do problema. Hoje foi uma tentativa de virada na comunicação. Eventuais pesquisas dirão se funcionou. Mas no longo prazo os números do impacto da pandemia aqui é que vão prevalecer para o julgamento.

Um problema: entre os grandes países afetados, o Brasil parece ser quem mais sofre de descoordenação entre as esferas da Federação.Tem a ver também com a desorganização da política, resultado da guerra aos políticos -e dos políticos -que já dura pelo menos seis anos.

Dá a impressão de que uns acham que podem se salvar mesmo se o resto afundar

terça-feira, 17 de março de 2020

Opção pelo isolamento

A preocupação com a economia comanda as idas e vindas do presidente da República diante da Covid-19.

Qual será o cenário depois da onda de contaminados aqui? Pois a curva já embicou para cima. Se há algum cálculo no heterodoxo comportamento presidencial, ele parece indicar a tentativa de repassar a terceiros a responsabilidade pela paradeira econômica.

Que já está vindo.

O cálculo faz sentido? Dentro de certos limites. Se a rede hospitalar colapsar pelo número excessivo de casos graves, o presidente sofrerá forte desgaste. Mas o ministro da Saúde e os estados trabalham para evitar esse cenário.

Se o SUS funcionar bem, Jair Bolsonaro poderá sempre dizer lá na frente que tudo andou na linha e que ele só quis conter a dimensão da crise econômica.

Bolsonaro continua beneficiado por dois fatores. 1) Apesar da grita, não existe no momento força real capaz de - ou realmente interessada em- removê-lo. 2) Ao trabalharem, ministros, Congresso e governadores trabalham também para o presidente.

É um jogo ousado. E perigoso, pois aposta num “isolamento quefortalece”.

O risco é um dia juntarem-se todos.

segunda-feira, 16 de março de 2020

O risco da casa dividida

Hoje parece ter sido o dia em que começou a cair a ficha das autoridades. Nações que enfrentam desafios extremos com a casa dividida correm riscos adicionais. Dois exemplos: a França de 1940 e a Rússia de 1917.

O coronavírus não chega a ser uma guerra na acepção militar, mas é um problema de dimensões gravíssimas em prazo curto. E exige alto nível de coordenação das autoridades públicas nos vários níveis. E entre elas e o setor privado.

Mesmo nos Estados Unidos, às vésperas de uma eleição presidencial e após três anos de guerras políticas sem quartel, os diversos protagonistas parecem começar a se acertar para tapar os buracos no casco do bote salva-vidas.

Pois se a epidemia do coronavirus está prevista para subir, atingir um pico e aí despencar, os problemas econômicos e sociais aqui decorrentes não vão evaporar por mágica, ainda mais numa economia há anos na mediocridade.

Hora de agir.

domingo, 15 de março de 2020

A hora de mostrar serviço vai chegar. A única dúvida é quando

O governo Jair Bolsonaro vem se equilibrando em quatro pernas: o maciço apoio empresarial inicial, a firme sustentação militar - na hierarquia e na massa, a concordância potencial da maioria do Congresso Nacional e da imprensa com a agenda econômica e o período de graça na sociedade, natural após rupturas. Beneficia-se também da aproximação com o presidente dos Estados Unidos, e assim evita algumas encrencas conhecidas.

As pesquisas dirão quanto durará a paciência popular com a lentidão da retomada na economia e nos empregos. Vamos ver se, e como, a desaceleração brusca provocada pela pandemia da Covid-19 vai mexer com os ânimos. É possível acabar funcionando de amortecedor das insatisfações. A não ser que o governo mostre uma extraordinária incapacidade de lidar com a situação. O caso italiano.

Há sinais de erosão prematura em alguns pilares. O Congresso acaba de tomar uma invertida do Tribunal de Contas da União, que suspendeu a derrubada do veto presidencial sobre o BPC. Faz parte do processo de retomada pelo Executivo do poder moderador. O TCU argumenta que tem de zelar pelo cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, ao determinar que toda nova despesa precisa ser compensada por uma receita adicional ou corte de outra despesa.

Veremos como o Congresso vai reagir a isso e ao apoio do presidente a atos em que manifestantes pedem o fechamento do Legislativo. A vingança é um prato que na política costuma ser comido frio. Mas vai saber?

Outro foco potencial de perturbação começa a aparecer nas dúvidas crescentes sobre a política econômica. Fica progressivamente claro que o Brasil está contaminado pelo vírus da demanda deprimida. E o encanto da opinião pública com a linha atual parece em diluição. Ainda inicial, mas visível. A palavra de ordem “reformas, reformas, reformas” começa a ser recebida com algum descrédito. Não a necessidade delas, mas a capacidade de enfrentar os desafios imediatos.

Claro que se for dado tempo suficiente, em condições políticas ótimas, toda orientação econômica acaba dando algum resultado. Só que este ano tem eleição municipal, da qual dependem em boa medida os deputados em seus projetos de recondução dali a dois anos. E daqui a menos de três anos tem eleição geral. Daí a importância política de saber se a retomada pós-Covid-19 vai ser em V ou U. Ou se vai acabar sendo um L, com o Brasil continuando a patinar.

A observação de outros países, especialmente China e Estados Unidos, revela ação em duas frentes: medidas para evitar que o excesso de carga acabe colapsando o sistema de saúde e providências para fazer a roda da economia voltar a girar o mais rápido possível. Aqui, a boa notícia para o Brasil é a China já estar em reignição, após conseguir conter radicalmente a expansão dos novos casos. O problema maior ali agora parece ser a importação de infectados.

Comum, em todo canto, é o desafio é mostrar serviço, para além do ativismo. Serviço e resultados. Na saúde e na economia. O Brasil ainda não atingiu o ponto crítico em nenhuma das duas frentes. Mas a hora vai chegar.

A única dúvida é quando.

Bolsonaro recaptura o lide. A que custo?

O presidente da República recapturou o lide no dia de hoje ao comparecer, celebrar e divulgar as manifestações. Ele domina a técnica. Não tivesse ido, o destaque seria a baixa participação.

E foi baixa mesmo. E o noticiário sobre os atos seria soterrado pelo da Covid-19. Ao participar, mesmo contra a recomendação médica e sanitária, não só jogou os atos nas manchetes. Conectou-os às abundantes notícias sobre a pandemia.

Tem um custo, claro. A hashtag #irreponsavel bombou no Twitter. Mas a coisa só terá efeitos práticos se o Congresso e o Supremo Tribunal Federal - alvos dos manifestantes - resolverem reagir de modo mais efetivo e prático. Não só em declarações.

Até este domingo, a tática dos demais poderes vinha sendo cautelosa, para não oferecer ao bolsonarismo o palco para levar definitivamente às ruas a luta pela retomada do poder moderador pelo Executivo.

Qual o limite dessa tática nos dois lados? Aguardam-se os próximos capítulos. Aguardam-se também os próximos números da Covid-19. Para ver qual será o custo final dessa operação política.

sábado, 14 de março de 2020

Hora de mostrar "gestão"

Hoje parece ter sido o turning point, a ideia de parar tudo que pode ser parado parece ter alcançado consenso social e político.

O Brasil sofre cronicamente de alguma descoordenação político-administrativa entre os entes federados, e isso fica visível na assimetria das medidas de combate à propagação do coronavírus. Mas a inércia agora parece ter invertido seu sentido.

Agora, na dúvida, a ordem é parar.

Esta é daquelas situações em que o Estado ganha importância, como nas guerras e grandes tragédias. Ele precisará cuidar, naturalmente, para os serviços de saúde funcionarem bem no stress, com foco no sistema hospitalar. É a hora do SUS. É a hora também de garantir o abastecimento, evitar a especulação e o sumiço dos produtos essenciais.

Como o governo Bolsonaro sairá lá na frente, quando a curva dos casos já estiver declinando fortemente? Simples: se as coisas tiverem funcionado, sairá mais forte. É tentadora a ilusão de achar que se os ministros vão sair ganhando e o presidente pode sair perdendo. No bottom line, é ele quem escolhe os ministros.

No fim das contas, quem é cobrado, ou adulado, é sempre o técnico que escala o time

sexta-feira, 13 de março de 2020

A curva achatada

A principal disputa política vem sendo entre o Executivo e o Congresso, sobre quem eventualmente terá a culpa se a economia voltar a embicar para baixo por causa da pandemia causada pelo novo coronavírus. O governo começou a movimentar-se com medidas anticíclicas, atendendo à pressão.

O problema? Colocar mais dinheiro na mão das pessoas ajuda, mas não parece ser suficiente numa conjuntura de disseminação do medo. O decisivo, como mostra o exemplo chinês, é antecipar ao máximo a retomada da atividade. Aqui ainda estamos na fase anterior, de desaceleração e parada progressiva.

Todas as medidas sanitárias são para achatar a curva, estender o problema no tempo para evitar o colapso do sistema hospitalar. Faz sentido. Mas isso precisa ser equilibrado com a necessidade de fazer a parada durar o menor tempo possível. Será aí que o governo precisará mostrar capacidade de gestão.

quinta-feira, 12 de março de 2020

O transatlântico e a lancha

O agravamento do quadro sanitário desencadeou forte pressão sobre o governo por ações de curto prazo para evitar que a desaceleração econômica tenha impacto ainda mais grave sobre a vida das pessoas e das empresas.

Antes, o governo tinha a confiança do mercado e do mundo político para conduzir o transatlântico ao porto relativamente longínquo.

Viriam as reformas, a confiança do investidor cresceria e então os capitais aportariam aqui para desencadear um ciclo benigno para as atividades produtivas. No momento este cenário está congelado, porque o dinheiro mundial está fugindo para os títulos do Tesouro americano. E não se sabe quanto vai durar a pandemia provocada pelo novo coronavírus.

O que se pede agora da equipe econômica é a habilidade de fazer movimentos ágeis com um barco menor, de condução mais nervosa. Uma lancha. O governo vai ter de mostrar capacidade política e gerencial imediata. Já está sendo cobrado por isso. Vai ter de desligar o piloto automático e assumir o leme balançante da embarcação.

segunda-feira, 9 de março de 2020

A noiva embelezou-se, mas o noivo está demorando a entrar pela porta

A política econômica de Jair Bolsonaro não mostra resultados brilhantes e suas premissas estão sendo questionadas. A saída de recursos externos da Bolsa bate recordes e o investimento privado continua muito abaixo do necessário para impulsionar a atividade, e portanto o emprego. E este é uma variável que pode fazer andar ou desandar o humor da galera. Diante do problema, o governo foge para adiante. Chama a rua.

Na teoria as reformas já realizadas e a queda dos juros da dívida pública deveriam atrair investimentos e estimular o consumo. Na prática ou não está acontecendo ou vai indo muito devagar.

Responsabilizar o Congresso pela pasmaceira econômica é moleza, no país em que o senso comum foi envenenado pela mistificação de que tudo é culpa “dos políticos”. Será? Desde o impeachment de Dilma Rousseff o Legislativo entregou aos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro os três pilares mais pedidos: o teto de gastos, a mudança nas leis trabalhistas e, principalmente, a reforma da previdência com o exigido 1 trilhão de economia em dez anos.

Aparentemente a noiva (o governo) embelezou-se para o casamento mas o noivo (o capital) está demorando para aparecer na porta. E o público começa a desconfiar. A orquestra e os cantores precisam caprichar para não deixar a peteca cair. Claro que se for dado tempo suficiente é provável que a noiva chegue. Mas na política o tempo é uma variável fora do controle dos economistas, está mais na alçada dos políticos.

E há o imprevisível, sempre muito difícil de prever. O novo coronavírus não parece ser ainda uma gripe espanhola, mas tampouco é um surtozinho de gripe comum. E traz com ele a desaceleração dos negócios pelo mundo. A China pelo jeito conseguiu estancar a expansão interna do contágio, mas o vírus e junto o breque nos negócios vão firmes para cobrir o planeta. Fingir que não é grave ajuda no discurso, mas os fatos, sempre eles, são teimosos.

O horizonte econômico não parece bom. E o governo dá sinais de enveredar para justificativas exóticas, como o “PIB privado”, e o apelo à mobilização da base. É sempre uma saída, mas talvez a correlação de forças atual não ajude. O dia 15 será puramente bolsonarista, e mesmo se mostrar alguma força exibirá junto algum isolamento. E já foi notado semana passada: uma vez desencadeada a dinâmica de rua é bobagem achar que tudo estará 100% sob controle.

O governo Jair Bolsonaro nunca teve obstáculos políticos reais. Como previsto, eles começam a aparecer na economia. Em vez de tentar resolver o governo cria problemas também na política. Se der certo será o caso de reescrever todos os manuais.

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A pouca paciência para a negociação política tem seu charme, mas também tem custo. O rompimento do presidente da República com o PSL está se mostrando algo assim não tão brilhante.

A Aliança pelo Brasil vai num ritmo muito abaixo do que previam seus inspiradores, articuladores e operadores. A eleição de 2020 já era. Talvez seja algo precipitado dizer, mas na velocidade que vai é bom o pessoal acender a luz amarela para 2022.

sexta-feira, 6 de março de 2020

As melancias e o caminhão

A sabedoria política diz que o eleitor sai de casa no dia da eleição não principalmente para eleger alguém, mas para derrotar. Se não dá para generalizar de modo absoluto, a coisa tem algum fundamento. Colhe o sucesso na urna quem, além de despertar o amor nos seus, sabe alimentar o ódio ao adversário. Daí que os apelos por uma política sem ódio acabem caindo no vazio, explícita ou implicitamente. Coisa de gente ingênua, ou esperta demais.

De vez em quando aparece um candidato “paz e amor”, como Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 ou Barack Obama em 2008. Cuidado, porém: mesmo o postulante que não odeia explicitamente precisa que alguém, ou muitos, odeie por ele. Lula colheu o fruto eleitoral de anos de ataques do PT ao tucanismo de Fernando Henrique Cardoso. E a eleição de Obama foi sem dúvida uma revanche contra o odiado governo de George W. Bush e suas guerras.

Sem esquecer o ódio dos negros contra a discriminação. E sem falar na raiva do povão por causa da crise econômico-financeira desencadeada com a quebra do Lehman Brothers.

A política dita "civilizada" não elimina o ódio de raízes ancestrais, e costumeiramente de características tribais. Apenas dá um jeito de as disputas serem resolvidas sem (muito) sangue. Aí diz-se que “as instituições estão funcionando”. Atenção: essa funcionalidade institucional não supõe necessariamente justiça, no mais das vezes apenas permite que a injustiça prevaleça de modo a não inviabilizar as coisas continuarem rodando na normalidade.

Do que depende esse “funcionando”? Alguns nutrem a crença no sistema ideal, que vacinaria as sociedades contra o vírus da solução violenta dos conflitos. Certas vezes é chamado de estado de direito. Trata-se de um fetiche. Esse “estado” nada mais é que relações sociais, portanto entre pessoas, relações impressas num papel. Ou num PDF. Mais provável é a taxa de “civilização” resultar do grau de equillíbrio entre forças propensas à destruição mútua.

Aqui você poderá dizer que o bom estado de direito tem a qualidade de forçar esse equilíbrio. E você terá alguma razão.

Desde o surgimento das armas nucleares fala-se em “equilíbrio do terror”. O custo de romper o equilíbrio não compensa, pois muito provavelmente a ruptura levaria à destruição mútua. Parece ter sido o caso do impeachment de Dilma Rousseff. Para o PSDB e o PMDB (hoje MDB), o custo de remover o PT do poder foi alto demais, sabe-se agora. Acontece. Errar é humano. Mas, sempre lembrando o Conselheiro Acácio, é inevitável as consequências virem depois.

São inteligentes as vozes a pedir frieza diante da natural radicalização política. Talvez não pareça, mas agem cautelosamente o governo, quando aceita que tem de negociar com o Congresso, e a oposição, quando recusa embarcar numa nova empreitada de impeachment. A situação hoje é de equilíbrio. O presidente preside, a oposição se opõe, a imprensa reclama. E as melancias vão se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada.

E quando a poeira baixa está todo mundo aí. No jogo. Melhor deixar correr assim.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.677, de 11 de março de 2020

segunda-feira, 2 de março de 2020

Como Bolsonaro navegará com algum vento contra? E a explicação da qual o governo pode correr, mas não conseguirá escapar

Um governo entra em zona de risco quando emerge certa coalizão político-social capaz de substituí-lo, e um sinal é aliados naturais, programáticos, demonstrarem mais propensão a sair que a entrar. Governos sabem que estão com o poder preservado quando, ao contrário, tirando o alarido, não se nota qualquer alternativa, e em vez de apelos pela derrubada do governante prevalecem os lamentos por seu comportamento.

A coalizão social que elegeu Jair Bolsonaro está essencialmente mantida, como mostram todas as pesquisas. Também a união programática entre a direita raiz e o chamado centro. O pensamento-padrão: “É ruim que as turbulências políticas possam atrapalhar o andamento das reformas.” Qual é a disputa, então? Como previsto lá atrás, o Bonaparte eleito precisaria travar uma guerra prolongada para retomar, na Brasília pós-Lava Jato, pelo menos parcialmente o Poder Moderador, institucionalizado desde D. Pedro 1º e enfraquecido entre 2015 e 2018.

O esvaziamento recente do Executivo acabou por dar asas a polos que costumavam se dobrar ao mando do Palácio. O Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União e, em boa medida, o Ministério Público. E um polo informal, a imprensa. Agora é a hora da marcha-a-ré, de fazer o caminho de volta da dispersão política. O presidente vem tendo algum sucesso, restando casos particulares. Um é o controle do Orçamento.

O debate orçamentário estimula delírios, como o de que estaria em curso a manobra pelo parlamentarismo dito “branco”. Trata-se de bobagem fantasmagórica, ainda que dita em tom solene por especialistas e combatida ferozmente pelo bolsonarismo das redes sociais. Ninguém está propondo retirar do Executivo suas atribuições, há apenas a disputa por um mísero naco da igualmente mísera verba federal destinada a investimentos.

Os deputados, principalmente, não querem depender do humor do Executivo para ter ou não recursos colocados nas suas bases eleitorais. E o governo teme um Legislativo, como se diz, empoderado pela autonomia orçamentária.

Se der a lógica, governo e Congresso vão acabar chegando a algum acordo. Será inteligente da parte dos deputados e senadores um acerto tático com o Executivo, deixando a este o ônus de explicar como vai fazer para alavancar a economia em tempos de coronavírus e ameaças de recessão global. Pois desta explicação o governo pode até correr, mas terá muita dificuldade para escapar, ainda mais se o Legislativo continuar entregando as pedidas reformas. E vai.

E um detalhe: como dito semana passada, o apelo presidencial à rua abre a janela para a oposição sair da natural hibernação pós-derrota. Mas ela continua com aquele probleminha. Os liberais revoltados com o fato de Bolsonaro não lhes dar a mínima pelota (prepararam o bolo do impeachment mas ao final não comeram) continuam preferindo o atual presidente à possibilidade de devolver o poder à esquerda, ou entregar a uma autonomeada centro-esquerda. Resistem até a atender a algumas demandas dessa turma, o que aí sim permitiria formar um bloco político-social alternativo.

Enquanto estiver desse jeito, Jair Bolsonaro não tem problema relevante com que se preocupar. Mas, atenção: ele que sempre navegou com vento a favor, pelo menos desde 2013, agora precisará demonstrar habilidade com vento contra. Uma hora o pão precisa aparecer. Governos têm de mostrar resultados, e os últimos números já não vinham sendo tão animadores, mesmo antes da onda de pessimismo econômico desencadeada pelo coronavírus.

A vida de presidentes com base congressual gelatinosa depende perigosamente da popularidade. Nunca é demais lembrar.